Em casa de D. Adozinda Ferreira, Julieta abotoava as luvas, pronta para sair, e Olga ensaiava penteados ao espelho, só de colete e uma saiazita curta de baptiste cor de rosa com barra de renda, descobrindo-lhe as pernas redondas e os pezinhos calçados de borzeguins amarelos. Havia uma pitoresca desordem no quarto das duas irmãs, atulhado de roupas esquecidas sobre os móveis, com toalhas ainda úmidas caídas no chão, um vestido caseiro em rodilha no tapete, aos pés da cama desfeita, entre chinelas de sola para o ar, rosas dentro do jarro d'água do lavatório, uma botina errante aqui, um chapéu de cores vivas ali, todo um arsenal de coisas disparatadas em cima da cômoda, de cujos puxadores pendia, suspensa do cabo de níquel, em forma de gancho, uma sombrinha escarlate. E o ar recendia a pó de arroz e extrato Houbigant, com uma mistura de morrinha de roupas íntimas e pouco asseadas.
Em frente ao toucador, Olga dizia, curvada e de braços erguidos, o seio redondo e branco a fugir das bordas da camisinha encardida:
— Assim, assim é que o cabelo me assenta melhor, bem riçado e descendo, um pouco sobre as orelhas... Não é, Julieta?
Virara-se para a irmã, que agora prendia uma rosa ao corpete justo de lã bege com entremeios de renda ficelle, e esta respondeu com um momo desdenhoso dos beiços finos:
— Sei lá! tudo vai bem à tua cara de boneca assoprada. — Teve um risinho sarcástico. — E para quem são tantas faceirices?... Sempre para o Gilberto, que não se importa contigo?
A pequena fez-se vermelha de cólera:
— Ainda menos contigo, sabes? Estão verdes as uvas...
— Oh! isto cá não pega, minha cara, que outros são os meus planos, podes ter certeza...
E Julieta entrou a dar pancadinhas com os dedos enluvados no vestido, corrigindo-lhe as pregas, apurando a linha escorrida, que lhe desnudava o corpo esgalgado de figurino. Era feia de rosto, mas tinha um chic provocante que atraía os homens na rua. E a mãe, abatida por dificuldades de dinheiro, agora com dívidas que a preocupavam, deixava-a sair, entrar, andar por onde quisesse.
Olga, que tinha as cóleras vivas e rápidas como fugitivos clarões de relâmpagos, aproximou-se curiosamente da irmã, examinando-a com atenção:
— Julieta!...
— Hein?...E olhava-se de frente e de perfil no espelho do toucador.
— Quais são teus planos? Queres um marido rico, não é assim?
— Eu? um marido?... . Mas eu não pretendo casar-me, bobinha! Deus me livre do casamento... Que horror! Vejam a Celina!
Olga arregalou muito os lindos olhos espertos:
— Mas então?... Não compreendo...
E soltou de repente uma gargalhada:
— Ah! entendo... Andas com um ciúme doido de Celina, porque enfim o Gilberto..
— Tolices! gritou Julieta, exasperada. E. proíbo-te que me fales mais nesse Manfredo da roça um imbecil que nem sabe aproveitar o dinheiro para se divertir com bom gosto na capital. Mete-se a herói de romance e leva a quebrar os olhos como peixe que nada... entre duas águas... Sim, sim — apoiou mais Julieta — porque bem percebo o jogo: ele oscila entre a casada e a solteira, sem energia nem verdadeira paixão para se decidir... É um parvo sentimental... Tem apetites, não tem audácias. E eu gosto da audácia, do gozo, da vida agitada, da riqueza prática, sem sentimentalismo piegas... Saber querer — eis aí tudo!...
Olga tinha-se sentado à beira da cama desmanchada, acariciando os braços nus com os dedos gordinhos; e disse por fim, continuando a examinar a irmã, que compunha o véu, muito verbosa, exaltada pelas próprias palavras:
— Eu tenho cá uma idéia, Julieta: é que o Coronel Juvenato é que te servia... Que achas? O diabo é que homem tem mulher lá nos sertões cearenses...
