Dias depois, voltando de uma audiência do juiz, Veloso passou pelo Felisberto para tomar o café do boticário.
Ao meio dia, aparecia invariavelmente na botica, vinda da casa pegada, onde residia o Felisberto com a família, uma negra velha com uma bandeja cheia de xícaras, que colocava sobre o balcão. Era para os empregados e os amigos. Estes não faltavam (explicou Veloso, de uma feita, ao vigário) porque Felisberto nunca fizera benefício a ninguém; além disso, porque tinha na língua venenos mais violentos que os que se alinhavam nas prateleiras, os quais não raro eram falsificados. A fina flor da sociedade candeiense prestava-lhe todas as homenagens, a começar pela de que ele mais gostava - o acharem-lhe infinita graça nos ditos, nas pilhérias e nos casos que contava, ainda que a não tivessem muita.
Veloso era um dos seus freqüentadores: temia-o como comodista que não quer ter o trabalho de se aborrecer, de viver na contenção cansativa e lacerante das turras e rixas. Demais, (reflexionava) se fosse fugir de alguém pelo veneno que tivesse, de quem não deveria fugir em Candeias? Em troca o boticário poupava-o: apenas contava coisas hilariantes acerca de certas esquisitices do velho advogado, que ele caricaturava sob os contornos de um caráter egoístico e original.
Já não se dava o mesmo com o vigário. Este, logo ao chegar à terra, pelo que viu, pelo que ouviu, deixou o boticário à porta do seu coração, ou, quando muito, só lhe permitiu entrada na antecâmara ou gabinete que dava para fora, onde misericordiosamente acolhia toda a gente. O boticário, de seu lado, não gostou daquele homem calmo, chão e doce, mas um pouco remoto, simples a ponto de parecer orgulhoso, bonachão mas fundamentalmente sério, com um olhar penetrante e sereno, que desconcertava. Começou então, desde logo, a pôr em curso coisas engraçadas a respeito do vigário - e Candeias ria-se.
Quando Veloso entrou, Felisberto, acostado ao balcão, a coçar o queixo e a pentear a barbicha com os dedos magros, o olho mortiço, a boca mole, dizia qualquer pilhéria a um grupo que se contorcia e babava, enxugando lágrimas, apertando a barriga. Vendo o bacharel, o boticário chamou-o:
- Olá! Sirva-se de um cafezinho, descanse um pouco. Diga-me! como vai o filho do padre?
Veloso estacou intrigado. E Felisberto explicou, passando-lhe uma xícara:
- Aquele mulatinho achado ali na igreja, outro dia, não sabe? que caiu do céu por obra do Espírito Santo...
Ouviu-se uma risada geral. Veloso riu-se com os mais, sem exagero e sem ruído, mas também sem constrangimento aparente, e informou:
- O pequeno vai bem.
- Saiu parecido com o pai?
Veloso, sem se desconsertar, tomando o seu café:
- Mas quem é o pai?
- Ora, ora, doutor Veloso...
- Quem é?
- Sou eu. Está ouvindo? Eu! Fui eu quem mandou largar o bodinho, de manhã muito cedo, ali na porta da igreja; por uns excomungados de uns pretos que ninguém viu, de quem ninguém dá notícia... Qual, "seu" dr. Veloso, nisso tudo há grosso... milagre! Quem não vê que aí anda dedo... de Deus!
Veloso sorriu, abanou a cabeça, olhou para o ar, tornou a sorrir, e saiu da botica aterrado.
No dia seguinte, passou pelo seu barbeiro, o Nicola. A loja estava deserta. Da porta da rua, porém, o bacharel avistou o artista, em mangas de camisa, a conversar com o Bernardino, seu vizinho dos fundos, através da cerca de pau a pique. Bateu com o bastão no soalho, espantando o gato amarelo do barbeiro, que se desenrodilhou da cadeira de braços e elasticamente desapareceu pela janela.
- Ó "seu" Nicola!
O barbeiro voltou-se e veio de lá sossegadamente. Ao entrar na loja, reconhecendo o bacharel, deu-se pressa, fez uma mesura, e sorriu:
-Bom dia,signor dottore.Quer fazer a barba? Prontinho.
- Aparar.
- Sente-se. Vai num instante. Que novidades há,dottore?
- Que eu saiba.
-Ohdottore,aqui entre "noise": sabe o que estava dizendo o Bernardino, agora "mêisimo"?
- Que?
- Que aquela "criandça" do vigário que é filha de ele co'a Rosa!
- Como é que o Bernardino soube disso?
Nicola encolheu os ombros, parou a tesoura no ar, espichando a queixada angulosa, e acrescentou:
-Acho que não "sará" verdade, ehdottore!
- Claro que não. Pois você não vê que a Rosa, uma cinqüentona horrenda... uh!
Aparada a barba, Veloso, que ficara calado todo o tempo, tomou um aspecto grave e bateu no ombro de Nicola:
- Meu amigo, escute: essa história da criança não é exata. Brincadeira de algum engraçado. Não é verdade? Não repita isso, está ouvindo? não repita.
E como o barbeiro tentava escusar-se, ajuntou, sem o deixar falar, sacudindo-o fortemente com a mão sobre o seu ombro magro:
- Escute "seu" Nicola: a pessoa que inventou essa história nem falou na Rosa. Isso já é acréscimo, e acréscimo posto por esse fogueteiro, que embirra com o padre desde a grande festa do ano passado, porque o padre mandou vir os fogos de São Paulo. Olhe, não diga nada, mas é isso. O Bernardino está-se vingando.
O bacharel pagou o serviço, pôs o chapéu e, na porta, entre brincalhão e repreensivo:
- "Seu" Nicola, não passe adiante essas mentiras, que senão eu conto ao vigário, você perde o freguês, e...
Nicola desfez-se em desculpas. Mas parece que não deixou de falar no caso da criança a toda a gente com quem se encontrou naqueles dias, ajuntando sempre: "Mas eu acho que não "sará" verdade, eh!"
E assim foi ziguezagueando a atoarda pela vila, com graciosos coleios de regato adolescente.