À luz da sua correspondência editar

O nosso tempo tem, e com muita razão, um verdadeiro enthusiasmo, pelo genero especial de litteratura constituido pelas correspondencias, pelas memorias, pelas notas e observações colhidas dia a dia, por estas confissões involuntarias, sem fito feito, que mais que nenhum outro trabalho intellectual nos desnudam o segredo da psychologia humana.

Muitas correspondencias, que n'estes ultimos tempos teem visto a luz, mais serviriam para diminuir os seus auctores de que para os engrandecer no espirito da posteridade. Em compensação outras ha, que vieram mostrar a uma luz bem mais favoravel, bem mais doce, aquelles que o mundo julgava com a sua proverbial e incuravel injustiça.

A este numero pertence a Correspondencia de Georges Sand.

Quando eu, sugeita como todas as mulheres aos desfallecimentos da alma, ás subitas e inexplicaveis tristezas, succumbo ao peso da Vida, tão hostil aos que pensam, tão dura e cruel aos que sentem muito, e pego em um d'esses volumes em que uma alma enorme de mulher conta dia a dia a historia do seu pensamento, sinto-me como que milagrosamente reconfortada.

A leitora n'este ponto pára um pouco surpreza e um pouco triste, não é verdade? E pergunta-me espantada:―Pois quê?!... Tem esta opinião a respeito de Georges Sand?

Seria longo e seria melindroso entrar a este respeito em minuciosas explicações.

Diante d'esse genio assombroso que para o mundo se chama Georges Sand, eu não indago as fraquezas que macularam tristemente uma parte da vida intima da mulher que tinha por nome de familia Aurora Dudevant.

Na sua Correspondencia, escolhida por mãos piedosas, expurgada de todas as recordações impuras d'um passado, que a grande mulher expiou nobremente e longamente, não ha um reflexo, senão muito longiquo e apagado, das luctas tremendas, das tragicas luctas que se deram n'esse espirito revoltado e extraordinario.

Porei portanto de parte considerações de uma ordem extranha ao assumpto que trato, ao vir transplantar para aqui as notas que a leitura da Correspondencia de Georges Sand me arrancou irresistivelmente.

E de resto, que pode haver de mais interessante para um espirito de mulher, obscuro e humilde embora, do que as confidencias d'uma mulher de genio? E se pensarmos que o genio não é mais que o maravilhoso poder da condensação concedido a um cerebro humano, a faculdade de synthetisar em si as impressões e as sensações de muitos, e de formular com eloquencia e verdade, para todos comprehensiveis, as paixões e os sentimentos da multidão anonyma,―comprehenderemos, ao penetrar na vida interior d'esses seres privilegiados, que nada do que os faz sentir, palpitar e soffrer, nos é extranho a nós.

Sentimos, talvez em gráu menos intenso, tudo que elles sentiram; o que nos falta é a palavra inspirada e verdadeira com que o possamos exprimir.

É sob este ponto de vista, particular, que as cartas de Georges Sand nos interessam tão vivamente.

Lacrimosas e repassadas de angustia, palpitantes de indignação e de revolta, resignadas e entristecidas depois, como que envoltas na pacificação melancolica do crepusculo da vida, e tendo a serena magestade e as linhas ondulantes e suaves das paizagens outoniças, respira-se n'ellas a verdade, a espontaneidade mais sincera, a mais natural despretenção.

Ser sublime, sem nunca deixar de ser simples; aspirar continuamente aos mais altos pincaros do pensamento, attingil-os muita e muita vez, e não ter nunca a consciencia da propria grandeza, a vertigem da propria elevação, antes conservar-se, atravez de tudo, humilde, ignorante do seu valor e como que impregnada de um vago aroma de bonhomia rural―eis o encanto mais singular d'esta mulher singularissima.

Nenhuma, entre as que deixaram na historia do espirito humano um rastro luminoso, lhe é superior; emquanto que ella, na complexidade da sua opulenta organisação, tem de todas um traço caracteristico.

