Nioac. Decepção; encontramos a vila saqueada, incendiada e quase destruída pelos paraguaios. Infernal ardil de guerra. Desaparece o inimigo, definitivamente. Regresso pacífico do corpo de Exército. Ordem do dia sobre esta campanha de trinta e cinco dias.

O oficial encarregado da defesa de Nioac, durante a nossa incursão em território paraguaio, ausentara-se da vila, a 1.° de junho, sem que ali se tivesse notícia da aproximação do inimigo, procedendo assim contra as ordens terminantes de 22 de maio que lhe impunham a defesa, a todo o transe, de um ponto que era a nossa base de operações.

Não é que os víveres lhe faltassem, longe disto, deixa­ra-lhos abundantes o chefe da Intendência. Dar-se-ia o caso que os seus comandados, seduzidos pela vizinhança do rio, e suas matas, houvessem desertado, um após outro, até o largarem inteiramente só? Mas aí estavam todos os oficiais do nosso corpo de Exército concordes em atestar o espírito de submissão de nossos soldados aos chefes. Acaso se houvesse dado um "salve-se quem puder" geral não teria podido aquele comandante man­ter-se em observação pela vizinhança, onde tantos aci­dentes de um terreno florestado lhe podiam servir de abrigo, à espera de nossa chegada? Afastaria, assim, de si, a responsabilidade, não somente da enorme perda de material como do novo sacrifício de vítimas humanas fruto de tão funesto abandono. Faltou-lhe o ânimo; desapareceu deixando ligado ao nome a reminiscência de uma deserção em frente ao inimigo...

Tanto mais sensível e mais notada esta infidelidade quanto as demais providências do coronel Camisão, no mesmo ofício, haviam com exação sido observadas. As provisões de guerra e de boca, o arquivo, o dinheiro da pagadoria, esperavam-nos nos morros, para onde os transportara o coronel Lima e Silva; enquanto ele pró­prio, de acordo com as instruções, estacado à margem do Aquidauana, providenciava no sentido de encaminhar em primeiro lugar tudo o que poderia preceder-nos, enfermos, mulheres, crianças, soldados desgarrados ou inválidos. Cuidadosamente ordenara, aliás, aos con­dutores das carretas, que serviam para estes diversos transportes, voltassem sem demora, apenas desocupados, retendo ao mesmo tempo, ao seu lado, a maioria das viaturas carregadas de víveres, de que fizera um depó­sito volante, tendo em vista a nossa próxima chegada.

Assim abandonada passara Nioac a ser a presa dos paraguaios. Tudo haviam saqueado e queimado, salvo a igreja, poupada não por espírito religioso, mas, pelo con­trário, com o fito de a utilizarem num ardil infernal. Retirara-se a sua infantaria ante a nossa aproximação, entrincheirando-se no cemitério. Seguira, então, pela mata em direção a um vau do Orumbeva que a cavalaria reconhecera.

Sem preocupações quanto ao inimigo, fomos a toda a pressa ver o que haveria ainda a salvar.

Esta bonita povoação, abandonada, ocupada e pela segunda vez, desde o início da guerra, devastada, conver­tera-se num montão de destroços fumegantes. O grande galpão que, outrora, nos servira de armazém de manti­mentos e ainda o achamos de pé, sobre os esteios incen­diados, mostrava renques de sacos que nossa gente, sem dúvida, não tivera tempo de carregar e já serviam de pasto ao incêndio. O arroz e a farinha carbonizados, exteriormente; o sal, gênero este tão escasso e precioso no interior do país, negrejara e fundia sob as nossas vistas. Não pouparam esforços os nossos soldados em salvar o que puderam.

Aqui e acolá jaziam muitos cadáveres, todos de brasi­leiros. Constatamos que muitos dentre estes infelizes mortos haviam servido em nossas fileiras. Desertando por ocasião do exacerbamento de nossas misérias, e mor­rendo de fome pelas matas, haviam se apressado, embora correndo o perigo de serem reconhecidos, em tomar parte no saque.

Fora um deles, de pés e mãos amarrados, sangrando como um porco. Jazia outro, crivado de feridas, e uma velha, estirada a seu lado, de goela aberta e seios dece­pados, nadava no próprio sangue.

Foi quase toda a coluna acampar por esta noite atras da igreja, sobre o grande terrapleno que descrevemos e onde, escalonados com os canhões nos ângulos, para maior segurança contra o inimigo, nos apoiávamos à mata do rio. Ali gozamos, enfim, um pouco de verdadeiro descanso. Dupla e tripla ração se distribuiu; per­mitiam-no as circunstâncias; sentia-se o comandante feliz por contentar os soldados, quanto possível. Pela primeira vez, e desde muito, podíamos contar com o dia de amanhã. Restavam-nos, apenas, para nos pôr fora de qualquer perigo eventual, fazer quinze léguas, a cami­nhar por excelente estrada, de Nioac ao Aquidauana, onde éramos esperados. E para tal marcha tínhamos víveres sobejos.

