Alguns Homens do Meu Tempo/Os irmãos Goncourt

I editar

Um dos defeitos, ou, se preferem, uma das virtudes do nosso tempo é a curiosidade.

Somos curiosos de tudo; descemos ás minuciosidades mais microscopicas, e subimos ás mais altas generalisações. Nada eguala o cuidado attento com que reunimos os documentos dispersos, que devem conduzir-nos á acquisição de uma verdade qualquer, senão o poder de synthese com que sabemos, do encadeamento de todos os phenomenos, tirar a lei que os explica, relaciona e domina.

Em cada ramo do pensamento humano se revella, por todos os modos, a nossa insaciavel e inquieta curiosidade.

A litteratura está, como todas as mais manifestações da actividade physica ou mental do homem, subordinada a esta tendencia tão moderna do nosso espirito. Os livros hoje interessam-nos principalmente, por nos revellarem o machinismo interno de quem os escreveu, e atravez d'elle o homem, com as suas contradicções e desordens mentaes, com os seus desequilibrios, fraquezas, vicios e virtudes.

A critica tornou-se uma especie de romance historico, muito mais interessante que os romances da imaginação.

Para conhecermos os homens, e d'entre os homens o escriptor,―quer dizer, aquelle que mais deve ter condensado em si todas as energias intellectuaes do seu seculo― pegamos nos seus livros e analysamos miudamente, scientificamente, anatomicamente essas creações vivas que elle nos legou.

Cada livro é um orgão ainda palpitante do corpo que estamos dissecando.

Não nos contentamos, porém, com o livro, desde logo destinado pelo seu auctor a ser lido e interpretado pelo publico.

Queremos, exigimos, muito mais. As cartas, os diarios posthumos, as confidencias involuntarias, pelas quaes a alma se manifesta irresistivelmente, nas suas particularidades, nas suas idyosincrasias, eis o que hoje nos satisfaz.

É extraordinaria a indiscricção com que temos ido rebuscar todos os documentos do passado, para encontrarmos n'elles a alma occulta, a vida mysteriosa e latente.

N'esse ponto, temos tido como instrumento maravilhoso de investigação e de critica, o nosso proprio scepticismo, o nosso dilletantismo tão moderno, pelo qual nos é facil penetrar em todas as epochas, comprehender todas as civilisações e assimilar todas as idéas, ainda as mais oppostas e as mais extremas.

O passado, porém, já nos não basta. O homem do passado não é o homem d'hoje. O seculo XVII não pensa como o seculo XVIII, do mesmo modo, porque o nosso seculo não pensa como qualquer dos dois.

A alma contemporanea é bem mais complexa. Dizem que o cerebro moderno tem mais circonvoluções. Pudera! Se elle tem por força muitas mais idéas. Tem todas as que tinham os seus antecessores, e mais aquellas de que fez a acquisição por seu esforço proprio.

E depois sabe muito, sabe de mais, este endemoninhado seculo! Não ha coisa que não fôsse desenterrar para sobrecarregar mais e mais a memoria e a consciencia.

Os que estão acima do nivel vulgar, os que por sua desgraça, pensam, julgam e criticam, são todos mais ou menos hystericos. Ha uns requintes doentios, uma etherisação morbida, um excesso de actividade cerebral no homem da nossa geração, que fôram inteiramente desconhecidos n'outras epocas mais equilibradas e mais sadias. O systema nervoso desconjunta-se-lhes á força de o terem em continua e dolorosa vibração. D'aqui as oscillações e os desequilibrios fataes de todo o mechanismo interno.

Penetrarmos o porquê d'essas aberrações, que nos surprehendem e desorientam nos que são grandes pela imaginação e pelo talento, eis um dos nossos eternos e justificaveis apetites.

É esse que nos leva a devorarmos tudo que são autobiographias, memorias, correspondencias, indiscricções litterarias, sejam de que genero fôrem. As cartas de Julio de Goncourt, o Diario dos dois irmãos, ultimamente publicado por Edmond de Goncourt, fôram, portanto, e estão sendo, objecto da maior curiosidade da parte dos gourmets litterarios de toda a Europa, e não sei se da America tambem.

