CAPITULO
Mario de ANDRADE
Andando por estes mundos apenas descobri uma profissão á qual o alemão não se adapta. A do garçon. O alemão não sabe, não pode ser garçon. Mostre se embora rapido e solicito, simpatico, feliz não é eficaz. Essas mesmas qualidades indispensaveis no garçon se transformam no alemão em motivos de afastamento.
Sempre observei o comovente compromisso trocado entre o freguês que bebe e o garçon que serve. O verdadeiro freguês não pede sómente whisky a sanduíches, traz pro restaurante um diluvio de pedidos inexpressos inconscientes que urge satisfazer tanto como a sêde. Quem serve deve saber disso. O verdadeiro garçon sabe disso. Com olhar e sorriso ventando brisas de despreocupação envolve o freguês numa atmosfera intima de paz e suavidade. E deve estar sempre atento. Porém que a atenção dele, esse cuidado em servir bem e a tempo não se entremostre siquer, o freguês adquiriria a noção compressiva do minuto que passa—prejudicial ao descanso dele e á prosperidade do bar.
Outro dever principal do bom criado é saber desejar pelo freguês. Não se esqueça que este é por excelencia o homem que pede. Pede até o proprio desejo. Em verdade si um homem senta-se ante a mesinha do Café e pede um chôpe e unicamente um chôpe é freguês perdido. Antes tranzeunte alterado cheio de trabalhos em seguida. Pois então o garçon se transfigura. Deve mostrar pressa pra que o negociante não esqueça a dele. Mas intencionalmente roçará o alvissimo frio do paletó pela mão ombro do sedento. Oh a maternal piedade dos linhos tão sadia! que nos incita a de novo trabalhar e vencer... O frescor ensalmante do brim claro como previsão de pazes futuras prá mão que tremerá daqui a pouco assinando o contrato ou recebendo os cem contos que não lhe pertencem... Porém o homem do chôpe rapido não é freguês. Este é o sem-rumo tanto no tempo como na vontade. Vem. Se abanca. Entre os pedidos que não articula um dos mais preciosos é o de querer querer. O garçon tem de lhe propiciar o desejo. Deve penetrar-lhe no corpo conhecer-lhe num olhar os achaques. Descobrir tendencias adivinhar gôstos inventar consolos recriar a alegria. Deve ir mais alem mesmo: lêr até nos segredos da sensação e sentimentos vagos enterrados no inconsciente pelos quais tanto se sofre sem saber porquê. Me lembro do dia em que freguês penetrei num bar do Rio de Janeiro. Não tinha nada que fazer. Banzava, meus desejos satisfeitos, sem esperanças nem saudades. Estava perfeitamente em dia comigo mesmo. No entanto não era feliz. Porquê? Foi quando me veio servir um brasileiro talvez mulato lembrando na pele essa cor quasi palida das práias. Porém o Sol crepuscular reflete os rubores na areia das práias. Assim êle. Que desejaria eu, Deus dos cristãos ! Queria querer. Era uma das razões do mal-estar, meu tedio. Carecia dessa dinamica do desejo, causa assú pela qual a vida interessa. Veja agora como o criado me serviu. Quando me deu o boa-tarde com a deiscencia dos labios rindo e os dentes decorativos comecei a me interessar desde logo. Me interessar, intranzitivamente, sem complemento direto, reação. Misturadamente ele me falou da beleza da tarde e precisão em que eu estava, de outra terra (descobrira em mim o paulista aliás coisa facil pelo paulista que está sempre do lado de fora dos paulistas) precisão de ir ver a queda da noite no Pão-de Açúcar e do extraordinario cocktail propriedade da casa. Senti a delicia da bora me orgulhei de São Paulo e pedi o cocktail. Entretanto ai me pusera de novo a viver já interessado permanecia em mim a sensação de falta, pobreza, de omissão. Não estava ainda feliz. E bebia mal o cocktail tão detestavel como todos os cocktails. De vez em quando o meu garçon passava rapido mas bamboleante pelo meu olhar. Era que nem dansa habilissima que mal tocava o chão. O bailarino parecia feliz. Me regava de prazer como vaporizador benefico. Seus olhos de tanta luz me agasalhavam, se interessavam por mim, eu sabia...