— Ah! se fosse só isso!... contestou ambiguamente Julieta, com um leve rubor nas faces morenas. Mas o coronel tem outro objetivo, que não sou eu...
A pequena riu com malícia:
— Celina, hein?!... Pensas que não vejo?...
A irmã desfechou-lhe um olhar irritado e caminhou para a porta, voltando-se para dizer do limiar, apanhando a saia:
— Estás vendo muita coisa e eu hei de contar a mamãe...
— Ora, mamãe!... E tu, que fazes? Por que é que ela não repara na tua vida à solta?...
Julieta deu novamente uns passos para dentro do quarto, esquecendo a porta entreaberta, e sibilou com raiva:
— Eu tenho quase vinte e um anos, entendes? E ando farta desta casa velha, de tanta privação, de contas por pagar e meias remendadas... Mamãe sabe que tenho um gênio prático e não me ocupo de namoros. como tu... Compreendo a vida e procuro dinheiro sólido, base de tudo...
A pequena tinha-se erguido, com as faces a sua nudez encantadora resplandecendo ao reflexo da saiazita cor-de-rosa; e. também raivosa, exclamou:
— Então é melhor que te faças de uma vez cocotte...
Julieta estremecera, com um fulgor mau no olhar de súbito perplexo embaraçado até que respondeu, num involuntário assomo:
— Quem me dera!...
Mas um gritinho da irmã lhe atalhou o resto da frase e ela viu com espanto que Olga toda vermelha e cruzando os braços rapidamente sobre o seiozinho descoberto, corria a esconder-se atrás dos pés da cama, pedindo entre risos confusos e nervosos:
— Vá-se embora, Dr Gilberto! Vá-se embora, pelo amor de Deus! Foi Julieta...
Esta, virando-se, lobrigou o rapaz ainda parado no corredor e balbuciando desculpas aflitas, embora de olhar avidamente pregado no interior desse quarto, onde lhe aparecera um quadro tão gracioso. Ele ia passando por acaso e vira a porta entreaberta... Perdoassem-lhe a involuntária indiscrição... Por favor!...
— Está perdoado, doutor! concluiu Julieta com aspereza, reunindo-se a ele e batendo a porta atrás de si. Ouviram-se as vozes dos dois no corredor e mais o frou-frou do vestido da moça — depois, caiu o silêncio completo.
Então Olga saiu do seu esconderijo, e foi mirar-se de novo ao espelho, com risos calados e contentes, toda uma garridice sensual de gatinha repolhuda e linda, confiante no prestígio da sua carne rija, cor de leite, a que um sangue rico dava tons rosados de flor quase ainda em botão.
— Ora! ia murmurando com orgulho, é impossível que ele não me prefira à Celina... Mas ai! — deu um pulo — que aí vem mamãe e eu ainda não estou vestida para ir à aula...
Entrou a enfiar precipitadamente uma blusa, e a saia preta, enquanto a mãe, aos ralhos, penetrava no quarto, investigando tudo com o seu olhar fiscalizador de ativa dona de casa. Que desordem!... Era sempre isso, e ela que ficasse em casa a arrumar, como uma negra, para que as donzelas se divertissem na rua... Apre! estava farta de desmazelo... Ao menos a Celina fora sempre arrumada e não lhe dera tantos trabalhos... Até arranjara cedo um marido!...
A pequena encolheu irreverentemente os ombros. Era fresco, o Alfredo... Assim, ela dispensava para si... Queria melhor.
