Como dissera a Amélia, na sua última visita, Horácio não tinha perdido a esperança de encontrar o que ele chamava a realidade de seu amor: o pezinho gentil e mimoso do qual ele possuía a botina.

Iludira-se nas suas investigações; era preciso recomeçar.

Tal era o pensamento que preocupava o leão, recostado naquela mesma poltrona, onde o vimos no primeiro dia. Seu olhar embebido nos frocos de fumaça do puro havana, rasteava nas espirais diáfanas a imagem confusa de seus pensamentos.

Tinham decorrido três dias depois do seu rompimento com Amélia. Logo na seguinte manhã, o leão para não dar tempo ao arrependimento da moça, escreveu uma carta ao Sales, manifestando seu receio de que a antipatia de gênios tornasse infeliz uma união que todos ardentemente desejavam.

O negociante mostrou a carta à filha, que lhe disse com um sorriso forçado:

— Ele tem razão!

A carta de Horácio teve resposta no mesmo dia. O Sales encontrando-o na Rua do Ouvidor recusou-lhe o cumprimento.

O leão, satisfeito com esse pronto desenlace que evitava longas explicações, achou-se a poucos passos de distância em frente de Leopoldo.

— Oh! Tu me trazes felicidade! exclamou o leão, apertando-lhe a mão. Sempre que nos encontramos, ou está para acontecer ou já tem acontecido alguma coisa de bom para mim.

— Não sabes quanto estimo!... Assim eu sou uma espécie de astro propício, sob cuja influência nasceste.

— Queres ver? Havia muito tempo que não te via, quando nos encontramos no baile do Azevedo. Pois nessa noite decidiu-se meu destino.

— Ah! e sob o meu influxo benéfico?

— Está visto. Lembras-te que eu te disse que estava disposto a todos os sacrifícios até o do casamento para possuir aquele pezinho!...

— Lembro-me.

— O único obstáculo era uma espécie de promessa ou arranjo de família. Felizmente a menina, a tal Amélia, compreendeu que perdia seu tempo, e arrufou-se na noite do baile por uma ninharia. Eu aproveitei o pretexto; escrevi ao pai retirando minha palavra, e agora mesmo ele me acaba de responder. Estou livre como o ar, e contente como um rapaz que sai do colégio.

— Neste caso dou-te meus parabéns.

— E tu como vais com o sorriso?

— Sem novidade.

— Dize-me uma coisa, no dia em que a viste pela primeira vez, ela estava só ou com outra moça? Faço-te esta pergunta porque foi na Rua da Quitanda e quase pelo mesmo tempo que eu achei a botina.

— Eram duas, respondeu Leopoldo sorrindo.

— Em uma vitória?

— Sim.

— A outra era mais baixa?

— Não afirmo.

— Adeus.

O leão separou-se do amigo, e repassando as particularidades de sua conversa com Amélia perto do bastidor e no dia do jantar, começou a combiná-las com as informações de Leopoldo e com as circunstâncias do encontro no Passeio Público, onde vira o sinal impresso na areia pelo mimoso pezinho.

Agora, fumando seu charuto depois do jantar, o leão resumia todas as suas reflexões, e chegava a este resultado:

— Decididamente o pezinho é de uma moça que ia com Amélia, no dia em que se perdeu a botina e no dia em que eu a vi de longe no Passeio Público. Essa moça, cuja inicial é um L, não é outra senão Laura. Aquele pudor feroz era um indício infalível. Amélia procurava imitá-lo por motivo bem diverso: mas não o conseguiu.

O moço chegou-se à banquinha onde estava o cofre de pau-rosa e contemplou a botina.

À noite, o leão foi a uma partida. Sua estrela o favorecia. Laura lá estava. Dirigiu-lhe algumas banalidades graciosas, que ela a princípio recebeu com manifesta esquivança, mas depois com timidez.

Horácio compreendia a razão do procedimento da moça. Para tranqüilizá-la, teve o cuidado de nunca abaixar a vista à fímbria do vestido, e mostrar-se enlevado pelo colo gracioso da gentil senhora. A lição que recebera anteriormente, o tornou de uma prudência consumada.

No fim da noite o leão conseguira restabelecer a confiança no espírito de Laura, desvanecendo-lhe a suspeita deixada pela cena do teatro. Era o essencial; com os meios de sedução de que dispunha, e a inclinação que a moça revelava por ele, contava certa a conquista. A questão era de tempo.

Antes de quinze dias freqüentava a casa da moça e estava na intimidade da família.

