— Mais um bolo?

— Obrigada. Ouvimos o Chagas. Está famoso.

— Oh! Dando apenas as últimas alcunhas do Lírico...

— Aposto que não sabe...

— A do presidente ou a do cardeal?

A Sr.ª de Melo e Sousa parou, olhando a sala. Seria inconveniente perguntar a alcunha de alguma pessoa presente. A Sra. de Melo e Sousa era muito bem-educada desde criança.

— Por exemplo, a do Florimundo - atalhou a menina Laura Gomes, que não era bem-educada.

— Ah! essa é o puzzle - fez o Chagas olhando o sujeito ao fundo.

— Por quê?

— Ora! Porque esgota a paciência dos credores e é mudo como um peixe.

As senhoras fingiram rir. As primeiras alcunhas tinham sido mais felizes. Era, naquele inverno, a recepção inicial da Sra. Gomes Pedreira.

Mme. Gomes Pedreira, Malvina para os íntimos, com os seus cinqüenta anos discretos posto que adiposos, afadigava-se em recepções. Com dois filhos apenas, Jacques, cujo curso de Direito se completara dias antes, e Gastão, ainda num equiparado de padres, distante, era ela quem dirigia o serviço, preparava os bolos nas pratarias, revolucionava a pouca vontade evidente dos criados. Podia ter uma governante. Era, porém, uma questão de hábito. A força do hábito obrigava-a. Todos os anos invariavelmente em Petrópolis, decidia não abrir mais a sua sala do Rio em dias certos. Em seguida, continuava a fazer o que fizera no ano anterior. Continuar é ainda uma das ações mais fáceis deste mundo, que a calúnia chama hostil. Assim, Malvina descia de Petrópolis sempre numa linda manhã de abril, acompanhada por muitas malas e por duas criadas. A sua primeira frase era invariavelmente a mesma:

— Meu Deus! que calor faz cá!

Em seguida tomava um carro. Ao chegar a sua residência de Botafogo, vasto casarão apalacetado, presente de noivado que o marido já hipotecara, repetia também invariavelmente:

— Santo Deus! Em que estado puseram a minha casa!

E encetava uma arrumação geral. Aborreciam-se todos os criados, os patrões, ela principalmente, e, acabada a arrumação, a casa era cada vez mais a mesma coisa. Ao cabo de um mês, não tendo outro meio para se enfezar e enfezar os serviçais, marcava o dia da abertura semanal dos seus salões. Temperamento.

Naquele ano fora tal qual. A Sra. Gomes Pedreira passara quatro meses desesperados na cidade de verão. Como seu marido, o célebre advogado Gomes Pedreira, consultor de várias companhias inglesas, era um fino homem, muito relacionado, a esposa vivia numa roda-viva, sempre a aceitar e oferecer (oferecer mais, sempre), almoços, jantares, festas a ilustres conhecidos, quase desconhecidos e mesmo por conhecer. Gente bem cotada, eles! Isso irritava-a. Seria decerto pior entretanto se não tivesse tantas relações. Ao demais, os rapazes inquietavam-na. Gastão, em férias, alugara um cavalo e um automóvel (ambas as conduções ao mesmo tempo), e fizera por questões de recibos escândalo num certo campo de lawn tennis da melhor roda, em que os freqüentadores se dividiam em dois grupos: o das trouxas e o das assanhadas. Enquanto o último rebento agitava, de tal sorte o Piabanha, Jacques teimava em ficar no Rio, no calor do Rio! com o plano vulgar de cair na pândega. E fora ao exagero, levara ao próprio lar um bando de estróinas e de mulheres alegres, a que oferecera uma ceia naturalmente alegre. Nunca na sua vida a pobre senhora tivera emoção tão violenta como quando soube da cena...

— É um escândalo!

— Sabes lá se eram alegres? - dizia o esposo conciliante. - Depois, simples boatos!

— Não, desta vez parto.

Desceu quatro dias antes do que era costume, modificou a sua frase inicial da Prainha, porque ao chegar logo exclamou:

— Nunca senti tanto calor na minha vida.

E foi tudo. Em casa, como nada havia de anormal, não teve coragem para falar a Jacques, receosa de perder uma hipotética força moral, assim como não se resolvera a cortar em Petrópolis o cavalo, o automóvel (ambas as conduções ao mesmo tempo) e as insolências sociais do jovem Gastão. No fundo, muito boa senhora. Um mês depois, abria os salões. Era aborrecidíssimo, mas sentir-se-ia diminuída se o não fizesse. Que diria o mundo?