Os dois Goncourt, por muito tempo desconhecidos e negados, são hoje, finalmente, considerados como os continuadores do pensamento de Balzac, sob uma fórma litteraria, mais artistica, mais requintada, mais tourmentée que a do grande romancista da Cousine Bette.

N'este exercito, cujos generaes se chamam Flaubert, Zola, Daudet,―são os Goncourt que vão na vanguarda, desbastando a grande floresta, em que Balzac foi o primeiro a penetrar, com as suas passadas de gigante e a força herculea do seu machado de explorador.

Esta geração começa a perceber quanto deve a Balzac; e é realmente honroso para ella, pagar emfim a divida que os contemporaneos d'esse escriptor assombroso, tão grande como Shakespeare, deixaram de solver!

Se os Goncourt são os precursores da escola chamada naturalista, e cuja paternidade se attribue injustamente a Flaubert, é fóra de duvida que elles, o proprio Flaubert, Zola, Daudet, e alguns discipulos d'estes, são apenas os filhos espirituaes de Balzac.

Elles são incontestaveis e distinctos artistas; elle era o Genio.

Cada um d'elles tem a sua accentuada individualidade propria. Um, a analyse impessoal, outro a amplificação e a força brutal e desregrada; este a sensibilidade feminina quasi doentia; aquelle a fina intuição psychologica, a visão interior n'um grau de lucidez estranho.

Todos, porém, procedem do Mestre.

O seu largo sôpro creador penetra-os e inspira-os a todos. Nenhum d'elles teria a magistral perfeição technica da fórma e a comprehensão ampla do assumpto que tractam, na altura em que a possuem, se o auctor da Eugenie Grandet, do Pêre Goriot, e de tantas obras immortaes lhes não tivesse ensinado o caminho a seguir.

Os Goncourt, todavia, sendo os primeiros que se filiaram, sob uma fórma diversa, na escola iniciada pelo genial creador da Comedia Humana, nem por isso são os mais conhecidos e os mais apreciados. Só uma limitada élite intellectual seguiu com profundo interesse o trabalho d'estes irmãos gemeos em litteratura.

Duas qualidades predominantes os distinguem. A finura subtil e delicada da analyse e a linguagem que á força de trabalhada adquiriu uma fluidez, uma flexibilidade, uma sinuosidade ondeante, uma transparencia crystalina, uns tons, uns cambiantes, umas côres que a tornam apta para notar e traduzir a impressão mais fugitiva, ou mais rara, o traço mais leve, a sensação mais incoercivel, a sombra mais impalpavel do pensamento, ou do sentimento humano.

Por estas duas qualidades se percebe já que os Goncourt não poderão nunca ser uns escriptor Por estas duas qualidades se percebe já que os Goncourt não poderão nunca ser uns escriptores populares. Só os delicados se comprazem n'estas subtilezas da idéa e da fórma.

O que n'elles porém avulta a todos os olhos, é este phenomeno raro de identificação, que fez de ambos um só, sem que possa de modo algum descriminar-se a parte em que qualquer d'elles concorreu para o trabalho commum.

Edmond de Goncourt, quando perdeu o irmão mais novo, que estremecia como uma porção da propria vida, como um membro do seu corpo, ou uma parcella indivisivel da sua alma, ficou por largo tempo emmudecido, no lethargo que succede aos grandes abalos da sensibilidade.

Sahiu d'esse estado, porém, e escreveu entre outros livros, muito inferiores em todo o caso aos que tinham sido collaborados por Julio, um estranho livro, que é necessario lêr attentamente, para que se possa penetrar até certo ponto no segredo da maravilhosa união intellectual, que fazia um só escriptor dos dois escriptores mais requintados e mais vibrantes da moderna litteratura franceza.

Chama-se Les frères Zenganno este livro que, á parte a linguagem, não tem a meu vêr outro merito positivo que não seja a revelação ou antes a critica d'esse phenomeno psychico-litterario de que acima fallámos.

Les frères Zenganno são dois clowns, que trabalham sempre juntos, conseguindo, por um milagre de gymnastica, harmonisar e identificar os movimentos communs.

