Que insofridos arrancos dava o maltratado orgulho de Nham Pombinha!

Que a lanceada tristeza escondia aquela capa rígida de altivez, que manifestara na solenidade do casamento de Hilário!

Como era chato, pequenino, desprezado o Elesbão! Como ela fazia, de si para si, ressaltar, sob o fogo ardente da sua pupila, a desempenada figura do enteado, um latagão de rapaz, imponente, correto na sua toilete de rigor, à vontade e desembaraço, e o seu noivo — dela — aquela idiota, com uns pés colossais, uma bocarra profunda e uma carregação de frases relés, que lhe causavam tristeza — a ela — tão habituada a deitar fogo de artifício nas suas palestras, à custa da grande enfiada a romances, que lera, somente em expansão a um pouco da sua concentrada raiva, quando, depois dos cumprimentos, após a benção, fingindo abraçar Doricélia e perto do Hilário, entregou disfarçadamente àquela um chinelo, aquele célebre pé de chinelo, que a Doricélia, embatucada, recebeu dócil.

— Olhe: junte com o outro que talvez faça falta, segredou-lhe Nham Pombinha.

— Mas que vem a ser isto? perguntou o Hilário, deveras intrigado.

— Sua mulher que lhe explique, retrucou Nham Pombinha, afastando-se.

Deixava-lhes o primeiro espinho.

Quando — meses mais tarde — celebrava-se o casamento do Elesbão com Nham Pombinha, muito a capricho, como que envergonhado, Hilário já estava inteirado...

Farto até das gorduras da Doricélia, que dia a dia mais e mais engordava, da sua sonolência preguiçosa, da sua pretensão a elegante, quando tendo de alcochetar o vestido, os cordões do colete tinham de dar o máximo de sua resistência.

Fartíssimo da D. Claudina, com o seu inesgotável palavriado, ôco, vazio, procurando fazer dele um baby delicado e mimoso, atabafando-o em chales e panos quentes... fazendo-o engulir chazinhos caseiros, em que ele encontrou sabores estranhos...

E, além de tudo, muitíssimo fartíssimo do absurdo José Pereira de Moraes, que agora, e depois que o genro lhe encurtava as rédeas aos gastos, voltara à baila com a história das cacetadas dadas por Hilário no Quatro-olhos, um cachorro tanto da minha estima, dizia. Se bem que Nham Pombinha nunca se tivesse furtado às visitas do novo casal, contudo não as retribuia. Ao Hilário isso passava em branco, nem notava; mas Doricélia e D. Claudina e até o Moraes faziam disso um cavalo de batalha e azoinavam o rapaz.

E quando foi do casamento, que Nham Pombinha avisara, pedindo-lhes de comparecer e que o Elesbão muito prazenteiro insistira tanto, quando foi para se decidirem a ir ou não, é que estalou a tormenta.

D. Claudina abriu os diques à eloqüência e à hidrofobia e descarregou em Nham Pombinha, ausente, pancada de criar bicho.

— Aquela emproada! Não precisamos dos favores dela e nem daquela cara de bagre! Somos ricos, não precisamos das suas migalhas.Bem dizem por aí que o pobre do Cirilo, um homem tão bom, não morreu de moléstia cristã!...

— D. Claudina lembre-se que eu não posso ouvir o que a senhora está aí a vociferar... atalhou o Hilário abespinhado.

— É mesmo como a mamãe disse. Já te esqueceste do chinelo teu que ela me entregou na noite do nosso casamento? Aquela intrigante! Só para te fazer desconfiar! Como se nós fossemos como ela para andar com bruxarias! Estes, que a terra há de comer, viram, e estes tem ouvido bem boas coisas da tal prendinha...

— É, é, é, e é... esfuziou a vozinha esganiçada de D. Claudina. Pensa que não se sabe umas certas visitas que a tal recatada fazia a um mandingueiro da várzea chamado Caboclo?... Pensa? Pois bem que se sabe. Eu é que não sou dessas; até me metem medo essas coisas; nunca teria coragem de fazer feitiçaria a ninguém... Sou uma mulher séria, fique sabendo!