Ha n'ella, como em Madame Rolland, o amor enthusiastico da liberdade, a paixão robusta da justiça, o sentimento ardente e viril da democracia; no emtanto, mais feminil que Madame Rolland, ella teria lagrimas e gritos de piedade, e accentos de enternecida eloquencia, para salvar das garras do algoz a bella cabeça patricia de Maria Antonietta.

Tem, como a Sevigné, a ternura maternal senão absorvente e exclusiva, pelo menos penetrante de carinho, e cheia de engenhosas e subtis delicadezas.

Como a Stael, adora as letras, devora-a a curiosidade de todos os segredos da intelligencia, professa a altivez intransigente e desdenhosa, em face das tyrannias brutaes.

Advoga continuamente, como Madame de Recamier, a causa dos vencidos, concilia os odios, pacifica as divergencias, implora com incansavel constancia a favor de todas as victimas e embebe-se na doce utopia de um mundo, onde todos se amassem e se abraçassem, e tivessem, como premio supremo da lucta de tantas gerações de martyres, a fraternidade, a paz universal.

Como Georges Elliott, a grande romancista ingleza, tão humana e tão natural, ella estuda de preferencia os simples, os humildes, os obscuros, e encontra n'essas organisações rudes e inconscientes os mais reconditos thesouros de bondade e de amor.

Porem o que a especialisa e distingue d'entre todas, o que lhe dá o cunho d'uma superioridade incontestavel, o que a faz do nosso tempo, e lhe conquista as sympathias da nossa geração,―é a sua viva e fecunda comprehensão da Natureza em todos os seus aspectos, e o seu tão sincero e tão moderno naturalismo em face das paixões irreprimiveis da humanidade ou das bellezas santas e pacificadoras da terra.

Paizagista adoravel, nunca nos dá em termos technicos, e de uma precisão de botanico ou de geologo, a descripção minuciosa do que vê.

É incontestavelmente melhor o seu processo artistico, em que peze aos sectarios fanaticos da escola descriptiva.

O que ella nos dá, com uma riqueza de linguagem em que nenhum mestre a excede, com uma poesia penetrante e evocadora que só póde comparar-se á de Michelet, é a robusta, a sádia, a profunda, a deliciosa impressão que recebe dos mil variados aspectos da natureza physica.

Nos seus livros respira-se o aroma resinoso dos pinheiraes alpestres; a frescura dos regatos sombrios onde a pervinca humedece o azul dos seus olhos pequeninos, e avelluda o verde escuro da sua folhagem lustrosa; a melancolica doçura das florestas gorgeiadas de rouxinoes; o idyllio suave das campinas humildes; o cheiro do feno e dos trigaes floridos; a acre respiração que sahe dos flancos da terra humida, dilacerados pelo ferro da charrua...

Ha nas paginas d'ella a estridula alegria victoriosa das auroras escarlates; a languidez voluptuosa e electrica do meio dia abrasado, quando uma sêde infinita contorce em espasmos de febre tudo que respira e vive; a tristeza, dilacerante e intensa como um adeus, da hora do crepusculo; a immensa paz cariciosa, protectora e calmante, das silenciosas noites!...

Quem melhor de que este coração tão eminentemente feminino sentiu e communicou aos que a leram, as delicias de que a terra, a nossa eterna Amiga, é tão prodiga, para os que entendem as harmonias ora vibrantes ora enlanguecidamente morbidas, ora de uma intensidade perturbadora, da sua orchestra colossal?

Se mais nada lhe devessemos alem d'esta iniciação sagrada, era enorme ainda assim a divida contrahida por todos nós com a nossa grande e gloriosa irmã.

Mas devemos-lhe mais alguma cousa, e ha n'esse alguma cousa um vasto alcance moral. Devemos-lhe a alta licção que ella nos deu, trabalhando sempre, trabalhando sem um dia de afrouxamento ou de cançasso, perdoando aos que a encheram de injurias e de insultos, sem uma só tentativa de retaliação ou de vingança, sem um grito de raiva, sem uma interjeição de furor. A qualidade predominante d'este caracter, fraco ás vezes, vacillante no seu caminho, e de uma indecisão devida ás influencias que actuaram na sua juventude desamparada de toda a luz moral, é apezar de tudo, é atravez de todos os erros que lhe sombrearam para sempre a memoria, a mais completa bondade, desartificiosa e simples. Bondade immensa, bondade inextinguivel, que mais d'uma vez a transviou, mas que teve a força triumphante de a rehabilitar; bondade a que se devem as suas culpas, gravissimas é certo, mas tambem as suas raras virtudes, e entre ellas os thesouros, os mananciaes inexgotaveis da sua evangelica, ardente e apaixonada caridade.