Percebe-se aqui a allusão ao trabalho litterario em que os dois escriptores consumiram a existencia.

Entremeiados, porém, na obra, um pouco extravagante e levemente phantastica, ha capitulos que são uma confidencia completa, e que mais do que tudo que eu podesse dizer, explicam o caso phenomenal que tanto interesse merece aos observadores, aos criticos e mesmo aos simples profanos da arte.

Oiçamos por exemplo este trecho:

«Os dois irmãos não tinham um pelo outro um simples affecto fraternal. Não. Estavam mutuamente ligados por laços mysteriosos, por affinidades psychicas, e isto apesar de serem de idades muito diversas e de caracteres diametralmente oppostos. Os seus primeiros movimentos instinctivos eram identicamente os mesmos. Experimentavam sympathias ou antipathias egualmente subitas, e quando iam a qualquer parte, sahiam do sitio onde haviam estado, tendo a respeito das pessoas que tinham visto uma opinião inteiramente similhante. Não só os individuos mas tambem as cousas, com o porquê irraciocinado do seu encanto ou do seu aspecto desagradavel, lhes fallavam do mesmo modo a ambos. Emfim, as idéas, essas creações do cerebro, cujo nascimento é d'uma phantasia tão livre, e que tanta vez nos espantam pelo «não sei como» do seu apparecimento, as idéas, de ordinario tão pouco simultaneas e tão pouco parallelas nas uniões de coração entre homem e mulher, até as idéas nasciam commum aos dois irmãos, que não raro, depois de uma pausa silenciosa se voltavam um para o outro para se dizerem a mesma coisa, sem que achassem explicação ao singular acaso que fazia encontrar nas suas boccas, duas phrases que formavam apenas uma só. Assim moralmente acolchetados um ao outro, os dois irmãos precisavam de confundir constantemente os seus dias e os seus serões, separavam-se sempre a custo, e cada um d'elles experimentava na ausencia do outro, o sentimento estranho, indefinivel de alguma coisa de incompleto e de mutilado.

«Quando um tinha sahido por algumas horas parecia que o que sahia levava para fóra o poder de attenção do irmão que ficára em casa, e que não podia fazer mais nada senão fumar até á volta do ausente.

«E se a hora annunciada para o regresso passava, o cerebro do que estava á espera, enchia-se de desastres, de catastrophes, de accidentes medonhos, de preoccupações estupidamente sinistras, que o faziam correr continuamente do quarto á porta da rua. De modo que só forçadamente os separavam; que um, nunca acceitava o convite que o outro não devesse partilhar; e que, relembrando todos os annos da sua existencia commum, elles só recordavam terem passado vinte e quatro horas completas, um longe do outro.

«É necessario, porém, accrescentar que, entre os dois irmãos, este estreitamento de fraternidade fôra feito por alguma coisa de mais poderoso ainda que tudo isto. O trabalho de ambos achava-se tanto e tão bem confundido, os seus exercicios de tal modo identificados, e tudo que elles faziam unidos, parecia pertencer tão pouco a qualquer dos dois em particular, que os applausos eram sempre dirigidos á associação e que nunca o par tinha sido separado na censura ou no elogio. Era d'este modo que estes dois seres tinham chegado ao ponto de constituirem um―e caso raro, quasi unico nas amisades humanas―de não terem senão um amor proprio, uma vaidade, um orgulho que o publico feria ou acariciava ao mesmo tempo em ambos.»

Foi trabalhando d'este modo, tão subtilmente descripto pelo ultimo que ficou, ferido e inconsolavel para sempre, que elles, fazendo da physiologia o novo instrumento do romance contemporaneo, e levando para os estudos delicadamente cinzelados da Historia o mesmo escrupulo de analyse e a mesma finura extraordinaria de processo, pintaram, desde Maria Antoinette a adoravel, sympathica, leviana e altiva rainha, até Germinia Lacerteux a pobre e humilde creada, victima inconsciente e fatal de um temperamento de hysterica; desde as deliciosas e corruptas amantes de Luiz XV, até á doce e graciosa Renée Mauperrin; desde as endemoninhadas cortezãs do seculo XVIII, até á austera e pensadora madame Gervaisais; conseguindo, ao par d'isto, pôr tanta da vibrante personalidade de ambos em toda a sua obra, que a gente reconhece-os em Charles Demailly, o homem de lettras, victima da sua propria delicadeza organica, e em dezenas de figuras, eminentemente modernas, que atravessam as suas paginas impressionadoras e tão intensas de vida.

