Rodrigo dirigiu seus olhares para o lado, de onde pareciam partir os acentos da voz maviosa, que modulava tão sentidas e plangentes coplas, e não tardou em divisar o mesmo vulto de mulher vestida de branco, que há pouco havia avistado no tope da penedia exterior. Ao tempo que cantava vinha ele descendo pelas sendas tortuosas da colina com passos sutis e rápidos, fantástica e aérea sílfide, ou ligeira borboleta de asas brancas esvoaçando em caprichosos giros por entre floridas e viçosas balsas.

Quando chegou à base da colina, morriam-lhe nos lábios as últimas notas da canção suspirosa mescladas ao soluçar da vaga preguiçosa, a se estirarem pelas alvas praias. Do lado, por onde descera, estendia-se um grupo de rochas negras plantadas no areal, dispersas em desordem, altas, esguias, aprumadas, que ao longe se poderiam tomar por um bosque de ciprestes, fúnebre ornamento de alguma mansão mortuária. Também quem tivesse a imaginação algum tanto exaltada, contemplando à luz duvidosa do crepúsculo ou em noite de luar essas escuras massas, imóveis e sombrias, em pé à margem do lago, cuidaria ver nelas um bando de monges com a cabeça e braços escondidos debaixo do capuz e das largas mangas, embevecidos em mística e profunda meditação.

Por entre esse grupo de rochedos, a donzela desapareceu por momentos, e, depois de os atravessar, surgiu de novo à beira do lago e, com um gesto expressivo e gracioso, convidou o mancebo a que viesse desembarcar. Rodrigo, que acompanhava com os olhos os menores movimentos da fada, achava-se no centro do lago em completa calmaria, e como ali dentro mal respirava uma frouxa viração, que apenas poderia agitar os macios anéis ou os ligeiros véus da fronte de uma virgem, empunhou o remo e, dirigindo à praia o seu batel, ia cantando assim:

Por entre as ondas bravias
De mil tormentas batido
Em busca de um bem perdido
Voga em vão o batel meu.

   Voga, voga, até sabermos
   Onde a ingrata se escondeu.

Houve um dia uma sereia…
Oh! Que linda ela não era…!
Porém, tão ingrata e fera
Que de amor me enlouqueceu,
   Dizei, nuas penedias,
   Onde a ingrata se escondeu.

Ela deixou-me, a cruel!
Entregue a negros pesares,
Lastimando sobre os mares
O triste destino meu;
   Dizei-me, ó ondas sonoras,
   Se ela de mim se esqueceu.

Se nas asas do tufão
Devassando o mar profundo
Na raia extrema do mundo
A meus olhos se escondeu,
   Neste barco aventureiro
   Lá também voarei eu.

Se entre monstros marinhos
Lá no mais fundo dos mares
Em cristalinos algares
Se oculta o retiro seu,
   Em meu amor confiado
   Lá mesmo descerei eu.

Se entre rochas malditas,
Entre grossos vagalhões

Defendidas por dragões
Seus palácios escondeu,
   Mil mortes desafiando
   Lá mesmo chegarei eu.

Por entre as ondas bravias,
De mil tormentas batido,
Em busca de um bem perdido,
Voga, voga, ó batel meu!
   Voga; um dia saberemos,
   Onde a ingrata se escondeu.

Quando Rodrigo terminou a última endecha, o barco embebia a proa na alva e fremente areia, e de um salto o mancebo, anelante de prazer e de assombro, achava-se aos pés da fada, a qual com um meigo gesto e um fagueiro sorriso nos lábios, estendia-lhe a mão para erguê-lo, e lhe falava assim:

— Não; nunca me esqueci, nunca me esquecerei de ti, Rodrigo.

Rodrigo ficou por alguns instantes diante dela mudo, imóvel, atônito, entregue a mil emoções, impossíveis de descrever.

— Será mesmo Regina que estou vendo…? Não será isto um sonho…? — murmurava no íntimo da alma.