— Está bem, está bem. Não quero saber disso: quem vai ao casamento sou eu.

— Não há de ir. O que parece o marido andar saracoteando na pândega e a mulher...

— Que pândega, minha sogra! Pândega um ato tão sério...

— Que sério, que nada.

— Pois se ninguém quiser vir, vou eu. Pouco me importo, e é a minha obrigação.

Houve destampatório cabeludo da parte de D. Claudina. Parecia que vinha a casa abaixo com os guinchos e riso da mulherzinha.

Doricélia abriu as torneiras lacrimais e foi um deus nos acuda de suspiros capazes de abalar alicerses, e soluços como bacias num tacho de calda a ferver.

Mas o Hilário foi inabalável.

Havia de ir e ia.

— Que rosca! mastigava ele furioso.

Noite.

A casa de Nham Pombinha, iluminada, porém discretamente cerrada as janelas, nãomostravam nada de excepcional a quem passava, a não ser o notar alguns carros de praça postados juntos às calçadas, e os boleeiros, em pequenos grupos, conversando, e dando por vezes umas gargalhadas — sui generis — únicas, impregnadas de grossa brutalidade com que são provocadas.

Seriam dez horas.

Tinham-se voltado há pouco da igreja, onde por casualidade muito pouca gente havia, de modo que o casamento era quase ignorado até dos próprios antigos amigos de Cirilo, que não deixariam de estranhar aquela nova ligação da sua viúva com um quindam que não se sabia bem quem era.

Os poucos convidados estavam na sala fumando e conversando e rindo, não se atrevendo a falar mal de nada, porque o Hilário andava seguido de grupo em grupo.

O Elesbão dando largas ao seu contentamento falava como nunca e encarecia, cativado, os méritos de Nham Pombinha contra, até, certas pontinhas de malícia com que seus amigos se atreviam a bordar os cumprimentos.

Pouco se demoraram à mesa, porque Nham Pombinha mesmo dona da casa, viúva de Cirilo, mulher do Elesbão e ex-madrasta do Hilário, segundo os preceitos dos seus romances, não era também de comezinhas e glutonérias.

Tudo, realmente, muito fino, muito delicado e servido com parcimonha, não tanto por mesquinharia, como por elegância, com grave desgosto dos amigos e padrinhos do Elesbão, dispostos a forrar o estômago com sólidos lastros e abundantes regas de vinho.

A mucama de Nham Pombinha, já certa dos seus hábitos, servi-a habilmente e mais habilmente ao Elesbão, que, como sendo o festejado, atirava-se vorazmente às pratazadas e abundantes repetições.

Era o felizardo, o privilegiado!

O Hilário, a esquerda da Nham Pombinha, macambúzio e inquieto, não esquecia a cena que o esperava em casa, de chegada.

E, cruel desfeita ao seu sacrifício, Nham Pombinha não se dignava a dirigir-lhe uma, uma única palavra!

Se bem que o Elesbão se desfizesse em alegrias e palavras de agradecimento e isso até o aborrecia, dela, só dela, queria um olhar, uma palavra, um sorriso, por nada, por nada, mas só para o não esmagar diante dos argumentos da sogra e da nulher, a falta de uma amabilidade, que Nham Pombinha parecia ferozmente esquecer: para dar o gostinho àquelas duas senhoras, de encontrarem a consciência do Hilário, de acordo com as prevenções.

Ele, ele, vir ali, e sair, e ter de confessar que realmente não se fazia caso dele, que era dispensável, e que assim como ele compareceu, não se lhe falou, se não tivesse vindo, não teria sido lembrado.

E nesta disposição de espírito ainda mais triste ficou por ver, alí, naquela mesa uma chusma de caras desconhecidas e imbecis, e na cabeceira repaltreado, repleto, vermelho e indecoroso, no lugar do seu falecido pai, como dono, o Elesbão!