Oh! a caridade! a doce virtude que a todas sobreleva, e cuja limpida corrente, nascida no humilde presepe de Bethlem, o mundo tem tentado em vão enlodar e corromper!... Flôr, que desabrocha luminosa e perfumada na alma dos que são bons, que os consola de tudo, até da ignominia a que os homens ás vezes os condemnam, e que tem,―como certos seixos côr de purpura que se apanham á beira do oceano, e que o oceano tem polido no eterno fluxo e refluxo das suas ondas tumultuosas,―o dom mysterioso de extinguir e apagar todas as maculas...

É possivel que a leitora condemne agora como um crime de lesa-moral, como uma contradicção inexplicavel e extranha, o meu enthusiasmo confessado por essa mulher, que foi um genio, mas que foi tambem uma enorme peccadora.

Eu peço-lhe porem que, antes de pronunciar a implacavel sentença que condemna a escriptora inimitavel, leia algumas das cartas adoraveis que ella escreveu, e com as quaes remiu, litterariamente, muitos dos peccados que não tracto aqui de conhecer nem de indagar.

O nosso tempo, grande em tudo, é grande principalmente pela tolerancia, pela equidade, pela bondosa indulgencia que o homem lhe merece.

Longe de vêr n'elle o criminoso irremissivel dos tempos da sombria escholastica, a victima fatalmente condemnada pelo peccado original ás chammas do inferno, ou ás chammas da fogueira, o monstro que se havia de deixar mutilar ou se havia de deixar perder, para quem a natureza e as suas forças indomadas eram outras tentações demoniacas, e que só podia ter perdão sob a condição barbara de ser anti-humano,―o nosso seculo, conhecedor de todos os segredos defezos aos seculos que o antecederam, só vê no homem o criminoso, quando lhe é de todo impossivel vêr n'elle o doente ou o vencido pela fatalidade das cousas.

Os seus grandes pensadores, herdeiros n'este ponto, de antepassados gloriosos que foram como que os prophetas da nova era, e que se chamaram Voltaire e Diderot, ensinam-lhe a não condemnar o reu, sem primeiramente o terem ouvido. Exigem mais ainda, para depois sentenciarem.

Exigem que se conheçam as influencias atavicas a que elle obedeceu, o meio em que se formou o seu caracter e se desenvolveu a sua educação, as circumstancias especiaes que na vida o rodearam, o conflicto que o destino estabeleceu entre as fatalidades que o arrastaram e o dever que se lhe impunha.

II editar

Não venho contar aqui, é claro, a vida de Georges Sand, que de resto, é sufficientemente conhecida. Não venho advogar a causa das suas paixões irregulares, que ella chorou com lagrimas de sangue, e que eu, pela admiração infinita que a grande mulher me inspira, quizera, á custa d'um sacrificio immenso, poder apagar da memoria de todos que a amaram. Era-me tão doce, poder levantar-lhe um altar no meu espirito, sem as dolorosas restricções que a sua desvairada mocidade me impõe!..

Eu queria vêr n'ella apenas os ultimos trinta annos da sua vida, illuminados pelo mais grandioso talento que ainda ardeu em cerebro feminino.

Não posso!..

Para que ella fosse a sublime desenganada, cuja palavra era uma lição, cujo conselho era um dogma, cujo sorriso doce e triste era feito de experiencias amargas e de decepções crudelissimas, era indispensavel que ella tivesse percorrido a Via Dolorosa, ferindo-se em todos os silvedos, precipitando-se em todos os barrancos, dilacerando os pés em todas as urzes da estrada!..

