Alguns Homens do Meu Tempo/Gonçalves Crespo

GONÇALVES CRESPO

 

 

As Miniaturas e os Nocturnos são incontestavelmente, e no dizer de auctorisados criticos, dois livros, que pódem classificar-se entre as perolas mais doces, mais preciosas, mais irisadas, da moderna litteratura portugueza. Leva-me hoje um pendor irresistivel a fallar d'esses dois livros, conhecendo que o assumpto, para mim, é a um tempo muito attrahente e muito difficil.

Dir-se-ha, que não póde fallar com justiça do poeta, aquella, que á sua memoria querida está ligada por tão estreitos laços; mas por que elle foi o companheiro da minha vida, o mestre e educador do meu espirito, o amigo inolvidavel cuja morte deixou orphãos os meus filhos, não terei eu direito de ajuntar a minha voz humilde ás vozes, que no paiz em que eu nasci, e no imperio em que elle nasceu, o proclamam um dos mais delicados poetas modernos, um dos cinzeladores mais primorosos da poesia portugueza, um parnasiano no bom sentido da palavra, quer dizer, juntando como Coppée, mas em muito mais alto gráu do que este, a suavidade, a melodia, a correcção do metro, ao sentimento profundo, á comprehensão clara, nitida e perfeita de todos os segredos complexos da alma contemporanea?

Parece-me que seriam rigorosos de mais os que tentassem coarctar-me esse direito, e que seria demasiada docilidade da minha parte o sujeitar-me a censores tão intransigentes e tão duros.

De mais, não escrevo eu exclusivamente para ser lida por mulheres? E onde está a mulher que me condemne n'este ponto? Não ha nenhuma, tenho a certeza d'isso.

Gonçalves Crespo não escreveu senão as Miniaturas e os Nocturnos. Foram os versos da sua mocidade, colligidos debaixo d'aquelle titulo, que m'o fizeram conhecer e admirar; os Nocturnos póde bem dizer-se que foram escriptos ao meu lado.

A obra do poeta tem pois para mim duas faces distinctas, mas para julgar as Miniaturas sinto-me por assim dizer mais independente e mais livre.

Esse livro foi a revellação primeira, a revellação subita que eu tive d'aquelle, que treze annos depois, quasi que dia por dia, me expirava nos braços, pronunciando o meu nome, que a sua alma angelica, tão depurada pelo soffrimento, tão sanctificada pela resignação, enchia de bençãos.

Foi em 1870 que as Miniaturas viram a luz pela primeira vez, revellando a Portugal todo e a todo Brazil, que um poeta original, delicadissimo, correcto até á perfeição, que um artista de primeira plana, um verdadeiro artista de raça, acabava de nascer para a litteratura portugueza.

Foi esse um bello periodo da curta vida do poeta, hontem desconhecido ainda, hoje acclamado por todos os que tinham no espirito uma scentelha de gosto, e no coração um vislumbre de sensibilidade.

Sobre a banca de trabalho de todas as mulheres distinctas, entre o cestinho de bordado e a jarra de violetas ou de rosas, achava-se então o gracioso volume das Miniaturas, e muita voz feminina tremula de commoção, e muita voz de artista, ebrio da belleza da fórma, repetia com enlevo essa doce elegia adoravelmente sentida, que se chama Alguem, esse poema de inconsavel e vaga tristeza, que se intitula: Arrependida, e a Noiva, e o ramo de saudades e de lyrios entretecido sobre o tumulo de Modesta e a esplendida Nera, e a esculptural e voluptuosa Sara, e a ineffavel e consoladora Transfiguração.

Quantos aspectos do mesmo talento! quantas fórmas da mesma phantasia seductora! quantas expansões da mesma sensibilidade fina, subtil, quasi doentia, de requintada que era!

Muito longe do poeta, em um palacio meio arruinado, affastada de todo o convivio social, entre as verduras, as sombras, as caricias inspiradoras da Natureza inculta, vivia então uma creança de alma ardente, de sonhadora phantasia, de indomito imaginar, vizionaria juvenil, de que hoje?taes são as modificações que o tempo faz!?existe apenas, alterado ainda assim pelos annos e pelas agonias, o corpo envelhecido cuja mão escreve estas linhas.

Muitos teem contado essa historia a que a Morte veiu dar o seu tragico remate. Para que alludir a ella aqui? E que importam ao mundo as alegrias e as lagrimas que elle não sentiu nem chorou?

A verdade é que hei de lembrar-me sempre, tão viva se me conserva no espirito essa impressão dominadora, do que eu senti ao folhear pela primeira vez as Miniaturas, livro de um poeta para mim inteiramente desconhecido havia algumas horas apenas.

