Jacques entrou nos aposentos do seu pai, um pouco aborrecido. O importante consultor de várias companhias estrangeiras, pelas contingências de uma vida de advocacia forçadamente administrativa, acostumara-se a dobrar o temperamento, a fingir, a representar. A vida é um palco, onde cada um representa o seu papel, disse Shakspeare. Depois do transformismo, moda passada em ciência e moda em voga em cena: a vida é um palco, onde cada um representa seus papéis. Justino representava alguns - nem sempre gloriosos, é de convir, mas com tal elegância, um brilho tão particular, que só merecia aplausos. Chamavam-no o "camaleão dos ministérios"; ninguém poderia afirmar numa questão de que lado estaria sempre advogado assim admirável. Mas, Justino fazia para ser de qualquer jeito de uma das partes e era de um cepticismo fatalista, absolutamente oriental, nas decisões graves da vida. O hábito de mascarar o temperamento, de mudar de cara várias vezes ao dia, apagara-lhe a energia de retomar o seu "eu" - que era no fundo bom, inteligente e conservador. O secreto e acovardado Justino íntimo tornara-se apenas o espectador de vários Justinos mundanos, e só raramente intervinha no drama, como os freqüentadores de circo para os palhaços em situações difíceis.

— Vamos a ver como te sais deste negócio!

— Queres apostar?

— Tens muita sorte.

Esses curtos diálogos entre o seu verdadeiro "eu" e os outros Justinos para uso externo, deixavam-no esperançado e arrasado nos graves momentos de protestos de letras e de agonienta falta de dinheiro. Enquanto não lhe faltasse a estima daquele espectador, seria amável e vencedor. E sorria. Quantos, como ele, por este mundo? Sorria e continuava a representar, mesmo em casa, para a família, mesmo só. Apenas, como tivera sempre a preocupação dos papéis simpáticos, e como não havia nem tempo para perder, nem muita confiança em inspirar terror, organizara um pai misto de peça romântica e de comédia moderna. Os seus aposentos eram de uma simplicidade monacal, o leito de ferro, onde repousava das vigílias estudiosas, mais desolador que um catre d'hospital; e nas paredes nuas só se via a litografia de Nossa Senhora da Conceição, em caminho do céu, atestando uma crença, tanto maior quanto não a possuía, senão para um efeito social, mundano e prático.

Quando Jacques entrou, o seu ilustre progenitor estava ainda com a sobrecasaca da recepção, sentado, a escrever. Nesse dia, por felicidade, fazia-se completamente pai comédia moderna.

— Boa tarde, caro colega e filho!

— O pai quer falar-me?

— Em teu interesse.

— E o escritório?

— O escritório e tudo mais. Senta-te. Fumas um cigarro?

Abriu a cigarreira, serviu-se, guardou a cigarreira, estirou-se na poltrona.

— Meu caro Jacques, vejo que estás aborrecido. Eu também. Nada mais fatigante do que estas cenas de conselhos entre pai e filho. Teu avô passava-me um carão, de oito em oito dias e nunca me falou senão zangado. Para consentir que eu fizesse a barba - o que para ele parecia um insulto aos seus direitos paternos, foi necessária uma verdadeira campanha diplomática. Mas isso era no tempo antigo. Hoje, os pais não precisam dar consentimento para fazer a barba, porque nunca vêem barba nos filhos.

— É um uso americano...

— Que acho, aliás, muito asseado. Entretanto, como ainda resta, por um velho preconceito, aos pais, a boa vontade de guiar os filhos, não pude deixar de escolher esta tarde para conversarmos um pouco.

Houve um silêncio. Justino, acariciando a barba grisalha, olhava o seu pequeno, com um secreto prazer de tê-lo feito tão bonito e talvez uma certa inveja daquela mocidade despreocupada ainda das necessidades da vida. Jacques continuava sério, em pé, brincando com a espátula de cortar papel.