Ninguem exprimiu com uma penetração mais intima do que elles, a nevrose contemporanea com todos os seus simptomas de depravação ou desequilibrio moral; a melancholia dos espiritos, exhaustos pelos excessos de actividade mental; as baixas miserias da experiencia quotidiana, tão cheia de catastrophes interiores e de angustias dilaceradoras e invisiveis.

Mas tambem ninguem, como elles, resuscitou, em mais garrida e rendilhada moldura, esse mundo galante, artistico, enfeitado, risonho, frivolo, vicioso e triumphante, que principia na orgia da Regencia e acaba na orgia da Revolução Mas tambem ninguem, como elles, resuscitou, em mais garrida e rendilhada moldura, esse mundo galante, artistico, enfeitado, risonho, frivolo, vicioso e triumphante, que principia na orgia da Regencia e acaba na orgia da Revolução.

II editar

Depois de Balzac, ou antes d'elle, talvez, o espirito que maior influencia exerceu no destino dos dois irmãos, foi Gavarni, o insigne caricaturista, o desenhador admiravel, a quem mais tarde elles erigiram, n'um livro de grande arte, um monumento de admiração reconhecida e terna e de critica verdadeiramente magistral.

Ainda os dois escriptores estavam como que encerrados na perfumada guarda-roupa d'esse seculo dezoito, que amaram tanto, resurgindo, com o seu poder de evocadores, as interessantes figuras d'aquelle mundo extincto, d'onde nós vimos todos, e que, tão diverso e tão distante é de nós, quando um acontecimento fortuito os fez travar relações com o artista, que mais profundamente sentiu e amou o tempo em que viveu.

Gavarni não comprehendia nem amava o passado. Como Balsac, cujas obras illustrou, o que elle amava, o que lhe prendia a attenção, o que lhe embebia amorosamente o olhar investigador, eram os typos que a cada instante acotovellava pelas ruas.

Os Goncourt fallando em Coriolis, o pintor da Manette Salomon, descrevem d'este modo saisissant o artista que se compenetra apaixonadamente dos espectaculos do seu tempo. Este pintor sente o que sentia Gavarni; o que os dois escriptores sentiram tambem mais tarde; e é d'este modo especial de encararem a arte que toda a obra d'elles deriva naturalmente.

«Vagueiava de um lado a outro de Paris, estudando os typos salientes; tentando apanhar na passagem, n'essa multidão enorme de transeuntes, a physionomia moderna; observando os novos signaes da belleza d'um tempo, d'uma epoca, d'uma humanidade; o caracter que se imprime como uma dedada de artista n'esses rostos agitados, febris, o caracter que marca e designa para a Arte; o aspecto exterior dos pensamentos, das paixões, dos interesses, dos vicios, das doenças, das energias d'uma grande capital. A sua curiosidade penetrava essas physionomias de civilisados, que levam o pensamento para tão longe do vago sorrir dormente dos Egyneos, da divina placidez grega; esses rostos devastados pelas idéas, pelas sensações, por todas as acquisicões da actividade moral do homem, extenuados pela complexidade das preoccupações, atormentados pela aspereza das carreiras, pelo trabalho insano, pela difficuldade e agrura do viver.

«E interrogava a expressão das pessoas atarefadas, que passam a correr pelo meio da rua, lembrando formigas n'um formigueiro, com um pacote debaixo do braço, ou um embrulho na algibeira, homens de miseria, que passeiam a sua fóme, em frente do balcão dos cambistas; physicos de larapio, escondendo a maldade do instincto, sob a femenilidade d'uma cabeça de imperatriz romana; figuras estranhas de inventores incomprehendidos, que vão ao acaso, monologando pelos passeios, com gestos inconscientes de actor.

