Cirilo Pereira, o venturoso marido de Nham Pombinha, chegado, na tarde anterior, do Rio Grande, lia comodamente repoltreado numa preguiçosa a folha de sua predileção, enquanto a esposa, debruçada sobre o peitoril da janela, regava, negligentemente, uns jarrões com viçosíssimas flores.

Lindíssima, apesar de um pouco fria, aquela manhã de junho, que Pombinha afrontava, toda contente, com as faces muito coradas, uns fiozinhos de cabelo em desordem, na testa, aparentando grande preocupação por aquela delicada tarefa.

Entrou um criado trazendo o café com leite do costume, lardeado de biscoitos de soda, com os quais o estômago de Cirilo dava-se como Deus com os anjos.

Cirilo tomou uma das xícaras, pondo-a sobre a mesinha ao lado da preguiçosa, enquanto sua mulher, pousando o regador a um canto da janela, aceitava a outra xícara, que o criado lhe oferecera, antes de sair por onde entrara.

Chegou ela aos lábios, delicadamente, à borda da xícara que tinha entre os delgados dedos e sorveu alguns goles. O velhadas tomava o seu quinhão sorvendo o líquido com estrondo, com os beiços em bico, e atulhando a boca de biscoitos, como se eles o estivessem ameaçando de fugir. Reatou, entretanto, a leitura da gazeta, balançando a cabeçorra calva e escalavrada nas passagens em que o articulista falava mais de perto às suas inclinações. Naturalmente, o nosso homem se estava abarrotando de política, em algum artigalhão massudo, em que o governo tomava a sua cossa e a oposição era guindada às nuvens, ou vice-versa. O tema eterno, desde Adão e Eva, que mais felizes do que nós, viveram num tempo em que não havia jornais.

Decorreram alguns minutos. O honrado casal acabava precisamente, de chupar a última gota de café, quando, subitamente, Cirilo, arregalando os olhos e limpando as migalhas de bolachinhas de soda, que lhe tinha agarrado ao bigode, exclamou:

— Oh! Oh! Cá temos um novo caso de feitiçaria. E parece que desta vez entraram na coisa pessoas de estadão.

Nham Pombinha estremeceu, levemente, mas dissimulando com muita arte as suas apreensões, perguntou:

Feitiçaria? Onde?

— Ora, ouve lá:

Cirilo dobrou o jornal ao meio, alisando-o sobre a coxa, pô-lo em pé, ajeitou à luz que entrava pela janela e leu.

O jornal fazia uma narração muito estirada dos acontecimentos ocorridos, havia dois dias, em casa do Caboclo, não esquecendo de apimentá-los com enxerto de episódios de um grotesco pantagruélico, principalmente, nas cenas do do caixão de milho, em que figuravam o Maximiliano, o Elesbão Soares e Nham Pombinha.

Esta fazia prodígios de dissimulação para conter-se, sentindo, de quando em vez, desfalecimentos, passando a palidez à vermelhidão, desta à palidez, e, sobretudo, experimentando, veementes desejos de sair da varanda, sem dar a perceber ao marido, que o fazia para não ouvir o resto daquela impertinente narrativa.

— Que te parece, hein? Isto é uma patifaria, bradava o Cirilo indignado, é uma coisa para a qual todo o rigor da políria seria pequeno! Coisa assim! Ora vejam: este diabo do Caboclo a dar sessões de feitiçaria, a que horas da madrugada, para seduzir a gente honesta, e quem sabe para dar cabo dela!

E quem será a figurona de que fala aquii a gazeta? Ah! mulheres! mulheres! Ve tu, onde se foi esta meter. Olha, se fosse cá gente minha, amalgamava-lhe as costelas, palavra de honra.Lá isso era com certeza. No século XIX! É incrível!

A Pombinha calada, fora de novo à janela, e disfarçava remexendo nas flores, ao acaso.

Estava muito quieta. Uma vez que não se citavam nomes, o negócio era outro.

— E o negralhão? Ora dá-se! Quem lhe fizesse um feitiço!... O diabo foi terem escapado todos, e não se sabe quem é a tal figurona. Não entendo porque se dão dessas contemplações. Se fosse uma pobre qualquer, a gazeta punha-lhe o nome comtodas as letras. Não concordo. Cá comigo, era ali! O nomezinho todo, para escarmento. Que achas?

