Seriam quatro horas da tarde. Amélia, já vestida para o jantar, esperava o noivo trabalhando em um bordado de tapeçaria. A seu lado, em uma linda banca de costura forrada de pau-cetim, havia, além dos utensílios necessários, uma profusão de seda frouxa de várias cores.

No cetim branco, estendido pelo elegante bastidor de mogno, via-se o risco de um par de sandálias, que pareciam destinadas a alguma fada, tão pequena, mimosa e delicada era a forma do pé.

Um dos esboços estava ainda intato; no outro porém via-se já um florão de rosas bordadas a seda frouxa, e no centro a letra L, feita com torçal de ouro. Era naturalmente a inicial do nome, em cuja tenção a moça trabalhava.

Amélia estava nesse dia talvez menos formosa, porém em compensação mais sedutora. Certa expressão languida, ou de cansaço ou de melancolia, embotava a flor de sua habitual lindeza, desmaiando o matiz dos lábios e das faces, velando o brilho dos olhos pardos. Seu traje branco ainda mais ameigava a sua fisionomia.

Não há para arrebatar os sentidos como essa languidez da mulher amada. Parece que ela verga com a exuberância do amor, como a planta muito viçosa, quando concentra a seiva que não brota em flor. O homem querido se regozija, pensando que suas palavras e suas carícias podem, como os orvalhos celestes, reanimar e expandir o coração da mulher amada.

Talvez em Amélia não fosse esse desmaio senão o efeito da fadiga do baile, e das cismas da noite maldormida.

Enquanto bordava, o ouvido da moça atento esperava algum rumor que lhe anunciasse a chegada do noivo. Um carro parou à porta; e momentos depois soaram na sala de visitas os passos de alguém.

Era Horácio.

Vendo a moça na saleta próxima, o leão dirigiu-se a ela, com a familiaridade a que lhe dava direito seu título de noivo. Trocados os cumprimentos usuais, sentou-se junto ao bastidor.

— O que está bordando?

Amélia fez um gesto para cobrir o bordado:

— Deixe ver! insistiu o moço.

— Não vale a pena!

— Ah!

Esta exclamação desfez-se nos lábios do mancebo em um sorriso de júbilo.

— É um presente de anos para uma amiga! disse Amélia.

— Não são para a senhora?

— Não, respondeu a moça admirada.

— Está zombando comigo!

— Veja!

A unha de nácar da moça mostrou o L bordado a ouro.

— Pois há quem-tenha este pezinho mimoso, a não ser minha noiva? disse Horácio rindo-se.

— Eu? exclamou Amélia enrubescendo. Pobre de mim!

— Lembra-se do que me prometeu ontem à noite?

Uma nuvem de tristeza cobriu o lindo semblante da moça; com a fronte pendida e os olhos baixos, parecia contraída por uma dor íntima.

— Amélia!

— Ontem... não tive animo de contrariá-lo. Fiz mal; desculpe-me.

— Então sua promessa? disse o moço com ironia.

Amélia voltou o rosto como para esconder uma lágrima.

— Acredite. O que me pede... não posso... não tenho forças para fazer. Se o senhor soubesse!... E entretanto deve saber, porque... Eu lhe suplico, não falemos disso agora; depois eu lhe direi. Prometo-lhe.

— Não se dê a este trabalho. Já sei quanto basta: zombou de mim.

Horácio levantou-se visivelmente despeitado, e volveu os passos pela sala. Amélia continuou a bordar talvez para disfarçar o seu vexame.

Decorridos alguns instantes, Horácio, lançando um olhar para a moça, ocupada com seu bordado, viu alguma coisa que o sobressaltou. A fímbria do vestido, suspensa na travessa do bastidor, devia descobrir o pé da moça para quem estivesse sentado à sua esquerda.

O leão aproximou-se na esperança de surpreender o avaro tesouro que se roubava a seus olhos.

— Não sabia que bordava tão bem!

— Ora! Não tenho paciência para estes trabalhos. Se não fosse uma dívida...

— Como? Não é mais presente de anos?

— Uma e outra coisa.

— Ou talvez nem uma nem outra, disse Horácio adoçando o tom de ironia.

— Que necessidade tinha eu de enganá-lo? disse Amélia com um doce ressentimento. Uma amiga minha...

— Cujo nome não consta.

— É segredo! atalhou a moça com faceirice.

