O pequeno operou uma revolução na vida do padre: horas de dormir e de levantar da cama, de rezar, de comer, de ler, de passear, de fazer visitas, de jogar oécartée a bisca, todas elas sofreram modificações, umas aumentadas, outras diminuídas, quase todas deslocadas um pouco para trás, ou um pouco para diante. A vida, o coração, o espírito do padre, tudo fora abalado e revolvido pelo encontrão daquele brutinho de seis dias. De manhã cedo, o primeiro pensamento era para ele, e quase sempre também a primeira palavra. Durante o dia não minguavam os cuidados e os zelos; e à noite, antes que a Rosa partisse para a sua casa, nos fundos, o vigário ia acariciar mais uma vez as bochechas abaçanadas do pequerrucho, dizer-lhe um gracejo e abençoá-lo com os seus longos dedos afeitos à prece.
Uma tarde, sentado à porta com Veloso, este lhe estranhou, na sua fala aos supetões, tanta mudança.
- Padre, você anda muito preocupado com esse negrinho.
O vigário achou o termo pouco delicado e engrolou umas evasivas:
- Não, não... Preocupado por que? Ora essa...
- Anda, sim, padre. Pois eu acho que faz muito bem: é mais uma obra de caridade que você executa, além de tantas.
- O pequeno precisava de alguém que olhasse por ele.
- Sim, precisava. Mas parece-me que não havia de faltar quem disso se encarregasse, aí pela vila, - alguém com família, com outras facilidades para lidar com uma criança. Você está-se sacrificando sem necessidade. Olhe, já bastava essa pobreza por aí, que você socorre, essa mulherada velha que você visita e a quem dá de comer, as engorovinhadas criaturas pelas quais, namorador incorrigível, você se consome todo em cuidados.
O padre mexia-se na cadeira e resmoneava coisas incompreensíveis: "Não... qual!... ora!..." - e tentava desconversar; mas Veloso esganiçava-se, inflexível no seu dever de amigo, o indicador espetado e os pequenos olhos cor de cinza arregaladinhos entre os refegos das pálpebras:
- Não, senhor, é isso mesmo! Você deve dar essa criança a alguma família. Dê-a a uma dessas famílias pobres que você ajuda. Uma mão lava a outra.
- Sim, sim, havemos de ver. Por enquanto ela vai bem com a Rosa, que mora aqui perto...
- Dê-me licença para discordar. Fica aí, não é? Está você com uma pensão de todo o momento, aí ao lado. E - quer saber? - isso nem mesmo se coaduna bem com o seu caráter de sacerdote.
Aqui, padre Guilherme teve um estremecimento de revolta.
- Ah! isso não!... isso não!... Ao contrário, Veloso, ao contrário, o meu caráter de sacerdote é mais uma razão para eu conservar o pequeno. Foi abandonado na igreja... É filho adotivo de Deus, isto é, duas vezes filho. E demais, se eu não fizer esta caridade, quem há de fazê-la? Eu, padre, tenho de ser bom por profissão...
Veloso, no fundo, falava menos por interesse pelo bem do amigo do que por se sentir roubado pelo intruzinho. Velho solteirão sem parentes, com poucos amigos, hospedara o padre em casa, quando ele chegara a Candeias, seis anos atrás, e ficaram ligados por uma afeição constante, tendendo às comodidades e aos exclusivismos de um egoísmo a dois - mais porém da parte de Veloso. Estava habituado àquelas longas conversas rarefeitas e erradias, tão pacificas e cordiais, à porta do padre, e, depois delas, quando escurecia de todo, aoécartésobre a mesa de jantar, à bisca em companhia de outros camaradas, o juiz, o agente do correio... A perturbação que o pequerrucho trazia a essas coisas todas irritava-o.
Diante do rompante com que o padre se defendera, calou-se e, a sacudir uma perna sobre a outra, recostado na cadeira, olhos perdidos no ar, pôs-se a assoviar a música do "Pereira de Morais":
Onde vai, "seu" Pereira de Morais?
Quando vai não volta mais...
Houve um silêncio. Padre Guilherme temeu ter magoado o velho amigo. Compôs um semblante despreocupado, acendeu um cigarro e, depois de uma baforada longa e um longo sorriso, com voz meiga:
- Ó Veloso, você às vezes não se arrepende de não ter casado?
- Não.
- Oh! Veloso, seja sincero!
- Não me arrependo. Viver sozinho já é penoso, imagine agora viver com dois, com três... por dois, por três... harmonizar isso tudo, e desdobrar-se por isso tudo!... Nada.
- Mas isso é egoísmo, oh Veloso!
O bacharel fez um gesto de resignado assentimento, continuou a trautear o "Pereira de Morais" e, de repente:
- Mas eu sou de fato o tipo do homem egoísta! Egoísta é todo aquele que não faz muito caso de si mesmo nesta vida. É o indivíduo que se retrai, se obscurece, se diminui, e vem rolando por aí... sem se atravessar no caminho de ninguém, não fazendo ninguém sofrer, nem sequer por lhe revelar os próprios sofrimentos... só, só neste mundo, ou então com dois ou três amigos apenas, aos quais não pede senão um pouquinho de simpatia, um cigarro de vez em quando, e dois dedos de prosa...
Veloso tinha um sorriso triste entre a barba grisalha. Acabara de pintar o próprio retrato com a volúpia rascante de quem se machuca por gosto. Depois, pretextando autos a arrazoar, despediu-se. Devagarinho, como de costume, engolfou-se na noite, curvado, arrastando o pé e batendo com a ponta da bengala na beira da calçada.