— Sei lá! Não me meto nessas coisas. Se a figurona, como tu dizes, foi a essa casa suspeita, talvez tivesse as suas razões.

— Razões! Razões de cabo de esquadra, com certeza! Não há razões que legitimem a ida de uma mulher honesta à casa de um feiticeiro. Pau é o que falta amuita gente boa! Pau é o que é!

E o Cirilo remoeu o seu mau humor espetando um charuto na boca e acendendo-o com a mão trêmula.

— Olha, vai lá dentro e manda-me trazer o conhaque. O diabo da notícia fez-me suores frios.

Aquilo pareceu à Pombinha uma inspiração celestial. Com rapidez do raio, seu cérebro abriu-se para colher este pensamento tremendo:

E, se eu pusesse o licor do Caboclo dentro do conhaque...?

Era questão de dez gotas. Não precisava de mais para os primeiros efeitos — mas, se sucedesse algum desastre? Se, em vez dos resultados com que o feiticeiro contava, o Cirilo ficesse, como tantos outros, idiota chapado, ou tivesse uma síncope, que o levasse para melhor mundo ou ainda, fosse acometido de uma paralisia que a incomodaria, a ela Pombinha, para o resto da existência?

Era preciso cautela.

Com essas idéias desconcentradas a tumultuarem-lhe no cérebro, trêmula, agitada, sem saber bem o que fazer, Pombinha dirigiu-se para o interior da casa afim de fazer servir ao marido o conhaque que pedira.

Mandou trazer o precioso licor da dispensa, encheu com ele um cálice, e tirou do corpete do vestido o vidrinho misterioso que lhe fornecera o Caboclo, e que até aí não deixara. Desarrolhou-o, e olhou em torno para assegurar-se de que ninguém a espreitava.

Não havia nada suspeito. A casa estava toda entregue ao movimento das primeiras horas da manhã, e cada criado ocupava o seu posto, na faina de costume. Aos ouvidos de Nham Pombinha chegavam apenas o chilrear da passarada no páteo e o batucar surdo dos bifes na cozinha.

Entretanto, a esposa de Cirilo hesitava ainda, temerosa dos resultados da droga do Caboclo.

Eis, porém, que a voz do marido se fez ouvir da varanda.

— Oh! Pombinha! Não vem esse conhaque?

Então,ela resolveu-se. Curvou-se um pouco agachada, aproximou o vidrinho à borda do cálice, vazou no conhaque dez gotas bem contadas de um líquido cor de topázio.Muito parecido com o licor da predileção do Cirilo, e que, ao contrário do que Pombinha esperava, não mudou de cor.

Em seguida, tomando o cálice entre os dedos, sacudiu-o, circularmente, para misturar bem as duas substâncias: po-lo sobre um pratinho de vidro lavrado, e dirigiu-se à varanda.

O Cirilo estava já na página dos anúncios.

Pombinha acercou-se do marido, ainda não reposta das comoções que, havia há poucos minutos, a tinham assaltado, de modo que o cálice tilintava, levemente, sobre o pratinho de vidro.

Mas o Cirilo não reparou nisso, não por estar a cemléguas de suspeitar das arteirices da esposa, como pelo interesse que lhe despertava a leitura da folha.

E sem cerimônias, de um só jacto, atirou o conhaque às guélas, engolindo-o com impassividade do habitué.

Deu uns estalinhos, chegando a ponta da língua ao céu da boca, limpou o bigode, dobrou depois o jornal, e levantou-se, abrindo os braços e esticando-os para os lados, num espreguiçamento deleitoso.

Por último, alisando com as pontas dos dedos as faces de Pombinha, e aludindo ainda à notícia da sortida policial na casa do Caboclo, disse-lhe:

— Tu, ao menos, não és capaz dessas tolices, hein? Sempre ajuizadinha.

— Eu? Ora, que idéia extravagante?

E sairam ambos, cada um para o seu lado.

Ele, dirigindo-se ao escritório, onde ia trabalhar com o guarda-livros; ela para o interior da casa, para ativar os preparos do almoço.

Davam as nove horas.

A passarada do páteo continuava a chilreae, sob a luz diáfana de um sol puríssimo de inverno.

Um papagaio amestrado, no passadiço envidraçado, perguntava pela décima vez, quem ia à caça; e da cozinha com um perfume de quitutes bem adubados, vinha sempre o rumor surdo do batucar de bife.

Continua...

D. Salústio
Correio Mercantil, 05 de novembro de 1893.