A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 8
CAPÍTULO VIII
NO DIA SEGUINTE
NO DIA SEGUINTE pularam da cama muito cedo e retomaram a obra da reforma da Natureza. Tudo era examinado e reformado no que lhes parecia torto. A Rãzinha continuava com as idéias mais absurdas, de verdadeira maluca. A reforma do Quindim, por exemplo, que a Rã fez sozinha, era a coisa mais esquisita que se possa imaginar. Em vez do famoso chifre sobre o nariz, que é característico de todos os rinocerontes, a Rã botou uma flecha de Cupido com um coração assado na ponta. Assado, imaginem! E ornamentou os cascos de Quindim com pinturas: Branca de Neve com todos os seus anões. E trocou as quatro pernas do rinoceronte
por quatro pernas diferentes — uma de veado, outra de ganso, outra de jacaré, outra de pau. E substituiu aquele couro duríssimo por um revestimento muito bem traçado de palhinha de cadeira. Cauda, botou duas; depois três, depois dez, depois cem; deixou-o com um verdadeiro varal de caudas dando volta inteira em redor do pobre animal.
A reforma do Quindim saiu um tal disparate que nem andar ele podia — uma perna não acompanhava a outra e havia a tremenda atrapalhação de tantas caudas, todas diferentes, umas com borlas na ponta, outras com espinhos de ouriço, outras com campainhas.
Quando Emília foi ver a "obra", não pôde deixar de rir-se. Aquilo era o "bissurdo dos bissurdos". Quindim estava transformado num verdadeiro destampatório.
— Isso não é reformar, Rãzinha! — disse ela. — Isso é escangalhar com uma pobre criatura. Ele já não é rinoceronte nem nenhum bicho possível. Virou quarto de badulaques, baú de mascate. Que judiação! ...
— E você deixa que ele fique assim? — implorou a Rã com medo de que Emília desmanchasse aquela obra-prima do disparate humano.
— Deixo por enquanto — respondeu Emília, — como castigo da preguiça, da velhice e neurastenia que ele anda mostrando duns tempos para cá. No dia do plebiscito sobre o Tamanho [1] Quindim me traiu — recusou-se a votar. A falta desse voto deu vitória ao Tamanho e eu saí lograda. Agora que agüente. Mais tarde vou reformá-lo de novo mas com critério científico...
A Rã ou era mesmo maluca ou estava "sabotando" a obra reformatória da Emília. Todas as idéias que apresentava eram tontas, como aquela da mudança dos morros. A Rã tomou um lápis e traçou um desenho assim:
— Que é isso? — perguntou Emília.
— Ah, isto é uma das reformas que acho mais necessárias: a reforma dos morros. Sempre que tenho de subir um morro, fico cansada e sem fôlego. E então imaginei uma coisa assim: os picos serão para baixo, em vez de serem para cima, de modo que, quando a gente tem de ir ao pico dum morro, desce, em vez de subir...
Emília ficou a olhar, ora para a Rã, ora para o desenho. Era uma reforma que deixava tudo na mesma. Quando alguém que descesse ao pico do morro tivesse de voltar, teria de subir para o vale...
— Não. Essa idéia está boba. Muito melhor fazermos os morros bem baixinhos, de modo que não canse a gente; ou então deixarmos os morros em paz. Para que subir morro?

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


- ↑ A Chave do Tamanho.