Lembremo-nos comtudo que Georges Sand, filha d'uma ligação irregular e portanto condemnada pela sociedade e pela familia; eternamente combatida entre dois poderes igualmente funestos―o primeiro, a avó voltaireana e sem crenças, o segundo a mãe, plebeia, leviana, inteiramente ignorante,―só poude sahir d'esta situação difficil, dolorosa, causadora de eternos conflictos, pela porta d'um casamento desigualissimo, um casamento que fatalmente a predestinava á desgraça.

Esse casamento fez d'ella―natureza superior, bella e robusta organisação artistica, espirito cultivado e grande―a quasi escrava de uma especie de bruto, sempre ebrio, incuravelmente grosseiro, de gostos baixos, de costumes iguaes aos gostos.

Nada d'isso a desculpa, bem sei. Eu não quero, nem devo desculpal-a. Sei que este virtuoso e sabio mundo impõe a cada mulher a facil obrigação de ser heroica, julgando-a muito feliz por lhe merecer depois um pouco de consideração banal, ou um grão de louvor condescendente!..

Mas a esta mulher em particular, dada a educação que ella tivera e o meio em que viveu por tanto tempo, quem podia dar-lhe forças para levar ao cabo a sua missão de sacrificio? Não tinha uns braços de mãe que a amparassem; um exemplo santo que a fizesse preferir a tudo o incompensado, o obscuro, o aspero dever! Não havia ao pé d'ella uns labios immaculados que a beijassem e lhe dissessem:

―Tem delicias austeras, tem voluptuosidades verdadeiramente dignas das que são grandes, o cumprimento do dever, por mais duro que elle seja. Vaes procurar a felicidade ás paixões ephemeras, que na ebriedade da sua febre romantica te pintaram os artistas e os poetas, cuja obra tem sido o alimento de tua vida interior? Olha que elles todos mentem! O que de lá trarás, do paiz das chymeras azues e das miragens enganosas, é uma sêde de ideal ainda mais ardente, é o tedio da vida ainda mais profundo e mais penetrante; é uma chaga aberta que só em longos annos de renunciamento e de velhice tu poderás sarar, mas cuja cicatriz, eternamente asquerosa, desformizará, para sempre, a formosura ideal do teu genio sublime!―»

Mas ai! ella era moça, tinha a sofrega curiosidade da vida; tinha lido os poetas da paixão; tinha-se contaminado d'aquella febre sensual, que se exhala, como um miasma putrido, dos livros ardentes de Rousseau. O periodo, de resto, era de delirio ardente. Gosar, eis o motte d'essa geração de desequilibrados, nascida d'um beijo entre duas batalhas sangrentas.

Quando ella voltou das suas primeiras excursões ao paiz maldicto onde se respira a malaria dos desejos insalubres, que immensa dôr inconsolavel se evola, como um aroma de morte, das suas tristes cartas!

«O meu coração envelheceu vinte annos! Já nada na terra me sorri! Para mim já não póde haver nem paixões profundas, nem vivas alegrias. Tudo está dito! Dobrei o cabo. Cheguei ao porto, não como esses nababos que regressam em redes de sêda, ao tecto de cedro dos seus palacios, mas como os pobres pilotos, que esmagados pelo cançasso, queimados pelo sol, deitam a ancora, para não exporem mais ao mar a chalupa avariada. Não têem de que viver em terra, e demais a terra aborrece-os. Tiveram antigamente uma bella vida, tiveram riquezas, aventuras, combates e amores. Talvez lhes fosse grato recomeçar... mas como se a embarcação está desmantellada e a carregação perdida?..»

Desesperada, na hora dos remorsos supremos, que os orgulhosos nem a si confessam, sentindo porventura essa dôr incomportavel, que deve ser o tedio de si propria, é a morte que ella chama com lamentos de uma incomparavel e poderosa melancolia.

E voltando depois, d'essa viagem que ficou celebre no mundo das letras, pelos formosos livros que produziu, pelos versos divinos que inspirou, voltando a Nohant, ao ninho humilde onde segundo ella propria diz, não póde viver mas onde a morte lhe será mais doce, murmura meigamente:

«Vim dizer adeus ao meu paiz, ás memorias da meninice e da mocidade, porque decerto comprehendes que a vida me é odiosa e impossivel e que é forçoso, absolutamente forçoso que eu morra.»