— És uma criança, meu filho. Não podes ter queixa de mim. Não sei se estás educado, mas fiz o possível para te fazer bacharel, como toda gente. Absoluta liberdade, contas pagas, empenhos, professores em aulas particulares. Enfim, tudo. Mas nesta facilidade de vida, talvez nunca te afigurasse a triste verdade de que é preciso ganhá-la. Aqui estou eu, com cinqüenta anos, a esclerose fatal, obrigado a viver com desperdício, exatamente porque desse desperdício vem a possibilidade de negócios grandes. E sem vintém. Sim, meu caro Jacques, sem vintém. É preciso que te habitues a triste idéia de que, morrendo eu amanhã, estás com tua mãe e teu irmão, absolutamente sem recursos.

— O pai a fazer testamento!

— Não senhor, estou apenas a falar sério. De resto, a maioria dos teus companheiros está nas mesmas condições, em que estás. São raras as nossas grandes fortunas. São raras, até, as pequenas sólidas. Atravessamos um grande momento curioso, e vocês não imaginam como custa ser o maquinista, um dos maquinistas da mágica. É preciso trabalhar. Mesmo milionário, dar-te-ia este conselho. Não o sendo, acrescento que é imprescindível, desde já, para te habituares, antes de uma perda grave. Um homem não é homem, enquanto não ganha.

— Ganhar como? - fez Jacques sucumbido.

— De qualquer forma. A questão é ganhar. As sociedades fazem cada vez menos caso dos meios. Metade dos cavalheiros que estiveram cá, hoje, é dessa opinião... De resto, não seria mesmo bonito para um homem, ser sustentado por seu pai, toda vida.

— Ah! isso não.

— Já vês...

— Mas como, papá?

— Oh! ganha-se dinheiro, mesmo não fazendo cousa alguma. Tudo é dinheiro. A questão é preparar o espírito, é encaminhá-lo para o ponto prático, e o ponto prático para um rapaz de boa sociedade é pensar sempre que precisa conservar uma série de confortos, de aparência insignificantes quando os temos, mas enormes, quando lhes sentimos a falta. Vamos a saber: não queres advogar?

Jacques sorriu:

— O pai sabe bem que não sei. Foi você mesmo quem disse que eu de Direito sei menos que o Gastão.

— Sabe-se sempre o que nos vai ser útil.

— Depois, o escritório, a escrivaninha, o foro, com aquela poeira...

De novo a frieza inicial voltou. Justino tornou, um pouco seca a voz:

— Creio que te formaste para fazer alguma cousa.

— Não pai, não se zangue. Tenho, quer que lhe confesse? medo de começar.

— Pois esse medo passará. Guiar-te-ei. As pequenas causas - terei pequenas causas? - serão tuas. Depois a escrivaninha não é escrivaninha, E um lindo bureau-ministre.

— Então, pai, vou amanhã...

Justino ergueu-se, mostrando uma satisfação que talvez não tivesse.

— Nota que não te quero forçar a ser advogado. Com uma carta de bacharel, por enquanto, ainda é possível ser várias cousas neste país. Tens diante de ti, o mundo dos negócios, o funcionarismo, a jurisprudência, a política. O meu desejo é lançar-te na vida, não como o pequeno do Pedreira, mas como o filho formado do seu pai, agindo por conta própria e ainda com uma defesa não só de pai como de amigo prático. E preciso ser homem. Foste menino até hoje. Vamos a ver o que fazes, d'agora em diante. Até amanhã.

— Até amanhã.

— A uma da tarde, no escritório. Tu hoje acordaste mais tarde... - Depois, sorrindo, como Jacques já estivesse à porta: - olha, aqui tens vários convites com o teu nome, da recepção do Chili, do baile do presidente da República e do decantado baile que o Itamarati oferece aos oficiais portugueses. Tens mais um cartão permanente para o recinto da Câmara, dois cartões de cinematógrafos. Estas lembranças pessoais, deu-mas o Godofredo de Alencar, que é muito amigo dos governos. Sê também amigo dos governos.

