Quando Ernestina acordou era dia. Quis mover-se, não pôde. A cabeça ardia-lhe, muito pesada e dorida, tinha o rosto vermelho e uma dor no peito que a não deixava respirar. O médico foi vê-la, assegurou-lhe que Sara não morreria, consolando-a muito. Ela quis contar a história toda como confundira os remédios e o seu desatino depois. Ele fê-la calar-se, percebera a verdade vendo os dois frascos juntos e abertos... providenciara a tempo.
Tudo ia bem.
Tudo ia bem!... Entretanto, numa ocasião ela teve medo que a enganassem e saltou da cama descalça, com a camisa aberta no peito e os cabelos soltos; atravessou a sala sem que a vissem, passou pelo corredor onde circulava livremente o ar, e abriu de mansinho a porta do quarto de Sara, com um medo terrível de o ir encontrar vazio... mas não; Sara dormia numa atitude serena, e, a seus pés, de costas para a porta, estava Luciano.
Ernestina voltou para o seu quarto, sem desgosto, sem alegria, impassível como se tudo aquilo fosse esperado!
Sentou-se na cama com os pés nus sobre o tapete, as mãos caídas nos joelhos, e assim ficou algum tempo, com os olhos fixos no reposteiro da porta, sem pestanejar, imóvel, abstrata. A pouco e pouco a respiração foi-se tornando mais difícil e o corpo, vencido, caiu pesadamente sobre os travesseiros. Recrudesceram-lhe as dores e a febre. Pelas faces, muito vermelhas, rolavam lágrimas grossas e ardentes, e ela mal podia respirar, sentindo uma pontada violenta no peito.
Luciano entrava a medo no quarto da viúva, esperando sempre uma recriminação, temendo também exacerbar-lhe o mal. A sua consciência não o deixava à vontade entre aquelas duas mulheres enfermas. Entretanto não se afastava dali. Daquela casa.
Sara não o tinha percebido ainda; a viúva não falava a ninguém. Como o médico exigisse enfermeiras, ele julgou dever avisar a mulher do Nunes e a ama Josefa.
Georgina passava também agora os dias e as noites no quarto da amiga. Desenvolvera uma atividade de que ninguém a julgara capaz. Era enérgica, movia sem cansaço o seu corpo franzino; com as mãos ágeis, os passos leves, o ouvido atento e o seu belo olhar de gazela, tão vivo e tão meigo, a sondar a doente, buscando uma esperança que não aparecia!
Ah, ela compreendeu a verdade sem ouvir explicações! O amor de Ernestina por Luciano não fora nunca um segredo para ela; a sua perspicácia adivinhara-o logo. Percebendo mais tarde que, por sua vez Sara o adorava, esperou com curiosidade e medo o desfecho daquela história.
Ele aí estava, e bem triste!
A D. Candinha Nunes mudou-se também para Santa Tereza e era quem determinava tudo, assídua, solícita e animada. Entrava pouco nos quartos das doentes, mas preparava-lhes lá dentro os caldos, o leite, o gelo, as roupas e ordenava o silêncio entre as criadas que; a um gesto seu, suspendiam o mínimo rumor.
À cabeceira da viúva Simões estava a Josefa sentada em um banquinho, com as mãos descansadas no colo e o queixo erguido para a cama. De vez em quando cochilava, e então o queixo, quadrado e forte, batia-lhe no peito ossudo, ela despertava com vexame, olhando em roda, observando se a tinham visto, receosa de um olhar de censura. Mas, nada. A viúva tinha os olhos fechados ou postos no teto, as mãos sumidas nas dobras do linho, os lábios silenciosos.
Pelas janelas cerradas o sol encrava em fisgas; a não ser o tic-tac do relógio, só se ouvia o voar das moscas na sua bulha quase imperceptível e vaga. Josefa para justificar a sua estada ali, erguia-se de vez em quando, alisava o lençol da doente e perguntava-lhe:
- Quer alguma coisa?