A mãe, entretanto, ia arrumando uma coisa e outra, apanhava as roupas, sacudia o leito — e ao mesmo tempo desenrolava um monólogo, fazendo tremer o assoalho ao peso dos seus passos decididos. Sim, ela não pretendia negar: o Alfredo saíra um marido pulha, pulhíssimo... . Nem dinheiro, nem brilho, nem posição... E a Celina era uma besta! mas onde estava o balde das águas servidas? Sempre fora do lugar... Que meninas desmazeladas! A Celina era uma besta, era; o fato, porém, é que se casara; e mesmo que agora desse uma cabeçada, não seria mais como se o fizesse em solteira. Já não tinha a mesma importância. E, a propósito, justamente...
Parou, diante de Olga, com um jarro na mão saia no braço esquerdo, e observou com veemência:
— A propósito, quero perguntar-te: que brincadeiras são essas com o Gilberto? Olha que ele gosta de Celina...
A pequena encarou a mãe com despeito e surpresa:
— Gentes! mas Celina é casada!
— E tu és solteira, pateta! Casa primeiro, que eu não quero histórias com uma filha menor...
As pupilas da menina alargaram-se de indignação:
— E essa, mamãe!... Então Gilberto não pode gostar de mim para casar? Ele porventura não requestou Celina para sua mulher?
D. Adozinda teve um gesto de sacudida experiência, que a borrifou toda da água do jarro: e respondeu amargamente:
— É que nesse tempo ele era pobre... Hoje é minha cara... Não digo que não te namore, mas, no fundo, está longe da idéia de casar. Ao primeiro rebate, viagem para Minas... . Depois, depois... Deixa de orgulhos, menina, que tua irmã é sempre a preferida...
— E mamãe consente?
A viúva fingiu não ouvir, muito ocupada em 1impar e esfregar com um trapo o mármore do lavatório. Então a pequena, que ficara pensativa, contemplando fixamente a mãe, acabou por dizer, preparando-se para sair e com uma significativa careta de nojo, muito pouco respeitosa:
— Hum!... mamãe é imoral!... Nunca vi!...
— Olga! berrou D. Adozinda, ameaçadora..
Mas a menina saltara ligeira para porta e de lá dizia, rilhando os dentinhos brancos e batendo o pé:
— Pensa que eu tenho medo? É imoral, sim.. Hei de repetir muitas vezes... E eu me casarei com Gilberto, que gosta de mim... Gosta, gosta, gosta...
Como a mãe se atirasse, enfurecida, brandindo a vassoura, ela fugiu, empurrando a porta, que se fechou; e D. Adozinda, exausta, o farto seio arquejante, resvalou numa cadeira, entre as roupas servidas, abraçada maquinalmente ao cabo da vassoura, murmurando com um beiço pendente e desanimado:
— Oh! estas filhas! que inferno, a família!...
A crise conjugal de Alfredo Galvão e Celina tinha amansado, e a moça parecia mais submissa, depois da reconciliação, não sacudindo tanto a velha casa com as alternativas do seu gênio, conquanto a ambigüidade do olhar e do sorriso a mantivesse impenetrável, mesmo na temporada dessa calma aparente. na realidade, ela vivia num combate íntimo permanente e só o mutismo continha as explosões que ameaçavam a cada instante irromper do fundo da sua alma concentrada. É que, se por um lado, a profunda ternura do marido a comovia e ela sentia amolecer-se-lhe o rancor, fitando os olhos meigos de Alfredo, evocando-lhe os rasgos de bondade, vendo sempre pai tão desvelado, tão paciente, capaz dos maiores sacrifícios pela família — a fraqueza do seu caráter burguês, por outro lado, a enchia de uma fremente irritação. Essa Bovary da rua das Marrecas sonhava uma existência mais larga, a independência da mulher elegante e rica, vestida com apuro, que sai só, vai a teatros e alimenta a corte ardente de muitos adoradores.
Invejava as irmãs, que desciam todos os dias de Santa-Teresa; tafulas, faceiras, conversando com os homens, aspirando o incenso cálido e estonteante das múltiplas admirações. E sentada nessa sala de jantar, um pouco sombria de D. Margarida, franzindo o nariz ao cheiro das panelas que a Joana remexia na cozinha próxima, ainda esguedelhada do leito, sabendo que nada tinha a esperar do seu dia senão a volta sempre igual de Alfredo, às mesmas horas, e depois algum passeio arrastado pela Avenida Central ou pelo Passeio Público, a dois passos, onde a música a penetrava de uma saudade histérica do antigo amor de Gilberto, hoje tão bonito e vigoroso.