Jacques recebeu os convites com uma certa emoção. Afinal, a conversa não fora tão aborrecida. Ele sentia-se bem um personagem, alguém... O pai tornou:

— Com estes trunfos que tens em mão, um homem esperto talvez não se decidisse por nenhuma profissão, mas decerto teria meios de arranjar uma fortuna. E basta de conversa. Caro colega e filho, até ao escritório.

Jacques saiu. Era só atravessar a sala de jantar e estava no seu quarto. Consultou o relógio e viu que eram seis e meia. Os criados punham a mesa modesta do jantar. Um sentimento complexo agitava-o, sentimento que era de alegria e era de um terrível e assustado desalento. Tinha vontade de chorar, como uma criança. Chegar tão cedo ao marco em que já se não é bem da família! Amanhã seria um homem, uma individualidade à parte, agindo por conta própria, com a gravíssima responsabilidade das suas ações a recair no dia seguinte. Estava farto de saber a situação financeira do seu pai. Era a de três quartas partes da sua sociedade, um triste bluff que se tornara norma angustiosa. E entretanto, vinha-lhe um medo louco de encarar a necessidade no dia seguinte.

Se Justino morresse? Sim, se morresse... Em que estado ficariam, em que estado ficaria ele? Era preciso atirar-se, trabalhar, ter uma profissão, que lhe desse a troco de um certo esforço quotidiano o pão do mês. Oh! era miserável, era humilhante. E era fatal! Tinha que fazer como toda gente. E vinham-lhe à memória vivas impressões de vários infelizes. O Dória, o rico Dória engenheiro, que, morrendo o pai, fora especulador da praça, zangão, dono de hotel quebrado e sempre a querer aproximar-se do meio, que, impiedoso, o afastara, era intendente de um milionário, ganhando comissões das cocottes e dos vendedores - só com a preguiça de seguir a sua profissão; o Aragão, que montara um club de jogo, com egoísmo e roubara no baccara,, o Adalberto... De um momento para outro podia ficar assim, e ele que se sentia tão fraco d'alma, tão incapaz de reagir!

Fechou-se por dentro, no quarto, acendeu a luz, olhou-se ao espelho. A tristeza tornava-lhe ainda mais bonito o lábio sensual, a boca de uma frescura úmida, a pele lisa e morena. Diante de um físico tão agradável, aproximou mais o rosto, a ver um sinal ao pescoço. E lembrou-se dos olhos de Alice dos Santos, dos lábios de Alice dos Santos, da proteção que Argemira parecia querer dar aos avanços da Alice dos Santos. Ainda não tivera uma amante senhora casada. Quanta coisa ainda não fizera na vida! Mas havia de fazer, tinha o desejo de fazer, desde que elas fossem agradáveis e pouco trabalhosas. Sorriu para o espelho um sorriso tentador. Afinal tinha sorte, sempre tivera sorte e havia de ter sorte. O Dória não fora feliz porque não tinha de ser. Também há mendigos que pegam caiporismo. No primeiro ano visitara com os colegas uma quiromante que lhe prognosticara muitos amores e muitas viagens. Como ter amores e fazer viagens sem dinheiro?

Começou a despir-se vagarosamente. Amores! A Alice talvez. Como? A Alice e outras muitas, a Malperle por exemplo, de quem se falava tanto, ou a mãe da Eleonora que fingia um desmaio sempre que se achava a sós com um rapaz? O apetite da vida voltava-lhe diante da própria imagem a mover-se no espelho. Sempre obtivera tudo sem esforço e a sorrir.