Foi a noite calma, como tudo prenunciava dever suce­der. Apenas amanheceu fizeram os soldados uma visita às ruínas da aldeia. Acabaram tomando tudo o que aos paraguaios escapara. Graças a esta sucessão de roubos desaparecera, em alguns meses, destas terras novas o pouco que o incipiente comércio ali introduzira, como mecanismos e ferramenta, tudo, enfim, o que o trabalho conseguira juntar de frutos e poupança.

Durante a última estada em Nioac depositáramos na igreja muitos e diversos objetos, o instrumental das bandas de música, munições de guerra etc. Consta que os paraguaios encontraram ainda muita coisa deste ape­trechamento, não lhes havendo chegado o tempo para tudo carregar. Existia ali grande reserva de cartuchos e foi, talvez, o que lhes sugeriu a primeira idéia da horrível maquinação que tanto lhes condizia à feição cruel.

Depois de carregarem o que mais poderiam aprovei­tar, deixaram o resto por destruir, para nos engodar e nos reter o maior lapso de tempo possível em torno de um amontoado de objetos, sob o qual colocaram um barril de pólvora com rastilhos. Não podíamos ter a menor suspeita de semelhante cilada; e, à vista dos car­tuchos que devíamos transportar, tomamos as precau­ções costumeiras contra as eventualidades de uma explo­são. Enquanto na igreja trabalhava o nosso pessoal sentinelas vigiavam, a fim de que nenhum fogo se acen­desse pela vizinhança.

Ocorreu, contudo, que um infeliz soldado encontrasse pelo chão um isqueiro, dentro do edifício, e lhe viesse a estapafúrdia idéia de o utilizar. Saltou logo uma faísca sobre alguns grãos de pólvora dos que coalhavam a nave. Sem a umidade do solo, então muito grande ou acaso fossem os rastilhos contínuos, instantânea ocorreria a explosão. Para melhor nos enganarem haviam os para­guaios espalhado a pólvora sóbria e desigualmente com o minucioso cuidado, e os cálculos ardilosos do selvagem que preparara os seus malefícios. Só se viu, a princípio brilharem pequenas chamas e aqui e acolá se levantarem sucessivamente ligeiras espirais de fumaça. Já os solda­dos se precipitavam para conter o fogo, no momento em que ele tomava corpo, quando os oficiais presentes, compreendendo melhor o perigo, ordenaram que imediata­mente fosse a igreja evacuada. A esta voz correram todos, em massa, para as portas; como o atropelo per­turbasse a saída, deu-se a explosão antes que toda a gente se achasse do lado de fora. Pouco faltou para que todo o edifício voasse aos ares; foram as paredes sacudi­das, mas o conjunto resistiu; assim não sucedera e teriam todos os nossos, que ali se achavam, infalivelmente pere­cido esmagados sob os escombros.

Terríveis de se ouvir e sentir, até no ponto distante em que nos achávamos com o comandante, foram o estampido e o abalo. Grande grito acompanhou a explo­são seguida de silêncio, depois novo e horrível clamor e ainda pausa. Soaram os clarins; julgando todos que era o inimigo, os corpos entraram em formatura. Já nos precipitáramos para a igreja; dela saíam, dentre turbi­lhões de fumo, irreconhecíveis formas, fantasmas ene­grecidos e avermelhados pelo fogo. Ardiam uns com as roupas em chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em frangalhos, soltavam urros; alguns ain­da rodopiando como alucinados já se debatiam nas angústias da agonia. Perdera um soldado negro toda a epiderme do rosto, arrancada como uma máscara. Era­-lhe o corpo sangrenta chaga. Um sargento, cujas carnes se achavam inteiramente desnudadas, implorava, por misericórdia, que o acabassem com uma bala ou um pontaço. Morreram ali mesmo, no local, uns quinze desventurados.

Todos aqueles a quem podia a arte valer, ou para lhes diminuir o sofrimento ou para os salvar, passaram a ser o objeto do desvelo dos médicos e das nossas preocupa­ções. À nossa compaixão para com eles acrescia a indig­nação contra os autores deste cruel atentado; não houve depois dentre as vítimas arrebatadas à morte nenhuma cuja cura não saudássemos como verdadeira felicidade geral.

Foi o adeus dos paraguaios, a última demonstração de seu ódio contra nós. Sem nos abandonar de todo, porfiavam, contudo, em só se deixar entrever fora de alcance.

A 5, entretanto, ao raiar do dia, saímos da infeliz e bela Nioac, afinal, aniquilada com a sua igreja. Seguía­mos a estrada do Aquidauna e marchávamos penalizados sob a impressão do funesto sucesso da véspera.

A todas as vicissitudes atravessadas viera ajuntar-se a angústia da véspera. Já era muito porém, era legítimo triunfo estarmos de pé e ter dominado um inimigo tão perfidamente encarniçado em nos arruinar.

Foi o Orumbeva facilmente transposto. À margem direita se nos deparavam destroços de carretas que os paraguaios acabavam de queimar, muitos víveres e objetos de apretrechamento espalhados e todos sujos de terra como já na barranca do Canindé encontráramos; cadernos dilacerados, folhas soltas ao vento, notas, entre as quais o autor desta narrativa reconheceu a própria letra, e agora truncadas e inúteis.