Celina remoia uma imensa desolação, que lhe arrepanhava os traços finos. Debalde vinha D. Margarida oferecer-lhe uma fruta, um doce buscando entretê-la com as suas conversas um pouco atrasadas, de um sentimentalismo que parecia ridículo a essa nora de idéias modernizadas. A infância de Alfredo! a cor dos cabelos do Alfredo quando menino! a agonia e a morte dos cinco filhos que ela não cessava de chorar, contando trechos da vida deles, rememorando palavras, estroinices do colégio, coisas velhas, remotas que não podiam interessar à moça, no fundo distraída e detestando a sogra, como se dela lhe proviesse todo o tédio da sua existência! Tinha-lhe, porém: respeito; envergonhava-se às vezes de senti-la de uma envergadura moral muito superior à da sua própria mãe; e engolia as impertinências que lhe borbulhavam no espírito, prestes a materializar-se em irreparáveis respostas.
Chegou um dia o Galvão com a notícia, que ele dava a piscar maliciosamente um olho, defendendo o chapéu contra a investida ruidosa dos filhinhos, que avistara a Olga muito entretida a conversar com o Gilberto na esquina da travessa Flora. E mesmo o rapaz lhe comprara um ramo de violetas, que a pequena logo prendera ao peito, encantada.
— E está bonitinha, a tua irmã, ajuntou Alfredo; muito bonitinha! Ali há namoro... Quem sabe se não surgirá algum casamento? Eu estimaria muito.
Celina tinha empalidecido, sem um comentário; depois mais tarde, a sós com o marido, roçando-lhe a face pelo pescoço numa carícia imprevista, pediu-lhe em voz de mimo; rara da sua parte:
— Vamos jantar amanhã em casa de mamãe, sim? Eu sigo cedo com as crianças e tu sobes ao sair da Repartição...
Mas o Alfredo não podia, não podia; tinha muito trabalho com a mudança do chefe, esperando ser promovido a oficial, e andava derreado... Iriam juntos no domingo, sem falta... Mais um bocadinho de paciência! O que ele sentia!...
Então Celina emudeceu e fez-se de novo sombria.
Ao outro dia, Alfredo na secretaria, a Faustina, criada das crianças, veio anunciar com espanto que estava à porta o Coronel Juvenato, perguntando por Celina.
— Abra a sala e faça entrar! ordenou a moça, muito perturbada, levantando-se com um rápido olhar desolado para o roupão enxovalhado de chita e corrigindo às pressas o desalinho do cabelo. Que será, meu Deus?!... Mamãe estará doente?
D. Margarida ergueu os olhos fundos e perguntou, fitando-a por cima dos óculos:
— Vais receber esse homem na ausência de teu marido?...
— Por que não? respondeu Celina em tom agressivo. Estou acaso prisioneira nesta casa?...
E, sem convidar a sogra para vir à sala, correu ao quarto, deu um jeito com o pente à massa ondeada do cabelo, passou o arminho com pó de arroz sobre as faces e dirigiu-se ao corredor, atropelando no caminho as crianças que insistiam em lhe acompanhar os passos.
— Já para dentro!... Apre! que não me largam as saias!...
Ela, finalmente, não gostava do Coronel, cujos olhares lúbricos muitas vezes a tinham escandalizado. Achava-o de resto feio, grotesco, com essa papeira amarela sempre a tremer, a cara também gelatinosa, os olhinhos piscos sob uns supercílios grisalhos e duros, que davam à sua obesidade um aspecto autoritário de ente mau. Mas ele chegava de casa da mãe; era alguém lá de cima, desse centro risonho que a sua alma entediada apetecia; e, depois, a riqueza do homem o revestia, malgrado tudo, de um prestígio que tornava a sua visita agradável — e Celina entrou na sala com um secreto sentimento de orgulho satisfeito. Sentia-se uma personagem procurada.
