CANTO III

A ÁRVORE TRÁJICA
 
 
 

A Árvore Trájica


No píncaro mais alto da Montanha
A Árvore crescera de tal sorte,
Como nunca se viu serra tamanha,
Nem crescer outra Árvore mais forte.

Ali, dessa Montanha erguida a prumo,
Onde o frescôr da Vida era tam escasso,
A Tempestade decedia o rumo
E as águias abalavam pelo espaço.


Lonje das mais e livre do escarcéu,
Que uma floresta murmura produz,
A Árvore embebia-se no Céu,
Afogava-se toda em plena luz.

Isolada no agreste e duro sêrro,
Tendo por cima o Céu, por baixo o abismo,
Era como os profetas no desterro
Abrasados de fé e misticismo.

Tinha o tronco torcido como um dôrso,
Cada forte raiz, um duro flanco;
Toda vibrante dum heroico esfôrço,
Toda ajitada dum supremo arranco.

Cada torcido ramo, longo braço,
Erguia-se convulso para o alto,
Como quem tenta erguer-se pelo espaço
Ou tomar um reduto pelo assalto.

Assim, desde a raiz ao fino tope,
Brandido como a língua duma espada,
Havia o salto heroico dum ciclope,
Que vae tomar o Céu pela escalada.


Nos ramos tinha rôscas reluzentes,
Altas arrancas a silvar injúrias;
Lembrava a copa, a trança de serpentes
— A cabeleira trájica das Fúrias —.

Folhas bebendo a luz a grandes sórvos
Pela taça do Céu a trasbordar,
Tam negras, tam inquietas, como os corvos,
Quando pairam com fome sobre o ar.

Via-se o Sol a dar-lhe repelões,
A Terra a conserva-la inda mais presa,
Penetrava d'angustia os corações,
Chegava a ser sinistra de grandeza;

Assim, alguem que foi sepulto em vida,
A meio corpo fora, se corcova
E põe a fôrça toda na saída,
Louco por se arrancar á horrível cova!

De noite projectava a sombra escura
Em plena fauce lôbrega do Empíreo;
E viam-se-lhe gestos de loucura,
Ouviam-se-lhe falas de delírio.


E, quando nessa abobada pelájica
Galopavam os ventos infinitos,
Aquela desvairada árvore trájica
Alucinada, alegre, dava gritos.

Se, na celeste, na profunda esfera,
Erguendo os braços hirtos como os mastros,
Caía a noite, vinha a Primavera,
Vestindo-a toda com as flôres dos astros.

E toucada de sois ela ajoelhava,
Sacerdote do Azul, árabe crente,
Naquela torre audaz, feita de lava,
Abrindo os braços para a luz do Oriente.

Falas ardentes dos herois de Homero
E tu, oh! alma trájica de Esquilo,
Para que possa interroga-la, quero
O vosso poderoso e claro estilo...!


«Hércules vejetal, em que façanha
E temerária empresa te empenhaste,
Que ao píncaro mais alto da Montanha
O teu robusto corpo abalançaste...?!»

«Que hidra, que monstro, ou Onfale te eleva,
Te obriga a suportar todo o pavôr
E desolada solidão da treva,
Que raiva, que desejo, ou que furor... ?!»

«Ou seja que, até nós, venham contigo
Novas tormentas, novo Adamastôr... ?!
E que em silencio sofras o castigo
De rebeldia e desvairado amôr...?!»

«Suspendei por momento a fúria louca
(Se me podeis ouvir e se falais)
Tornai mais branda a endurecida boca,
Abri os rudes lábios vejetais.»

«E olhai, que tendo forma e corpo vário,
Podemos ser irmãos pelo tormento :
Eu, como vós, sou duro e solitário
Arrosto o frio, o raio, a noite e o vento.»


Então (ainda tremo de conta-lo)
Torceu-se mais na trájica atitude,
Correu-a toda um temerôso abalo,
Mais alto ergueu ainda o corpo rude,

E, abrindo os braços ríjidos em cruz,
Falou; e a sua clara voz dizia :

«Eu sou a crente mística da Luz
Eternamente anciosa pelo Dia.»

«Nasci do mais informe e escuro lôdo;
Mas, ponha o Sol em mim beijos felizes,
Estremece-me e vibra o corpo todo
Até ao mais profundo das raízes.»

«Posto que viva na mais alta serra,
E certo que nasci do lôdo vil;
É sempre cela estreita — a larga Terra,
Dura grilheta — a rocha do alcantil.»


«Não ha robusto tronco por altivo
Que a cúspide mais livre se arrojasse,
Mas quanto mais a Vida intensa vivo,
Tanto deparo a Morte face a face.»

«Oh! que aflição, que horror, ficar sósinho,
Todo afogado em treva pela noite,
Emquanto o vento passa em redemoinho,
Despedaçando em mim o aéreo açoite...!»

«Os meus irmãos do bosque, se anoitece,
Buscam-se com a longa ramaria,
Povo que pelo tato se conhece,
E fazem uns aos outros companhia.»

« Mas eu, se a noite cái, tremo de medo;
E como só em pedras duras toco,
Começo a empedernir, volto a rochedo,
Fíco-me inerte e solitário bloco.»

«Só quando rompe o Sol de madrugada
De novo corre em mim a seiva quente
E o tronco, feito pedra rejelada,
Resurje carnação adolescente.»


«E eu que do claro Sol e da Luz vivo,
Alargo a imensa copa em plena graça,
Sôfrego bebo a luz, alegre e altivo,
Sou único a beber na minha taça.»
 
«Sim, escolhi o píncaro mais alto,
Enraizei-me, quieta e recolhida;
E quanto mais me afundo, mais me exalto,
Mais em mim bate o coração da Vida.»

«Aqui trazem mais ímpeto as rajadas,
Mais pode o raio rápido ferir-me;
Não vem cantar-me as aves nas ramadas
E as trepadeiras tremem de florir-me;»

«Sou por duros trabalhos combatida
Desta Montanha na elevada aresta,
Mas vale mais uma hora desta Vida
Que toda a vossa vida da Floresta.»

«Que brilhe o raio e sopre o vento forte...
Mais o meu livre coração se expande;
Quanto mais perto da fecunda Morte,
Tanto mais sinto como a Vida é grande.»


«Mais luz!... que o meu espírito veloz
Vôo mais livre e mais sublime ensaia;
Sou como um rio que não tenha foz,
Como um Oceano que não tenha praia.»

«Mais luz!... Eu sonho, eu sinto para além
Uma outra Vida superiôr á minha :
Formas, espíritos, visões...? Alguém
Que num País mais lúcido caminha.

«Ha outra, inda mais Vida. Eu bem na sinto,
E tam real que quasi me incomoda,
Estendo as mãos, pergunto por instinto:
«Quem fala, quem palpita á minha roda ?»

«Desejo é já princípio d'outra Vida,
O Tempo — uma cegueira da Matéria...
Vou ser a Luz, a Alma comovida,
Espírito, Princípio, Esséncia eterea!...»

«Ardo, deliro, anceio!... Luz emfim!...
Sam labaredas os meus ramos nús;
Ha fogo a crepitar dentro de mim...
Pairo, alumio e vejo,... Sou a Luz!...»


Disse. Vi ondular-lhe a copa a prumo;
Figurou atirar-se a um precipício;
Súbito ardeu, foi chama, depois fumo,
A névoa espiritual dum sacrifício.

Eu fiquei só e mudo sobre o cume,
Que erguia a fronte solitária e rasa,
E, como a pedra d'ara, onde houve lume,
Senti toda a Montanha ainda em brasa.