A alguma distância deste caudal aguardava-nos, tal a primeira impressão, nova cilada, cujos efeitos foram, contudo, muito diversos de um desfecho trágico. Duas pipas, daquelas em que se conserva a aguardente de cana, ocupavam o meio da estrada. Lembrando-se da explosão da igreja e temendo algum novo estratagema, da parte de um inimigo que nenhum escrúpulo parecia poder conter, apressou-se o capitão Pedro José Rufino e precipitando-se sobre os tonéis arrombou-os com os copos da espada.

À vista do líquido, que a jorros corria, alguns solda­dos não podendo conter-se, ajoelharam-se ou deitaram-se de bruços, para alcançar o seu quinhão, espetáculo aco­lhido pelas gargalhadas, que se generalizaram em toda a linha.

Não teve o incidente outras conseqüências: pacifica­mente continuamos a marcha até o ribeirão da Formiga, perto do qual acampamos, ainda contemplados nesta nova fase de abundância pelo encontro de bom número de bois, em ótimas condições.

A 6 rumamos para nordeste, seguindo grande cami­nho a que numerosas moitas de taquaruçus dão o nome e aberto através da mata cerrada, que tanto se presta a surpresas. Nada, porém, ali, nos sobressaltou a marcha.

À medida que percorríamos estes terrenos a nós fami­liares e aos paraguaios menos conhecidos, cada vez mais frouxa e inofensiva se tornava a perseguição, embora não houvesse inteiramente cessado. Fizemos neste dia ponto, junto a um lindo ribeirão chamado das Areias. No dia seguinte, 7, quase vencemos as quatro léguas que medeiam deste ponto ao rio Taquaruçu. Atingimo-lo a 8 e, como a altura das águas não nos permitisse vadeá-lo, acampamos à sua margem.

Noite para nós memorável, esta! Foi aí que os paraguaios, avistados a alguma distância, se decidiram, enfim, a desaparecer. Deles próprios partiu o aviso da retirada, com uma fanfarra prolongada de clarins que tal sinal deu, mais lisonjeiro a nós outros de que a eles. Não se fizeram nossas cornetas rogadas, aliás, em asso­ciar-se àqueles toques com um estrépito a cujos ecos estremeceram longamente aquelas solidões. Soubemos, alguns dias mais tarde, que se haviam dirigido para Nioac, e, depois de recolhidas todas as suas patrulhas, pelo Apa regressado ao território de sua república.

Quanto a nós, cada vez mais bem providos de víveres, graças a um rebanho enviado das margens do Aquidaua­na, depois de um ofício do nosso chefe, ao coronel Lima e Silva, transpusemos, a 9, o Taquaruçu e, a 10, duas léguas adiante, um rio chamado Dois Córregos. A 11[1] chegamos ao porto do Canuto à margem esquerda do Aquidauana. Tal o último trecho de nossa penosa reti­rada. Ali findou o doloroso itinerário que, como expiação de nossas temeridades, nos fizera curtir tantas misérias quantas pode o homem suportar sem sucumbir. No Canuto nos despojamos dos miseráveis andrajos que nos cobriam, libertando-nos, afinal, da mais horrível sevandia e dos parasitos do campo, que, perfurando a pele, nela produzem dolorosas úlceras. Oferecia-nos o magnífico ensejo para as nossas abluções. Todas estas paragens podem ser chamadas: a terra das águas belas.

A 12 de junho baixou uma ordem do dia do nosso valente chefe José Tomás Gonçalves, em poucas palavras resumindo os acontecimentos desta terrível campanha de trinta e cinco dias: "A retirada, soldados, que acabais de efetuar, fez-se em boa ordem, ainda que no meio das circunstâncias as mais difíceis. Sem cavalaria contra o inimigo audaz que a possuía formidável, em campos onde o incêndio da macega, continuamente aceso, amea­çava devorar-vos e vos disputava o ar respirável, exte­nuados pela fome, dizimados pela cólera que vos roubou em dois dias o vosso comandante, o seu substituto e am­bos os vossos guias, todos estes males, todos estes desas­tre vós os suportastes numa inversão de estações sem exemplo, debaixo de chuvas torrenciais, no meio de tor­mentas de imensas inundações, em tal desorganização da natureza que parecia contra vós conspirar. soldados! Honra à vossa constância, que conservou ao Império os nossos canhões e as nossas bandeiras!"[2]

  1. No dia da invasão do território paraguaio, isto é, em abril de 1867, era efetivo da coluna de 1.680 soldados. A 11 de junho reduzira-se a 700 comba­tentes . Perdêramos pois 980 soldados pela cólera e o fogo. Morrera além disto grande número de índios, mulheres e homens negociantes ou camaradas que haviam acompanhado a marcha agressiva do nosso corpo.
  2. Esta ordem do dia é de lavra do Autor de Retirada da Laguna como ele o declara nos seus Dias de Guerra e de Sertão.