Havia de continuar. Acendeu um cigarro, soprou o fumo, assobiou um pouco uma copia de café-cantante. Deitou-se a fio comprido na cama. Ah! se soubesse o futuro! E para quê, de resto? Saber é uma necessidade muito relativa. É possível passar perfeitamente sem saber uma porção de coisas. Saber teatro, por exemplo. Para quê? De teatro, Jacques tinha a noção de que as companhias de línguas estrangeiras eram de primeira ordem e as mulheres das boas ou não. As peças de cujos autores ignorava os nomes, caceteavam-no assaz. Entretinha-se, durante o espetáculo, a comparar a elegância das atrizes com as das suas conhecidas e a verificar o mau alfaiate dos atores. M. Le Bargy foi-lhe uma dolorosa desilusão. E literatura? Jacques nunca na sua vida lera uma novela, um romance. Nem Paulo de Kock, nem o Conde de Monte-Cristo. Uma indiferença integral afastava-o dos jornais. Mesmo os versos imorais, as leituras ardentes que os meninos fazem sempre com o prazer de atiçar um incêndio em plena violência, não o tentaram. Ao demais, os profissionais do talento não lhe agradavam. Só admitiu desde criança inteligência nos que a sua roda permitia e decretava fossem inteligentes.

Este feitio não o obstou de ser precoce em tudo, por tudo lhe ter sido fácil. Aos oito anos, como nesse tempo sua mãe ainda tinha ilusões de reagir contra a gordura, foi para um colégio de padres. Aos dez, nas férias do Carnaval perdeu-se com o criado num baile de Carnaval da mais baixa classe. E como D. Malvina o recebesse em pranto disse:

— Não te assustes. Dancei com umas mulheres pintadas. Elas gostaram. Até pagaram cerveja para mim, que não era tolo para gastar o meu dinheiro.

No ano seguinte, os padres bem pagos e difíceis de expulsar os alunos, queixaram-se do seu mau comportamento. Fumava, arremedava os frades professores, não estudava. Jacques não voltou aos padres e fez um curso de preparatórios em externato, conseguindo o assombro, aliás comum, de ser aprovado numa série de matérias que ignorava.

Seu pai não tinha tempo de fiscalizar a educação, mas pagava sem hesitar os melhores professores e arranjava a valer cartas de empenho no fim do ano. Era mesmo a época do ano, em que senhor de posição tão importante dava para reconhecer velhos amigos de rapaziada, que a sorte fixara em simples examinadores. Jacques, com conta aberta no alfaiate, no camiseiro, no sapateiro, julgava os professores também fornecedores de atestados, mas não era sem um certo sangue-frio superior que colava provas escritas e dizia inconseqüências nas provas orais. Ficou célebre o seu exame de química em que não sabendo quem era Lavoisiert e ignorando a composição da água passou com simplesmente. Ninguém falou também do seu exame de francês. Aliás, Jacques sabia falar francês. Foi o único exame em que foi reprovado. Mas aproveitou a segunda época, e nunca disse obrigado aos examinadores como não dizia ao sapateiro. Quando passou para a escola de Direito a fazer o primeiro ano, uma carta que escrevesse devia ter alguns erros, mesmo na língua comum geralmente falada entre nós e que, por excesso de reconhecimento histórico, ainda denominamos português...

Os preparatórios deixaram-lhe uma sensação de igualdade inexplicável e que no fundo sempre lhe pareceu desagradável rebaixamento. Havia uma porção de rapazes de má roupa, sem vergonha pobres, e que se permitiam, entretanto, fazer versos, usar pince-nez e não lhe ligar a menor importância. Quando os professores falavam - (de modo geral sempre) - da desmoralização do ensino, da inferioridade da geração, esses rapazes tinham a impertinência de olhá-lo e ele não podia deixar de ficar contrariado, porque esses sujeitinhos é que lhe pareciam inferiores. Os últimos tempos passara-os mesmo a jogar football, jogo em moda que as senhorinhas aclamavam aos domingos em Paissandu. Foi sob essa brilhante vocação esportiva, que se matriculou para fazer o primeiro ano. O primeiro ano constava de duas matérias: Filosofia de Direito e Direito Romano. Oito dias antes dos exames, começou de ler umas apostilhas da segunda matéria, veneráveis apostilhas que representavam o saber desse monumento social em dez gerações de bacharéis. Em Filosofia copiou a prova escrita e na oral, diante de um lente grosso e sábio, assegurou:

— A Filosofia, esse verdadeiro pão do espírito...

