I


        Marciana

Nem pense que a menina não possa vir mudar!
São moléstias de moça que cuida em namorar.
E mesmo...

        Mariana

Qual! Comadre!

        Marciana

Não creia que o João
Lhe vote amor sincero de todo o coração.
São meros passatempos da vida de rapaz,
Isso, naturalmente, qualquer um homem faz.

        Mariana

Mas consentir não posso que um pardo, um leguelhé,
A namorar se arroje a quem desigual lhe é.
Me sustento de esmola, moro em velha cabana,
Sou pobre, miserável; mas hei de honrar aos meus;
É este o meu desejo, comadre Marciana;
P'ra mim não quero nada, me basta o amor de Deus.

        Marciana

Não lhe digo o contrário. Confie em sua neta,
Izabel é tão branda!

        Mariana

Daquela carrapeta
Quem for atrás se arranja. — Mas venha cá comadre,
Chame Izabel de parte, faça papel de padre;
Vá dar-lhe alguns conselhos; que o tal amor a deixe;
Que não seja tolinha...

        Marciana

        Que o amor é como peixe,
Lhe estou dizendo agora...

        Mariana

Pois vá cortar a linha
Que ao torto anzol agarra; não é sua madrinha?
E desatou a velha num berreiro
Que até os cães uivaram no terreiro.
Marciana jamais consentiria
Que aquele amor vingasse; mas dizia
— Baseada em seu tempo de donzela —
Que era simples namoro, bagatela.


II


Enquanto se mordia a estulta velha
Nuns cômicos transportes de pesar;
Izabel, a divina, a santa abelha,
Servia o amargo mel do verbo amar.

Despira o corpo todo, contemplava-se
E nada possuía neste mundo.
Oh não! Engano é isto meu profundo...
Quanto mais se despia, mais amava-se...

Tudo, tudo possui a virgem pura
O céu, o mar e Deus, e Deus também
Escraviza-se a santa criatura
— Exemplo: a manjedoura de Bethlem.

Tinha raiva dos fios do tecido
Que lhe cobria as carnes moreninhas;
Como outrora o profeta, o seu vestido
Rasga e pisa, estraçalha em mil tirinhas.

Esbofeteia as faces delicadas,
Escarra no espelho o vulto seu;
Macera as santas carnes com pancadas.
Puxa os crespos cabelos cor de breu.

Tem vontade de abrir a fechadura
E atirar-se correndo pela rua,
Esquecendo o pudor e a candura;
Mesmo assim como está chorosa e nua.

E suas companheiras? Miseráveis,
Escarnecem da pobre moça branca
Que se prende de um pardo aos tons afáveis
Suspendida do amor pela alavanca.

Os mimosos sapatos tira e puxa
As delicadas meias cor de rosa.
Mais livre de roupagens, mais debuxa
Sua estátua gentil, mas lacrimosa...

Mas pisando no chão estremeceu
Ao contacto da lívida umidade,
E foi caindo em si... Depois ergueu
O que longe rojara a iracidade...

Ao mesmo tempo ouviu a voz rouquenha
Do esquálido Chiquinho, corroído,
Que queimara-se ao fogo como a lenha,
Era carvão bem sujo e denegrido.


III


        Depois abrindo a porta,
        Foi descobrindo o moço
        — Um conjunto de osso,
        Mas que de amor se importa. —

        Há muita coisa torta.
        Há pigmeu colosso,
        Há templos calabouço,
        E crime até que exorta!...

        Na festa, o bacorim
        Nem traz à mente a idéia
        Da lama suja e ruim...

        Assim, enxerga a dêia
        No moço um querubim!...
        — Pobre gentil tetéia!


        Iza

Eu preciso de ti, meu bom, leal Chiquinho!
Quer do bem, quer do mal conheces o caminho...
A minha santa avó, parece estar maluca,
Não quer em sua gente a casta mameluca...
        Quando me ensinaram geografia
Me disseram que lá n'amplidão fria
        Todos os astros não são sóis;
Que lindas estrelas para nós,
De perto menos brilham do que a Lua:
        A luz que elas têm não é sua;
Além disto mui diversos astros
Se reclinam do céu nos negros lastros;
        E quantas árvores diversas
São do mesmo chão juntas imersas!
Carne e osso, brancura e rigidez,
        O vermelhão e a palidez,
Só dividem-se ao golpe da morte.
A neve e a montanha, o fraco e o forte,
        Eternamente dormem juntas...


        Chico

        Só as frágeis cabeças bestuntas
Se atrevem a cortar fios bem feitos,
        Lícito amor, laços estreitos
Co'a foice enferrujada — os preconceitos...


Iza

Oh protege-me, pois, mancebo inteligente...
Foi naquela manhã que foste a Mecejana,
Que esta filha sem pais, que adora Marciana,
Sentiu da tempestade o raio onipotente.

Era noite em minha alma. O sol já do nascente
Tinha acendido a luz. Também a pobre humana
Sentiu nos olhos seus a chama desumana,
Mais quente do que o sol... porque não tem poente!


Chico

E esse marceneiro, o tal Senhor João
Saberá compensar-te o amor que lhe dedicas?
Teu sol também queimou seu rijo coração?


Iza

Nem eu consinto dúvida!


Chico

        E eu... sou um Maricas,
Um protetor de amores?!


Iza

        Não gracejes, não!


Chico.

Jamais! Tu dás-me um beijo, arranjo as tuas tricas.

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À proporção que Iza lhe falara
O olhar e o coração se incendiara...
Oh! Mas bela atracou o tal Chiquinho...
Tão rijo bofetão deu no focinho,
Por ter audácia de pedir boquinha...
Dá co'a múmia no chão, quase espezinha,
Se não o acode rápido a Maria.
        E o sem vergonha ria!