— Que surpresa, Coronel! disse-lhe, entregando a mão fina e macia ao aperto demorado dos seus dedos curtos.
Mas ele não vinha, como ela pensava, da parte de D. Adozinha, não!... Vinha por si trazido por umas saudades tão vivas, que não pudera mais dominá-las
Celina recuou um pouco a cadeira, corando, embaraçada pela expressão ardente da face do coronel; e ele perguntou-lhe:
— Fiz mal?
Ela hesitou... Não, isso não... Mas o Alfredo é que talvez não gostasse... sentisse ter o coronel escolhido para a sua visita essa hora em que ele estava na repartição.
— E que eu não vim visitá-lo, a ele: vim unicamente por si, por si, fique sabendo...
E quis segurar-lhe a mão, que Celina puxou, com um instintivo olhar de medo para a porta. O coronel compreendeu, aborrecido:
— A velha está aí, não? perguntou.
Esse modo desdenhoso e familiar feriu o melindre bizarro da moça, que franziu as sobrancelhas finas, num desejo de repor esse audacioso no seu justo lugar de visita respeitosa. Mais reservada, retorquiu em tom de estranheza:
— É à minha sogra que se refere? Sim, D. Margarida está em casa; e os meus filhos também estão com ela. — Fazendo-se convencionalmemnte amável, ajuntou: — E como vai mamãe? As meninas têm passeado muito?
O coronel Juvenato recostava-se agora na cadeira, bisonho e trombudo. Ora, a pequena!... Mas ele ia dar-lhe uma lição; e perguntou com estudada malícia:
— Não quer também notícias do Dr. Gilberto?
Celina amuou, muito vermelha.
— Pois eu lhas darei, com prazer. O rapaz anda esplêndido, já consolado da ausência de certa pessoa d'antes muito querida, e freqüentador assíduo das portas do Instituto Nacional de Música... Oh! é uma paixão inocente, a da arte musical...
Sem uma palavra, dissimulando as picadas ao seu despeito, Celina deixava-o falar, com um calor insuportável nas faces: e ia pensando na volúpia com que castigaria o Gilberto e a Olga. Que ela não queria o moço para coisa nenhuma: era casada; mas esquecê-la o traste desse modo, quando tanto jurara adorá-la, mesmo sem esperança — e só porque ela não ia a Santa-Teresa — que desaforo! que vileza de homem. Esfriavam-lhe as mãos, de raiva concentrada...
Então o coronel, que a estava achando linda nesse rubor, nessa emoção, correu os olhinhos pela sala antiga, mobiliada com um sofá e consolos de jacarandá, sobre cujo tampo de mármore se namoravam desde quarenta anos um pastor e uma pastora de porcelana, piegas e dengosos no seu eterno sorriso de louça; examinou umas flores artificiais da mesa central, recobertas por uma gaze verde, e os quadros, um retrato a óleo muito escuro do avô de Alfredo, suspenso sobre o velho canapé, bordados encardidos, um álbum anacrônico — depois do que, voltando à Celina, disse-lhe com veemência crescente, todo trêmulo:
— Que cenário indigno de uma mulher da sua ordem! Como pode viver aqui, estiolada entre estas antiguidades lúgubres e poeirentas, Celina? sem conforto, sem uma auréola digna da sua beleza, deixando escoar-se sem proveito os melhores anos da sua mocidade? Escute, minha filha... Eu a estimo desde pequena e dói-me vê-la assim tão fora da moldura que merece e eu poderia dar-lhe... Poderia, sim!... E só você querer. Se eu ando doido de todo!...
Aproximou-se mais, com os olhinhos injetados, e a moça encolheu-se, achando-o medonho; ela gracejou por fim, entre o medo e o sarcasmo:
— Mas, coronel... tenha modos... Lembre-se que Deus não admite o que o senhor está propondo... E com os seus princípios!...
