Chuviscava fino e os morros apareciam envoltos numa bruma alvadia e densa, quando o Coronel Juvenato Sá de Miranda desembarcou em Petrópolis o ventre à Falstaff, em bossa debaixo do sobretudo cinzento, a papeira mais gelatinosa e lívida no cansaço da viagem matutina, e dirigiu se, repelindo oferecimentos de tilbureiros e cocheiros de carros, para o hotel Rio de Janeiro, em frente à estação.
Malgrado a luz magoada da manhã chuvosa, a cidade serrana recendia toda como um grande ramalhete borrifado de água, tão linda, sob as neblinas que lhe aumentavam a poesia, qual branca fada sonhadora, estendida sobre tapetes macios, de um verde tenro.
As villas aristocráticas, entreabrindo-se preguiçosamente entre as camélias e azaléias dos jardins cheirosos, desvendavam salões modernos, de um chic estudado, que alguma criada loira, de touca e avental, espanava e arrumava, espreitando de quando em quando à janela a passagem dos carros, luzidios de chuva.
Saíam dos hotéis, ou entravam, chegando do giro matutino, figuras estrangeiras de uma estrutura diferente da brasileira — diplomatas robustos e hirtos, de face apoplética e bigodes ruivos, sólidos no pisar e duros no olhar, cujos músculos fortes se desenhavam sob os mac-farlanes de estofo pesado; senhoras alouradas e tesas, a gosto nos water-proofs caindo até os pés; misses frágeis e apressadas, sem quadris, sem seios, o cabelo em rolos na nuca sob o simples chapeuzinho de palha guarnecido com uma fita, que rufavam agilmente nas calçadas molhadas com os tacões baixos e ferrados nas suas botinas maciças. E cruzavam-se ao longo das avenidas, sob o leve toldo gotejante do arvoredo debruando os candes, as carrocinhas de comissários, com o diverso tilintar das suas campainhas, que faz reconhecer até de longe os donos — o Hugo, o Land, o Lopes, o Cruz, o Gross, encarregados de mandados e transportes para o Rio; cruzavam-se carroções de lenha e materiais, cujo condutor caminha à frente dentro da sua capa de borracha, rebrilhante de chuva, nos dias de mau tempo, e carros com os automedontes também embrulhados em agasalhos, na boléia, e carretinhas de leite guiadas por matronas vermelhas e rudes, metidas em sapatos de homem, quando não por algum rapazelho de pés descalços, muito alvos, e a cara sardenta sob um cabelo esbranquiçado.
Enquanto, na avenida 15 de Novembro,as lojas abertas já tinham vida, oferecendo aos compradores as hortaliças fresquíssimas, couves-flores de um viço raro, cenouras e rabanetes rubicundos, a verdura rendilhada e fina das chicórias e das alfaces, as salsichas e as belas pernas de carneiro, ser-vidas por uma açougueira tão rosada como a carne que as suas mãos robustas partiam, nas outras alamedas aristocratizadas pela vivenda do mundo elegante, o sono da noite ainda se prolongava nas tépidas alcovas luxuosas. Só fornecedores e criados, além do elemento estrangeiro, indiferente às intempéries serranas, se agitavam nas ruas por essa manhã de umidade: e sentia-se na cidade lânguida e formosa, como entorpecida ao bafejo inebriante da sua flora, da sua natureza essencialmente romântica, dos seus hábitos indolentes, uma existência outra que não a carioca, sem febres nem violências, de uma monotonia sultanesca, passada entre perfumes e matizes, ao incomparável fulgor de um céu todo azul ou à misteriosa penumbra das neblinas místicas, algodoando as serras que se recortam, altivas, nesse maravilhoso cenário de sonhos e melancolias doces...
A nada disso, entretanto, atendia o espírito prático do Coronel Juvenato Sá de Miranda, entrando pela sala de jantar do hotel Rio de Janeiro, a esfregar as mãos polpudas e curtas, de unhas roídas, que a friagem roxeava. Estava furioso contra a chuvinha que se obstinava em cair. E pediu com autoritário laconismo o almoço, gulosamente engolido com muito pão, muita manteiga e azeitona, cujos caroços cuspia no chão, sem ver os olhares com que a dona da casa, uma alsaciana trombuda o varava da caixa, a pensar nos motivos que o tinham trazido das suas comodidades no morro de Santa-Teresa a essas alturas brumosas de Petrópolis.