O professor abriu numa gargalhada homérica. E ainda sacolejado de riso:

— Continue, muito bem... continue, menino...

Não continuou por ser susceptível ao ridículo. Mas fez o curso inteiro com a mesma profundez, cada vez menos culpado de ser bacharel. Não que não tivesse inteligência para aprender o que tanta gente sabe nem sempre para bom uso: mas porque era desnecessário. Para que cansar se o resultado seria o mesmo? Instintivamente economizava-se.

O seu tempo de acadêmico passara-o pois assim. Acordava, ia para o football ou fazia ginástica sueca no quarto. Em seguida iniciava a sua toilette com cuidado. A escolha do fato, da camisa e da gravata correspondente, punha-o muita vez perplexo. Estas coisas absorviam a sua atenção. Conhecia gravatas ao longe.

— Esta gravata não é daqui?

— Não.

— É do Doucet. Estavam em moda o ano passado.

Em fornecedores o seu conhecimento era doutoral. A menor alteração no corte dos fracks uma insignificante mudança d'aba nos chapéus de Londres ou da Itália tinham nele um fiel. As cores das roupas de baixo também. E a maneira de estar conforme manda a educação dos salões - educação e maneiras que variam todos os anos. Ultimamente usava camisetas irisadas de morticores imprevistas, abandonando nas gravatas os tons monocromos, e nunca sentara para jantar sem estar de smoking e ou de casaca. Um homem quando tem apetite, pode jantar até tendo apenas por fato a aliança do casamento. Ele, porém, achava aquilo necessidade imprescindível, e mesmo em Teresópolis, num matagal horrendo de cura, aparecia sempre, com espanto do hotel, de smoking e sapatos de verniz.

Apó5 a toilette, ia almoçar e saía. Às vezes passava pela escola. Raramente. Empregava o tempo em namoros e ftirts. Nunca desejara. Era desejado. Aos quatorze anos uma criada portuguesa virgem agarra-o com uma violência de Tântalo se encontrasse um jarro d'água fresca à mão. Depois era sempre solicitado e achava isso meio aborrecido. Saía à hora em que as ruas de Botafogo, principalmente as transversais deixam ver tanta coisa. Aos dezesseis anos, indo visitar o Barão Belfort, que por sinal viajava Pela Rússia, encetou através do muro um escandaloso namoro com a Ada Pais, a ponto de fazê-la pular a separação de pedra e vir ler romances na biblioteca do barão. Essa ligação semivirgem dera-lhe de resto a consideração de Belfort e do literato Godofredo de Alencar. O barão era um perverso, cuja amizade não deixava de ser corrosiva. Godofredo muito hábil sob aqueles ares fatigados, trabalhava no desejo de ser de uma roda, a que aspirava por uma multiforme e vaga ambição. Troçava de todos, elogiava a todos e principalmente o fraco de cada um. Para Jacques, como para outros rapazes tinha sempre dessas frases que ficam:

— Estavas ontem com uma linda bengala.

Aos demais dizia-se amigo dos políticos, o que aguçava sobremaneira o interesse dos homens de negócios, a maior ou talvez a única aristocracia do momento.

