A casa resendia a flores e a cera. Em volta do caixão azul para onde me haviam levado, sentia os soluços agudos dos meus. Estava morta. Uma agonia enorme me estraçalhava o peito, quando as lagrimas quentes de minha mãe banhavam-me o rosto.
E por mais esforços que fizesse, impossível me era o menor movimento. Assim estive muito tempo.
A' tardinha, um homem que não conheço, moreno, alto, barbas negras e olhos azues, depois da despedida terrível dos parentes, em que a dor me asphixiou quasi inteiramente, fechou o caixão.
Senti as pancadas rítmicas do martello e um grito angustioso, enorme, dilacerante, que reconheci ser de minha mãe.
Sem saber explicar como, apezar de ter os olhos fechados e estar encerrada num caixão, eu via tudo o que se passava ali, na sala que eu para sempre me deixar.
Tíraram-me de casa e com um passo lento e cadenciado, os homens que seguravam as alças do caixão, todos de negro, e com ar de contrariedade, puzeram-se a caminhar, levando-me silenciosamente para a grande viagem.
Muita gente me seguia e ruas ruas onde passavamos, rostos pallidos, rosados, com os olhos transbordando curiosidade, assomavam á janella e numa muda interrogação, olhavam o esquife azul que silenciosamente numa marcha candènciada e lenta seguia para lá, onde tudo e nada é pó.
De quando em vez, descançavam o caixão sobre um banqulnho adrede e puxando os alvos e aromaticos lenços, aquelles homens meditabundos que eu nunca vira, afastavam-se e outros os substituiam, e a marcha continuava.
Chegamos ao cemiterio. Ha na casa dos mortos uma voz imperativa de recolhimento; Pousaram-me á beira da cova, Um silencio profundo, enorme, pesado, se fez. Quando vi que alli tudo se acabaria, senti uma dôr incalculável de morrer. Eu, que sempre detestei a vida, pelo muito de mau que ella contêm, fiz esforços loucos para gritar, para dizer que vivia . . e, nâo consegui. Então vieram-me as lagrimas e eu chorei, chorei como nunca o fiz na minha vida.
Os mesmos homens taciturnos, com o mesmo ar de contrariedade com que me haviam tirado de casa, seguravam umas cordas grossas, passaram os ganchos nas alças do caixão e iam iniciar a descida, quando eu accordei.
Minha mãe, á borda do leito, muito afflicta, indagava, com carinho, si eu estava doente . . .
E a Clara Lúcia calou-se. Um sorriso de tristeteza pairava-lhe nos lábios, e o olhar embaciado pelas lagrimas prestes a rolarem, ella o tinha perdido no infinito . .
ANTONIETA DE BARROS
(Florianopolis)
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.