Não se soube nunca que assunto de alta relevância ocupou, por espaço de mais de duas horas, a atenção de Nham Pombinha e do Elesbão.
Que resultado teriam dado as indispensáveis exumações das cenas em casa do Caboclo, aquela prisão tão fora de propósito dentro do caixão de milho, e por último a invasão avassaladora dos gorgulhos importunos e nojentos?
Que lhe diria Nham Pombinha da mandinga ministrada ao Cirilo, e que resultado tão fatal e imprevisto lhe trouxera?
Falar-lhe-ia, por seu turno, o Elesbão, nas suas contínuas consultas ao Caboclo, a quem ainda na véspera comprara por um bom preço uma droga destinada a aproximar o seu ardor juvenil de que, indiscutivelmente, deveria ter a Nham Pombinha, e outra destinada a ativar nela os efeitos do contágio, — na hipótese de um consórcio?
Nunca se averiguou com exatidão nada disso.
O que é verdade é que já tinham dado as nove horas da noite, Nham Pombinha terminava o chiló recostada indolentemente na chaise longue, em que, por vezes, vimos o Cirilo, e o Elesbão não dava sinais de quem tinha pressa de retirar-se.
Com grande escândalo, mesmo, da mucama, uma mulatona de 18 anos a quem por várias vezes o Hilário lançara olho cobiçoso e aceso.
— Nham Pombinha mandou servir o chá mais cedo que o costume, e o Elesbão lá ficara à mesa, beatificamente, sentado à cabeceira, dando-se já uns ares de quem estava em sua casa.
Já haveria namoro, quatro meses depois da morte do primeiro?
— Irra! que mulherzinha!
E a criadinha não se conteve que não fosse à cozinha dar a taramela e comentar aquele procedimento da ama em dar tão de pronto substituto ao Cirilo... tão bom que era... coitado.
Mas o tempo voa. Os acontecimentos precipitam-se sem respeitar nem as conveniências, nem os preconceitos, nem os cálculos.
Adormece-se hoje para despertar amanhã, e nesse meio tempo, ficamos ricos ou miseráveis, transformando-nos em Júlio Cesar ou Isganarelo... às vezes mesmo em Pedro Sem.
Estamos, pois, na casa do senhor José Pereira de Moraes, precisamente na noite em que se casa o grandalhão do Hilário com a franzina Doricélia.
Todos os compartimentos do prédio novo, que a menina comprara com o auxílio da mamã Claudina e os conselhos do tabelião Lima, muito entendido nessas cousas, — resplandeciam de convidados, luzes, flores, música e mil adornos custosos.
Havia uma hora que se esperava o aparecimento da noiva, de cuja toilete se contavam maravilhas.
Nas janelas, do lado exterior, apinhavam-se os curiosos, acotovelando-se trepando uns aos ombros dos outros. As mulheres tinham até mandado vir escadas e cadeiras para apreciarem melhor a cena.
Dentro, na sala principal, havia uma expectativa solene, como se tratasse de abertura das câmaras legislativas.
A porta que dava para a alcova nupcial estava ainda fechada. Fora uma esquisitisse de D. Claudina, que gostava muito de lances teatrais.
O juiz de casamento, respirando gravidade, muito teso, abotoado na casaca preta atravessada pela faixa verde e amarela, esperava, puxando o pigarro e conversando em reserva com o velho José Pereira, com uns acenozinhos de cabeça protetores. O escrivão sobraçando o livro passava em revista a boa roda, apreciando à socapa os namoriscos, e calculoando a que soma teriam atingido os defits de certos papás para exibirem ali as filhas cobertas de diamantes e a esmagar sedas...
Um sussurro discreto enchia a sala toda a trescalar perfumes fortes, que subiam à cabeça, naquela atmosfera cálida, já saturada dos eflúvios das flores e do suor humano.
O Juiz, consultado, achou prudente abrir um bocadinho das janelas.
E o José Pereira,muito obsequiso, limpando a testa, lá foi, cheio de cerimônias — com licença — com licença, abrir um bocadinho de cada folha, enquanto pudesse entrar um novo oxigênio.
Nesse momento, porém, abriam-se de par em par as portas do quarto nupcial e o cortejo feminino entrava na sala, motivo pela qual toda a onda que aguardava fora o melhor meio de bispar a cena, atirou-se como se a um arroio tivessem de repente tirado a represa. Uns treparam descaradamente para os peitoris, outros, como se estivessem pago entrada, arregaçavam as cortinas pendentes, chegando-lhes a ponta da bengala e guarda-chuva...
E tudo isso, numa algazarra indecente, por entre ditinhos com pretensão a espirituosos, analisando tudo, com uma ponta de malícia, de que até as senhoras gostavam muito, abafando no lenço o risinho maldoso...
Quando a Doricélia, toda de branco, rendas, contas e flores de laranja, apareceu na sala, seguida de mamã Claudina, radiante, num vestido verde e rendas pretas, muito solene, da madrinha, a respeitável D. Miquelina Cidade, de grenat e toda cheia de brilhantes, e de algumas conhecidas também de branco, foi um deslumbramento...