As recepções de Mme. Gomes Pedreira representavam de fato várias coisas solenes. Em primeiro lugar a tradição. Há dez anos, Malvina, em pleno outono sem fatuidade, tinha o seu dia, era das raras antes da Avenida. Além do mais a sua casa fazia-se uma espécie de campo de honra neutro-conservador. Lá se encontravam todos os capazes de ter vencido ou de vencer, e os capazes se davam o ar do melhor tom. O palacete, todo num pavimento assobradado, em meio do jardim parecia bem. Nesses dias de importância abriam ã sociedade que os visitava, o grande salão da frente, com janelas para a rua e muito pouco mobilado, como à espera sempre de um baile imprevisto, o pequeno salão com um piano de cauda e algumas tapeçarias autenticamente falsas e a casa de jantar, em estilo manuelino sobre embuia, presente de uma associação portuguesa ao advogado. Não era bem um five-o'clock. Nem uma sauterie. Nem uma recepção. Tinha dos três - era o dia de Mme. Pedreira. Não raro as senhorinhas e os rapazes faziam, isto é, acabavam por fazer umas valsas no grande, nu e encerado salão. Os sandwiches, os doces, os bolos, os licores e os vinhos da mesa da casa de jantar desapareciam infalivelmente. Mas na pequena sala aconchegada, servia-se o chá com um ar distinto. Nesse dia, Malvina estava intimamente satisfeita. Os doces estavam a ser muito gabados, o criado, um italiano novo, servia bem e havia na peça intermediária entre a dança e a comedoria a nata das suas relações. Era como se estivesse no Lírico, numa noite em que não se canta nenhum drama de Wagner.

Entre as senhoras de raça - é tão difícil fazer questão de raça! - havia a Viscondessa de Muripinim, encardida relíquia da monarquia, chegada de Cannes, onde acabava de assistir ao batizado do príncipe herdeiro, o primeiro rebento de D. Luis, que ela conhecera menino; a Sra. de Melo e Sousa, de uma estirpe de diplomatas, a mais inteligente dama da sociedade. E ao lado dessas senhoras, as três Praxedes, esposa e filhas do negociante Praxedes, a encantadora Eleonora Parckett e a baronesa sua mãe, a Viuvinha Ada Pereira, Graça Feijó, a mais parisiense das cariocas, mulher de um banqueiro e filha de um milionário, o casal Gomensoro, ele secretário de Legação, ela Etelvina, com o ar de Mme. Benhe Bady, nas peças de Bataille, cantando deliciosamente e tendo o cuidado de elevar o seu refinamento a ser falada nos jornais como Etelvina Gomensoro, née d'Ataide; a condessa do Papa Rosalina Gomes, perfeita de ingenuidade, uma verdadeira criança; a sempre modesta esposa do jornalista proprietário Altamiro, com um vestido que devia ter custado no Paquin muitos bilhetes azuis e; a fascinante Luísa Frias, um tânagra vivo, coberta de pérolas (dizem que muitas falsas), porque é moda em Paris a pérola, assim como Gina Malperle, a filha do eterno cônsul do Cobrado, com corais rosas e brilhantes para conservar o ar da 5.ª Avenida, o tom fufly, o aspecto americano; a bela Mme. Andrade (bela há vinte anos irrevogavelmente!), a bela Mme. Gouveia (bela há dez anos fixamente!), a bela Mme. Zurich (bela há cinco anos só felizmente), três irmãs irreconciliáveis no predomínio da beleza. Quanta gente! Mme. Pedreira consegue mesmo mostrar na sua sociedade a jovem esposa milionária do Deputado Arcanjo dos Santos, rio-grandense, filha de um estancieiro poderoso. Como tem um vestido acintosamente caro e os seus lindos olhos mostram uma gula desdenhosa pelo meio, Alice dos Santos só encontra cordialidade natural na Sr.ª de Melo e Sousa.

— Sou muito medrosa. Só estive em Buenos Aires.

— E em Paris?

— Vou agora, V. Exa. não imagina a vontade...

A Sra. de Melo sorri boamente.

— Não me dê excelência, por favor.

— A culpa é de meu marido, que é deputado. Em casa tudo é excelência.

— E que tal a recepção?

— Olhe, faz-me o efeito de um teatro.

— As recepções são sempre um primeiro ato de peças que principiam ou já acabaram quando elas começam...

