De repente, do fundo da escarpa que a estrada contornava, irrompeu um corpo de infantaria paraguaia que se lançou sobre a nossa linha de atiradores, atravessou-a, dirigindo-se para o 17.° batalhão dela distante uns cem passos. Enquanto este se preparava para receber o ataque, os nossos atiradores, tornando a si da surpresa que ao inimigo permitira penetrar em nossas linhas, haviam-se voltado e o carregavam pela retaguarda Foi quando numerosos grupos de cavaleiros apareceram, a galope, derribando e acutilando a quantos encontravam.
Travou-se, por toda parte, terrível entrevero: e tal que o nosso batalhão de voluntários de Minas hesitou a princípio em fazer fogo, receoso de atingir amigos e inimigos. Acabou, afinal, por fazê-lo, juncando o solo de mortos e feridos. Isto pelo menos obrigou os paraguaios a recuarem e a fugir, mas somente para se reformarem' a alguma distância.
Não podíamos deixar de esperar um ataque geral. Formaram os corpos quadrados e os canhões assestados nos ângulos despejaram nutrido e vivo fogo, cujos projetis atingiram a grota onde se alojara o grosso do inimigo.
Novo pânico de nosso gado, agora de efeitos mais graves do que da primeira vez, veio, então, comprometer-nos a situação, não só no momento como para todo o resto da retirada. Espavorida pelos estampidos do canhoneio, o mais forte que até então ouvira, apossou-se de nossa boiada vertiginoso terror. Abrindo passagem através de guardas e soldados, precipitaram-se os animais sobre as nossas fileiras, sobretudo à retaguarda, mais próxima de seu retiro. Produziu a princípio esta irrupção uma desordem que o comandante inimigo notou, trazendo-lhe provavelmente a sugestão da idéia da manobra que imediatamente executou. Distribuída em duas colunas profundas, toda a sua cavalaria arrancou, vindo rentear as faces laterais de nossos quadrados, como a convergir sobre a nossa retaguarda, para a esmagar. Poderia esta manobra ter ocasionado a nossa perda; mas malogrou-se, sobretudo, graças à nossa infantaria que, colocada como estava, teve durante minutos o inimigo sob os seus fogos cruzados e lhe causou avultadas baixas. Amorteceram estes claros o ímpeto das massas, a quem os feridos e mortos, aliás, atrapalhavam. A arma branca não as poupava menos que as balas e a metralha. Vimos cavaleiros traspassarem-se sobre as nossas baionetas e assim pereceram acutilados. Sobressaiu o 21.° batalhão nesta encarniçada pugna, que à nossa retaguarda deu tempo de se consolidar contra o choque que a ameaçava. Não foi, contudo, a violência tão grande quanto a esperávamos, porque os inimigos, imaginando que nos achariam meio abalados, mas sentindo pelo contrário a nossa coesão, graças ao vigor da resistência, não persistiram no ataque, acabando por circunscrever o seu esforço em apanhar o nosso gado que, espavorido, disparava pelo campo. Cercá-lo, dominá-lo, tangê-lo para a frente, foi para estes vaqueiros, os primeiros do mundo, obra de instantes. Depois, tudo desapareceu: estava o campo limpo e cessara a peleja. Foram os primeiros movimentos consagrados ao contentamento da vitória; e as aclamações que espontaneamente estrugiram em toda a nossa linha abafaram o estridor dos clarins e fanfarras.
A esta cena de entusiasmo e alegria, outra seguiu-se de desolação. Estava o terreno coalhado de moribundos e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados, ébrios da pólvora e do fogo, queriam acabá-los. Horrorizados, debalde esforçavam-se os nossos oficiais em lhes arrancar as vítimas às mãos, exprobrando-lhes a indignidade de semelhante chacina[1].
Felizmente, dominados pela impressão das ameaças do coronel, a propósito das mutilações infligidas aos cadáveres, abstiveram-se os nossos índios de tocar em qualquer forma humana animada ou inanimada. Por isto mesmo redobraram de crueldade para com os cavalos, dos quais não pouparam sequer um só, estivesse ele estendido no chão, a dar sinais de vida, ou, então, ligeiramente ferido, a pastar, todo ajaezado ainda.
