Algumas horas mais tarde, cerca de meia-noite, ouvimos horrível fragor a que dominava um grito único: Cavalaria paraguaia! Abriram fogo as sentinelas avançadas.
Tornara-se o acampamento teatro de geral balbúrdia: tiros rasgavam a treva, deixando entrever formas fantásticas, ora de homens a empunhar o revólver ou o sabre, ora de animais, estes ainda mais perigosos, procurando por toda a parte como escapar, e numa excitação furiosa, ao passo que os seus guardas, não sabendo como os conter, pejavam os ares de imprecações.
Alucinante terror se apoderara do gado no sítio em que estava preso. Averiguada a causa de tal pânico pusemo-nos todos a rir, tornando-se universal esta hilaridade. Está a vida da guerra cheia dos mais inesperados contrastes.
O extremo frescor das noites de inverno, na América do sul, mesmo entre os trópicos, obrigou-nos logo a voltar aos nossos improvisados abrigos onde as exigências do sono reconquistaram todos os direitos durante as horas decorridas até o amanhecer.
Aos primeiros albores pusemo-nos novamente a marchar, expostos ao fogo da artilharia inimiga, mas sem que nos detivéssemos em lhe responder. Levavam os nossos atiradores de vencida tudo o que diante deles achavam e não perdiam tiro. Haviam alguns cavaleiros inimigos caído, desde o começo da fuzilaria e seus cadáveres ficaram estirados, abandonados na estrada, não tendo seus camaradas tido tempo de os levantar e arrastar na carreira. Reconhecendo os nossos que um destes corpos era o de certo trânsfuga brasileiro, evadido de Nioac, muito antes da guerra, não foi possível, apesar de todos os esforços dos oficiais, subtrair os despojos deste miserável ao furor dos soldados. À medida que passavam o golpeavam com a espada ou a baioneta.
Encaminhávamo-nos para as ruínas da Bela Vista. Abria-se diante de nós largo vale, quase plano, tendo à direita um renque de colinas de suave declive. Teria o inimigo podido aproveitar-se, contra nós, desta disposição do terreno; mas chegamos a tempo de a utilizar, ocupando a primeira destas eminências. Dali o nosso fogo manteve os paraguaios a distância, enquanto marchávamos, e nossas peças iam sucessivamente ocupar os pontos que melhor podiam cobrir-nos. Esta manobra, pela precisão com que foi diversas vezes repetida, levou-nos sãos e salvos até um último cabeço que domina o Apa e Bela Vista. Ali nos estabelecemos, naquela manhã de 9.
Lá ainda ocupávamos a fronteira do Paraguai, embora batidos pelo pungente pesar de a deixar. Tão recentemente a havíamos atravessado, certos de realizar importante diversão, talvez até indispensável à causa da pátria!
Nós nos sentíamos como corridos de vergonha, vendo nossas esperanças de glória tão cedo desvanecidas. Escapara-nos a presa e não queríamos ainda aceitar a absoluta necessidade de a abandonar.
Assim, pois, iria confinar-se à região dos sonhos a visão daquele território magnífico, aberto diante de nós, sob tão belo firmamento? Dali nos era, pois, indispensável sair, exatamente quando prováramos superioridade em armas? Faltavam-nos, não havia dúvida, as munições; mas de um momento para outro não poderíamos recebê-las? Já não tinham, desde muito, sido pedidas a Nioac? - Acaso cheguem, explicava um oficial aos seus camaradas, o coronel, que ainda se não conformou com o pronunciar a palavra retirada, ordenará logo nova ofensiva. E assim devaneávamos sem ligar maior importância a todos estes pensamentos.
Um homem, no entanto, avidamente acompanhara tais conversas: era o nosso infeliz guia. Absorto, sombrio, sem uma só palavra para quem quer que fosse, desde que retrogradávamos reconcentrava-se na contemplação dos sofrimentos da família, reduzida ao cativeiro, exposta aos tormentos, já os havendo sofrido talvez: mulher, filhos, parentes, amigos. Assumira, a seu ver, a marcha para a frente, o aspecto de um compromisso que, uma vez tomado sob a invocação do patriotismo e da humanidade, era definitivo, embora a todos nós custasse a vida! Agora, que se falava de penetrar novamente no Paraguai, tornara-se outra vez entusiástico e expansivo. Do comandante, abroquelado no mutismo, corria aos oficiais e destes aos soldados, garantindo se encarregava de abastecer o corpo de Exército.
