Nessa mesma tarde — como o diabo as arma! nessa mesma tarde, assim pela volta das cinco horas, depois de competentemente jantada e deixados em casa à criada as recomendações para o dia seguinte, a D. Claudina de Morais, acompanhada de sua jovem filha Doricélia, resolveu-se a ir fazer uma visitinha à sua vizinha, a Nham Pombinha. Contos largos.

É bom saber-se que Doricélia era uma verdadeira pamonha, uma verdadeira posta de carne ensacada em vestidos sempre de cores variegadas, como um pano de teatro.

Mole, pesadona e um tudo nada de língua pesada, tinha uma paixão formidanda pelo Hilário, e como o rapaz, amável sempre, cumprimentava-a como vizinha, quando saindo ou entrando em casa, passava-lhe pela janela — a menina foi cozinhando do gordo do coração — aquela constipação amorosa, com um calor total, que a acreditar-se D. Claudina, mais um pouquinho de fogo na máquina, era negócio para temer explosão.

D. Claudina, velhota, frescalhona e andeja, puladinha, uma como cobra mal matada, assim que percebeu o derriço da pequena, aí língua para que te quero! não mais descansou.

Via Hilários em todas as esquinas e todas as horas: bizarro, em toiletes claras, sisudo, em vestuários pretos, sob desabados chapéus, de botas russilhonas, e lá — longe — caminhando de pressa.

Com uma volubilidade espantosa, D. Claudina, variando, repetia seguidamente o mesmo estribilho:

— Não sejas boba, menina; não deixes escapar> Olha, logo jogamos o víspora, e se queres mandamos convidar o pássaro. Aquilo sim, aquilo é que te convém... Aveza... e é um homem... Eu to digo... Disso conheço eu... Não vez o teu pai? quando mal se aprecatou... zas, traz, estava seguro! Repara bem, filho único, pai velho, madrasta moça. Tu verás... Mas também tu ficas aí como água morna. É preciso ser jeitosa. Vamos saindo da concha.

— Mas, mamãe...

— Psiu! Psiu! Cala a boca. Mas eu sei um meio seguro que me ensinaram. Não vês, como o teu pai é caseiro? Ah! Ah! é um segredo, é um segredo... Eu sei bem quem já decidia isso enquanto o diabo esfrega o olho: era o Caboclo, era, aí está. Te garanto. Juro.

— Mas então, a gente vai se meter na casa de um Caboclo? Acudiu com uns resquícios de bom senso e embatucada Doricélia.

— Vai, sim; por que não?

— Mas a mamãe já não disse que tinha uma figa milagrosa de dente de jacaré?...

— Tenho, sim tenho. Mas de que serve, não dirás; seu Hilário não vem cá em casa? É preciso que ele venha para se fazer as três cruzes nas costas... Arranja, arranja-te!

— Mas como há de ser?

— Pois, vamos visitar o seu Cirilo.

— Mas nós nunca fomos lá.

— Não faz mal, vamos agora.

— Mas...

— Vamos! É o verdadeiro. Olha que daquilo não anda aos ponta pés; mete-te a namorar algum bigorrilha que me há de vir comer os olhos da cara... Queres? Vai te vestir!

— Mas, como há de ser?

— Muito simples. Fazemos a nossa visita, eles nos pagam; nós voltamos lá, e eles tornam a vir cá; tu fazes compoteira de doce de côco e mandas ao velho, ele te manda logo umas flores; quando o rapaz passar, tu suspiras; damos um chá de garfo dançante; eles vem; eu então preparo um bolo especial para o moço e faço trabalhar a minha figa de dente de jacaré. Então, que tal?

— Mas, se papai...

— Quem manda aqui sou eu. Vai para a rua jogar o tal bilhar. Há de ser assim, porque eu quero... — mas eu tenho vergonha, mamãe...

— Mas... e o casamento, rapariga?

Olha que tu já tens idade. E o Hilário até tem jeito de bobo... podemos caçá-lo bem.

— Está bom, mas vamos amanhã...

— Pois sim, amanhã...

Estes diálogos eram freqüentes entre a gasguita D. Claudina e a abundante Doricélia; mas como se vê, sempre concluiam pelo adiamento da almejada visita, — para amanhã.

Tantas foram, porém, as investidas, que afinal chegou a resolução. Durante o jantar tinham falado no assunto, porém o seu José Pereira de Morais foi às nuvens e voltou com uma formal recusa.

— Nada! Não quero visitas. Já briguei com aquele Milorde do tal Hilário por causa do Quatro-olhos, um cachorro de estimação! Não dou o braço a torcer!

Mas que tem isso, criatura?

— Que tem? Pois só porque o cachorro esfregou-se por ele e sujou-lhe as calças de barro, era um motivo para ele, aquele assassino, dar-lhe uma porção de bengaladas! Perdi a cabeça...

— Ora, pois, havemos de ir.

— Não quero! Rugiu o Pereira de Morais, atirou o guardanapo sobre a mesa, virando o resto do café de sua xícara, meteu um palito entre os dentes, um cigarro entre os dedos, o chapéu na cabeça, e abalou, abalou o José Pereira de Morais, disposto a não voltar mais... aquele assunto.