A verdade é que ele era um santo homem: e desde o Ceará, antes e depois de rico, como particular ou chefe político, quer na família, quer no circulo dos amigos e correligionários, ninguém dispensava a sua intervenção assisada, o seu parecer ponderado e o seu valioso apoio, em qualquer emergência grave de uma ameaça aos princípios do catolicismo, de que ele se constituíra o constante, o ativo, o intemerato, o formidável campeão nestes tempos de irreverente descrença:
No momento presente, bem angustioso para verdadeira fé religiosa, veemente e firme, trata em Petrópolis de um caso importante e assustador: o de um sacerdote que se declarara incompatível com as obrigações de ministro da igreja romana e deixara as ordens, abraçando a religião protestante e contraindo casamento. A nova profissão de fé desse renegado e o seu consecutivo matrimônio num templo protestante haviam escandalizado horrivelmente os católicos petropolitanos, tão ferventes; mas, como se tais crimes ainda não bastassem, eis que o ousado e recente protestante anunciava agora a abertura de um grande estabelecimento leigo de educação e ia instalar-se mesmo em frente ao mais antigo colégio católico da localidade...
Oh! que indigno arrojo! E os doutores Sant'Anna e Macieira, deputados federais, mas residentes na cidade serrana, tinham resolvido convocar uma grande reunião de católicos e católicas, com o fim de assentarem numa firme medida defensiva, congregando-se e apertando fileiras em nome da cruz sagrada, contra o perigo iminente de impiedade que andava tão perigosamente a lavrar. Fosse embora a guerra, insidiosa ou às claras, mas haviam de clamar às armas para o combate urgente.
Como convidados do Rio, tinham vindo o Coronel Juvenato Sá de Miranda, conterrâneo e amigo velho do Deputado Sant'Anna, o acérrimo advogado do catolicismo na Câmara, na Capital, em Petrópolis, e em cujo lar ia realizar-sé a reunião; o jornalista Camilo da Lira, velho, enfezado e mestre em sofismas teológicos; o Comendador Martiniano de Souza, benemérito e abastado protetor de asilos e obras pias; o Dr. Ramalho Dias, pequenino, sempre metido em luvas negras, não falhando nunca uma missa, e enfim o esgalgado padre Trigueiros, baiano, de uma verbosidade pernóstica, que de raramente envergar a batina, sempre em pândegas e choros, de viola em punho, repinicando um fado como ninguém, já trazia a veste sacerdotal com um desazo estranho, que parecia até cômico. Mas era padre, era santo: não o pudera esquecer o Dr. Sant'Anna em sua faina inquieta de indivíduo bilioso, como o Coronel Juvenato, também gordo e baixo, pelancudo, com uns olhos redondos e severos que gritavam virtude e austeridade na sua face amarela de filho desse mesmo Ceará, tão pródigo em gente de altos princípios. Era em coisas tais que pensava o Coronel, cuspindo os caroços das suas azeitonas como quem rejeitava da alma indignidades: e, apenas sorvido o café, veio palitar os dentes à porta do vestíbulo; chamou enfim um tilbureiro e partiu para a casa do Deputado Sant'Anna, um pouco afastada do centro. O rio Piabanha, apertado ali entre os barrancos das margens maltratadas, rolava, crescido pelas chuvas, com um murmúrio queixoso: e, por entre esse murmúrio, um rumor se escutava, mais forte, vindo das janelas de uma vasta sala aberta para o jardim próximo da rua.
Era a reunião católica; eram as vozes dos pios assistentes, discutindo com verbosidade, convicção e fogoso calor os atos revoltantes do sacerdote que afrontara as leis da Igreja Romana e via ser enxotado de Petrópolis pelos fiéis congregados.
A sua presença ali, nesse centro de inabalável fé, era uma suprema injúria: e, de resto, que tremendo perigo, esse colégio em que a infância beberia lições de uma liberdade de consciência contraria a todas as doutrinas da religião!...
A entrada do Coronel Juvenato foi saudada com palavras de viva simpatia, abrindo-lhe o seu velho amigo Sant'Anna um lugar à mesa que ele presidia, como cabeça da seleta reunião; e logo se ergueu D. Júlia do Amaral, piedosa e gorda senhora de face rubente, trajando um vestido de merinó preto já ruço, que atirou nervosamente para trás a espécie de cabeção padresco também preto, cobrindo-lhe os ombros — um mais alto do que o outro — e exclamou:
— Todos, todos os meios serão gratos a Deus, uma vez que se consiga expulsar o maldito desta localidade... Não deve haver escrúpulos...