— Ah! É segredo?

— Inviolável. Ela não quer por coisa alguma que saibam, nem mesmo suspeitem...

— Que é sua amiga?

— Ora!... Que tem um pé deste tamanho, disse a moça mostrando o bordado.

— Deveras? acudiu Horácio.

— Ela pensa que é um aleijão e sente uma tristeza...

— Na verdade, possui um tesouro, um primor! Admira como sua amiga já não morreu de desgosto.

— Mas, falando sério: não é natural que uma moça tenha o pé de uma menina de sete anos.

— Não sei se é natural; mas sublime, asseguro-lhe que é. Há certas graças na mulher que devem ficar sempre meninas; as huris, as fadas, as deusas, são assim.

— Com efeito! Se eu fosse ciumenta!

— De sua amiga?... De uma amiga tão íntima?... Era quase ter ciúmes de si mesma! disse Horácio gracejando.

— O que o senhor quer, sei eu. É ver se adivinha.

Horácio tinha sustentado esta conversa com interesse extremo, menos pelas palavras da moça, do que pelos movimentos da fímbria do vestido. A saia, arregaçando gradualmente com a inflexão do talhe gentil da moça reclinada sobre o bastidor, prometia brevemente descobrir o tesouro, tão estremecido pelo mancebo.

Amélia, ocupada com seu trabalho e distraída com a conversa, se esquecera daquele constante cuidado que ela tinha em compor a orla do vestido. Durante a conversa apenas uma vez tirara os olhos do bordado, para lançar uma vista furtiva ao leão.

— Mas então essa amiga misteriosa... A senhora ia contar uma história, se não me engano.

— História, não senhor. Queria explicar-lhe por que este bordado é o pagamento de uma dívida.

— Justamente.

— Pois essa minha amiga incomodava-se muito quando tinha de comprar botinas; custava achar um par que lhe servisse. As de senhora eram muito grandes; as de menina eram muito baixas. Afinal encontrou um sapateiro, que trabalha tão bem como os melhores de Paris.

— É exato.

— Como exato? O senhor sabe?

— A senhora não fala do Campàs? disse Horácio um tanto perturbado.

— Não, senhor.

— Pensei.

— Haverá dois meses, indo eu à cidade, minha amiga, que tinha feito uma encomenda de botinas, pediu-me para ver se estava pronta. Quando o criado a trouxe para o carro onde o esperava, caiu um pé de botina já usado, que fora para modelo. Minha amiga ficou muito aflita; e eu fiz tenção de dar-lhe no dia de seus anos umas chinelas bordadas por mim. Bem vê que não o enganei.

Proferindo as últimas palavras, Amélia sempre ocupada com seu bordado, debruçou-se completamente sobre o bastidor para desembaraçar o fio de seda frouxo. Este movimento produziu o que Horácio esperava. A saia, retraída pela travessa do bastidor, descobriu até o artelho o pé da moça.

O moço estremeceu com a forte emoção; e fechou os olhos, atordoado.

O que vira era uma coisa indefinível, estupenda. Era o aleijão, a monstruosidade de que lhe falara Leopoldo. Aquela massa informe; aquela enormidade cheia de cavernas e protuberâncias, ele a tinha ali em face, diante dos olhos, escarnecendo do seu amor, como um desses caturras hediondos das lendas da Idade Média.

— Diga-me uma coisa: ontem depois que saímos, o senhor conversou com aquele moço que dançou comigo? O Leopoldo, não é?

Não recebendo resposta, Amélia ergueu a cabeça para interrogar o noivo com o olhar. O aspecto demudado de Horácio, o sorriso pungente que amarrotava seu bigode artístico, a vista ansiada que ele tinha fixa no monstro, lhe revelaram subitamente o que sucedera.

Um grito de aflição escapou-se do peito da moça, que afastou violentamente de si o bastidor, causa do acidente, e colheu os largos volantes da saia, ocultando o que ela por tanto tempo defendera contra a curiosidade sôfrega do moço. Por alguns instantes os noivos permaneceram mudos e confusos, sentindo-se repelidos um pelo outro, e contudo não ousando afastar-se. É um suplício cruel esse que inflige a presença de um ente que faz corar de vergonha.

Afinal Horácio levantou-se e deu alguns passos a esmo. Amélia aproveitou-se desse movimento para fugir da sala. Ficando só, o leão dardejou para o interior um olhar terrível; e tomando o chapéu, desceu rapidamente as escadas.