Alice olha. Realmente. No salão de jantar, devorando sandwiches as Praxedes, a mãe e as duas filhas fazem o seu flirt com o impecável Bruno Sá e o lindo Dr. Suzel, lindo como um pajem de gravura dos contos de Boccaccio. A Condessa Rosalina come há vinte minutos a terça parte de um bolo, conversando com o ex-dom-juan Anselmo de Araújo, sempre petulante e juvenil. No salão, várias meninas e vários rapazes, to dos muito bem vestidos, com um ar de superioridade, desconfiado de que essa superioridade venha a desaparecer de um momento para outro, valsam. É uma valsa francesa, feita para os casinos de Nice e da Riviera, - valsa escrita decerto por maestros divorciados. Às janelas há nomes ilustres, e neste mesmo salão, onde Graça Feijó, Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde e o distinto Gomensoro fazem a um canto uma partida de bridge, para não perderem a linha parisiense, ela vê, rindo com Gina Malperle, um homem magro, bem vestido, e um velho alto de monóculo.

— Quem são?

— Não conhece? Godofredo de Alencar, homem de letras que se dá com políticos de importância. O outro é o Barão Belfort, tipo muito curioso, que posa para alarmar toda essa gente.

— Ricos?

— O primeiro de esperanças. O segundo solidamente, o que é raro por cá.

A valsa cessara. Quem tocara, tendo ao lado o Chagas a fingir que virava as páginas, fora a jovem Laura da Gama.

— Também quero eu um pouco!

— Estava tão bom.

— Tão bom o quê?

— A valsa.

— Olhe, venha cá, ainda não lhe disseram o seu apelido?

— Já.

— Aposto que não.

— Mas não admito que diga, porque digo o seu.

— Ora!

— Qual é? - interrogou Alice.

— Não indague, porque diz o seu. É um traidor!

Carlos Chagas, Charlot para todos, de idade e de profissão indefinidas, era um elemento mundano de primeira ordem. Como estava em moda darem-se uns aos outros alcunhas, deram-lhe o apelido de "Ganhou o macaco". Esse apelido tinha o dom de irritá-lo. Era também a única coisa que o irritava. Diante do olhar de Alice em que se anunciavam todas as possibilidades e todas as vontades, ao mesmo tempo que considerava a estancieira parlamentar pelo lado prazer, estava com o apetite de dizer ali a insolente alcunha de cada uma das três senhoras. Calou-se porém. O buffet renovara de apreciadores. O Dr. Justino Pedreira aparecia a conversar com dois cavalheiros que pareciam ricos e influentes. Charlot tinha um grande respeito por quem parecesse rico ou influente. E de um deles lera nos jornais da oposição que ficara com trezentos contos de uma tremenda roubalheira aos cofres do Estado. Era um homem digno de atenções. Não só dele. De toda gente. E de outro lado, enfim fatigada de fazer o bridge, Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, surgia pelo braço de seu marido, rindo como se estivessem em casa ou fossem os dois os subprefeitos da "Sociedade onde a gente se aborrece".

— Estão alegres?...

— Não, imaginem vocês o Comendador Praxedes...

— O escafandro? - indagou logo Charlot.

— Ah! sim, o escafandro, que quer por força aprender o bridge com a Graça.

— Nunca aprenderá.

— Um jogo chic.

— Pois claro.

— E se nos desse o prazer de ouvi-la um pouco?

— A sua recepção está tão alegre.

— É preciso elevá-la. Nestes dias da Malvina tenho o receio de convidar muitos artistas para que as recepções não tenham urna importância que não devem ter e não passem o limite da intimidade. Mas quando no nosso meio há uma grande artista!...

— É o céu que a envia.

Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, bebia a ambrosia do elogio como uma verdadeira artista e o jovem Gomensoro, escanhoado, com o aspecto simpático de um espanhol educado em Londres, irradiava esse mesmo prazer. Em torno, o Feijó e a linda esposa, Mme Gomes Pedreira com a sua pesada autoridade de dona de casa, a fascinante Luísa Frias pediam um trecho de música. Mesmo Mme. Rosalina, Condessa Gomes, dizia com a sua irredutível ingenuidade:

— Eu gosto tanto de música; é tão romântico!

E o Barão Belfort, o homem mais viajado do Brasil; e Alencar, Godofredo de Alencar, que escrevia crônicas mundanas de um sabor tão estrangeiro, pediam discretamente. Charlor bateu palmas.

Então, Etelvina, foi até o piano. Houve um silêncio. Ela ia cantar numa toada de sonho, os versos de Sully. E a sua frase surgiu como um bordado de ouro na renda da música:

Quand on est sous l'enchantement

D'une faveur d'amour nouvelle

On s'en défendrait vainement

Tout le révèle.