Pela porta do corredor entrava o Hilário, muito mais alto e espadoado ainda, por causa do traje de etiqueta que lhe cinzelava os contornos, pondo-os em relevo seguido de Nham Pombinha, majestosa, muito pálida, num vestido de gorgurão preto, sem o mínimo enfeite, e com uma estrela de pérola no alto do penteado, desdenhosa, olhando para toda aquela gente como para um mundo que não era o seu e não a entendera nunca.
— A madrinha mete a noiva num chinelo, casquinou a vozinha de uma rapariga assentada à janela.
— Mais carnes tem ela, observou um atrevido ao lado.
— Cale a boca, seu indecente.
E já ia saindo um desaguisado.
Depois, vinha o Elesbão, que devia casar dali a três meses, muito mesureiro, com ar de entendido, procurando sempre por o nariz a altura do degote de Nham Pombina...
Eram os padrinhos do Hilário, triunfante de força e de seiva, como Nham Pombinha, no meio daquela gente toda engelhada...
O José Pereira veio recebê-los e convergindo este para outro grupo, como ele fundiu-se, caminhando todos para a mesa onde o Juiz de Casamentos, esperava, mais teso, mais grave que ao começo.
Houve um silêncio geral. Depois começou a cerimônia civil, que concluiu sem incidentes para dar lugar à religiosa, no altar armado a um canto... tudo púrpura e dourados...
Vieram os abraços, as boquinhas, as lágrimas dissoradas ao canto do olho, as felicitações:
— Seja feliz...
— Muitos anos e bons.
Nham Pombinha abraçou Doricélia, voltando o rosto, enquanto chegou a vez do Hilário, apenas lhe pôs a mão no ombro.
D. Claudina abundava em muitas considerações sobre o casamento, atormentando o Elesbão com conselhos de velha entendedora.
— Aquilo é mulherzinha para encher uma casa, conclui ela, , apontando para Nham Pombinha.
A conversação tornou-se então mais generalizada, e pouco a pouco se foi acalorando, quando sairam o vigário e o juiz, com muitas desculpas, por não poderem aceitar nada. Estavam indispostos. Ia ficar tarde.
De repente, todos cairam numa moleza enervadora. Não tinham assunto. Que diabo! Se já estava terminada a cerimônia, por que não se despachava a gente?
Mas D. Claudina acudiu logo com a costumada exuberância palavrosa a reanimar a assembléia convidando-a passar à sala de jantar...
E foi então uma algazarra. Perdeu-se a cerimônia — Ria-se alto, de tropel, os que estavam mais perto da porta correram para o interior, os homens deram o braço às senhoras graciosas, abanando-se com os clacks, deitando flanância.
Esvaziou-se a sala, cujas janelas os criados, vieram, então cerrar por cautela.
Os espectadores é que não se conformaram com semelhante decisão, que tanto os contrariava no prosseguimento do seu exame.
E, então, zangaram-se, e vingaram-se cerzindo a pele dos noivos, dos papás e dos convidados.
Foi uma razzia.
— Muita farofa. Afinal, a noiva é um canhas.
— Mas tem dinheiro.
— Também é a única coisa que ela tem.
Felizmente não estava ali o Hilário.
A bancada feminina passava em revista a noiva, a sua toilete e o mau gosto de expor no quarto umas tantas coisas.
Aí acudiu uma velha solteirona, que a fealdade deixara na seção do refugo, mas a quem rancores não saciados insuflavam a cólera contra todos os noivos.
— Aquilo é uma imoralidade. Até os camisolões! o melhor é logo chamar um fotógrafo!
— E como se fez esse casamento? Parece coisa de bruxedo. Uma gente que nem podia se ver! Aí há coisa.
— E não viste como a espevitada da viúva do seu Cirilo estava tão enfunada? Parece que tem o rei na barriga!
— Sim. Na barriga do marido é que pôs algum rei...
— Que é que me contas, menina?
— Ao menos dizem. Foi por causa do enteado!
— Que horror! Olhe que sempre vivemos numa terra...!
E era talho de alto a baixo, sem misericórdia, como quem corta no que é seu.
Afinal, os grupos dissolveram-se.
Passamos por alto sobre o banquete... um jantar régio em que em casa de Luculo, para qual o Hilário limitara-se a olhar, por cautela, ao passo que a sua sogra cevava um apetite extraordinário.
Depois de muitos brindes, de novos cumprimentos e felicitações, veio o chá e após, começou a dispersão, aceleradamente, como quem tem pressa de sair dum lugar onde nada mais lhe resta a fazer.
Ficaram sós, a madrinha de Doricélia, os noivos e os papás.
Descei agora, oh fadas benfazejas protetoras do Amor, sobre o perfumado ninho do novo casal, e fazei-o feliz, enquanto o Elesbão vai muito nervosamente para a casa roendo as unhas, aguardando o seu dia, que não vem longe.
E Deus lhes de muito boa noite.
O famoso dente de jacaré não fora esquecido. Aquela poderosa arma do arsenal do Caboclo, a qual, ao pensar de Doricélia e de D. Claudina, tão bons resultados dela, lá fora colocado em baixo do travesseiro pela cautelosa mamã, ao passo que, por sua vez, (e para que a noite terminasse toda em mandigagens) o Elesbão ia imaginando de que meio se valeria para arranjar com que a mucama de Nham Pombinha pusesse no chá de sua ama, um pozinho branco e solúvel saído do suprádito Caboclo.
Continua...
- D. Salústio
- Correio Mercantil, 30 de novembro de 1893.