Agora ele compreendia tudo; e as palavras que Leopoldo lhe dissera na véspera, ao sair do baile, lhe repercutiam ao ouvido, como uma gargalhada satânica:— "A ilusão é a única realidade deste mundo".

— Como pude eu tanto tempo iludir-me com o excessivo recato de Amélia? Como não desconfiei do pudor selvagem que velava semelhante a um dragão sobre o terrível segredo?

"Não há moça, seja ela o anjo da pudicícia, que não mostre ao menos a pontinha do pé, quando o tem mimoso e gentil. Eu devia saber disso, mas estava cego. Todos cochilamos, sem ser Homeros; eu que me prezo de conhecer a mulher, portei-me como um calouro.

"Consumir dois meses a correr após um sombra, e quando esperava que a sombra tomasse corpo, ela se desvanece... Qual! Antes se desvanecesse; mas ao contrário toma um vulto medonho, enorme, esquálido. Faz-me quase lembrar o verso de Camões."

Horácio soltou uma gargalhada:

— Realmente eu não sei qual de nós dois ficou mais corrido. Se ela de mostrar a toesa; se eu de a ver.

"Sonhar uma pérola, e encontrar um seixo; imaginar um mimo, e achar uma brutalidade; desejar um botão de rosa, e colher uma túbara!

"Se os rapazes souberem disto, estou desonrado. Como posso eu mais apresentar-me na Rua do Ouvidor, quando a coisa divulgar-se? Todo o asno terá direito de atirar-me o coice, como ao leão moribundo da fábula."

Horácio começou a refletir se fizera bem saindo tão precipitadamente da casa de Sales. Moderou o passo, e olhou o relógio. Eram perto de cinco horas. Se voltasse, chegaria tarde; demais, como explicar a retirada e a volta?

— Em todo caso, pensou o leão, a fortuna não me desamparou de todo. Assim como a ilusão durou até hoje, podia prolongar-se mais algumas semanas, e... Tremo de horror, quando me lembro que eu podia ser atado àquele mourão, àquele poste! Ser condenado a arrastar uma trave por toda a vida? Que suplício!

"Se eu pudesse imaginar que o Onipotente, criador de tantas maravilhas, se ocupa com a minha ridícula individualidade e se interessa pelos pecados que eu tenho cometido, me ajoelhava aqui mesmo na rua, e lhe renderia graças pela minha salvação.

"Quem se livrasse de ser esmagado por uma rocha, não escaparia de tão grande perigo como eu. Casar-se um homem com aquele pé, seria predestinar-se para o homicídio."

Passava um carro, que parou de repente.

— Ainda por aqui, Almeida? disse o Sales deitando a cabeça fora do carro.

— É verdade... saí, mas...

— Entre, que hão de estar à nossa espera. São cinco horas; demorei-me hoje além do costume; por causa mesmo do senhor, maganão! Certos arranjos.

Horácio procurou rir, mas fez uma careta que desculpou com um calo. Ele, o leão, sempre elegante, correto e irrepreensível no traje como nas maneiras, tinha perdido completamente a serenidade de espírito.

As senhoras estavam reunidas na saleta. Amélia ficou surpreendida, vendo Horácio de volta com seu pai; e reprimiu o contentamento que sentia. Mas este durou pouco. Ela conheceu logo que o leão obedecera mais às conveniências, do que ao afeto que lhe tinha.

Contudo essa volta significava alguma coisa. Ela, Amélia, não causava horror a seu noivo.

O jantar foi animado pela conversa viva e espirituosa de Horácio, que havia recuperado seu sangue-frio. Uma circunstância porém não escapou a Amélia, que passou despercebida às outras pessoas; o leão, apesar de sentado à sua esquerda, não achou um momento para trocar com ela uma palavra. Ao contrário, manteve sempre a conversação geral, para impedir o diálogo íntimo, que ele receava.

Terminando o jantar, Horácio achou um pretexto para retirar-se logo.

— O que se passou, D. Amélia, é mais do que um segredo para mim; eu nada sei, esqueci, disse ele despedindo-se.

Tocando apenas na mão que a moça lhe estendera, saiu.

Amélia deu um passo para chamá-lo, mas apoiando-se ao recosto do sofá, permaneceu imóvel, escutando os passos do noivo até que se perderam ao longe.