Falava retorcendo um pouco a boca para a direita, como se sorrisse de um só lado, e as palavras lhe saíam assopradas, às vezes gaguejantes.
O Dr. Macieira concordou imediatamente: e esquelético, saltitante, pôs-se a sibilar, com a sua estranha voz de graves e agudos, que Mme. Amaral, uma das mais fortes influências do centro clerical petropolitano, resumira em dois traços justos e rápidos a sua própria opinião. Todos, todos os meios contra o renegado seriam agradáveis a Deus! Nenhum escrúpulo devia detê-los...
O Deputado Sant'Anna, da cabeceira da mesa, rolou os seus olhos redondos e severos pela assistência e disse com solenidade:
— O caso é este, meus senhores e minhas senhoras: uma casa de educação leiga vai abrir-se mesmo defronte do nosso mais antigo e prestigioso colégio católico, onde nós todos recebemos e hoje recebem os nossos filhos ou netos uma instrução virtuosa, de acordo com os santos princípios da religião católica, apostólica e romana, que professamos. É o mais torpe desafio lançado à nossa igreja pelo padre imoral, que renegou os seus votos de ministro de Deus e pretende ainda por cima contaminar com a dissolução dos seus ensinos a infância desta terra, se os pais não a defenderem contra semelhante elemento corruptor. Ora, a questão está neste pé — e foi para lhes ouvir o valioso parecer que os convoquei, agradecendo a gentileza do comparecimento. Podemos, nós, católicos ferventes, consentir que esse renegado da igreja se estabeleça em Petrópolis, fortaleza da fé?... E os seus olhos tristes de mocho interrogaram a sala. Um formidável clamor se levantou:
— Não, de modo algum!... Nunca! É impossível! Urge lançar mão de todos os recursos para expulsar daqui esse homem...
Uma voz fina casquinou:
— Vençamo-lo pela fome! Abra-se uma campanha difamando o colégio, seu meio de vida, antes que lhe cheguem alunos...
— Bravo! apoiado! é isso mesmo!... uivaram outros membros da reunião.
Aproximou-se então pesadamente o Padre Norberto, capelão do Colégio das Filhas de Santa Perpétua, que fungava a sua pitada de rapé no vão de uma janela, e, todo melífluo e doce, disse com um gesto prometedor da sua bela mão eclesiástica:
— Das mães cá me carrego... Eu lhes falarei, do púlpito e do confessionário, de modo que nenhuma ouse pôr seus filhos nesse ímpio colégio. Aqui a D. Chiquinha, a D. Júlia e a D. Leonor, como mães cristãs,é que bem podiam do seu lado auxiliar a nossa obra. Conselhos... Conversas...
— Pois não! pois não, Sr. Padre Norberto! romperam as damas reclamadas, num ardente assomo de zelo. O ex-comungado há de saber para que prestam santas línguas de devotas...
— E eu — atalhou com veemência o jornalista Camilo da Lira, ensaiando um passo de capoeira com as pernitas zambras, enquanto prendia atrás da orelha o cigarro apagado, eu mostrarei ao bandido a força da minha retórica, quando a adubo...
— De sarcasmos e sofismas... interrompeu uma voz risonha.
O jornalista pulou, de beiços arreganhados:
— Não, senhor! de argumentos tirados da minha ilustração, pois duvido que exista quem melhor conheça do que eu teologia, história, ciências, tudo... Se uso de ironia, é porque a armazinha fere, dói... E sei manejá-la — teve um sorriso medonho — sim, lá isso, sei De Deus me vem a força de brandir o gládio acerado... Argutia omnia vincit...
O Dr. Sant'Anna bateu com o punho na mesa para cortar a discussão; e ajuntou:
— Bem. O nosso Padre Norberto e aqui estas dignas senhoras, além de outras mais, encarregam se das mães petropolitanas... Eu tomo a mim a imprensa local, tanto que já comprei um jornaleco da terra para esse fim. Ali o Padre Trigueiros, no Rio, alude em suas prédicas ao sacerdote desbriado que despiu a batina sagrada — e o eco chegara até cá... O Dr. Ramalho Dias...
Pequenino, estendendo as mãos calçadas de luvas negras, o advogado respondeu logo, pressuroso:
— Comigo é no foro, onde o patife tem questões de interesse particular. Ele verá para o que serve a chicana...