Via-se, aliás, como inevitável conseqüência destas cenas deploráveis, o saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os acompanhadores do Exército também, reclamando as mulheres o seu quinhão. Eram os corpos despidos e revistados; despojos sanguinolentos passavam, de mão em mão, como mercadorias, muita vez com violência disputadas.
Os cadáveres paraguaios, objeto dos primeiros esbulhos, ficaram assim nus, estendidos ao sol. Notamos um, o de um rapaz de formas atléticas, cuja cabeça, de uma têmpora à outra, perfurara uma bala. Tinha os olhos tumefatos nas órbitas e, apesar de todo o sangue que em abundância correra ainda, de sob a fronte, lhe gotejavam grossas bagas, que pareciam lágrimas. Pungente emblema da passagem exterminadora da guerra sobre a sua valorosa nação, aniquilada pelo chefe implacável que a regia.
Quanta idéia lúgubre evoca um campo de batalha! Sobretudo nestas solidões imensas, onde o próprio gênio do mal parecia ter penosamente convocado e reunido milhares de homens para que mutuamente se exterminassem, como se terra lhes faltara para viverem em paz do fruto do seu labor.
Deixaram os inimigos no chão mais de uma centena de mortos, entre os quais divisamos um capitão e outro oficial, cujo posto, por falta de divisas, não pôde ser identificado. Raro que se veja tão grande número de cadáveres paraguaios num campo de batalha. Carregam os sobreviventes quantos podem e mesmo tomam alguns dentre eles a precaução de se atar pela cintura a uma das pontas do laço que sempre trazem consigo, prendendo solidamente a outra ponta ao arção da sela, a fim de que caso caiam mortos ou gravemente feridos, possa o cavalo, acompanhando os demais na volta, levá-los ainda que em pedaços - feroz precaução que não deixa de ter tal ou qual grandiosidade.
Contamos do nosso lado muitos mortos, todos do batalhão da vanguarda ou dos atiradores que o precediam. O tenente Palestino, que a estes comandava, tivera o peito atravessado por um lançaço de que dias depois veio a morrer.
O tenente Raimundo Monteiro foi durante a ação apanhado a esvair-se em sangue. Levaram-no numa padiola; ao passar diante da companhia que comandava bradou-lhe que lhe vingasse a morte. Recebera oito lançaços, dos quais o primeiro o derribara; e, mais ainda tivera que sofrer do pisar dos cavalos. Restabeleceu-se, entretanto, e tivemos o prazer de ver rapidamente curado este valente filho da província de Minas.
Grande número de feridos brasileiros se transportaram de vários pontos; foram todos levados à ambulância provisória, onde os nossos médicos os puseram nos carros de bois, apertados, não há dúvida, e uns sobre os outros, mas recebendo todos os socorros que as circunstâncias comportavam. Uma mulher de soldado, a preta Ana, antecipara nesta obra caridosa os cuidados da administração militar. Colocada, durante a ação, no meio do quadrado do 17.°, desvelara-se por todos os feridos que lhe traziam, tomando ou rasgando das próprias roupas o que lhe faltava para os pensar e ligar, proceder tanto mais digno de nota e admiração quanto fora o da maioria das companheiras miserável. Escondidas quase todas sob as carretas, ali disputavam lugar com horrível tumulto.