O cearense sacudiu rudemente os ombros:
— Ora, menina, Deus não se mete nestas fraquezas humanas... Não fale, não proteste... E assim! É isto! Uma moça bonita, como você, não pode afundar numa existência igual. Precisa de luxo, de realce, de brilho — e eu quero... Mas não me fuja, que tolice!... Eu não lhe faço mal. Então, Celina?...
É que a mulher de Alfredo fora refugiar-se no sofá, distante do coronel, agora muito afogueado, cujos mãos audazes buscavam prender a cinta fina da moça com gestos enlaçantes, enquanto a boca ia continuando a tartamudear asseverações de um interesse todo paternal, sem malícia.
Celina saltou afinal para o centro da sala, inquieta, ordenando:
— Coronel! contenha-se!...
Ele, porém, rugia entre dentes, com a gelatina, da face a tremer:
— Que tolice! Eu não lhe faço mal, pois que a estimo. Olhe venha sentar-se aqui, aqui, para conversarmos. E dou-lhe tudo, casa, dinheiro, jóias, toilettes — o que quiser... Levo-a até para a Europa... Terá carro, automóvel... Mas ouça, menina... Oh! Celina!
Um brusco recuo da moça derrubara uma cadeira e ambos voltaram depressa aos seus lugares cerimoniosos, ele amarelo, arquejante, ela de olhos refulgentes de cólera, escutando; e, no súbito, silêncio da sala, sentiram passos arrastados no corredor. Numa conivência forçada, fingiram então prosseguir num diálogo já encetado e a porta abriu-se, aparecendo D. Margarida a conduzir pela mão os dois netinhos lavados e de babies, trocando banalidades. Ele ia passando excepcionalmente por ali, com um negócio no quartel dos Barbonos, quando se lembrara que a família Galvão residia nessa rua e então subira, para apresentar os seus respeitos. A senhora D. Margarida estava melhor dos seus antigos incômodos? Parecia-lhe bem disposta...
No íntimo, delirava de furor. Velha maldita! Pudesse Satanás carregar com ela para o inferno. À saída, só a Celina o acompanhou até a cancela, ficando D. Margarida no meio do corredor com as crianças. Celina ia cerimoniosa e grave. E o coronel desfechou-lhe ao descer esta frase sarcástica, a meia voz:
— Tem algum recado para o Dr. Gilberto e sua irmã Olga?...
Ela respondeu, também irônica:
— Obrigada! eu mesma lhes direi o que for preciso!...
— Bem se vê que prefere a fruta verde... casquinou o Coronel, despeitado: e desceu a escada, deitando-lhe um olhar de rancor.
D. Margarida, então, veio ao encontro da nora.
— Celina! Convém que este homem não volte mais aqui...
Falava em tom calmo, pausado, mas sevei, e Celina logo se perfilou, melindrada, forte, afinal, porque sabia não ter delinqüido, inquirindo em voz de desafio:
— Por que?
O menospreço do Coronel, ousando faltar-lhe ao respeito no próprio lar conjugal, onde tentara possuí-la de surpresa como a qualquer criada cobiçada pelos seus sentidos— esse menospreço já lhe aparecia esbatido, desde que a sogra tocava na sua liberdade de receber quem ela quisesse.
E ficaram as duas a olhar-se, como já um dia, em Santa-Teresa — a pupila de ambas mergulhando uma na outra, medindo-se, tentando descer ao abismo impenetrável das almas, até que D. Margarida foi a primeira a desviar a sua vista desta outra vista quase insolente e murmurou, com um pálido sorriso que lhe riscou a face envelhecida de rugas amargas:
— Por nada!... Basta!
Girou lentamente, de volta ao seu recanto de velha na sala de jantar; e ia suspirando dolorosamente, de pálpebras baixas:
— Que enigma cruel, esta nora!