Se nos entregássemos à sua experiência, haveria conduzir-nos por caminhos que só ele conhecia, a lugar seguro onde o esperaríamos. Enganavam-se os que acreditavam na exaustão de recursos de sua fazenda. Ainda possuía reservas e tudo sacrificaria, como já tudo sacrificara.
Nós lhe admirávamos a alma generosa: mas eram-lhe evidentes as ilusões e exagerações. Destruindo-se por si mesmas contribuíam para nos abrir os olhos à verdade. Se ainda algumas dúvidas nos restavam, veríamos demonstrada a nossa absoluta impotência pelas notícias trazidas por um dos nossos oficiais, o tenente Vitor Batista, que, da colônia de Miranda, escoltado por doze soldados, viera ao nosso encontro. Não se avistara com os paraguaios; mas quanto ao objeto de nossa principal preocupação, ou por assim dizer, o único, contou-nos que nenhuma remessa de munições partira de Nioac. Um bom número de carretas do comércio, carregadas de mercadorias, havia realmente atingido a Machorra. Ainda estavam algumas paradas à nossa espera; mas as outras, a maioria, ao saber de nossas refregas com o inimigo, tinham tornado atrás, certas de que não nos encontrariam mais.
A Machorra, como já dissemos, está situada a dez quilômetros de Bela Vista, em território brasileiro; e podíamos supor que os inimigos, preocupados conosco, e com o que poderíamos fazer, ainda se não haviam dirigido para ali. Interromper a nossa marcha, para atrasar a deles, ficar além do Apa e fazer, entretanto, com que os mercadores tomassem o mais depressa possível a estrada de Nioac, tais foram, pelo que pudemos julgar, as idéias do coronel. Por elas se apaixonou. Considerava desonra ver apreender tão rica presa pelo inimigo, que indo sempre à nossa frente, haveria de atingi-la antes de nós e não deixaria de arvorá-la em troféu. Assim, pois, ordenou aos diferentes corpos que só a 11, dois dias mais tarde, levantassem acampamento.
Debalde apressaram-se vários oficiais em lhe fazer ver que, para a execução de uma retirada, já comprometida pela escassez de víveres que nos ameaçava, havia a maior urgência em atravessar o Apa, antes que os inimigos tivessem conseguido torná-lo para nós intransponível; a não ser mediante sacrifícios de todo o gênero, e sobretudo o de uma delonga que infalivelmente nos perderia.
Mostrou-se irredutível, abroquelando-se numa única alegação: exigia a dignidade do corpo de Exército a demonstração de que a retirada se efetuava tanto sem precipitação como sem temor.
Restava-lhe mandar levar à Machorra a ordem para que os nossos mascates regressassem a Nioac; e foi então que se lhe transmutou a funesta obstinação em verdadeira idéia fixa. Chamando o tenente Vitor Batista, o portador das notícias recentes, dele indagou qual seria o melhor meio de entrar em comunicação com o comboio e quem poderia executar a comissão. Depois, como este valente oficial não hesitasse em oferecer-se, aceitou-lhe a proposta, sem nada querer ouvir das observações que me foram feitas acerca dos inconvenientes de se arriscar assim a perder um oficial, de patente já distinta, tão dedicado, e cuja perda podia trazer o desânimo à coluna. Continuou inabalável, a tudo respondendo com o dizer que o filho de Lopes lhe serviria de guia, tomando atalhos que conhecia e impraticáveis à cavalaria.
Tal ordem se executou. Dois dos nossos refugiados do Paraguai, os irmãos Hipólito e Manuel Ferreira, arrastados pela confiança no filho de Lopes juntaram-se ao tenente Vitor. Partiram os quatro, deixando-nos cheios de apreensões as mais intensas.
Mal decorrera meia hora, ouvimos distintamente, ao longe, tiros de fuzil. Estremecemos, fitavam os nossos olhos o ponto onde os ausentes haviam desaparecido. Vimos, afinal, o filho de Lopes sair só, da mata do sul, correndo para nós, seminu e todo ensangüentado.
Apenas cobrou alento, contou o que se passara. Os paraguaios os haviam cercado, matando o tenente e os irmãos Ferreira. Ele próprio conseguira escapar graças a um espinhal denso onde se lançara e donde, por milagre, pudera atingir o rio.