«Estudava aquella belleza singular e espirituosa, a indefinivel belleza da mulher de Paris. Seguia as apparições imprevistas; as caritas irregulares e radiantes; as pequeninas creaturas estranhas, que desabrocham, como flôres, d'entre as pedras da calçada e que, de repente, desapparecem,―com o seu arzinho de costureiras, que vão amanhecer cortezãs―por uma porta humilde e escura, por uma escada ingreme e repugnante. E tentava analysar o encanto d'essas magras raparigas, que teem nas fontes como que o reflexo do candieiro da officina, pallidas das noites perdidas á costura, e como que vagamente torturadas pela nostalgia da preguiça e do luxo. Ás vezes debaixo d'uma touquinha muito pobre, dava subitamente, com uma graça requintada, uma expressão rara, um ar de suavidade martyrisada, de melancholia virginal, que a vida dos grandes centros, o refinamento das civilisações, o fim dos sangues empobrecidos parecem fazer cahir sobre o rosto das costureirinhas miseraveis. Uma vez levou na memoria, para um estudo que principiou no dia seguinte, o rosto da filha d'uma parteira, uma pobre pequenita lymphatica, tão mansinha, tão definhada, tão branca, com os olhos tão cheios de ceu, sob a sombra das pestanas, que fazia scismar n'um anjo doentinho.

«No seu intimo, n'aquella agitação dos seus passeios, havia um mal estar terrivel e indefinido, a inquietação que se apossa do homem abandonado pela religião da sua mocidade. Sentia-se n'esse momento critico, n'essa hora da vida d'um artista em que elle sente morrer dentro de si a primeira consciencia da sua arte; instante de duvida, de tortura contradictoria, de anciedade, em que, incerto a respeito de proprio futuro, hesitante entre os habitos de seu talento e a vocação da sua personalidade, elle sente agitar-se e estremecer dentro de si o presentimento de outras fórmas e d'outras visões, o começo de novos modos de sentir, de vêr, e de querer!...

O trabalho interior que, por este modo incisivo e brilhante, os dois Goncourt, aqui descrevem, fez-se n'elles, sob a influencia de Gavarni.

É mais raro do que parece este dom especial, que nos torna, por assim dizer, physicamente sensiveis ás fórmas, ás linhas, ao relevo e ás côres do que nos tem cercado desde a infancia....

Parece que o nosso tempo é aquelle que nós devemos saber pintar melhor.

Nem sempre.

Na arte, o mais difficil é traduzir as coisas simples, as coisas reaes, sem nos afastarmos da exactidão, e sem cahirmos na banalidade.

Pintar por exemplo o aspecto de uma rua; um grupo de gente do povo que conversa e gesticula; uma senhora que passa, bem vestida, discreta, envolvida muito prosaicamente no seu chaile de cachemira, distincta, fina e natural; pôr em attitudes expressivas e reaes duas porteiras que tagarellam; esboçar com rapidez frisante um decavé da Bolsa ou de baccarat que vae andando cabisbaixo, lugubre e banal; desenhar a dois traços um dandy de charuto na bocca e ar spleenetico; dar emfim o tom vivo, o destaque poderoso e ao mesmo tempo a nota exacta e verdadeira áquillo em que nós, nem reparamos já, á força de o termos visto milhares de vezes, eis um milagre que só realisam artistas consummados e organisações muito especialmente dotadas.

É muito mais facil ser phantasista do que ser verdadeiro, descrever a largos traços o pôr do sol por detraz de uma cordilheira gigantesca, do que pintar uma paisagem doce, simples, vulgar, que apenas se distinga pela doçura da luz, pela graça enternecedora e humilde da expressão.

A verdade de todos os dias parece impôr-se a todos nós, sentimol-a, vêmol-a, ella penetra-os por assim dizer: pois apezar d'isso tudo, tentemos traduzil-a artisticamente, e veremos depois que esforço, que condensação de vida intellectual, essa pequena coisa tão grande exige de nós!