Neste momento, com um passo macio e seguro, a fronte lisa de moço, os cabelos negros tão passados de escova e concreto que pareciam de ônix, o frack de uma linha impecável, a gravata branca com uma pérola escura, surgiu à porta da sala de jantar um jovem. Mme de Melo e Sousa acenou-lhe com o leque. Ele adiantou-se devagar até o canapé em que a ilustre dama conversava com a admirada Alice dos Santos. As suas mãos largas e bem tratadas estenderam-se para ambas num gesto natural de força íntima. Depois sentou-se entre as duas.

— Já se conheciam? - indagou Mm' de Melo e Sousa.

— Desde anteontem.

— Foi no Lírico.

— Psiu, falem baixo...

A voz de Etelvina enchia a sala d'amor:

Comme fuit l'or entre les doigts

Le trop plem du bonheur qu'on sème

Par le regard, le pas, la voix

Crie: Elle m'aime.

A Melo e Sousa sussurrou:

— E eu que antegozava o prazer de apresentá-lo! Eis Jacques Pedreira, um menino de maus costumes!

Alice dos Santos sorria. A ave do paraíso que pousava nos seus cabelos, graças a uma modista inimiga dos horizontes, arfava. E Jacques sentado entre o outono e o verão, cumprimentava, com um alegre riso os seus amigos; o Barão Belfort, Alencar, que dera uma tão linda nota do curso que ele não fizera e a bela Mme. Gouveia, e a belíssima Mme. Andrade, e Graça, como que abstrata...

Nas recepções de Mme Pedreira, a senhora artista era um dos números certos. Todos os números eram mais ou menos certos. Havia a chegada, as conversas gerais de uma desoladora e importante insignificância, as conversas nos pequenos grupos em que seriamente as damas conversavam ou com os próprios flirts ou dos flirts alheios, algumas valsas, passeios aos bolos, um número de música e um número de literatura, em geral versos. O número de música dava ensejo a conversarem baixo d'outra cousa, negócios, mal do próximo. O literário era um sinal de partida. Etelvina Gomensoro, née d'Ataide, era deliciosa, porém.

La vie est bonne, on la bénit

On rend justice à la nature!

Uma prolongada salva de palmas. A cantora fez um cumprimento quase plongeon, como se estivesse em Rambouillet, diante do Imperador. Era admirável. Um movimento geral estabeleceu-se que parecia de partida em parte. Malvina Pedreira deu com seu filho.

— Até que enfim! onde esteve até agora?

— Dormindo, mamã.

— Vejam vocês. Um homem de dezoito anos dormindo até às cinco da tarde!

— Perdão, mamã, até às duas.

— É que entra pela manhã em casa. Um bacharel!

— Desde anteontem.

— Verdade é que o barão diz que não tens culpa alguma... Ah! minha querida, veja se me dá juízo ao Jacques...

E partiu solene. Alice dos Santos estava de pé. A ilustre Melo e Sousa sorriu.

— Esta Malvina acaba nomeando-me governante moral da casa... Jacques estava sério, com as mãos nos bolsos, sério e confidencial.

— A mãe, não tem nada. O velho é que é. Imaginem! Quer que eu vá trabalhar para o consultório! Eu! Já tem lá uma escrivaninha.

— Mas então, advogado...

— Não tenho culpa nenhuma... Então, D. Alice, como vai de cidade?

— Se nos levasse a beber um cálice do Porto?

— Enquanto é tempo.

Alice precipitou-se. Mme. de Melo e Sousa acompanhou-os a querer desvendar a significação da frase, porque ela tinha de fato, ou podia ter três significações. Enquanto é tempo porque a recepção ia acabar. Enquanto é tempo porque talvez não houvesse mais nem migalha. Enquanto é tempo de escapar aos versos do Dr. Inocêncio Guedes, rico político de Goiás, que ia decerto recitar o seu fatal Smart-Ball.

Smart-Ball, epíteto galante de uma sociedade...

Na sala de jantar parecia, de resto, ter passado a possibilidade de um batalhão argentino. Jacques que se olhara num dos espelhos, à exclamação pesarosa de Alice, não teve a menor contrariedade. Enfiou as mãos nos bolsos da calça e disse:

— Não tem nada, acompanhem-me; deve haver na outra sala.

Entraram na sala de jantar de todos os dias, modestíssima, dando para a copa e para um terraço, de onde se debruçavam também as cozinhas. Mme. de Melo e Sousa gozava aquele aplomb do seu querido Jacques. Alice parecia acanhada. E o querido Jacques bateu palmas, mandou vir o vinho, marmelada.