Jacques tinha pelo barão e pelo homem de letras prático uma sincera admiração. E no chá, um chá elegante, onde parava desde as quatro da tarde a ouvir o Dr. Suzel, o Belmiro Leão a cumprimentar as senhoras e a fazer sinais às cocottes não perdia ocasião de citá-los. As seis voltava a casa. Smoking, jantar. A noite, o music hall, em que aparecem como numa exposição as melhores mulheres de várias casas especialistas. A sua memória, mais virgem que a criada portuguesa e Ada Pais, gravou com facilidade as cançonetas e a algaravia desse pessoal pintado e abrilhantado. Passava, como a maior parte dos seus amigos por trás dos camarotes, onde as damas se pavoneavam. Nos intervalos tomava umas bebidas, convidado pelos endinheirados da semana. Porque, cada semana, havia nessa sociedade assaz misturada de mulheres, michés, jogadores, gigolos, um sujeito que aparecia com muito dinheiro. Godofredo e o barão apresentaram-lhe uma vez aí o jovem construtor Jorge de Araújo. A época era de resto do aparecimento de jovens construtores, jovens motoristas e velhas manicuras. Jorge de Araújo ficara rico num mundo de casas mandadas fazer pelo governo e tinha a dupla mania dos automóveis e das mulheres. Belfort fizera colocar num dos automóveis do construtor esta divisa heróica:

— Esmago todo mundo e ninguém me vê.

Jorge via tanto no barão como em Godofredo duas utilidades para a continuação dos seus negócios. Viu decerto em Jacques uma outra, posto que obscura. E Jacques, com a gula da mocidade pelo prazer, viu nele um meio de divertir-se sem pagar. Em pouco tempo era amigo inseparável, aproveitando os automóveis e a intimidade das mulheres. Datou daí, na função de menino bonito, a sua ligação com a Lina d'Ambre, italiana de cabelo oxigenado, terrivelmente ciumenta. Para ver se podia acompanhá-la a casa, Jacques ia a um dos mil e um clubs do jogo onde o baccara infernal sustenta um batalhão de patifes amáveis.

Para passar o tempo e ver se ganhava, jogou. A mesada era escassa. O pai dava-lhe roupas, mas não dinheiro. Para arranjar dinheiro, pediu aos fornecedores que forjassem fornecimentos falsos. Depois pediu a Jorge, ao barão. Godofredo, por precaução pedira-lhe antes do ataque uma pequena quantia. Enfim, uma noite a Lina d'Ambre, votada ao sacrifício romântico, exigiu que lhe fosse empenhar um dos anéis e ficasse com o dinheiro. Jacques hesitou, com frieza, e foi.

Dias depois, na mesa redonda da pension d'artistes, a Lina, num calão indizível, atirou-lhe o epíteto de explorador feminino. Como estavam na sopa, Jacques atirou-lhe com um prato, que felizmente só atingiu a cabeleira de um loiro não veneziano, mas inverossímil. A mulher teve um ataque, depois de retribuir a violência com idêntica remessa de sopa. Furioso, Jacques saiu com o smoking sujo, para nunca mais voltar. Lina mandou-lhe cartas perdidas de amor. A sopa reacendera-lhe a chama. E, como tal chama leva a excessos, Lina, depois de dizer a toda gente que fora explorada, apresentou-se no escritório de Justino a mostrar a cautela e pedir providências. O Dr. Justino, naquela conjuntura, foi de grande gentileza e calma. Pagou, deu à mulher uma gratificação generosa e teve com o filho esse primeiro e lamentável encontro em que entre pai e filho aparece a miséria sexual, o escândalo mulher, aliás tão apreciado por filhos, pais e mesmo avôs.

— O senhor envergonhou-me. Um homem na sua idade não paga o amor. Perfeitamente. Na sua idade nunca paguei. Reservei-me para depois. Há sempre tempo. Mas receber!

— Está enganado, pai. Pergunte a Jorge, pergunte ao barão. Vou quebrar a cara àquela tipa!

— O senhor não vai quebrar a cara a ninguém. O senhor vai é não fazer mais isso, porque está arriscado a perder o meu auxílio. E a propósito: descontarei na sua mesada a importância da cautela. Quem tem vícios não se fia nos outros.