— Já venho.
E foi levar o cocktail propriedade da casa outro fregues. “Já venho" porquê? Não o chamara. Mas já se aproximava sem me dar tempo pra sofrer com a inquietação. Lhe percebi no olhar um momento de intensa procura. Disfarçou dispondo milhor uma cadeira. Limpou o marmore limpo da mesa mostrando o punho suficiente. Muito calmo, arrastando o gesto.
— O senhor desejaría... cigarros ?... fosforos !
Isso. Queimara fazia pouco meu último fosforo. Em breve lá fora talvez no bonde talvez na Atlantica sem "charutarias metendo na boca o cigarro me faltaria fogo. Nem era propriamente a ante-sensação da contrariedade que me anulava o bem-estar atual e me deixava assim quasi infeliz. Era a falta imediata de fosforos mesmo sem vontade de fumar. O fumador carece de fosforos á mão mesmo que não esteja pra fumar. Carece de fosforos. Só isso. Lá vinha êle com os fosforos. Rasgara o sêlo que tanto impertina quando a gente abre caixa nova. Fazia a caixeta correr no resguardo me livrando assim de inuteis pequenininhos esforços futuros. Fiquei completamente feliz. Jantei bem. Fui no cinema. Beijei com os olhos todas as mulheres que encontrei e.
Genial garçon ! Fosse eu rico êle seria meu, meu pra sempre! meu até a morte !...
Incompetencia pra adivinhar os fosforos eis o principal defeito do Kelner alemão. Nunca desejará pela gente. Jamais em tempo algum ha-de ajudar a gente a querer. Fica sentado em cima dum rochedo qual junto dum penedo outro penedo, mudo loiro frio, muito loiro e frio... Não nego tenha qualidades servis. E' mesmo quasi sempre solicito e discreto. Mas duma solicitude que irrita e discreção que fere.
Quanto mais admiraveis os garçons franceses! Não falo agora do criado Inglês, Phipps, entidade romanesca, severo e absolutamente idiota. Impassivel. Detesto o criado portuga, burrissimo e colocador de pronomes. Abomino o espanhol, pegajoso esguio, frequentemente de olhos verdes. O italiano seria bem mais apreciavel mas tem unhus sujas—qualidade mais que inutil pra dispor sobre a mesa talher prato e a sensualidade traiçoeira das pastelarias.
A França é a terra dos poetas classicos e dos garçons geniais. Olhe como ele se multiplica liquefaz e transcende a desordem escura da vida subjugando-a metodizando-a, Nada tem de mais classico na França que a bem composta servilidade do garçon. A França criou o garçon. A propria França é o garçon da humanidade. Veja a literatura dela e artes todas. Onde o Shakespeare que revela ? o Dante que domina? o Cervantes que descobre? o Dostolewsky que acabrunha? Onde o Rubens que incendeia? o Miguelanjo que alucina? o Mozart que diviniza? Não. Porém sob a capa amarela encontraremos o adivinho dos fosforos. "Un peu de chaque chose e rien du tout, à la françoise" não ? Montaigne... Tem de tudo em dose humana e comedida. Divinatoria solicitude, abundancia amornante. discreção camarada. Racine e Colette, Ingres e Delacroix; Couperin e Massenet. Claridade risonha, felicidade e scepticismo, morte dos deuses, morte dos misterios e da bruma, meio-termo. Melotermo! Afastamento do angustioso e do incomensuravel. Medida. Ordem. Clareza. Claridade !
França, Filha unica da Grecia ! Garçon, filho de lavadeira! Esta alimpou da truculencia e misticismo barbaro da Asia a roupa branca que pelos seculos dos seculos resguardará de chuva e frio a epiderme da humanidade pensativa. Lavou genialmente. Linho mais alvo que Socrates, Platão, Aristoteles não tem. Mas não basta a roupa. O garçon veio preparar a jante suculenta e várla com pratos pra todos os estomagos e vinho pra todas as guelas. Riqueza carinho e comedimento. Curiosidades pra todos os curiosos, mediana calma tpra odo os agitados, duchas quentes e duchas frias. Duchas escocesas. E sobretudo maravilhosamente o descobrimento dos fosforos... Eu te venero, França! oh servidora ideal, garçon da gente !...
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