Mais que nunca o deslumbrava o novo e fascinador aspecto de que se revestira a beleza de Regina, depois que por alguns anos se ermara naquele ignorado e inacessível recinto. Os peregrinos encantos, que outrora já tanto seduziam através dos véus diáfanos, em que o recato e timidez envolvem as graças nascentes da primeira juventude, eram apenas vagas promessas, esboços incompletos da prodigiosa e incomparável beleza que agora se lhe apresentava. Os olhos, que outrora como que retraíam em si aquele vivo fulgor e fascinadora magia, que tantas vítimas fizera, agora despediam provocadoras chamas, que ecoavam no íntimo da alma o filtro de mil sonhos de inefáveis delícias. Vivo e ardente rubor coloria-lhe os lábios úmidos e risonhos, que se agitavam como corolas orvalhadas desafiando o beijo das aragens. Espraiava-se-lhe nas faces um mimoso matiz encarnado, que não era por certo assomo de virginal pudor, mas exuberância de seiva e viço juvenil, fogo do coração sedento de amor, que lhe aquecia o sangue, e vinha abrolhar-lhe nas faces em pétalas de rosa. Os braços, espáduas e seios mais avolumados torneavam-se em mórbidas e voluptuosas curvas, e os contornos do corpo desenhavam-se bem acentuados em todo o seu vigor e amplitude sob a ligeira e singela roupagem, que do donoso cinto pendia-lhe flácida ao longo dos membros, ondulando ao sopro de escassa viração. Já não era a tenra flor que mal abria timidamente aos fulgores da nascente aurora o cálice orvalhado de inocência e pudor; era agora a rainha do vale, que alçava o colo altivo alardeando aos esplendores do sol o mimo e o matiz das pétalas em todo o seu viço e louçania.

— Será mesmo Regina que estou vendo…? Não será isto sonho…?! — exclamou Rodrigo, externando por fim em voz alta a perplexidade e assombro em que sua alma se agitava.

— Quem mais senão ela? — respondeu a fada apertando-lhe docemente as mãos que tinha presas nas suas, e cravando-lhe na alma um olhar repassado da mais apaixonada ternura. — Não me conheces mais, Rodrigo? Estarei tão mudada assim?

— Mudada não estás; és a mesma Regina, porém mil vezes mais bela. Meu coração bem adivinhava que eras tu, que aqui te achavas, mas podia eu contar com teu amor, eu que fui tão cruelmente maltratado? Ainda não posso crer… dize-me ainda uma vez; deveras tu me tinhas amor…? Ainda não te esqueceste de mim?

— Oh! Juro-te, Rodrigo, amava-te…! Amei-te desde a primeira vez que te vi, e hoje te amo mais ainda, se é possível.

— Mas, entretanto, passado pouco tempo amaste outro homem… com ele te casaste, e…

— Cala-te, meu querido! — interrompeu Regina levando a rósea mão à boca do mancebo. — Bem sei o que me vais dizer. Se me tens amor, não me aflijas com essa triste recordação neste único momento feliz, que até aqui me tem sorvido na vida. Se soubesses o que se passava dentro deste coração…?! Depois que desapareceste, fiquei sozinha, entregue a mim só, a meus pesares, e à minha fatal beleza, que mau grado meu não cessava de produzir os costumados infortúnios. Devo dizer-te, se é que já não sabes, também teus irmãos amaram-me, e solicitaram o meu amor; mas ai deles…! Não conseguiram mais do que tornar com sua presença e semelhança mais vivas as saudades que tinha de ti, e gravar-me mais fundo no coração um sentimento que jamais devia se extinguir. Também eles desapareceram…! A paz, a alegria, a esperança, tudo fugiu-me com o único homem que soubera cativar-me o coração. Apareceu esse homem que ofertou-me seu amor e sua mão. Eu desejava e devia pôr termo às desgraças que sem querer derramava em torno de mim. Todos julgavam-te morto, e eu, que tinha sido a causa involuntária de tantas catástrofes semelhantes, facilmente o acreditei. Aceitei o seu amor, a sua companhia e proteção, mas não lhe podia dar em troco senão estima e amizade, que muito merecia, mas amor não, que esse tu o havias levado todo para o túmulo, em que te julgava adormecido.

— Mas por que tanto me desdenhavas…?

— Eu nunca te desdenhei.

— Por que me fugias sempre? Por que nunca achaste para mim uma única palavra de esperança…? Por que sempre me flagelaras a alma com aquele estribilho de tua infernal canção:

Mancebo, vai em outra parte
Teus amores suspirar…?

