Não se admire a mudança no todo da Doricélia, que de pachorrenta, passou assim a ser uma imitação viva da sua mamãe. E que insistência de D. Claudina, vá afinal produzindo os seus frutos. Água mole em pedra dura.
Quando o Hilário chegou de Porto Alegre, houve a repetição e a amiudada, de visitinhas e recadinhos. Nham Pombinha mordia-se com isso, mas sem energia, cedendo sempre, foi se deixando invadir pelas vizinhas, que por fim tomaram-lhe conta da casa, já entravam sem se fazer anunciar, mandavam os seus criados, espanavam os seus móveis, dirigiam a cozinha, enfim, um assalto triunfante às suas prerrogativas de dona de casa. O Hilário, que era o alvo cobiçado de toda a estratégia, de princípios riu-se muito, depois incomodou-se seriamente. Aquilo estava se tornando uma maçada.
Nham Pombinha que, como de casa, tinha escondido e mandado ao Caboclo, um chinelo, de um belíssimo par de veludo bordado a ouro, do Hilário, ficou um dia desapontadíssima quando deu pela falta do companheiro, e guiada pela sua inspiração, disse logo que aquilo com certeza era obra de D. Claudina. Era mesmo. Esta, que já tinha ensaiado um bolo da rainha, com uma química à preceito, ficou um pouco de cara à banda vendo o Cirilo Pereira comer dele com um apetite diabólico. Nham Pombinha não lhe tocou.
Hilário achou-lhe um sabor levado da breca, e deixou no prato a fatia apenas encetada.
De outra feita, o rapaz encontrou em um dos bolsos do casaco, um pequeno embrulho, com cincoenta mil voltas de linha preta e branca, o que o deixou admirado, sem saber como podia aquilo ter-lhe caído na algibeira. Curioso, cortou a canivete o complicado atilho e, desembrulhando o papel, encontrou dentro um pequeno saco de fazenda preta, tendo bordado a lã amarela, de um lado, uma cruz, e do outro, uns pontos que davam a idéia de uma caveira. Prosseguindo no exame, e aberto o saquitel, achou cabeças de cravos de doce, um anel de cauda de lagarto, três lágrimas de N. Senhora, passadas numa linha amarela, uma folha verde e tudo isso coberto de uma camada de pó avermelhado, que ficou ainda no fundo do saco uma regular porção de pitadas...
Esta porção de coisas estranhas fez cismar o Hilário, que não gostou do que ele julgava caçoada.
Chamou Nham Pombinha, e mostrou-lhe aquela mandinga que tanto o intrigava, pedindo-lhe explicações.
Nham Pombinha mal deu com os olhos naqueles apetrechos, empalideceu, e viu que estava sendo roubada... e que senão tomasse já e já as suas providências, a D. Claudina ganhava-lhe a partida.
Mastigou todas as suas respostas às instantes e variadas perguntas de Hilário, que não sabia nada daquilo; não era mulher para aquelas coisas, e que, se soubesse quem era a engraçada...
O Hilário, apesar de intrigado com aquilo, não insistiu mais, e o fato foi esquecendo, quando Nham Pombinha deu pela falta do chinelo, cujo companheiro já ela tinha enviado ao competente destino.
A Doricélia animada, ia se aventurando, e chegou até a pedir ao Hilário que lhe trouxesse um bilhete de loteria, que ela pagava, já se sabe; ao que o rapaz correspondeu, trazendo o bilhete, de mau humor, a avisando-a secamente que aquele negócio ele só fazia na agência. Com tal mau modo se houve, que quando a Doricélia, entregou-lhe o dinheiro, elem sem contar, atirou-o longe, sobre o aparador da sala de jantar, onde então se achavam todos.
Nham Pombinha resolvida naquele dia a liquidar a situação, começou habilmente a excitar o Hilário, falando-lhe só da Doricélia, na sua paixão por ela, nas provas que ele dava, e que tanto era verdade que a pamonha, até estava pondo os manguitos de fora, já entendia que era dona da casa. O Hilário aborrecido e contrariado com aquela insistência, dava-se a perros para provar que não, que não.
Ora, isto já cansava. Parecia que ambas as contendoras tinham tido resposta à consulta do chinelo, porque, como se vê a tormenta crescia.
Doricélia, depois de parlar muito, diante do silêncio obstinado dos dois companheiros, interpolou diretamente o Hilário, sobre diversos assuntos e perguntou-lhe pela lista do bilhete que ela tinha comprado.
— Não sei D. Doricélia. Quando chegar o vapor mande ver o número lá no escritório.
— Estou com pé que o senhor nem calcula.
Nisto sente-se parar um carro, grande atropelo no corredor e tine desesperadamente a campainha elétrica.
Hilário levantou-se prestes, abriu a porta e perguntou logo:
— O que é? O que é?
— Não sei. Deu-lhe isto de repente, respondeu uma voz que fez corar Nham Pombinha.
Assomou entãoà porta, desfalecido, desfeito, cadavérico o corpo do Cirilo Pereira, carregado nos braços do Elesbão e de um outro sujeito desconhecido, e agora também do Hilário convulso e pesaroso.
