PREFACIO.

Vou explicar aqui a razão de ser deste livro, porque isso pode interessar ás poucas pessoas que conhecem minha obra litteraria e acompanham, desde 1880, o revolucionario movimento artistico do Naturalismo no Brasil.

E’ uma satisfação que dou aos homens de lettras que me tomão a serio.

A Gazeta de Noticias precisava de um romance e encommendou-m’o, determinando logo, já se vê, o caracter litterario que elle devia ter. Não fazia questão de mais ou menos enredo, comtanto que a obra, longe de ser naturalista, fosse bem romantica e bem phantasiosa; obra emfim que pudesse convir ao paladar da grande massa de leitores sentimentaes de que na maior parte se alimenta aquella folha, mas que ao mesmo tempo não cahisse no completo desagrado daquelles que não admittem obra sem arte e arte sem verdade.

Como vêem a tarefa não era das mais faceis. O trabalho, porém, seria bem remunerado, ficando-me ainda a propriedade do romance e o direito consequente de publical-o em volume.

Ora, eu, que precisava repousar um pouco o espirito num romance de phantasia, e que, de muito tempo a essa parte, sentia falta de um adversario litterario, cujas obras, francamente romanticas, servissem de activa e fogosa opposição aos meus tranquillos, pacientes e cansativos estudos do natural, obtidos a frio esforço de observação e analyse, lembrei-me de fazer guerra a mim mesmo e aceitei a proposta da Gazeta de Noticias, com a condição unica de substituir o meu nome pelo pseudonymo de Victor Leal.

O publico estava propenso a acreditar na existencia de um escriptor muito moço e romantico chamado Victor Leal. Olavo Bilac e Pardal Mallet tinham já feito, de collaboração e em segredo, uma complicada phantasia intitulada O Esqueleto, que, com aquelle pseudonymo, haviam publicado naquella mesma folha.

A Gazeta aceitou a minha condição e, sem perda de tempo annunciou A Mortalha de Alzira.

O romance, como ella esperava, produzio bom effeito sobre os seus ardentes leitores do roda-pé, foi lido com avidez; por outro lado, os meus bons inimigos e os meus máos amigos imaginaram que eu tinha afinal encontrado pela frente um formidavel adversario, que me levava de vencida, pondo em debandada, com os seus golpes de imaginação, a mim e a toda a minha quitanda naturalista.

E eu estava a ponto de fazer como o hespanhol da anecdota: estive quasi a ter medo de mim mesmo; quero dizer de Victor Leal.

A mystificação seria completa se Valentim Magalhães não me denunciasse como author da Mortalha de Alzira num seu artigo litterario publicado no Paiz.

Para que o leitor faça idea perfeita dessa comedia, cujo theatro foi a espirittuosa Gazeta de Noticias, passo a transcrever diversos trechos do artigo de introdução com que annunciei para o dia seguinte o primeiro folhetim do romance. Está cheio de blasphemias litterarias. Que m’as perdoem os meus serios e fieis leitores do Mulato, da Casa de Pensão, do Coruja, do Homem e do Cortiço. Mas, que diabo! era preciso lutar com alguem, e, na falta de outro, armei-me eu proprio em meu adversario.

Eis os topicos do artigo:

« Sei que essa obra será julgada talvez um pouco severamente por aquelles que suppoem banidos do gosto publico o sentimento e a verdadeira poesia. Ah! mas eu bem pouco me incommodo com taes censores, e irei sempre caminhando para diante, máo grado os emperrados naturalistas, que pretendem annullar a unica e sincera commoção que existe no mundo artistico, a commoção romantica.

Não preciso citar nomes, nem pretendo fazel-o; declaro, porém, que sempre me acharão prompto para defender em qualquer terreno a minha bandeira de escola e as minhas convicções litterarias.

O naturalismo, clamem quanto quizer, não nos convém, nem nunca nos convirá.

A verdade núa e crua nunca será tão bella como vestida pela inspirada mão do artista.

Tudo se póde dizer em letra redonda. O caso é saber dizel-o.

O romance, quando digno d’esse nome, deve desenrolar defronte dos nossos olhos sublimes quadros e edificantes exemplos de moral e ridiculos da vida de todo o dia, da vida terra a terra, que nenhum interesse póde despertar em quem quer que seja, como tambem nenhum ensinamento póde trazer áquelles que lêm com o louvavel fim de se instruir, formando e desenvolvendo conjunctamente o seu caracter.

O romance deve, ao mesmo tempo que deleita o espirito, confortar o coração. Foi assim que o entenderam os bons mestres da primeira e melhor metade d’este seculo, e é assim que eu igualmente entendo.

Se os senhores naturalistas pensam de outro modo e pretendem impôr-nos descripções de cousas indecorosas e repugnantes, tanto peior para elles, porque a acção má fica com quem a commette e não com quem a recebe.

Querem que a vida seja um triste e pestilencial deserto, onde nem de leve esvoaçe a aza loira e casta da poesia? Pois então que levem por uma vez d’este mundo em que habitamos todo esse inesgotavel thesouro de cousas bellas e agradaveis que encantam os nossos sentidos e as nossas almas!

Vamos, senhores naturalistas, façam uma grande bagagem de tudo que é brilhante, de tudo que é formoso e de tudo que é balsamico!