Oh! quem me dera poder citar largamente, d'essas cartas que resumem uma vida, e uma vida cheia, accidentada, agitada por todas as paixões que fazem pulsar febrilmente um coração de mulher, quem me dera poder citar todos os trechos adoraveis, que me arrancaram lagrimas!..

Sonhadora, que nenhum desengano conseguiu acordar; vizionaria, que nenhuma realidade chama á terra; ave enamorada, a que nenhuma queda parte as azas de enorme envergadura, ella vae sempre, pedindo ás amarguras dilacerantes de uma chymera impossivel, consôlo para as dôres sem nome que outra chymera lhe deixara...

Pisam-n'a? abandonam-n'a? Enganam-n'a? Que importa!

A vida prometteu-lhe a felicidade, e ella vôa, sem cançar nunca, atraz da sombra errante que lhe foge!

Allumiada, a intermittencias rapidas, pela cruel faculdade critica que é a sua superioridade e o seu martyrio, ella despenha por suas proprias mãos do pedestal marmoreo o idolo que as suas proprias mãos ali tinham erguido.

Que importa? Porque se enganára uma vez não é licito esperar que se engane eternamente.

A bella figura immaculada, que a sua phantasia imaginou, ha de vir; não tarda ahi; é mister que ella tenha todo o seu coração vivo e juvenil, para lh'o entregar, renascido das proprias cinzas.

E levantando-se mais vigorosa apoz o desfallecimento de todo o seu ser, e resurgindo mais apaixonada e mais crente da completa derrocada de todas as paixões e de toda E levantando-se mais vigorosa apoz o desfallecimento de todo o seu ser, e resurgindo mais apaixonada e mais crente da completa derrocada de todas as paixões e de todas as crenças, ella caminha insaciada e insaciavel, peccadora inconsciente, somnambula da paixão, ambiciosa sempre trahida d'essa chymera eterna que se chama amor feliz!

Mas em meio da carreira vertiginosa e febril ha duas forças que a chamam, ha dois poderes secretos que a redimem e a salvam.

A maternidade e o trabalho.

Então no seu horisonte nublado e tempestuoso ergue-se, a principio indecisa e dubia, depois purpurea, victoriosa, flamejante, a luz pura que vae illuminar a vida d'esse grande espirito transviado e enlouquecido.

Os homens pagaram-lhe, com insultos, o amor que, na sua fragilidade, ella lhes teve, mas o filho extremecido, preferindo o appellido glorioso que o genio de sua mãe lhe conquistara ao nome herdado de seu pae, deu-lhe n'este acto de adoração intensa e delicada a desforra de todas as humilhações, a victoria de todas as derrotas.

Mais tarde, no outomno tão purpureado de tons opulentos, da sua vida de trabalhadora intrepida, ella sabe com a palavra convencida e grave dos que soffreram, luctaram e venceram, incutir coragem aos que fraquejam, ensinar o caminho do bom e do justo aos que vacillam na escolha da sua estrada, dar animo, incentivo e applauso aos artistas, que succumbem ao desalento d'uma hora infecunda, ser ella propria um exemplo de força viril e de femenil ternura.

Os seis volumes da correspondencia de Georges Sand são como que a ascensão d'um espirito para a região luminosa da bondade, da justiça e do amor! Á proporção que a vida lhe declina―a pacificação, a doçura e a paz vêem descendo sobre o seu agitado espirito, até fazerem d'elle um exemplo de força e caridade, de resignação e de tolerancia.

«Quanto mais vivo, diz ella n'uma das suas cartas, mais profundamente me prostro diante da Bondade, porque vejo que é ella o beneficio de que o Senhor é mais avaro. Onde a intelligencia não existe, chama-se bondade ao que é simplesmente inepcia. Onde não existe a força, julgam bondade ao que é apenas apathia. Onde a força e a luz intellectual se encontram, é raro que se encontre tambem a bondade, pois que a experiencia e a observação produziram a desconfiança e o odio! As almas votadas aos mais nobres principios são tambem muitas vezes as mais acres e as mais rudes, porque as decepções as adoeceram para sempre. A gente estima-as e admira-as ainda, mas já não póde amal-as. Ter sido desgraçado sem deixar de ser intelligente e bom, faz suppôr uma bem poderosa organisação, e são estas as que eu mais procuro e mais amo.