Acomodaram no sofá o Cirilo, desacordado enquanto Doricélia com grande alarme, já dizia para se lhe dar um chá de erva cidreira com grelos de laranjeira, e saiu para o preparar e dar a novidade a D. Claudina, o tipo desconhecido, fez os seus cumprimentose retirou-se, desejando que não fosse nada.
— Às suas ordens. Às suas ordens. E chamando o Hilário um pouco à parte disse-lhe que o boleeiro estava esperando. E com sua licença... se podia aproveitar o carro...
—Pois não,pois não. Muito obrigado.
Pagou o frete e tornou a entrar.
Nham Pombinha pálida, sentada junto da janela, e olhando de soslaio para o seu marido desfalecido.
O Elesbão Soares, numa cadeira de braço, bem junto do doente, olhando muito para ele e fumando, um tanto desconfiado sem se atrever a encarar e nem com o Hilário, com quem já se dava, nem com Nham Pombinha, por quem o seu amor era mais forte.
Cirilo, agora, ainda desacordado, tinha pequenas estremeções, e umas pequenas manchas lividas lhe pareciam na face chupada.
Tinha respiração opressa, custosa.
Hilário mirou-o atentamente e perguntou:
— Mas, seu Elesbão, como foi isto?
— Nem eu sei. Só lhe digo que ia passando pelo seu escritório, e parei na porta um momentinho para falar com um conhecido meu: seu pai estava dentro, sentado, de repente, começou, ai! ai! ai!, a gemer, apertando o estômago, assim como com engulhos e a suar frio... O caixeiro assustou-se e disparou pela porta a fora, e já começou a gritar que o seu Cirilo estava com o cólera... porque parecia mesmo. Veja como está a roupa.
Enfim, eu como sou homem para as ocasiões, fiz das tripas o coração, chamei um carro, pedi ao homem meu conhecido e ao boleeiro, para me ajudarem, metemos o corpo, o corpo não, Deus me livre, o homem, sim, o senhor seu pai Cirilo, no carro, e de caminho para cá, já passamos pelo Dr. Eloi, que ficou de vir já. Nem há de demorar.
— Mas o senhor que acha que seja isso?
— Eu, a lhe falar a verdade, não sei bem mas pelo modo porque ele apertava o estômago, isto deve ser coisa de flato do coração, ou espinha caída...
— Nham Pombinha, meu pai nunca teve algum outro acesso como este?
— Não me lembro. Já há muito tempo que ele se queixava...
— Mas, senhor, é estranho... Seu Elesbão, já agora tenha paciência, ajude-nos. Vamos levar o doente para cama...
— Pois não, com todo o gosto.
E, enquanto o Hilário saiu um momento para desembaraçar o caminho, o Elesbão afrontou-se, não teve medo, praticou um rasgo sublime de audácia, virou-se para Nham Pombinha e um pouco risonho mas alvar e insinuativo, disse a queima roupa:
— Hein minha senhora? E os gorgulhos, aquela célebre noite? Quando me lembro!...
Foi o seu cumprimento a Nham Pombinha, sempre voltada, e que respondeu baixinho:
— É mesmo...
E não olhava, não olhava para o Cirilo; faziam-lhe medo aquela cor macilenta, aquele arquejar, aquele sofrer...
Com alguma dificuldade, os dois homens transportaram o doente para a cama, e acomodaram-no melhor que puseram, e sem saberem o que fazer, como usar de qualquer recurso de momento, ficaram-se na expectativa até chegar o médico que o Elesbão chamara.
Este não se fez demorar muito, e chegou muito azafamado e cumprimentador, arregaçando as mangas e tomando informações, se bem que incompletas, lá se foi encaminhando para o enfermo. Examinou-o, atentamente, língua, pulso, as pupilas, a respiração.
Ouvia-se apenas o ranger abafado de suas botinas Louzada, de bico quadrado. Os outros mudos e imóveis, acompanhavam o exame sem aventurar reflexões.
Nham Pombinha, cujos pensamentos turbilhavam, se acusava, intimamente, daquela desgraça. A verdade é que ela nunca tinha medido bem o alcance das suas funestas beberagens. Dava-as ao destinatário, com um fim muito diversos daquele que ali se apresentava, ou com aquele mesmo fito mas realizado por outra forma. Nem ela mesmo, sabia, no caos de raciocínios desencontrados que aquele quadro provocava. Concordar, concordava, seria mesmo uma droga ruim, aquela, mas ela não a tinha aplicado sabendo que o resultado seria tão cruel.
O Elesbão, que tinha as suas razões, como conhecedor, para calcular o que aquilo era, guardava-se bem de externar qualquer palavra. O Hilário era o único, que sombrio, não atinava com coisa alguma mas estranhava aquele aspecto horrível que apresentava seu pai.