A viúva respondia com um gesto que não; a maior parte das vezes nem assim mesmo respondia, quedava-se imóvel, e a Josefa tornava para o banquinho, com um suspiro de cansaço ao corpo moído daquela indolência. E as horas iam passando; o sol abrandava a sua luz amarela, recolhia pouco a pouco as fitas de ouro, que estendera através das venezianas cerradas. Caía a tarde e o silêncio continuava, triste e profundo.
D. Candinha ia de hora em hora dar o remédio, recomendando sempre à Josefa que a avisasse se houvesse alguma falta. Às vezes, de longe em longe, a pobre mulher pedia à moça que ficasse ali um minuto; ela voltaria depressa.
Saía; e, logo fora da porta, respirava com força, sacudia as saias e andava com passos largos, desentorpecendo-se. Ia ao quintal girar um pouco, colhia um raminho de mangerona ou de hortelã e entrava na cozinha mastigando as folhas e pedindo um caldo.
Tornava o alimento à pressa, lamentando não poder saboreá-lo. Em verdade o que ela saboreava mais não era a sopa, era a liberdade, era a janela francamente aberta, a variedade das caras e a variedade das coisas, a ausência do quarto de doente, com o seu cheiro enjoativo de remédios, cortinas descidas e o relógio estúpido, a dizer sobre a cômoda sempre o mesmo: tic, tac, tic, tac tic, tac!
Mas outras vizinhas vieram, boas, cuidadosas e, apesar de tudo, a Josefa, como um cão de guarda passava os dias sentada no banquinho, olhando para a viúva, cansada, triste esperando pelas horas da refeição para ir gozar lá fora, sob esse pretexto, o ar, a luz e a palestra.
- Tomara já que isto acabe! pensava ela, que Iaiá fique boa e Sarinha também. Ave Maria! Como estarão os meus cacos em S. Cristóvão!
A visão da casa atormentava-a muito. Via as baratas passeando sobre os pratos da marmelada, feitos para quitanda, na manhã da subida para Santa Tereza; lembrava-se de ter deixado fora do quarto, pendurado, à toa, o seu melhor vestido e parecia-lhe sentir o ruído dos dentinhos dos ratos nas roupas dos fregueses... Credo! Calculava os prejuízos, somava pelos dedos o que teria de pagar a um e a outro, e pasmava diante das cifras que se desenhavam em seu espírito em proporções enormes!
Uma noite, a Josefa teve um sonho que a decidiu a abandonar a doente por algum tempo.
Sonhou que o seu adorado S. Sebastião, furioso por ver apagada a lamparina com que ela, cuidadosa, religiosamente, o alumiava no seu oratório dia e noite, entrara a desfechar-lhe nos olhos todas as setas do seu bendito corpo.
- Perdão! gemia a pobre; mas o santo não lhe perdoava.
Quando Josefa acordou sentiu dor nos olhos... aquilo tornou-a apreensiva. Foi ao espelho; os olhos estavam vermelhos!
- Uê! Gente! Isto é aviso do Céu! Eu vou logo a S. Cristóvão!
Ao meio-dia vestiu o seu vestido de merino preto, pôs o seu velho toucado de vidrilhos e flores roxas e dispôs-se a sair.
Estava toda a casa silenciosa. A viúva dormia e a mãe de Georgina fazia-lhe quarto. Josefa atravessou a sala de jantar em bicos de pés e entrou no corredor. Ao fundo, a porta do jardim atraia-a, muito aberta, como um quadro de luz; e ela seguia com passos miúdos, segurando na mão a bolsinha de couro que não deixava nunca, quando de repente um grito agudo feriu o ar e o silêncio da casa. Josefa estacou.
Deus do céu! Que teria sido!? Houve uma pausa; correram minutos... outro grito igual e estrídulo partiu do quarto de Sara. Josefa voltou depressa para o quarto da moça.
- Que foi?!
Georgina levantou para ela os olhos chorosos, D.Candinha, mais calma, respondeu-lhe sem olhar para ela, fixando a doente:
- Foi a morte, Josefa! Sara está perdida!...
Josefa caiu de joelhos e pôs as mãos, Georgina imitou-a, sem saber como, e ambas rezaram silenciosas, chorando.
Ambas rezaram, ambas fizeram promessas, e quando se levantaram abraçaram-se, sem saber como, sem saber porque!