Pois é positivamente, repetimos, esse dom possuido em alto grau pelo grande pintor de costumes do seculo XIX chamado Gavarni, que elle soube communicar aos dois irmãos Goncourt.

Os que duvidarem que leiam a lancinante, a dolorosa historia tão mesquinha e tão tragica, tão humilde e tão desoladora da creada Germinia; que leiam aquelle terrivel estudo chamado Charles Demailly, em que Julio de Goncourt como que advinha e prophetiza as torturas da sua vida de escriptor, e a agonia longa e martyrisante da sua morte de artista ambicioso e incontentado.

Muitas das cartas de Julio são dirigidas a Gavarni. Ha outras a Flaubert, a Paulo de Saint Victor, a Theofilo Gauthier, a Saint Beuve, á princeza Mathilde, a Zola, etc., etc.

Todas ellas explicam, esclarecem, commentam, illuminam, dia a dia, o trabalho constante que os dois irmãos proseguiram, até á morte do mais novo, atravez de todas as hostilidades da critica, da indifferença do grosso publico, do desdem de muitos, da ironia incredula, ou do pasmo ingenuo de quasi todos.

O amor da litteratura, este amor que nós, em Portugal, só por ouvirmos fallar d'elle, conhecemos incompletamente, amor que absorve, que encanta, que allucina e que mata por fim―como matou Flaubert, como matou Julio de Goncourt, como matou Balsac, como é muito provavel que mate brevemente Daudet―o amor da litteratura respira-se n'estas cartas com um perfume subtil que as embalsama, e que as impregna admiravelmente.

Póde mesmo affirmar-se que este amor é o maior que domina a vida dos dois irmãos, e que os faz vêr a vida nos livros e atravez dos livros.

E a cada obra bem feita, que sentido e sincero applauso! que vibrar de phrases sonoras traduzindo a admiração, o goso agudo da intelligencia satisfeita!

O estylo, isto que a nós nos parece apenas o instrumento mais ou menos perfeito de que a idéa se serve, e que a outros parece toda a arte, dá-lhes a elles, quando é cinzelado com o primor a que aspiram, prazeres comparaveis aos que nós, os que não commungamos n'essa religião da fórma, temos diante de um grandioso espectaculo da Natureza ou diante de uma sublime acção do homem.

«Ha no seu livro, diz Julio de Goncourt n'uma carta a Michelet, phrases feitas de luz, paginas inteiras de sol, epithetos que se respiram, idéas que fremem e palpitam sobre a haste das palavras!!»

Qual de nós tem esta viva impressão intellectual, tão delicada e subtilmente expressa aqui, ante a musica mais ou menos bella de um livro de prosa? E, no entanto, são incompletos todos os artistas da palavra que a não sentem. A palavra é tudo para o escriptor, visto que é o unico meio que elle tem de traduzir as variadissimas, as infinitas modificações do espirito humano. Os dois Goncourt fizeram do estylo uma sciencia, a mais complexa e requintada das sciencias. Comprehenderam e muito bem, que todos os doentios symptomas, todos os phenomenos pathologicos da alma moderna, todos os effeitos multiplos, inteiramente ineditos que na Vida produz a comprehensão morbida que nós temos da Vida, precisavam tambem de uma formula nova que os exprimisse.

Para as doenças recentes que o excesso da civilisação, o détraquement nervoso, as diversas aberrações cerebraes nos teem trazido, precisava-se de uma technologia ainda não sabida até hoje. A elles foi-lhes necessario encontrarem a arte de notar os sentimentos indiscriptiveis; de traduzir as imperceptiveis vibrações da alma; as mutações rapidas da sensibilidade; as delicadezas doentias de uma geração estragada pelo excesso da vida nervosa e cerebral. Julio de Goncourt conseguiu, pois, á custa de um trabalho mental exagerado e exclusivo que lhe custou a vida, dar á lingua franceza a subtileza, o nervosismo, a intensidade harmonica, a rapidez e a variedade de cambiantes que ella não tinha.