O Dr. Eloi, tendo feito o seu exame, em consciência, não atinando com a causa mórbida, se bem que estranhasse a manifestação dos fenômenos, abanava a cabeça, nada satisfeito. E saindo do quarto, chamou o Hilário e o Elesbão, tomando-o também por gente de casa, e na sala, com uma fisionomia circunspecta, mostrou-lhes a gravidade da situação, a ausência de dados seguros para a escolha de medicação, insistiu no sério do caso, que voltaria mais tarde, e concluiu dizendo, convicto, que ele, médico, por si já não tinha esperanças, considerava o doente perdido, mas que, contudo, devia-se lutar até o fim.
Aconselhou, dirigindo-se ao Elesbão, uma coisa qualquer, que ele tomou muito pelo ar, e repetindo seus cumprimentos retirou-se.
Mal saiu, o Elesbão, cheio da missão de confiança. trocando os nomes, esquecido da recomendação, sem saber, enfim o que era, foi num pulo à farmácia e de lá voltou com um pequeno rolo, que misteriosamente, no exercício das suas altas funções de enfermeiro, levou para o aposento, e lá, fechado com o Hilário, aplicou-a ao doente, no mesmo estado de apatia.
Deitaram-o, molemente, outra vez, notando uns rápidos estremeções violentos, seguidos de imobilidade, cessassão de gemidos e ânsias.
O Elesbão ficou radiante; era com certeza o efeito do remédio. O Hilário aliviado por ver o sossego do pai, mirou-o um momento e depois sairam ambos do quarto, na ponta dos pés, cautelosamente, cerrando a porta para evitar a luz em demasia.
Foram para a sala de jantar.
Nham Pombinha, abatida, estava atirada na preguiçosa. Caía-lhe na sua plácida vida, aquele sucesso, com tal rapidez, com tal brutalidade, com tal evidência, que ela se sentia sufocada. Queria reprimir as suas íntimas sensações, queria mostrar-se solícita com o doente mas, de um lado o semi-remorso, do outro as conveniências...
Olhava para o Hilário com um misto de prazer satisfeito e de receio.
O Elesbão já mais senhor de si, encheu um copo d'água, sem pedir licença, e foi bebendo.
Estava o grupo sentado, entregue aos seus íntimos diversos pensamentos, quando reapareceram a D. Claudina e Doricélia, trazendo um enorme bule de folha abafado por uma coberta de lã. Era o chá paliativo de Doricélia. Começou a tagarelice:
— Então melhorou? O médico veio? O que acha? Mandou tomar alguma coisa?
Hilário respondeu soturnamente, e apesar da gana desesperada de dar a língua, as vizinhas tiveram de sopitá-la até que foram se chegando para o Elesbão e não o largaram mais.
Já noite fechada, tornou a vir o médico.
Apesar do bico do gás aceso, havia em torno da larga cama, ensombrada por garrido cortinado uma penúmbra que mal deixava distinguir os objetos. Deitado de lado, na mesma posição que ficara, estava ainda o corpo do Cirilo, imóvel. O médico tateou-lhe a testa e abaixou-se vivamente. Examinou-o um pouco mais. Estava inteirado.
— Não se lhe deu nada? perguntou sem se dirigir particularmente a ninguém.
— Não, doutor, não tomou nada. Apenas botei-lhe na boca do estômago o emplastro... disse o Elesbão.
— O que? Que emplastro? e levantando rapidamente as cobertas, abrindo o peito do camisolão de Cirilo, viu mesmo sobre o peito, uma larga faixa, do tamanho de uma folha de papel almaço, grudada e cheia de rugas, meteu a unha sobre um dos cantos, levantou e conhecendo o que era, voltou-se vivamente curioso.
— Esparadrapo? Para que?...
— Aguentei e botei. Foi santo remédio douotor. Foi como se tirasse a dor com a mão, replicou ainda o Elesbão. Lá o nome da história não me lembrei bem, mas parece que era isso, porque o boticário me deu logo mal eu pedi.
— Está bem. Podemos ir.
E tornando a cobrir Cirilo, saiu do quarto sendo acompanhado pelo Hilário e Elesbão, D. Claudina e Doricélia ficaram de pescoço estendido olhando e de ouvido a escuta.
Na sala, o doutor pegou o Elesbão por um botão. E disse-lhe:
— Pois meu caro senhor é ter coragem...
— Este moço é que é o filho... atalhou logo escamado o Elesbão.
— Pois então, disse o médico virando-se para o Hilário, pois então, meu caro senhor, é ter coragem. Seu pai está morto.
— Como?
— Morto, sim. Aquilo, não sei como foi... mas parece-me uma paralisia rapidíssima do estômago e complicações do coração.
Mas para que aplicaram aquele esparadrapo?
— Foi o seu Soares...
— Foi o doutor mesmo que me disse.
— Eu! Afinal, aquilo nada vem ao caso. Mas o senhor sabe o que é?
— Pois não é um cáustico?
— São pontos falsos, seu Soares!
— Pois eu botei pontos falsos no defunto?
E ficou estarrecido, assombrado.
O Dr. Eloi saiu, sem que ele o percebesse, dizendo a Hilário que de manhã poderia mandar pelo atestado.
Continua...
- Serafim Bemol
- Correio Mercantil, 19 de novembro de 1893.