O único ferido inimigo, encontrado vivo, tinha uma perna fraturada. Quis o coronel vê-lo, e a fim de o interrogar chamou o filho de Lopes, que falava o espanhol paraguaio. Parecia sentir horríveis dores e pediu água que avidamente bebeu. A sombra com que o cobrimos, rodeando-o, pareceu dar-lhe maior alívio ainda. Respondendo a algumas perguntas contou-nos que o comandante das forças com quem combatêramos se chamava Martim Urbieta, o mesmo de quem já falamos; que o corpo de cavalaria, com quem acabávamos de pelejar, era de 800 praças, estando ainda outro a chegar brevemente. Quanto às informações que lhe pedimos sobre a artilharia, respondeu nada ter a contar: nada sabia. Entretanto, espontaneamente, deu-nos notícias da guerra do Sul. Havendo o filho do guia indagado se Curupaiti fora tomada, respondeu pelo monossílabo: "Não!" - E Humaitá? - "Nunca!" Então a guerra não está para acabar? - Após uma pausa, em que se lhe repetiu a pergunta, replicou o moço, como saindo de um sonho, e no tom de ênfase próprio da língua de sua gente: "A terrível guerra está dormindo!" Delirava. Levaram-no, então, para uma das carretas da ambulância.
O que a este incidente se seguiu (triste ocorrência que não quisemos, aliás, averiguar) foi, segundo o boato espalhado, que o desventurado, posto num carro atravancado e onde foi aumentar o incômodo de outros feridos e moribundos, desvairados pelo ódio e sede de vingança, acabou estrangulado. Certo é que poucas horas mais tarde, durante a marcha, foi lançado morto à estrada. Enterramos todos os nossos cadáveres em covas que mandamos abrir pelos índios. Quanto aos paraguaios, deixamos tal encargo aos seus compatriotas. Bem sabíamos haveriam de voltar logo àquele local, após a nossa partida. Com os seus sentimentos de homem profundamente religioso, teve o coronel real desgosto deste abandono. Era, porém, o número dos cadáveres muito avultado, ia o dia alto e o calor tornava-se acabrunhador. Assim recomeçamos a marcha.
Tal foi o combate de 11 de maio, o mais importante da Retirada.[2] Já o de 6 mostrara aos paraguaios o que valia a nossa gente; veio este confirmar o efeito em seu animo; e tal impressão se traduziu pela hesitação e a moleza que, daí em diante, mais do que nunca, lhes caracterizou os cometimentos. Ficou-nos, além de tudo, patente que, além da prática da guerra, faltava-lhes a inspiração tática, a que sabe apreciar os fatos, no momento em que se produzem e adivinhar os obstáculos para os vencer. O seu ataque de infantaria tivera como fim levar a confusão à nossa vanguarda, de modo a entregá-la, no primeiro movimento de surpresa, à mercê da cavalaria. Baldado este plano, deveriam ter compreendido que a única probabilidade de triunfo restante residia nas cargas de cavalaria, cada vez mais impetuosas, e sustentadas por sucessivos reforços. Um pouco mais de hábito da guerra lhes teria dado a conhecer, aliás, quanto era a nossa disposição geral excelente e que, para a derrocar se tornava preciso combinar o emprego da artilharia, de que dispunham, com a ação da cavalaria. Sob este reforço simultâneo ter-nos-ia sido impossível, a princípio, defender as nossas bagagens e as munições que as acompanhavam; e depois os nossos quadrados, que às balas ofereciam dilatado alvo. E, então, as nossas fileiras, clareadas e combalidas pelo próprio fato de seu desenvolvimento, não teriam resistido à sua cavalaria, poderosa como era, com os pesados sabres de que dispunha.
Seja como for, vencêramos e ainda com este resultado excelente: crescera o coronel Camisão no conceito dos soldados pelo sangue-frio de que dera mostras.
Mas, infelizmente, não bastava isto: perdêramos o gado. Que seria de nós sem víveres? Mandou o comandante chamar vários oficiais, uns após outros e, depois, longamente conferenciou com o velho Lopes, que, intrépido e até terrível, pode-se dizê-lo, em combate apenas travado, mostrava-se nas deliberações, mais do que ninguém, o homem dos bons conselhos e inspirados expedientes. E só deste lado havia agora salvação a esperar.
Notas
editar- ↑ Perderam os paraguaios cento e oitenta e quatro homens, número inscrito numa grande cruz que, por ordem do major Urbieta, ali se fincou.
- ↑ Houve mais de 230 mortos. Travara-se a luta entre duas colunas cujo total, quando muito, atingia 3.000 homens. A esta refrega deram os paraguaios o nome do combate de Nhandipá.