— Ah! Não me entendias, e tinhas razão. Louca e caprichosa que eu era, queria que por meio de um gesto, de um olhar adivinhassem todo o meu pensamento. Sou filha do mar; não tenho outra pátria, e não conheci na terra pai, nem mãe, nem parentes. Entretanto eu crescia, e meu coração sentia necessidade de amar, e amei-te a ti, filho da terra, onde eu fizera voto de não amar a ninguém. Mas meu amante queria eu em meus cegos caprichos, que fugisse para sempre à terra, e me acompanhasse aos mares; era aqui, neste meu retiro inacessível aos demais filhos da terra, era aqui que eu queria que me amasse; era aqui que eu queria prendê-lo comigo, prendê-lo em meus braços, compreendes…?

— Mas eu cá vim um dia em teu seguimento arrostando todos os perigos, e tu me fugiste e desapareceste a meus olhos cantando sempre a tua abominável canção…

— A canção era simplesmente para pôr em prova a tua perseverança; mas eu te acenava para que me acompanhasses dando volta a ilha, e tu não me compreendeste…! E ai de mim…! Nem podias compreender, agora o vejo…

— Oh! Estulto e cego que eu fui…!

— Não, Rodrigo, a culpa era minha, mas hoje me compreendeste, tudo está sanado, esqueçamos nos braços um do outro todo esse triste passado. Graças a ti, meu belo, meu valente amigo, graças ao teu amor e à tua coragem, eis-nos hoje felizes…! Se tu não viesses, eu aqui viveria e aqui morreria ao desamparo na mais triste solidão, pois jamais consentiria que outro, que tu não fosses, penetrasse nesta minha morada.

Com estas e outras frases e afagos repassados do mais íntimo e extremoso afeto, Regina, travando da mão do mancebo, o ia conduzindo através das negras rochas, que mediavam entre a praia e o viso das colinas.

Já era sol posto e reinava, por entre aqueles meandros misteriosos, mística e silenciosa sombra quase igual à da noite. No intervalo de dois desses penedos que se inclinavam um para o outro, quase se fechando em abóbada, à semelhança de dois espectros negros que procuravam beijar-se, Regina parou.

— É aqui — disse ela, apontando para um cômoro de areia que se abaulava na base do rochedo —, é aqui, meu querido, que depositei minha grinalda de núpcias; ei-la…! Não vês…?

Regina havia de feito depositado sobre aquele cômoro sinistro sua pálida e já tisnada grinalda de bodas.

— Não a vês? — continuou ela. — Murcha, amarelada e triste, como tem estado até hoje o meu coração. Tem um salpico de sangue, não vês…? Não sei que mão fatal, que punhal surgido do inferno ou descido do céu feriu de morte meu marido no momento em que ia desatar-me da fronte esta grinalda…

Rodrigo estremeceu; atassalhado de remorsos, esqueceu-se do amor, não viu mais a encantadora beleza que lhe falava, e, com os olhos desvairados, a fronte inundada em gélido suor, esperava ver surgir a cada momento dentre aqueles penedos a sombra ensanguentada de sua vítima. Mas as meigas palavras de Regina imediatamente vieram acalmá-lo.

— É que meu destino não queria que eu fosse dele — continuou ela apanhando a grinalda e pondo-a sobre a cabeça. — Meu coração tinha-te escolhido; eu devia ser tua, somente tua; a ti só e a mais ninguém competia desatar-me da fronte a grinalda virginal. Vem, meu querido, vem a meus braços, aperta-me nos teus…

Quem resistiria a tão fagueira e apaixonada provocação partindo de tão sedutora criatura…? Rodrigo, ébrio de ventura e de amor, atirou-se aos braços de Regina, e apertou-a contra o peito, mas em lugar de um suspiro de amor, escapou-lhe do peito um grito agudo e doloroso. A lâmina de um punhal lhe havia atravessado o coração…! O mísero mancebo rolou na areia, estrebuchou um momento, e expirou.

— Estás contente, meu marido?! — bradou a fada horrível com os olhos chamejando em júbilo infernal. — Eis aqui, tem a teu lado um de teus assassinos. Os outros hão de vir, eu te afianço, e aqui mesmo hão de morrer da mesma morte. Juro, juro, juro três vezes…!