N'um periodo caracteristico d'uma carta a Lammenais diz assim, com entristecida e commovedora franqueza:

«Mestre, ha n'este mundo atalhos pelos quaes os seus pés nunca passaram, abysmos onde o meu olhar mergulhou. Viveu com os anjos e eu tenho vivido com os homens e com as mulheres; sei como se padece, sei como se pecca, sei a immensa necessidade que existe d'uma regra, que torne possivel a virtude. Confie em mim, creia que ninguem a procura com mais desejo de encontral-a, com mais respeito pela virtude e com menos personalidade; porque eu não tentaria jámais palliar as minhas culpas passadas, e a idade já me permitte o encarar com placidez as tempestades, que palpitam e morrem no meu longinquo horisonte.»

A um dos queridos amigos da mocidade, tão piedosamente conservados até á velhice, ella escreve um dia, n'uma d'estas horas em que a verdade nos acode irresistivelmente aos bicos da penna, n'uma explosão de sinceridade cheia de lagrimas?

«Oh! como eu soffri n'esta vida, meu pobre irmão!.. E tu, sentes-te agora mais tranquillo?..

«Eu, por mim, tive um terrivel duello comigo mesma, um combate gigantesco com o meu ideal. Que ferida, que dilacerada, que ás vezes me senti!.. Agora vegeto docemente, placidamente. Pareço a mim mesma um cypreste que viça em cima d'um cadaver. Meu Deus! meu Deus! quantas lagrimas eu não contive! quantas queixas não suffoquei! quantas dôres sem consôlo eu guardei para mim só!..»

E n'outra carta, como que tirando a suprema conclusão dos sacrificios interiores, que se impoz pelo amor do bem, escreve d'este modo:

«Desde que sinto pezar por sobre mim a mão da velhice, experimento uma paz, uma esperança, uma confiança em Deus, que eu não tinha nas commoções da mocidade. Acho que Deus é tão bom, tão bom, por nos envelhecer, por nos acalmar, por destruir em nós o egoismo, tão aspero em quanto se é moço!.. E queixamos-nos de perder alguma cousa, quando a verdade é que alcançamos tanto, que as nossas ideias se ampliam e se tornam mais justas, e o nosso coração se faz mais vasto e mais doce, e a nossa consciencia victoriosa emfim, póde olhar para o caminho já percorrido e dizer: «Cumpri a minha tarefa, está perto a hora da recompensa!»

Comprehende-se que, em seis volumes, ha centenas de paginas que eu citaria com prazer, e que justificam amplamente o enthusiasmo, que n'este rapido artigo se revella. As cartas em que Georges Sand deixa transparecer, com divina eloquencia, o seu patriotismo de vizionaria, a sua caridade inexgotavel e ardente, a sua doce tolerancia para as fraquezas humanas, o seu genio simples e bom, feito de sinceridade e de ternura...

A indole porem d'estes estudos não comporta tamanhas delongas, e na impossibilidade de citar tudo, quasi que acho preferivel não citar nada. A tentação todavia arrasta-me ainda a transcrever para aqui, ao acaso, mais alguns trechos caracteristicos:

Quando a França parece querer suicidar-se nos excessos selvaticos da Communa, quando todos se curvam desalentados ao pezo da mesma dôr impotente, ella, a valente mulher, exclama cheia de fé:―«Sinto me fluctuar ao acaso sobre as vagas, mas buscando a terra, porque sei que a terra existe, e que tudo lá vae dar fatalmente.

«A verdade, o bem não são mentiras; basta que a gente os sinta viver dentro de si propria, para ter a certeza firme de que elles existem no coração da humanidade.»

