Marcha sobre Nioac, que apenas dista duas léguas. O inimigo rodeia continuamente a coluna. O mascate italiano Saraco.

À vista do cadáver estendido à margem do Canindé, não tivemos mais dúvida a respeito da perda do comboio todo, da morte dos mascates e o saque das provisões que traziam, além dos objetos que se propunham mercar por conta própria. O que houvera sido necessário fazer, fora chegar dois dias mais cedo ao Canindé. Teríamos, então, encontrado e protegido estes viajantes desarmados, que regulavam sua marcha pela nossa e de quem dependera sempre grande parte do nosso abastecimento; enfim, e sobretudo, preservaríamos de triste fado a Vila de Nioac que, evidentemente, ia ser completamente arrasada. Tudo isto compensaria, bastante, um pouco de diligên­cia, se para tanto fôssemos capazes.

A observação maligna que daí decorreu, formulada a modo de acusação, como sói sempre acontecer na adver­sidade, provocou entre os oficiais, naquele mesmo local, discussão bastante azeda. Não foi, porém, difícil daí de­duzir-se uma justificação completa dos movimentos da coluna, desde que se soubera da chegada a Machorra do desastrado comboio.

Para apenas falar dos últimos dias: acaso fora exe­qüível mais rápida marcha? Não estava de sobra prova­da a fadiga excessiva que ela nos valera? Não devêra­mos à obrigação de salvar os canhões, o atraso de dois dias, decorridos entre a morte do coronel Camisão e a partida da estância do Jardim? E se quiséssemos ir além, até o momento em que preferíramos o atalho pro­posto por Lopes, convinha não esquecer que, para tal es­cala, entre diversas vantagens, preponderara a consideração do interesse dos mercadores que era deles desviar o inimigo, atraindo-o sobre nós. Tomássemos a estrada batida para ir ao seu encontro, e protegê-los, como parecia plausível, era mais que provável houvéssemos todos sucumbido, nós e eles, até o último. Apanhando-os conosco não os teria a cólera poupado menos do que a nós no itinerário então escolhido, fosse porque já lhes transportássemos o germe ou os paraguaios nos houvessem contaminado. Quanto aos contínuos ataques com que nos haviam atormentado, muito maior número de ensejos lhes teríamos proporcionado se precisássemos atravessar tantos rios: o Feio, o Santo Antônio, o Desbarrancado. Aí o comboio mais nos estorvaria, pois não estaríamos em condições de o defender.

Se algum erro se cometera, devia ser atribuído aos próprios mascates, quando ao passarem pela colônia de Miranda, tinham recusado ouvir os conselhos de Vieira de Resende, um deles, o mesmo que víramos figurar na tomada de Bela Vista. Propusera-lhes este homem, tenente da guarda nacional de Goiás, nortear a marcha do comboio para a estância do Jardim, a cinco léguas, apenas, da colônia. Ali tratariam de se emboscar na mata do rio, à espera de nossa coluna, que não podia deixar de lá chegar. E com efeito sua marcha para o norte assinalava-a no horizonte a fumaça dos incêndios que diante dela se renovavam sem conseguir detê-la. Mesmo que se aventasse alguma hipótese funesta, as vinte e duas carretas de mercadorias teriam formado excelente entrincheiramento contra o embate, quando muito momentâneo, de um troço de cavalaria, pois que, aliás, não podíamos, de modo algum, tardar em vir libertá-los. Debalde tentara Vieira Resende fazer ainda valer uma consideração decisiva, em relação a mercadores; acenara-lhes com o ensejo de venderem as mercadorias com belo lucro, exatamente no momento em que famintos iríamos sair daquelas planícies devastadas pelo fogo. Nada pudera persuadi-los. O lado militar de tal projeto, muito de acordo com as tendências aventurosas de quem o advogava - era esta a opinião geral - assustou aquela gente cujos sobressaltos cresciam na razão direta dos boatos de catástrofe que por toda a parte propalavam os nossos desertores. Persistiram na marcha para Nioac, pelo Canindé. Ali os alcançaram os paraguaios e os dispersaram, à primeira descarga; depois, saqueadas as carretas, empenharam-se em lhes prender os retardatários donos, atrapalhados como muitos deles estavam pelos objetos mais preciosos de suas cargas, que se não haviam disposto a abandonar. Inexoravelmente perseguidos fácil lhes fora, no entanto, graças a um pouco de firmeza, colocar-se sob a nossa salvaguarda.