A todos consternou este fatal acontecimento. Quanto não deve ter sofrido o infeliz coronel Camisão com o seu gênio tão acessível às angústias do arrependimento e do remorso! Dominou, contudo, a comoção: não disse palavra, e não tardou em ordenar aos engenheiros que, sobre o Apa, construíssem uma ponte para a passagem das tropas.
Tudo o que se pôde fazer, por falta de material e ferramenta, foi uma pinguela e ainda assim vacilante e pouco segura. Felizmente, porém, baixara sensivelmente o nível das águas e o rio mostrava-se vadeável. Começou a passagem da coluna às seis da manhã seguinte. Foi morosa e difícil. Os soldados atravessavam a água, levantando acima das cabeças armas e bagagens, a lutar com a rapidez da corrente.
Os doentes, os oficiais, os músicos e as mulheres utilizaram-se da pinguela. Houvesse o destino determinado que os inimigos cuidassem em assestar a artilharia numa esplanada que nos ficava a cavaleiro, ou simplesmente espalhassem atiradores em torno de nós, caro nos teriam feito pagar a invasão do seu território, no momento em que o deixávamos. Felizmente adotaram outro plano; separados em dois grupos, um esperou-nos à frente, ao passo que o outro se dispunha a cair-nos á retaguarda, desde que entre ela e o resto da coluna visse o rio. Não surtiu efeito a combinação, mantidos que foram a distância respeitosa pelo fogo rápido, e habilmente dirigido, de uma das nossas peças, a que, do alto da chapada, onde se estabelecera o nosso acampamento, podia varrer todos os arredores.
Depois dos batalhões do centro e seus canhões passou o gado costeado por dez ou doze homens, a quem comandava o capitão da guarda nacional Silva Albuquerque. Nossa vanguarda com as peças que tinham protegido a passagem, transpôs o rio a seu turno, coberta pelo fogo de uma bateria que acabava de tomar posições defronte da margem paraguaia.
Às nove e meia, quando nos achávamos todos em território brasileiro, foi a nossa ponte improvisada cortada por alguns soldados que para este serviço reservara o tenente Catão Roxo. Recomeçou o corpo de Exército a marchar, acompanhando a margem que o fogo do forte de Bela Vista, agora arruinado, podia outrora dominar.
Tomou a dianteira o batalhão de voluntários do tenente-coronel Enéias Galvão, indo o 21.° de infantaria, comandado pelo major José Tomás Gonçalves, formar a retaguarda. Entre eles ficaram os corpos do centro: à direita o 20.°, comandado pelo capitão Ferreira de Paiva; e, à esquerda, o corpo de caçadores sob as ordens do capitão Pedro José Rufino. Cobria toda esta força duas linhas de carretas, no meio das quais iam as mulas carregando o resto de nossos víveres, munições e alguma bagagem de oficiais. Vinha depois o grupo das mulheres, dos enfermos e convalescentes. Nossas últimas juntas de bois arrastavam as peças; a de Marques da Cruz, no ângulo da direita; a de Nobre de Gusmão, no da esquerda; a de Cantuária à extrema-direita da retaguarda; e a de Napoleão freire à extrema-direita.
À retaguarda do 20.° batalhão, e fora das linhas, tudo superintendendo iam o comandante e parte do seu estado-maior. A cada momento enviava, para todas as direções, os seus oficiais e ajudantes-de-campo, a fim de se regularizar o movimento. Por duas vezes ao chefe dos voluntários, à vanguarda, avisou que os seus atiradores, por demasiado ardor, se isolavam da coluna, com grande risco para todos, como não tardaram os fatos a demonstrá-lo.
Avançávamos; e nossos olhos se despediam de Bela Vista, dizendo-lhe adeus e para sempre. Muitos daqueles que conosco estavam, então, não mais existem. O que podem desejar os seus sobreviventes é nunca mais regressarem àquele teatro de tanta miséria. Já se não percebia um pedaço de muralha branca, único destroço ainda de pé do que fora a fortaleza daquela fronteira; nada mais se via além das franças da mataria do Apa.
Aberta de todos os lados, estendia-se a campina acessível aos olhos, exceto num ponto a alguma distância, à nossa frente, e ponto que os nossos atiradores não haviam reconhecido. Uma espécie de escarpa ali mascarava o que verificamos ser profunda depressão do solo, embaixo de suave declive que tornava a subir para a Machorra, cujo caminho seguíamos. Ascendia o sol, eram doze horas.