E quando Flaubert, nas suas explosões de epileptico, lhe mandava em cartas que tambem estão publicadas, mas que são incontestavelmente inferiores ás cartas d'ella, os seu lamentos pueris ácerca dos males imaginarios que o torturam, Georges Sand, a martyr de tantas agonias, em vez de rir-se desdenhosamente d'essa velha creança, que, a tanto talento juntava tão extraordinarias fraquezas, tracta, pelo contrario, de combater o soffrimento que a sua alma intrepida nem concebe, e explica-lhe d'este modo o ideal da sua velhice.

―«Amar sempre, sacrificar-se continuamente, não reassumir a posse de si proprio senão quando o sacrificio já não seja necessario áquelle a quem se consagra, e sacrificar-se ainda, na esperança de servir a unica cousa verdadeira que ha n'este mundo―o amor!

«Não fallo aqui da paixão pessoal, fallo do amor da raça humana, do sentir que cada ser amplia até aos outros seres! Esse ideal de justiça, de que tu me fallas, nunca o poude comprehender separado do amor, visto que a primeira lei, para que uma sociedade natural subsista é a que faz com que os membros que a compõem se sirvam mutuamente e mutuamente se amem. Chama-se nos animaes instincto este concurso de todos para o mesmo fim; nos homens, porem, deve chamar-se amor; quem se subtrahe ao amor subtrahe-se á verdade e á justiça.

«Lamento a humanidade; quereria vêl-a boa porque não posso separar-me d'ella; porque ella é eu; porque o mal que ella se faz a si me fere o coração; porque a sua vergonha me faz corar; porque os seus crimes dilaceram as minhas entranhas; porque não posso comprehender o paraizo na terra ou no céo para mim sósinha.»

E como o grande escriptor de madame Bovary, na sua eterna lucta contra o que elle chama a bêtise humaine, continúa a expandir-se em manifestações colericas que irritam quem lhe lê as cartas, Georges Sand, sempre serena e doce, sempre maternal, responde-lhe:

«Quanto mais desgraçado és, mais eu te quero!

«Como te apoquentas, como te affliges com a vida!.. Porque, no fim de contas, é da vida que te queixas. Ella nunca foi melhor em tempo algum, para ninguem! A gente sente-a mais ou menos, comprehende-a mais ou menos, soffre por causa d'ella mais ou menos, e quanto mais adiantado está em relação á epocha em que vive, mais tem de padecer em resultado d'essa desharmonia.

«Passamos como sombras sobre um fundo enublado que o sol apenas rompe em raros instantes, e chamamos incessantemente por esse eterno sol que não póde allumiar-nos. Está em nosso poder affugentar as nuvens...»

«Tens demasiado amor pela litteratura; ella ha de matar-te sem que tu consigas matar a tolice humana. Pobre tolice humana! Eu não a detesto como tu. Pelo contrario! Olho para ella com olhos maternaes, porque a considero uma infancia, e toda a infancia é sagrada para mim! Que odio que lhe votaste! que enorme guerra lhe fazes! Tens intelligencia e sciencia de mais; esqueces-te de que ha alguma cousa superior á arte, e essa cousa chama-se sabedoria, da qual a arte no seu apogeu é apenas a expressão simples.

A sabedoria comprehende tudo: o bello, o verdadeiro, o bom, e por conseguinte o enthusiasmo que d'elles derivam. É ella que nos ensina a vêr fóra de nós, alguma cousa de mais elevado que o que está em nós, e a assimilal-o pouco a pouco pela contemplação e pela admiração. Mas eu nem sequer conseguirei fazer-te comprehender bem o modo pelo qual encaro e percebo a felicidade, quer dizer a acceitação da vida tal qual ella é.»

Quem não sentirá sympathia por estas palavras de fé, de pacificação e de conforto! De quantas dôres superiormente supportadas, de quantos erros expiados d'um modo sublime, se compõe esta serenidade augusta que dá a velhice de Sand uma grave e encantadora magestade.