Laura perdera o marido aos 17 anos, pouco tempo depois de casada. Era rica; não lhe faltavam pretendentes atraídos pelo dote e pela beleza; mas ela não parecia disposta a tentar segunda vez a felicidade conjugal, embora não tivesse passado da lua-de-mel. É natural que o desejo lhe chegasse com o primeiro fio de neve; quando fossem rareando os apaixonados que a cercavam.

Uma manhã, Horácio passando a pé, como costumava, pela casa da moça, viu-a, por entre as grades, sentada no jardim ocupada em fazer um ramo de flores. Entrou e foi ter com ela, à sombra de uma latada de madressilvas.

Laura deu-lhe lugar perto de si; e começaram a conversar sobre flores, modas e mil futilidades.

Eram dez horas do dia. O sol brilhava em céu límpido; uma aragem fresca sussurrava entre as folhas; os coleiros trinavam nas ramas das laranjeiras. Esse concerto de perfumes e harmonias convidava o coração a abrir-se e cantar o seu hino de amor.

Laura reclinou a fonte e emudeceu, com os olhos embebidos no seio de uma rosa, que tinha no regaço. Horácio tomou-lhe a mão, que ela cedeu com tênue resistência.

— Sabe desde quando eu a amo, Laura? Desde o dia em que a vi pela primeira vez passar em um carro. Foi, se não me engano, na Rua da Quitanda; ia com a filha do Sales. Lembra-se?

A moça fez um gesto afirmativo.

— Depois encontrei-a no teatro. A princípio seus olhos me deixaram conceber alguma esperança; mas o desengano foi cruel. Nem imagina como sofri! Cuidei que não houvesse mulher capaz de obrigar-me a voltar às ingenuidades dos 18 anos. Um dia ainda me lembro, via-a de longe entrar no Passeio Público; apressei-me para ter o prazer de cortejá-la, receber um olhar. Debalde corri todas as ruas; quando voltei à porta fiquei desesperado. A senhora tinha saído, sempre com a filha do Sales. Recorda-se?

— Recordo-me, respondeu a moça. Mas era por mim que fazia tudo

isso?

- Duvida, Laura?

— Nega que esteve apaixonado por Amélia? Até diziam que já a tinha pedido.

— Que ingratidão! Não sabe então por que me fiz apresentar em casa do Sales? Para vê-la; era preciso procurar um meio; a senhora já não se lembra da dureza com que me tratava.

— E por isso consolava-se com Amélia?

— Se amasse, Laura, havia de saber o que é o ciúme, e as loucuras que ele nos obriga a fazer! Mas a senhora não ama!

— Quem lhe disse?

— Essa frieza.

— E o que eu sofri?... balbuciou a moca pondo os olhos languidos no semblante do mancebo.

— Perdão, Laura, exclamou Horácio ajoelhando. Eu era um louco, indigno de teu amor; e não mereço tanta felicidade. Mas deixa-me implorar o meu perdão; deixa-me beijar teus pés, que...

— Ah! .. .

Horácio proferiu aquelas palavras apaixonadas, de joelhos diante da moca que sorria inclinada para ele; de repente abaixou-se para beijar-lhe os pés, esse objeto de sua adoração. Foi então que ela soltando um grito de espanto, o repeliu para longe de si com horror.

Contudo, o moço, que preparara toda aquela cena para chegar à realização do desejo por tanto tempo afagado, conseguira ver... mas não o que esperava: um pezinho mimoso e gentil; e sim dois pés ingleses de sofrível tamanho, que lhe pareciam descansar sobre uma almofada preta.

O semblante de Laura se tinha demudado de uma maneira espantosa; em suas faces intumescidas respirava uma expressão feroz de ódio e vingança.

Horácio compreendeu que naquele momento qualquer explicação era impossível. O que tinha de melhor a fazer era eclipsar-se. No fim de contas esse desenlace lhe convinha, pois cortava todas as dificuldades da retirada.

Cortejou e saiu.

A alguns passos da casa, o leão não pôde conter uma gargalhada, que lhe estava a sufocar, e desabafou-a. Realmente havia de que rir; duas vezes mistificado em sua paixão, ele, o rei da moda, o conquistador sempre feliz.

Insensivelmente começou a refletir sobre o ocorrido. Por mais que se desse tratos à imaginação, não podia decifrar o enigma. A botina que achara fora perdida por uma das duas moças; mas não pertencia a nenhuma. Seria encomenda de outra amiga, e talvez para alguma menina de dez anos?

De repente surgiu no espírito de Horácio uma idéia tão original, como a situação em que se achava.

— Eu vi os dois pés de Laura; mas de Amélia, só vi um; é verdade que esse valia por três. Mas... Não resta dúvida. A natureza tem destes caprichos. A maravilha a par do monstro, o mimo em face da deformidade! É o princípio do contraste, que rege o mundo. Eu vi o direito, o aleijão. O esquerdo ficou oculto como a pérola e o diamante.

