Estava tudo concluído. O nosso bom Cirilo fora acomodado da melhor maneira possível em sua última morada por sinal puxadinha, porque os funerais custavam a viúva os olhos da cara — a Nham Pombinha empunhava sozinha o bastão do mando supremo da casa.

A pobre senhora começava apenas a voltar a si do que lhe parecia ainda um pesadelo, e experimentava ao sair da câmara onde se abrigara, a mesma sensação de quem está fechado numa casa inteiramente vazia de gente, e desguarnecidade de trastes.

Era como um cego habituado, desde muito tempo, a andar pelas ruas acompanhado por um bom menino caridoso, e que, de repente, se achasse só no meio da rua, atirado a sorte, ludibrio da garotada sem alma.

Quem a ajudaria, agora? Naquelas vinte e quatro horas, o seu caráter e os seus sentimentos tinham passado por uma transformação radical.

Aquele começo de flert com o Hilário, seu enteado, entrava-lhe a parecer uma monstruosidade, uma coisa nojenta, e até admirava-se como, como algum tempo, pudera alimentar esperança de levá-lo por diante.

As preocupações de Hilário eram de outra ordem. Passara as últimas horas muito triste e abatido, com aquele golpe inesperado da fatalidade, que arrebatava o pai quando menos ele o podia pensar. De resto, um como que remorso começava a invadir-lhe a alma, pelo seu namoro, verdade é que, até ali inocente, com a madrasta.

Aquilo, pensava ele, era para envilecer.

Depois tinham chegado os armadores, os homens da igreja, toda aquela legião de corvos esfaimados que se atiram de um jacto sobre os que morrem, e os vão devorando sofregamente, olhando para os lados receiosos de competência, até os deixarem em ossos.

Tudo um dinheirão!

Era tanto de aprestos funerários, uns trapos pretos esverdeados com galões falsos a esfiaparem; tanto de encomendação e cera e eça, outra pipeneira que tem dado para muita vadiação e para muito regabofe; tanto de carro e catacumba, a Misericórdia que tem o privilégio exclusivo de esfolar quanto pode a humanidade...

Um inferno!

Todos esses pensamentos e cuidados, que afluiram ao cérebro do Hilário aos borbotões, tinham-no distraído um pouco da sua mágoa.

Agora, do que ele tinha necessidade era de movimento. Queria dar umas passadas largas ao ar livre, pelas ruas, para sacudir aquela crosta de pesares e vergonheiras, que lhe andavam pegadas ao lombo como sarna.

Ainda não vira Nham Pombinha e evitava-a. Tinha medo de encontrá-la.

Depois de umas meias palavras que ouvira aos criados, a ligação de certos fatos, as entradas e saídas de Nham Pombinha, naqueles últimos dias, a conversação em que a surpreendera com um indivíduo desconhecido (que ele não sabia ser o Caboclo), tudo isso formava em torno do Hilário uma atmosfera pesada de desconfiança e de dúvidas que o abafavam.

Afinal, vieram chamá-lopara o almoço. Não havia remédio. Foi Nham Pombinha não se demorou também em se lhe ir juntar à mesa.

Mas não se olhavam.

Sentados à distância, tocavam apenas nos pratos, muito recolhidos, graves, como se estivessem ainda mergulhados num oceano de dores cruciantes.

Triste, aquele quadro, se a convenção desta tristeza não concorresse para lhe tirar todo o mérito, pela sua falta de sinceridade.

Quando já chegavam ao fim, e Nham Pombinha percebeu que o Hilário ia levantar-se, acenou-lhe que esperasse.

Depois, tirou do bolso do vestido um papel dobrado em quatro e disse-lhe com rispidez:

— Fique com isto. É a apólice de Amparo Mútuo.

O Hilário, admirado, como se acordasse, olhou, estranhando a frieza da frase.

— É desnecessário, Nham Pombinha, porque a senhora mesma é que tem de passar o recibo ao gerente.

E levantou-se para sair.