Ao chegarmos ao Canindé nada mais ali havia do que destroços de toda a espécie, juncando os dois lados da estrada alguns montes nauseosos de farinha e arroz, amalgamados pelas bátegas de chuva, no meio das poças d'água do solo.

Ninguém jamais imaginara que este horrível amontoado de gêneros, quase irreconhecíveis, pudesse ser a causa de séria colisão, quase de um motim. Tal, porém, o império do organismo debilitado, tais os reclamos dos estômagos desde muito privados de alimento, que os soldados nele procuravam repasto com a avidez das feras que devoram uma presa. Todos para ali quiseram precipitar-se; romperam-se as fileiras, num tumulto inexprimível, no meio de um misto ensurdecedor de queixas, ameaças, vociferações e risadas idiotas, à vista daquele pasto imundo onde cada qual pretendia saciar-se. Quiseram a princípio os oficiais interpor a sua autoridade, vendo-se, porém, desrespeitados. Então um deles, o tenente Benfica, injuriado por estes alucinados, atracou-se com um deles, derrubou-o e o dominou com o revólver.

A surpresa causada por este ato de energia começou por conter a multidão. Passado este primeiro momento apaziguara-se geralmente, quando súbito irrompeu o grito: o inimigo! Quer houvesse este sido realmente divisado, quer se tratasse de expediente empregado, graças a feliz inspiração, para que surgisse uma diversão, ficou o ascoroso repasto esquecido.

Não teve esta desordem conseqüências. Fingiu o comandante ignorá-la como provindo do excesso de nossas misérias e ativando, para um pouco mais longe, esta marcha, para a qual já se não tornavam suficientes as nossas forças, ordenou logo que fizéssemos alto e tratássemos de acampar.

Foram as disposições tomadas pelo novo ajudante do quartel-mestre, tenente Catão Roxo, nomeado substituto do tenente-coronel Juvêncio. Passara o capitão Lago a exercer o cargo de assistente do ajudante general, o tenente Escragnolle Taunay o de secretário-geral adido ao comando. Ficara o tenente Barbosa o único representante da comissão de engenheiros recém-dissolvida.

Duas léguas, apenas, nos separavam de Nioac e o comandante, para avisar a nossa chegada, fez disparar, ao mesmo tempo, as nossas quatro peças, acompanhadas de um fogo rolante de todos os batalhões.

Nesta ocasião percebeu nossa gente a irregularidade do tiro pelo fato de que muito haviam as últimas chuvas deteriorado o armamento. Assim, pôs-se logo, e por si, a repará-lo e experimentá-lo várias vezes, a apostar quem atiraria melhor e mais depressa: luta improvisada que desvaneceu qualquer vestígio de torpor, chegando, aos últimos clarões do dia, a tomar festivo aspecto. A esperança de melhores dias está sempre pronta a renascer no coração dos homens.

Nova fase de existência, realmente, como despontara; despertara a vida e o nosso horrível passado da véspera a fome, a morte, sob todos os aspectos já não nos apareciam mais senão como as alucinações dum pesadelo.