— Se tomassem um caldo? Só aturar uma recepção inteira da mamã! O Barão Belfort diz que o prepara para não sair do purgatório nunca mais. - Depois pegando a mão de Alice: - Bonitos esses brilhantes. São de cá?

— São.

— Jóias compram-se em Paris. Tomam o caldo?

Nenhuma quis o caldo. A milionária estancieira aproximou-se do terraço.

— Está a tarde bonita.

— Está - fez Jacques, que aborrecia a poesia.

— Que é aquilo?

— É um telheiro, que serve de garage. O Jesuíno...

— Que Jesuíno?

— O velho. Tem só um automóvel, aliás sempre em conserto. Mas é bonito. Quer vê-lo?

Era extravagante acabar aquela recepção no quintal. Mme. de Melo e Sousa estava seduzida. As duas damas desceram, erguendo muito os vestidos. Jacques, absolutamente sério, mostrou o telheiro e o automóvel, como um jovem lord inglês mostraria os seus domínios, parques e castelos. Em seguida continuou:

— A senhora é do Rio Grande. Não há árvores grandes por lá, pois não?

— Quem lhe disse?

— Mas não há uma jaqueira, uma grande mangueira...

— A jaqueira vejo eu - interrompeu a notável Melo e Sousa.

— É porque a mangueira fica ao fundo. Tem até um balouço.

— Para você?

— Não. Eu faço barra fixa, paralelas.

Realmente, ao fundo, havia uma vasta mangueira, com um balouço. Os três olharam para a árvore com poderosa admiração. Parecia que nenhum enfrentara assim de perto com uma espécie botânica tão grande. Depois, Alice soltou uma gargalhada.

— De que ri?

— Rio, porque gostaria de baloiçar-me. É uma idéia louca.

— Pois trepe.

— Perdoe V. Exa. como diz meu marido, mas já, seria inconveniente.

— Ora menina, por quê? É só imaginar que a recepção da Malvina é uma garden party.

— D. Argemira é capaz de imaginar o dia de mamã até um baile de máscaras.

— Jacques, por quem é, sou a melhor amiga de sua mãe.

— Por isso mesmo...

Com autoridade sentou Alice no baloiço, arrumou-lhe os vestidos, aliás inconvenientes para semelhante exercício e impulsionou o balanço. A rio-grandense ardente dava gritinhos, não de medo - uma rio-grandense nunca tem medo - mas de prazer. Argemira de Melo e Sousa colocara o seu face-à~main para admirar melhor os vôos do lindo pássaro. Jacques não parecia ter feito outra cousa na sua vida senão empurrar baloiços. Era magistral. E, de repente, diante deles, precedidos de um criado em mangas de camisa, cujo sorriso parecia o de um agente secreto, surgiram, Arcanjo, marido e deputado, e Mme. Pedreira, mãe e anfitriã.

D. Malvina tinha já o sorriso verde da máxima contrariedade:

— Com que então aqui?

— Os três!

— E nós a procurá-los. O Dr. Arcanjo estava assustadíssimo. Eu e seu pai também.

— Oh! - conciliou Mme. de Melo e Sousa - nem pensávamos que davam pela nossa falta. O Inocêncio ia recitar...

— Recitou, recitou todo o Smart-Ball.

— É a sexta vez que ouço aquele trabalho - atalhou Arcanjo. - Muito mimoso.

— Imensamente. E estamos a procurar D. Alice os dois, porque não há mais ninguém.

— Que me dizes! Acabado o dia? Então viva o dia!

— Valha-me Deus! Uma criança este meu filho. Que diz, doutor, não é da minha opinião?

Arcanjo, habituado ao Congresso, sem saber a opinião da venerável senhora, curvou-se:

— Sou da opinião de V. Exa..

Fazia como na Câmara. Argemira riu. O frio desapareceu.

— Mas não fiquemos aqui. Levemos D. Alice até à porta...

Jacques deu o braço a Alice. Viu que devia dar o outro a Argemira. Seguiu com as duas damas, pensando que seu pai o esperava para uma hora de ordens e conselhos. Até perdia o prazer de ser amável!... E enquanto pela aléia do jardim assim conduzia duas damas, sua mãe, atrás, falava seriamente com o Deputado Arcanjo.

— Cinco horas, doutor. Quase noite. Como fatigam as recepções! Ah! se pudesse ver-me livre desse trabalho!

— V. Exa. tem razão, realmente o convívio social instrui, mas estafa...