Fazia uma semana que Horácio não aparecia em casa de Sales.
Amélia tinha por duas vezes mandado saber do noivo. Da primeira contentou-se com um recado; da segunda enviou-lhe uma saudade.
O negociante de sua parte havia passado por casa do moço, que pretextou um defluxo para justificar sua ausência; e prometeu aparecer no dia seguinte.
Horácio compreendia a necessidade de sair da posição difícil em que se achava, mas debalde procurava um meio. Cansado de cogitar, entendeu que o melhor era confiar-se à inspiração do momento.
No dia seguinte à noite, dirigiu-se à casa do negociante.
As duas senhoras estavam sentadas junto à mesa; a mãe lia, a filha pensava. Amélia estava triste, sua mãe supunha que eram saudades.
Quando Horácio entrou, D. Leonor o festejou com verdadeiro prazer. Amélia sentiu um vislumbre de esperança, que iluminou o sorriso de seus lábios.
— Felizmente! exclamou D. Leonor. Esta casa era uma fonte dos suspiros!
A conversação começou friamente, e foi se arrastando por algum tempo. — Não tem saído? perguntou Horácio depois de uma pausa.
— Não; Amélia não tem querido.
— Por quê? perguntou o moço voltando-se para a noiva.
— Então não sabe? acudiu D. Leonor.
— Porque não se ofereceu ocasião, disse Amélia.
— Mas tem recebido visitas?
— Algumas.
— O Leopoldo não apareceu?
— Não freqüenta nossa casa, respondeu a moça.
— Ah!... cuidei.
— Se ele nos visitasse, o senhor o teria encontrado aqui muitas vezes. — Podíamos nos desencontrar, disse Horácio com um sorriso motejador. Amélia percebeu que o moço estava procurando um pretexto para despeitar-se. D. Leonor tendo continuado a leitura interrompida, estava alheia à conversação.
— Foi em casa do Azevedo que o apresentaram à senhora?
— Não; conheço-o de muito tempo; há perto de dois meses.
— De onde, se não é segredo?
— Segredo, por quê? Ele freqüenta a casa de D. Clementina que recebe às quintas-feiras. Constantemente nos encontramos aí. É uma reunião muito agradável; estamos quase em família, sem a menor cerimônia.
— Ah! nunca me convidou para essas reuniões; eu teria muito prazer em acompanhá-la, mas talvez fosse importuno, como já vou sendo aqui.
— O senhor está habituado a viver na alta sociedade; havia de aborrecer-se.
— Mas a senhora não se aborrecia; ao contrário divertia-se bastante.
— Alguma coisa.
— E Leopoldo era seu par?
— Era.
— Par constante?
— Não sei se era constante ou não; quase sempre ele dançava comigo, porque lá não há muito onde escolher; os pares são poucos.
— Ótimo sistema! Assim não se repara.
— Em quê?
— Em certa assiduidade! Ainda mesmo que uma moça já tenha noivo arranjado, há gente que exige da parte dessa moça certa reserva, porque enfim o outro pode não querer aceitar a responsabilidade de tudo! É uma impertinência, concordo, mas o mundo tem destes caprichos.
— Isso se entende naturalmente com as moças que têm noivo arranjado, retorquiu Amélia frisando a palavra, e não com aquelas, cuja mão se pediu talvez para satisfazer uma simples fantasia.
A moça levantou-se da mesa lançando ao leão um olhar desdenhoso, e foi sentar-se ao piano. Enquanto ela tocava uma variação de Thalberg, Horácio para fazer alguma coisa, se entreteve em arranjar as figuras chinesas de um jogo de paciência. Nunca ele precisara tanto de prover-se dessa virtude evangélica.
Decorridos alguns instantes o leão ergueu-se da mesa, deu algumas voltas pela sala, e aproximou-se do piano, como para ver a elegância com que a moça dedilhava.
— A senhora acha muito natural, D. Amélia, que uma noiva freqüente assiduamente uma casa onde não tem entrada o homem com quem vai casar-se; acha natural que essa moça tenha em tais reuniões um par efetivo que provavelmente cultiva uma dessas amizades cândidas dos romances de Balzac, verdadeiros lírios do vale, que vivem de orvalhos e de sombras. Eu, porém, sou um espírito prosaico e material; tenho a infelicidade de não acreditar na atração misteriosa dos espíritos, no consórcio ideal ias almas irmãs, nos sonhos etéreos, nos eflúvios celestes, em toda essa gíria
sentimental. Para mim, inteligência grosseira, tudo isso não passa de uma hipocrisia do primeiro tartufo deste mundo, o amor. É um tiranete que toma todas as figuras e posições; faz-se menino ou velho, anjo ou demônio, poeta ou banqueiro... Estou incomodando-a talvez?
— Não; acabe.
A moça fazia com uma ligeira surdina o acompanhamento das palavras do leão; mas à última frase, ela retirou as mãos do teclado. Foi esse o motivo da pergunta de Horácio.