Compenetrado dessa idéia, de que o pezinho adorado pertencia a Amélia, a quem a natureza em compensação aleijara o outro, Horácio admitiu a possibilidade de que sua paixão pela moça revivesse, embora menos ardente, ou mais positiva.

Ter aquele pezinho em suas mãos, senti-lo estremecer e palpitar de emoção, cobri-lo de beijos, acariciar a rósea cútis diáfana tecida de veias azuis, brincar-lhe com as unhas crespas, como conchinhas de nácar, cingir ao seio esse gnomo gentil, titilante de amor e volúpia!...

Não podia haver para o leão maior delícia neste mundo. Ele daria por ela todo o quinhão de prazer que porventura lhe estava reservado para o resto da existência.

Foi engolfado nestes devaneios que Horácio apeou-se à Rua Direita de um tílburi, que tomara no Largo do Machado.

Seguindo para a Rua do Ouvidor, a passo lento e descuidado, o leão aspirava o ar da cidade, como o ocioso que não sabe em que há de consumir o dia e fareja uma aventura qualquer.

De repente avistou coisa que o pôs alerta. Um carro que subia a Rua do Ouvidor passou por ele; era o cupê do Sales. O rosto encantador de Amélia apareceu-lhe a princípio de relance na penumbra que azulava o acolchoado de damasco, e depois em plena luz moldurado pelo quadro do postigo.

Acompanhando com o olhar a carruagem, Horácio a viu rodar por algum tempo vagarosamente por causa de embaraço no transito e parar próximo à esquina da Rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba, esperava naturalmente ordem para abrir.

Horácio apressou o passo. Por duas vezes avistara a fronte de Amélia coroada com um chapeuzinho de palha da Itália, assomando no postigo, a fim de percorrer a rua com o olhar. A idéia de que a moça lhe desejava falar passou pela mente do leão, que a repeliu, sem contudo considerá-la impossível.

Em todo caso ele acreditou que mais ou menos tinha parte naquela parada do carro, e não se enganava.

— Para que mandaste parar? perguntou D. Leonor.

— Quero comprar luvas no Masset, respondeu a filha.

— Ficou atrás.

— Podemos ir a pé.

Quando o leão chegou a dez braças do carro, a portinhola abriu-se, e Amélia, em companhia de sua mãe, saltou na calçada. A moça tinha um roupão cor de café, de extrema simplicidade, porém muito elegante; as luvas eram da mesma cor de cinza das fitas do chapéu de palha.

As duas senhoras dirigiram-se para a casa do Masset. Horácio procurou cortejá-las na passagem, mas elas não lhe deram ocasião. Contudo o leão reparou que a moça disfarçadamente voltou o rosto para olhá-lo.

Enquanto as senhoras compravam luvas, Horácio as esperava em frente da casa do Valais, a alguns passos do carro. Pouco tardaram. Amélia vinha só na frente. Felizmente o transito pela calçada diminuiu naquele instante, de modo que o conquistador pôde ver a gosto a moça aproximar-se dele. Levados por impulso irresistível os olhares do mancebo abaixavam-se para os volantes do vestido, e rastejaram no chão que a moça pisava.

Amélia percebeu a insistência do olhar, e um ligeiro sorriso fugiu-lhe dos lábios. Imaginando que na calçada havia lama, colheu com ambas as mãos a frente da saia, e com tanto estouvamento que descobriu os pés até o colo da perna.

Horácio ficou fulminado.

Vira pousados na calçada dois pezinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de merinó cor de cinza. Pareciam um par de rolinhas, arrulhando na praia e beijando-se com o biquinho rosado. Durante o rápido instante, que seus olhos puderam admirar esses primores de graça e gentileza, não escaparam a Horácio as ondulações voluptuosas e os contornos suaves dos dois silfos. Nunca ele observara no talhe elegante da mais formosa mulher requebros tão aveludados, como tinha aquele dorso arqueado e aquela palmilha sutil.

Tamanho foi o pasmo de Horácio, que sr deu por si quando a moça, passando por ele, entrou na carruagem. Voltou-se então precipitadamente, sem consciência do que ia fazer; mas a parelha já tinha partido a trote largo.

Momentos depois o leão descia a Rua do Ouvidor completamente absorto. Seu lábio distraído ia debulhando, sem o sentir, alguns trechos dos lindos versos do conselheiro José Bonifácio:

"Padres, não me negueis, se estais em calma, "Um coração no pé, na perna um'alma!"