O estylo d'elle, ou antes o estylo dos dois irmãos, tem musicas e tons esbatidos, e perfumes agonisantes, e fremitos voluptuosos, e sobresaltos hystericos. Para lêr e apreciar a obra dos Goncourt é necessario ter como elles, os nervos vibrantes, o cerebro excitado, e a sensibilidade estranhamente irritavel.

Escrevendo a Zola, a respeito da morte de seu querido irmão, Edmond de Goncourt, dizia:

«A meu vêr, elle morreu do trabalho, morreu sobretudo da elaboração da fórma, da cinzeladura da phrase, do lavôr do estylo.

«Estou-o vendo ainda, pegar dos trechos que tinhamos escripto em commum, e que, ao principio, nos tinham satisfeito, e trabalhar n'elles horas e horas, tardes inteiras, com uma obstinação quasi colerica, mudando aqui um epitheto, pondo n'uma phrase o rythmo que lhe faltava, emendando uma expressão, fatigando, gastando o cerebro á procura d'essa perfeição tão difficil, ás vezes impossivel, á lingua franceza, na traducção das coisas e dos sentimentos modernos. Depois d'essa tarefa enorme, cahia para cima d'um sophá, moido pelo cançasso, e alli ficava um longo espaço de tempo, silencioso, a fumar.»

Balzac, que teve como nenhum dos discipulos que vieram depois d'elle, a larga, a profunda, a milagrosa intuição dos sentimentos que agitaram, moveram, convulsionaram, subjugaram o seu tempo; Balsac, que pintou os frescos collossaes e as deliciosas miniaturas, que soube fazer viver as suas eternas figuras, criminosas, sublimes e depravadas, cheias de odio ou cheias de amor, illuminadas pela chamma de todas as paixões, queimadas pela fornalha rubra de todas as cubiças insalubres, e que, não contente de personalisar, á grande maneira de Shakspeare, a Avareza, a Sensualidade, a Paternidade ludibriada e dolorida, a Amisade viril, os sentimentos fundamentaes do homem emfim, soube ainda penetrar nos refolhos mais reconditos da alma feminina, e colher ahi a fragil, a doce flor da melancholia, as tristezas silenciosas do amor trahido, as saudades, cuja raiz suga as forças todas de um coração solitario; Balsac, que foi muito maior que todos os modernos pelo pensamento proprio e pela vida dos seus personagens, não soube vencer, nem subjugar como elles as tyramnias da Fórma.

Foi tambem n'esta lucta titanica de que sahia, deitando um vapor denso e quente de todos os póros do seu corpo athletico, que elle consumiu e gastou a existencia.

A morte surprehendeu-o quando, no seu ultimo livro, a Cousine Bette, elle tinha emfim alcançado uma victoria decisiva e tinha quasi achado a formula, que o podesse contentar.

A verdade é esta: ha escriptores para a maioria do publico. Esses não teem mais do que traduzir os sentimentos communs a toda a humanidade. Ha escriptores para os delicados, para os doentes d'essa terrivel nevrose cerebral que hoje martyrisa os pensadores, os artistas, os investigadores incontentaveis da verdade. Esses hão de ler com prazer agudo, quasi doloroso, os livros de Julio e Edmundo de Goncourt. De resto, não ha, entre os modernos, livros que mais vivamente ponham a nú a personalidade de quem os escreveu. Ha paginas inteiras que são confidencias mentaes. Ha estudos que foram feitos depois d'estas longas meditações em que a alma se revela nas suas minimas particularidades, nos seus mais intimos e dolorosos segredos!

Por isso se explica que, nas suas Idéas e Sensações, elles escrevessem esta observação que, applicada aos dois artistas de que tratamos, é d'uma verdade tão intensa e palpitante.

«Para as delicadezas, para as requintadas melancholias d'uma obra, para as phantasias raras e deliciosas que se executam na corda vibrante da alma ou do coração, não será necessario, indispensavel mesmo, uma pontinha de doença no artista?

E, como Henrique Heine, não terá cada um d'esses escriptores de ser como que o Christo da sua obra, o crucificado physico da sua fé?...»

Os Goncourt foram isto, e é por esse motivo que os que soffrem se sentem um pouco irmãos d'esses artistas de tão morbida e delicada tristeza!