— A senhora deve sentir muito, e Leopoldo com maior razão, de serem privados de uma distração que tanto lhes agrada!
— Compreendo, replicou Amélia. O senhor me proíbe que eu vá à casa de D. Clementina?
— Que idéia! Não tenho direito de proibir; ainda não sou seu marido; a senhora é completamente livre de suas ações, pode ir à casa de D. Clementina, ou onde lhe aprouver; assim como eu posso, querendo, passar as noites no Clube ou no Alcázar.
Amélia soltou uma risada.
— Pensava que os leões estavam isentos dessa fragilidade do ciúme.
— Perdão; não se trata de ciúme, nem sei o que isso é. A questão reduz-se a uma antipatia de caracteres, a uma contradição de gênios, que deve ter para o futuro graves conseqüências. A senhora é idealista, eu sou materialista. Um quisera viver no mundo dos sonhos, outro neste vale das lágrimas e das realidades. A senhora procurando-me no céu entre as estrelas e os anjos, e não me achando aí, sofreria uma cruel decepção; entretanto que eu na terra, ficarei reduzido à sombra da mulher que amei.
— Não é tão pouco, para quem se contentava com um pé de criança, disse Amélia com ironia.
— Mas esse pé era a realidade, a expressão a mais sublime dela!
— Custa-lhe pouco a possuir essa realidade. Mande fabricá-la em cera: sairá ainda mais perfeita.
— Ainda não perdi a esperança de encontrá-la.
O chá interrompeu o diálogo. Os dois noivos aproximaram da mesa oval, onde o criado acabava de colocar a bandeja.
A fisionomia de Amélia perdera a expressão de tristeza e desânimo que tinha a princípio; a conversa lhe deixara no semblante alguns tons vivos.
Ocupada em dispor as xícaras para enchê-las, os gestos sempre macios da moça revelavam certa crispação nervosa.
Horácio ficara contrariado, porque não tivera tempo de precipitar o casus belli. Receava que se demorasse ainda o rompimento que ele tanto desejava.
— Mamãe, disse Amélia com intenção, amanhã é quinta-feira. Vamos passar a noite em casa de D. Clementina?
— Se quiseres.
— Não devemos faltar; deixamos de ir a semana passada.
— Foi logo depois do baile do Azevedo.
— Não o convido, disse Amélia voltando-se para Horácio, porque o senhor não freqüenta essas reuniões de gente pobre.
— Sem dúvida; tenho medo de evaporar-me em devaneios e suspiros, respondeu Horácio, cruzando com a moça um olhar de desafio.
Ele sentiu que Amélia o provocava, e exultou. A moça estava disposta a resistir; o rompimento era infalível e pronto.
— Eu gosto bem dessas partidas; a noite passa tão agradável.
Aproveitando-se de um momento em que D. Leonor se afastou, Horácio atirou à moça rapidamente estas palavras:
— Pois se a senhora voltar à casa de D. Clementina, eu não voltarei mais aqui.
Amélia estremeceu.
Um quarto de hora depois, Horácio retirou-se. Quando se despedia das senhoras, disse o leão à moça apertando-lhe a mão:
— Desejo que se divirta muito amanhã.
— Aonde? perguntou D. Leonor.
— Em casa de D. Clementina. Não vai, D. Amélia?
A moça hesitou um instante. O ofego de seu colo traiu uma luta violenta, mas rápida.
Sua resolução, antes que ela a exprimisse, manifestou-se na altivez do porte, que uma vibração íntima erigira.
— Vou sem falta!
Horácio, soltando a mão da moça, que foi bater inerte nos folhos do vestido, cortejou profundamente:
— Seja muito feliz.
Apenas o leão desapareceu na porta, Amélia abraçando e beijando a mãe, subiu precipitadamente a sua alcova; atirou-se a uma conversadeira, e desafogou em pranto e soluços a dor que tinha recalcado desde muitos dias.
A maior parte da noite foi para ela de vigília. Viu correrem as horas; cada momento que se escoava era uma esperança, uma ilusão que se desfolhava da flor viçosa de sua alma.
Aqueles que se separam das pessoas ou dos sítios queridos, conhecem bem esse travo de coração que chamamos saudade; e sabem quanto é cruel o momento da separação.
Mas não há despedida cruciante como seja a da alma pelo amor que nutriu durante muito tempo. Há aí mais do que uma separação: é quase a mutilação moral.
Amélia compreendera que tudo acabara entre Horácio e ela. Desde o dia do jantar receara esse resultado; mas ainda alimentava uma esperança. Naquela noite a esperança murchara, se não foi ela própria, Amélia, quem a desfolhara.
Agora na calada da noite, em sua alcova que lhe parecia um ermo, ela tinha medo do isolamento em que se achava. Algumas vezes sua alma sentia-se como que asfixiada pelo silêncio e pela treva que a submergiam.