E ao par d'estas graves lições de alta moralidade, d'estas lições que reconciliam com a vida o espirito mais dolorido, mais inquieto e mais revoltado, encontram-se aqui e ali phrases encantadoras d'uma graça femenil deliciosa e fina. «Quando eu tiver exgotado a minha taça de amargura, hei de então levantar-me. Sou mulher, tenho ternura, tenho piedade, e tenho impetos de colera. Não terei nunca a serenidade d'um erudito ou d'um sabio!.. «Os fortes são aquelles que não amam! Não serás nunca um forte e ainda bem!»

«Sou ainda, senão necessaria, pelo menos extremamente util a todos os meus, e emquanto houver em mim um sopro da vida, hei de pensar, trabalhar, soffrer por elles!» ... «Já não tenho tempo de pensar em mim, de scismar em cousas desanimadoras, de desesperar da especie humana, de olhar para as minhas proprias dôres e para as minhas alegrias passadas e de chamar a morte. Olha, se a gente fosse egoista era o caso de a vêr chegar com alegria; é tão commodo dormir para sempre, ou accordar para uma vida melhor! Mas para quem tiver ainda de trabalhar, a morte não deve chegar antes da hora em que o extenuamento completo nos possa abrir as portas da liberdade.» ... «Não sejas fraco! então?! Devemos o exemplo da nossa força moral a todos que nos cercam e podem ouvir-nos! E eu?! Julgas que eu não tenho tambem necessidade de auxilio e de amparo, na minha longa tarefa ainda por concluir?

«Pois não tens amor a ninguem, nem sequer á tua velha amiga, que sempre canta, e chora muitas vezes, mas que se esconde para chorar, como os gatos se escondem para morrer?.. »

Estas cartas a Flaubert são todas d'uma graça maternal, d'um encanto affectuoso que conforta e fortifica. Depois de se terem lido, a gente sente-se envergonhada de succumbir a meio do caminho, de se lamentar egoista e puerilmente, porque a vida é triste e incompleta, e cheia de aspirações e de esforços vãos!

Para Georges Sand a vida, dura e inhospita como lhe foi, a vida que segundo ella propria confessa lui a manqué de parole muitas vezes, muitas vezes a fez sangrar por todos os póros da sua carne, muitas vezes a dilacerou e abateu, nunca logrou prostral-a.

Tinha―dom raro e milagroso que constitue a unica superioridade d'este mundo―tinha a faculdade da eterna renovação que a natureza empresta a raros eleitos seus.

Mon coeur mille fois brisé et toujours heureux de vivre―dizia ella aos setenta annos, definindo, d'este modo profundo e brilhante, o seu coração de valente e de luctadora, tão energico e tão meigo, e dando-nos assim o segredo de seu genio cheio de contrastes, illuminado por todos os esplendores, obscurecido por todas as sombras, opulento e suave, risonho e melancholico, impetuoso e terno, bom sobretudo, bom como a grande natureza sua inspiradora e sua mãe, sua confidente na mocidade agitada, sua amiga na serena velhice.

Confidencias d'um apaixonado coração de mulher, que teve na amisade os ardores e os extremos que outros, nem nos amores sabem ter; despretenciosas lições de arte, de litteratura e de bom senso; conselhos d'uma delicadeza penetrante, d'uma alteza de pensamento maravilhoso; descripções formosissimas; palavras de caridade e de conforto; doces expansões de amor materno; profissões eloquentes, e singelas ao mesmo tempo, de tolerancia, de benevolencia universal, de religiosidade profunda e intima, quasi que instructiva, de amor da humanidade elevado ás sagradas proporções d'um culto;―eis o que nos dão essas cartas soberbas, superiores talvez pela significação e pela verdade a toda a obra da prodigiosa romancista.


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Será a vida de Georges Sand um exemplo a apontar-se? É claro que não, e que ninguem, d'este rapido esboço critico, póde deprehender tal absurdo. O genio, porem, tem attenuantes excepcionaes para os seus excepcionaes desvarios.

E se a obra da grande escriptora nos deixa ás vezes entristecidos e descontentes, se a sua mocidade nos desola como uma pagina lamentavel da vida dos grandes entendimentos, as suas cartas reconciliam-nos com ella, e são os seis volumes das suas cartas que eu recommendo a todos os que me lerem.