E insensivelmente descambara-lhe o pensamento para Nham Pombinha.

— Como? Pois era possível?

Como é que aquela mulher, até ali cercada de uma certa auréola de respeito, podendo satisfazer os seus caprichos, vivendo no meio do bem estar e de relativo luxo, relacionada como era, que encantos encontrava naquela grande casaca do Elesbão, para se lhe votar inteira, corpo, alma, liberdade, mocidade, sonhos, pretensões?... Pois na verdade a mulher será um tão estranho ser, que a aberração não a desgosta, ao contrário, atrai-a? Fazia-lhe a justiça de julgá-la infeliz por se casar com Cirilo, com seu pai, por já ser um velho, gasto na vida, enferrujado em todas as molas, gougoento. Mas. Adeus! Mesmo assim era infinitamente superior a Elesbão, que era uma sombra, um idiota, um bagagem! Aquele Elesbão, aquele Elesbão!...

E um esfuziar de olhos animou a fisionomia de Hilário.

— Acabando isto, vou-me embora e nunca mais apareço! É até ridículo!...

— Hilário, repare que vai virar esse copo, por cima do meu vestido! Não enxerga já? disse sorrindo, porém secamente, Nham Pombinha.

Realmente, Hilário, abstrato tinha o braço sobre a mesa, e, encostado a uma taça de champanha, qualquer movimento para o lado fazia virar o frágil cristal!

— Desculpe-me, não tinha reparado.

— O que tem você hoje? São saudades da sua Doricélia? Causticou Nham Pombinha.

— Oh! deixe. Não me aflija mais, pediu ele.

Estava-se no fim da ceia. Um descompassado e ruidoso arrastar de cadeiras, guardanapos atirados, abertos, enovelados sobre a mesa. Desordem inteira na arrumação do serviço. Pigarrear. Arrastar de pés. Rápido à luz de um fósforo, logo extinta. Pequenas pontas de fogo nos charutos. Dispersão para a sala da frente, Elesbão abrindo a marcha.

Nham Pombinha ficou-se um pouco, dando várias ordens aos criados.

O Hilário, vagaroso, foi-se afastando também do rosto baixo, correto no seu traje preto, de casaca, o peito da camisa muito branco.

Nham Pombinha acompanhou-o com o olhar, opressa, ansiada, o seio opulento, vibrante, enérgico, sobre o corpete do seu elegante vestido de surah preto.

Nham Pombinha depois de dar uma volta pela sala, conversando, sendo festejada, ao passar perto do Hilário, este adiantou-se e disse-lhe: — bem, boa noite, Nham Pombinha. Eu me retiro, desejando-lhe mil venturas.

— Ah! Já vai? Tão cedo... olhe, leve umas balas para a Doricélia...

E foi andando. Ele acompanhou-a, sentindo-se ridicularizado.

E ao passar pelo seu quarto, o seu grande quarto, catitamente arranjado, Nham Pombinha entrou, e, sentindo-se seguida, voltou-se e disse ao Hilário:

— Entre. Tem medo?...

Ele deu um passo à frente e ela, audaciosa, fremente, palpitante, atirou-se-lhe ao pescoço, enlaçou-lhe a cabeça com os seus belos braços, e atirou-lhe à boca, colado lábio contra lábio, um beijão, alucinado, longo, inexorável!... E ele, aquele fervido respeitador daquele belo pedestal, levado na fervida exaltação daquele minuto completo, esquecido de tudo, só sentindo aquele contato, aquele perfume. Aquela pressão, retribuiu-lhe a carícia.

O Elesbão, na porta, com os olhos desmedidamente abertos, a boca esfauceada de orelha a orelha, a mão no ar, a voz no mais alto ponto da interrogação, atirou esta frase piramidal:

— Homessa!

Continua...

Serafim Bemol
Correio Mercantil, 03 de dezembro de 1893.