Carreguem com o sol, que é a côr; carreguem com as flores, que são o perfume; carreguem com as aves, que são a musica; carreguem com a mulher, que é o amor e a vida!

Vamos! Dispam de todo a natureza! Rasguem-lhe os vestidos! Furem-lhe os olhos! Arranquem-lhe os cabellos!

Vamos, senhores naturalistas, apaguem as estrellas! Mandem dar uma mão de pixe sobre o azul do céo! Corram a pontapés as rosas e as borboletas!

Vamos! levem tudo isso, que é a poesia! Levem tudo, e que não fique senão a podridão e o mal!

Levem as boninas dos campos, a sombra mysteriosa dos velhos arvoredos, o doce trapejar das aguas cantantes e batidas! Levem as melancolias do luar, o amor dos adolescentes, o primeiro beijo dos quinze annos! Levem o canto melodioso dos passaros, o murmurio das florestas e a profunda tristeza dos crepusculos á beira-mar! Levem tudo, tudo! não deixem, sequer o echo da ultima canção que embalava um berço; não deixem a derradeira lagrima chorada sobre um tumulo; não deixem sequer a aza de uma gaivota cortando a monotonia das aguas, ou a pequenina e esquecida vela, perdida nos limbos do horisonte, fugindo para além, como a nota extrema e saudosa da propria poesia que desfallece e morre!

Querem fazer da terra um lameiro vil, nauseabundo ? Pois então que nos arranquem a alma e convertam-nos o coração em machina de julgar e não de sentir.

A Mortalha de Alzira é um livro consciencioso; é um estudo lancinante das dôres mais profundas que póde comportar o coração humano.

Aquelles que o não comprehenderem, e não o sentirem, e não o amarem, ai d’esses! merecem toda a compaixão, porque é preciso ter a alma perdida e completamente embotada para não vibrar com as dores e com as agonias que pullulam nessa obra!

Aos outros, aos bons, aos puros, aos que não têm escola litteraria, nem escravisaram o gosto a nenhum preceito arbitrario de arte, a esses direi com toda a segurança e com toda a convicção:

« Leiam! Leiam A Mortalha de Alzira, porque vós todos vos encontrareis dentro d’essa sentida e chorada narrativa! »

E agora, Sr. redactor, sem querer abusar por mais tempo da bondade de V. S., peço-lhe que me desculpe ser tão extenso, e que annuncie para amanhã a estréa do meu novo romance. — Rio de Janeiro, 4 de de fevereiro de 1891. — Victor Leal. »

Agora, passados dous annos, quando estava eu bem longe de pensar nessa ridicula campanha, e tinha já esquecido de todo o meu triumphante adversario; depois de ter ainda outra vez explorado o nome de Victor Leal, mas então de collaboração com Mallet, Bilac e Coelho Netto, num terrivel romance de enredo, publicado igualmente pela Gazeta de Noticias, com o titulo de Paula Mattos, ou o Monte de Soccorro, eis que a casa Fauchon & C.a, a pretexto de attender ás reclamações dos seus clientes, me propõe editar em volume A Mortalha de Alzira, mas com meu nome.

Hesitei a principio: a cousa me pareceu muito escandalosa; mas afinal consenti. Porque não? Se o publico quer essa obra e diverte-se com ella, que a leia!

Terei o direito de escondel-a? Não! não seria digno de um adversario correcto! Victor Leal que rejubile victorioso e vá para o diabo que o carregue ou para os braços dos seus admiradores sentimentaes. Eu é que não estou disposto a atural-o mais!

Uma vez, porém, que este livro leva o meu nome, uma cousa é indispensavel que fique aqui bem clara: A Mortalha de Alzira gravita, de principio ao fim, em torno do mesmo motivo que forneceu a Théophile Gauthier o seu formoso conto phantastico La Morte amoureuse, com a differença de que o glorioso author de Mademoiselle de Maupin apenas dá a substancia da lenda, e por isso fez um conto, ao passo que eu descrevo os episodios que elle indica, cercando-os de factos e personagens novos, e por isso fiz um romance.

Mas o que separa principalmente as duas obras e dá-lhes caracter bem diverso, é que — La Morte amoureuse tem a sua razão na lenda do vampiro; em quanto que a Mortalha de Alzira substitúe o truc maravilhoso do vampirismo pelos phenomenos naturaes que podem apresentar certas crises hystericas de um nevropatha.

Eis tudo.

E, como La Morte amoureuse é um trabalho de pequenas dimensões e ninguem se arrependeria de lel-o ou de relel-o, tinha eu decidido dal-o transcripto no fim deste livro, mas os impressores da casa Fauchon & C.a, estabelecidos em Paris, onde é impressa a Mortalha de Alzira, protestam contra isso, allegando que não querem expôr-se ao vexame de uma multa rigorosa, porque em França os direitos de publicação ou traducção das obras de Théophile Gauthier são reservados e só pertencem aos legitimos herdeiros deste auctor.

Assim, não ha remedio senão contentar-me com pedir aos meus leitores, que ainda não tiveram a ventura de ler La Morte amoureuse, que não percam occasião de conhecer essa ligeira e mimosa phantasia, para melhor poderem avaliar das relações que existem entre este meu despretencioso romance e o famoso conto do mestre.

Aluizio Azevedo.

Rio de Janeiro, 1893.