— Pois, vamos. Havemos de ir, esganiçou D. Claudina. Menina vai te aprontar.

Pum! fez-se à porta do meio batida pelo pulso embravecido de Morais.

Discretamente, vibrou a campainha da porta.

Nham Pombinha, que estava na sala de visita, relendo o jornal, bandido, que trazia a notícia da busca policial, Nham Pombinha acudiu presurosa à porta e abrindo-a mostrou o seu busco moreno tão animado por aquele mágico par de olhos negros, e quase, quase recuou entre o admirada, o curiosa e o aborrecido.

— Que massada! articulou entre dentes. E expandindo um largo sorriso, abrindo de todo a porta, arredou-se um pouco e disse um tanto curvada: — Façam o favor! Entre!

— Com sua licença, disse D. Claudina. E atropelou a frente.

Depois de entrarem, encostada à porta e antes de se sentarem, meneou para o lado o corpito azougado e com um gesto soberbo de pose, garganteou o prelúdio:

— Apresentou-lhe a minha Doricélia. É tão sua amiga! Nem imagina, vizinha! Todos os dias fala na senhora.

— Sentem-se, sentem-se.

— Estimo muito. Que bonito nome, é um verdadeiro gorgeio das avezinhas imbeles!

Nham Pombinha não se emendava: sempre sutil no primor das frases.

Houve um largo silêncio. E nem podia deixar de haver. Nham Pombinha lembrava-se das cacetadas que o robusto braço do Hilário descambara no Quatro-olhos, o mimoso cão do Morais. Dona Claudina agitava-se na cadeira, alinhando os retalhos, para poder conduzir simpaticamente à sua visita.

Doricéia olhava para o teto batendo com o leque no joelho e respirando alto, opressa. Toda de branco, com uma larga faixa cor de rosa. — Que candura!

Aquilo já estava se tornando ridículo, Nham Pombinha, em seus livros, sempre lera que as visitas se fazem tagarelando.

Incitou os debates:

— O senhor seu marido, de saúde?!

— Bem, obrigado. Ele queria muito vir, mas as ocupações... E depois tem andado com uma tosse tão forte...

— Ah! o Cirilo também não vai passando bem.

— É, ele parece padecer...

— Não; isto é de tempos para cá.

— E o sr., seu mano?

— Meu mano!

— Sim, aquele moço, que mora aqui.

A ladina D. Claudina bem sabia o que dizia, era só procurando ser amável para com a Nham Pombinha.

— É o meu enteado, o Hilário, disse Nham Pombinha. Muito bom moço.

— Ora vejam; pois eu jurava que eram, os dois, irmãos. São tão parecidos, não é Doricélia?

— Não acho, mamãe.

— Pois eu acho. E a senhora?

— Eu! nem por eirrus, cumulus, respondeu Nham Pombinha, querendo dizer, provavelmente, que nem por sombras.

Novo silêncio.

Agora, era Nham Pombinha em devaneio, batendo com o salto da chinelinha, chique, cuja biqueira de verniz, aparecia, rápida, a furtos, se sob a fimbria do seu roupão de bonita flanela cor de havana, uns grandes ramos encarnados.

Depois, aos poucos foi se animando o grupo, e discreteando sobre vários motivos esgotaram as damas umas puxadas horas sem que tivesse gasto dez movimentos de palavras falada à graciosa Doricélia.

Este amorzinho só fazia largo dispêndio de palavras, era quando encontrava chá frio ou sopa quente.

D. Claudina exibiu-se em toda a florescência da sua elétrica pessoa.

Dava pequenos pulos na cadeira, gesticulava fogosamente e entremeava na conversa umas risadas rápidas, apenas trinadas mas nítidas e irritantes pela abundância.

Enfim, pouco colheu para o seu projeto, mas avançou um caminho imenso quando com sua licença, ergue-se e beijocou muito chuchurribiadamente as aveludadas faces da Nham Pombinha, e disparou o convite já de há pocuo engatilhado:

— Agora, minha senhora, apareça; teremos muito gosto, o José Pereira há de estimar muito, ele simpatiza muito com todos aqui.

Conto consigo. Adeus. Até outro dia.

— Passe bem, disse Doricélia a Nham Pombinha, que beijou-a nas duas rubicundas bochechas.

E com vivo tiroteio — de passa bem, recomendações a todos, apareça, volte, cá ficamos, — foram até os umbrais da porta externa, como dizia a dona da casa.

Trocaram-se os últimos abanadinhos de mão, como quem diz: vem cá Bilú, vem cá, e ainda não havia cinco passos de distância, entre umas e outra e elas já se amalgavam:

— Que presumida! regougou D. Claudina.

— Cauila. Nem nos ofereceu nada, gemeu Doricélia.

— Mas senhores, esta velha, não se lembrara da briga que o marido dela teve com o Hilário, por causa da sova que este deu no tal cachorro Quatro-olhos, quindins deles todos? E a filha! Credo, que empada!

Lá adiante caíra o lenço de D. Claudina, que, abaixando-se para apanhá-lo, voltou-se.

Trocaram-se novos e amistosos abanadinhos de mão.

Continua...

Serafim Bemol
Correio Mercantil, 09 de novembro de 1893.