Mas, nesse momento, a porta do corredor, que dava para a rua, abriu-se em grande estardalhaço e entraram de tropelão empurrando-se, querendo um impedir que o outro falasse primeiro, a nossa Doric´wlia e o caixeiro de agência do Hilário agitando um telegrama, gesticulando como um danado, roxo, congestionado:

— Cincoenta mil pesos!

— Sim. Cin-co-enta...

— No bi...lhe...te que eu...

— Sim, no bilhe...te, que ela...

— Aqui! Aqui...

O Hilário e Nham Pombinha estacaram, pálidos, ofegantes também, adivinhando...

Depois de gaguejarem muito, o caixeiro e a Doricélia sem atinarem com o que diziam, metendo os pés pelas mãos, pisando e repisando as palavras, chegaram sempre a contar o que ocorrera, e que, aliás,era muito simples.

O Zambrano mandara mostrar à agência do Hilário o telegrama da loteria última de Montevidéu, e dar-lhe parabéns por haver vendido a taluda.

Como o Hilário, havia três dias, não ia ao escritório, o caixeiro lá se batera para a casa da família, louco, desesperado, e de caminho pela Doricélia, vendo-a à janela, atira-lhe com o número feliz, o 17.300.

— Aí! Aí! É mesmo?

— É! Olhe...

E lá estava no telegrama o 17.300.

A Doricélia teve um delíquio... com vontade de tê-lo. Mas dominou e correu com o caixeiro para a casa do Hilário.

— Pois foi assim.

O Hilário estava deslumbrado, e pensava — cincoenta mil pesos! Já é uma continha. Ao câmbio quase duzentos e cincoenta contos! Duzentos e cincoenta contos! Ora, quem diria?...

Em voz alta, muito cheio de zumbaias:

— Meus parabéns, D. Doricélia, meus parabéns. Seja muito feliz.

A Doricélia requebrava-se toda, ameaçando derreter-se ali mesmo, ao calor da cobreira que havia apanhado e do amor que tinha pelo Hilário.

— Mas quem sabe? Não vá ter havido engano no número... Isso é que era uma... Meu Deus! Uma coisa assim até deixa a gente meio tonta.

Mas o caixeiro obtemperou logo muito sacudido e muito cheio de ciscusntâncias que não havia dúvida.

A agência do Zambrano era uma casa muito séria, e o telegrama do correspondente já tinha sido reperguntado na estação...

E Doricélia transbordando de felicidade, foi abraçar Nham Pombinha, com uns gestos largos de generosidade mal disfarçada.

Agora, sim. Quem fosse do peito não havia de ter necessidades...

Veio depois, a mamãe velhota D. Claudina toda cheia de nove horas, aos pulinhos, esfregando as mãos, e já arrotando grandezas e paparrotices.

E era um turbilhão de palavras, de cálculos de considerações que afogavam Pombinha e a faziam crescer na sua raiva pela Doricélia e nos seus projetos de rompimento com o Hilário...

— Quanto mais tolo mais peixe — pensou a Pombinha.

— O cobrezinho bem aplicado, menina, bem aplicado, hein?

Logo de vereda, depois de recebermos o dinheiro, vamos ali ao tabelião da rua da Igreja, ver se ele nos indica uma casa boa para comprar.

— O seu Lima?

— Sim. É muito meu amigo.

E a D. Claudina, dizia estas palavras muito lambidas, lembrando-se sabe lá que passadas alegrias celestiais entre os autos.

Lembrem-se logo o desconto do bilhete, mas não podia ser grande coisa a despesa.

Que estas coisas, aconselhava a Claudina, querem-se logo liquidadas, para tirar a gente de cuidados.

— Olhe. Assim como assim, insinuava ela a Doricélia toda afogada em pudor, isso está aí, está nas mãos do Hilário.

É cá um palpite. Ele que se encarregue do negócio.

E todos concordaram.

O Hilário que, mais retirado do grupo das mulheres fazia, em mente os seus planos para o futuro, concluiu:

— É uma cobra descascada, mas não há dúvida, mas com duzentos e cincoenta contos, todo o mundo há de admirá-la. Está dito:

Decididamente, caso com ela.

Continua...

D. Salústio
Correio Mercantil, 23 de novembro de 1893.