Desde então, Jacques, a quem a inexorável D. Malvina fazia um sermão de moral semanalmente, para lhe dar dinheiro, foi acentuando esse afastamento progressivo da família em favor da rua, a que o eufemismo social denomina fazer-se homem. Jacques fazia-se homem a todo pano, vertiginosamente. Passava dias sem ver o pai. Chegava pela manhã. Não foi a Petrópolis, durante o verão e, segundo informações da vizinhança, dera uma ceia a damas alegres na própria residência da família. Mas, ainda assim, agindo com inteira liberdade, não se sentia senhor das próprias ações, era feliz e descontente exatamente por isso. Ao recordar a breve vida, estirado na cama, sentia que as palavras cordiais de seu pai tinham cortado as últimas amarras. Ia ensaiar a vida só, apenas comboiado durante algum tempo. No dia seguinte, à uma da tarde, estaria num escritório a ver autos, a folhear o código...

A idéia pareceu-lhe tão intolerável, que se ergueu de um pulo, olhou-se de novo ao espelho a ver se não teria mudado. E achou-se perfeitamente agradável.

Então, meticulosamente, vestiu-se. Uma semana com tanta coisa a tratar! O circuito de automóveis, um piquenique noturno na Gruta de Paulo e Virgínia com a esposa do ministro de Honduras, e três ou quatro senhoras com os respectivos responsáveis, a festa dos animais oferecida pelo barão! Trabalhar quando a vida é tão bonita! E ia jantar em casa, ia talvez ao teatro com a família, voltaria cedo, para no dia seguinte, à uma hora...

O criado veio chamá-lo. Era o jantar. Saiu. O pai de casaca e de pé lia um jornal. Já passava das oito...

— Então, pensaste?

— Não, vesti-me.

— A ocasião do presidente, do baile presidencial é excelente.

— Ora o baile do presidente? - fez Jacques, que sempre ouvira seu pai ridicularizar todas as autoridades constituídas deste país.

— Farás o que entenderes.

Nesse momento, com um vestido de rendas creme sobre fundo de liberty preto, decotada e irritada, Mme. Malvina entrou. Sempre que ia ao teatro - e era dia de assinatura do Lírico - retardava o jantar para preparar-se antes. Seria impossível depois com a sua crescente gordura. Mas assim o que se tornava superior às suas forças era jantar, apesar de um razoável apetite. Então, D. Malvina fazia ato de presença, de rosto fechado.

— Por que jantamos cada vez mais tarde?

— Porque é impossível jantarmos mais cedo.

— É o Lohengrine hoje?

— É.

— Com aquele dueto que não acaba mais. Você vai?

Jacques não teve tempo de responder. A campainha retinira. O criado chegara.

— O Dr. Jorge, de automóvel, que pergunta se o senhor esqueceu.

— Ah! é verdade. E eu que prometera jantar com o Jorge!

— Onde?

— No Leme. Está aí?

— Está à espera no automóvel...

— O papá dá licença?

D. Malvina carregou o sobrecenho. As roscas do seu pescoço tornaram-se vermelhas. Mas Justino sorria complacente. Era um pai comédia moderna, como a maioria dos pais modernos. Aquele filho formado e formoso, que parecia Perseu, agradava-lhe. Depois em Jorge o velho advogado farejava graves coisas futuras a defender.

Jacques precipitou-se para a varanda, correu no jardim. Nem já lembrava o dia seguinte. Jorge guiava. Ao lado, Godofredo estava de veston azul, e dentro do automóvel fechado havia quatro mulheres.

— Então isto faz-se?

— Estava tratando da vida.

— Tu?

Um estrepitoso riso rompeu. Jacques meteu-se entre as damas. O automóvel deslizou, fugiu pela Avenida, que era um esplendor de luzes.

E enquanto o filho seguia para o prazer, e a esposa arfava irritada por ter de ir ao Lírico, o Dr. Justino Pedreira, lendo o jornal e pensando noutra cousa, fez um gesto ao criado para que lhe desse de jantar.