Soergueu-se então da cadeira o Coronel Juvenato, que até aí se mantivera calado, observando a assembléia, de bochechas trêmulas como se mastigasse em seco:
— Meus senhores! eu lastimo que tão insignificantes sejam os meus préstimos, diante de tantas e importantes coadjuvações em serviço dos virtuosos princípios da nossa igreja... Mas, como todas as campanhas necessitam do nervo da guerra, que é o dinheiro, entro eu com a minha bolsa para quanto acharem preciso...
Vozes berraram, num entusiasmo:
— Bravo! Muito bem! Havemos de esmagar o ímpio! Abaixo o padre imoral!
Nesse momento, alguém lançou um tímido protesto, que explodiu como uma bomba de dinamite entre o grupo católico enfebrecido. Partira de um rapaz de aspecto plebeu e pacato, aloirado, vermelho, que dizia confusamente, com um sotaque alemão:
— Peço perdão a Vossas Senhorias, mas há engano... O padre é bom homem... E muito caridoso... Ele renunciou às ordens porque sua consciência mandou, mas só faz o bem... A senhora dele...
Esta última frase do alemão quebrou o silêncio de espanto provocado pela sua intervenção imprevista: e, num alarido terrível, toda a assembléia levantou-se para expulsar o impudente indivíduo, concluindo de pé as últimas determinações para enfim se dissolver em diversos bandos, que se espalharam pelas calmas avenidas de Petrópolis, enchendo-as de rumores e comentários.
O Deputado Sant'Anna quis acompanhar o seu velho amigo Coronel Juvenato, e saíram juntos, palmilhando calados o macadame umedecido pelas chuvas da manhã. Fizera agora uma estiada — e o coronel enfim murmurou para o camarada:
— Boas carnes, aquela D. Chiquinha, hein?
O outro respondeu indiferente:
— Sim, bem feita... É amante do...
Olhou em redor, curvou-se, e disse um nome ao ouvido do Coronel Juvenato, que pulou para trás, de surpresa:
— Que!... Desse padre tão austero?
O deputado teve um largo gesto filosófico, rosnando do fundo do papo:
— Coisas...
Então o coronel, depois de alguma indecisão, desabafou que ele também andava metido numa aborrecida história, que o trazia preocupado... Uma dessas tolices!
— Questão de mulher?... perguntou o deputado chupando o charuto. O outro disse que sim com a cabeça e o Dr. Sant' Anna então ajuntou:
— Pois é marchar, homem, que não te falta o elemento primordial: o dinheiro.
O coronel observou com abatimento:
— A pequena é casada e é séria!
— Ora! respondeu o deputado.
Mas o cearense prosseguiu, mais baixo, em tom humilhado:
— Há outra coisa: eu fui amante da mãe...
O Dr. Sant'Anna alargou desdenhosamente os braços, rolando os olhos redondos:
— Que grande impedimento! Se se fosse a pensar nisso! Mas todos nós caímos nas mães, para depois desejar as filhas...
Teve um riso rouquenho e acrescentou:
— São os trâmites do ofício...
Depois, como chegassem a uma esquina, ele se lembrou de uma visita que tinha a fazer naquele ponto e despediu-se calorosamente do coronel:
— Obrigadíssimo, meu caro... E está tudo combinado, não? Jamais consentiremos, que triunfe a desfaçatez do vício neste meio altamente católico...
— Decerto! confirmou o outro. Os princípios da igreja antes de tudo, e Deus, nosso pai, que nos ajude!
— Desce hoje mesmo?
— Sim. Vou pelo trem das 4 horas. Quero dormir nos meus cômodos de Santa-Teresa...
O deputado assentou-lhe um murro jovial no abdômen saliente:
— Tratante! ...vais ansioso pela pequena...
O coronel, porém, desenganou-o com um trejeito cômico de desalento, que lhe sacudiu a papeira mole e lívida:
— Qual homem! Não mora lá!... Só está a mãe e essa!... Tempora mutantur...
— Et nos in illis...acabou, rindo, o Dr. Sant'Anna.
— Então adeus!...
— Até o Rio!
Apartaram-se. E as neblinas úmidas continuaram a desdobrar-se, silenciosas, densas, grisalhas, envolvendo casaria e morros num frio sendal, recobrindo com o seu véu gotejante de garoa, com num instinto de pudor, todos os planos, e as manobras, e as hipocrisias, agitadas durante esse dia na muita linda e balsâmica cidade de Petrópolis — atual centro do mais acendrado e ativo fervor religioso...