Não é que os pensamentos tristes não nos assaltassem mais, após as realidades que presenciáramos. Contássemos quantos agora éramos! Quantos faltavam! Soavam os clarins e folgávamos em ouvi-los; mas que era feito das músicas de nossos batalhões? Companheiras das primeiras provações da expedição nos pantanais de Miranda, ainda luzidas, ao invadirmos o solo paraguaio, não demorara que as dizimasse o fogo inimigo. Logo depois, à medida que as nossas fileiras rareavam, fora necessário dentre elas recrutar soldados. Viera a cólera acabar a obra destruidora, prostrando quatorze músicos dos que haviam pertencido ao batalhão de voluntários de Minas.

Rapidamente percorremos no dia seguinte a distância até Nioac, observando com rigor a formatura adotada para atravessar os campos; e o inimigo que nos perseguia a retaguarda não ousou empreender nenhum ataque. Mostrou-se, pelo contrário, muito afoito em bater em retirada, sempre que lhe aconteceu ficar ao nosso alcance.

Costeávamos a margem esquerda do Nioac, e como estivessem a pastar uns bois de tiro, que os carreiros do comboio de mascates haviam abandonado, puseram-se alguns cavaleiros paraguaios a persegui-los. Uma companhia do nosso 21.° e uma peça foram então mandadas contra eles. Voltaram rédeas incontinente e com tanta precipitação que provocaram o riso geral e as vaias de nossa gente.

Era o vau bom; e sem mais demora o atravessamos. À margem direita encontramos o rasto ainda fresco da passagem de muita cavalaria e grande quantidade de papéis rasgados, livros, talões oficiais, sujos e dilacerados que evidentemente provinham do saque de alguma carreta brasileira, aprisionada naquele ponto pelo inimigo e destruída, ou por ele levada.

Algumas fumaças no horizonte ainda nos revelavam a presença do adversário e, pelo conhecimento que da permanência naquelas localidades obtivéramos, supusemos que os paraguaios acabavam de incendiar uma espécie de aldeia, de palhoças, que ali havíamos construído. Fez-nos isto apressar o passo e ao primeiro relance reconhecemos que não nos enganáramos.

As três da tarde estávamos no meio dessas ruínas abrasadas que habitáramos e a que deitamos último e melancólico olhar; o soldado e o viajante interessam-se sempre pelos lugares onde repousaram.

Muito a propósito veio um incidente de ópera-bufa distrair-nos desta impressão tristonha: a reaparição daquele italiano que, já no acampamento da Laguna, nos divertira com as suas jogralidades. Contara-se, mas inexatamente, que morrera, com os outros mascates que, por assim dizer, haviam desertado das nossas fileiras ao atravessarmos o rio Miranda. Deles, habilmente se separara, vagara entre Canindé e Nioac, sem noção do ponto para onde devia rumar, indo de moita em moita, a tremer de medo, não encontrando uma só que lhe inspirasse confiança. Acabara, no entanto, fazendo uma escolha e com tanta felicidade que, naquele mesmo dia. pudera do seu refúgio ver o avanço da nossa coluna. Fora-lhe a alegria tão viva que, por pouco, lhe ia sendo funesta.

O vestuário estrambótico e a precipitação dos movimentos fizeram-no passar por paraguaio. Nossos atiradores da vanguarda sobre ele atiraram. Deixou-se, então, cair como morto, na macega. Após um lapso de prudente imobilidade começou a levantar devagarinho, no ar, na ponta de uma varinha, o cachenê; e depois, vendo que as balas não vinham, um braço, a cabeça; e, afinal, o corpo todo, que não era senão o do nosso amigo e velho conhecido Saraco.

Reconhecendo-o imediatamente, encheram-no os soldados de abraços, cumprimentos e perguntas. Estava num estado de inexprimível êxtase, vendo-se escapo aos perigos onde crera deixar a vida, e de que se via salvo, e ainda barato, à custa da trouxa e de tantos momentos de pavor.

Quanto ao inimigo haveríamos de nos avistar com ele apenas uma última vez, embora lhe tivéssemos ainda que sofrer o efeito da pérfida e cruel animosidade.