Pareceu-me que era um poeta como aquelle, que eu positivamente tinha esperado havia muito, e que elle chegára; que a minha aspiração indefenida e vaga se tinha realisado. Mais contentamento do que surpreza. A doçura dos que alcançam a praia que tinham desejado em longos dias de navegação monotona.

Porque tardaste tanto, ó poeta? Eu te esperava
Na minha solidão!

faz elle dizer mais tarde á creança, que eu já fui, exprimindo assim, na sua simplicidade tão artistica, o sentimento de confiante alegria que a minha alma experimentára ao conhecel-o.

Pois bem; esse agudo prazer da intelligencia, completamente, absolutamente satisfeita no goso d'uma determinada obra d'arte, sinto-o eu hoje como no primeiro dia, ao ler as Miniaturas.

O talento de Gonçalves Crespo soffreu com a idade, com as mudanças que se deram no seu destino, com a acção tão complexa e tão profunda que a Vida exerce em todos nós, transformações importantes e progressivas; no emtanto para mim, e para muitos dos amigos dilectos do poeta, a mais encantadora, a mais perfumada efflorescencia do seu espirito raro, será sempre aquelle livro juvenil.

Muito mais pessoal que os Nocturnos, o volume das Miniaturas lança uma luz mysteriosa e dulcissima sobre a figura singular, um pouco extranha, que foi Gonçalves Crespo.

Muito ao contrario do que geralmente succede, este artista, tão nervoso e vibratil, teve a primavera da vida nublada por todas [8] as sombras, e o estio, de que a morte desfolhou as ultimas rosas, illuminado por todas as suaves e tranquillas alegrias, que a vida póde conceder áquelles que mais ama e a quem mais cedo tenciona abandonar.

É por isso que os Nocturnos de uma belleza de fórma incomparavel, tocados ás vezes por um largo sôpro de epopeia, não teem senão a espaços, a musica dolente, tão enternecida e languida, tão acariciadora das almas tristes, que se prolonga e vibra em longos echos melancolicos nas paginas das Miniaturas.

Veja-se por exemplo Alguem, uma das peças que mais sympathias conquistaram ao nome do poeta:

Para alguem sou o lyrio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideaes do Christo;
Para alguem sou a vida e a luz dos olhos,
E se na terra existe é porque existo!

Esse alguem que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu anjo meu, idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!


Quando alta noite me reclino e deito
Melancolico triste e fatigado,
Esse alguem abre as azas no meu leito,
E o meu somno deslisa perfumado.

Chovam bençãos de Deus, sobre a que chora
Por mim, além dos mares! Esse alguem
É de meus dias a esplendente aurora,
És tu, dôce velhinha, ó minha mãe!...

N'estas quatro estrophes está retratada uma alma, estão contadas as tristezas d'um destino, que mercê de Deus se desannuviou mais tarde, mas no qual então se condensavam todas as melancolias intimas, todas as duvidas sombrias, todas as amargas e silenciosas agonias da isolação.

Nem a mulher que elle ama, nos passageiros caprichos da mocidade, nem os amigos que o cercam, lhe matam a sêde de afféctos que o devora e tortura; a mãe, a dôce velhinha, essa está longe, essa chora além dos mares, essa nem o vê, nem o acaricia, nem dissolve ao fogo dos seus beijos os gêlos da duvida, que tão cêdo crestaram todas as flôres da mocidade na alma de Gonçalves Crespo.

Nunca houve ninguem mais modesto, mais inconsciente do proprio valor, mais desconfiado de si mesmo, mais dolorosamente torturado pela ideia das suas imperfeições reaes ou imaginarias.

Os requintados suplicios de que esta desconfiança foi origem, manifestam-se bem mais nas Miniaturas do que no ultimo volume do poeta; por isso n'ellas a nota pessoal é mais vibrante, a commoção, por ser mais sincera, é mais directa e mais contagiosa.

Como documento psychologico para auxiliar a critica do poeta e do artista, as Miniaturas são de um valor incomparavel.

A poesia de Gonçalves Crespo tinha origens complexas que é mister analysar, para comprehender completamente a belleza e a sinceridade palpitante da sua obra.

Nascido no Brazil, n'esse clima ardente e languido, no seio d'essa natureza exhuberante, que muito mais forte do que o homem, se lhe impõe e o subjuga fatal e irresistivelmente, Gonçalves Crespo foi transplantado,?pobre e delicada planta friorenta e morbida,?para uma região em que nunca se poude acclimar bem.

D'aqui, a doçura nostalgica, a saudade soluçante, que parece evolar-se como um aroma capitoso das suas poesias brazileiras, taes como a Sésta, Na Roça, a Canção, Ao meio dia, e mais tarde nos Nocturnos, as Velhas Negras, etc., etc.

Nem Gonçalves Dias, nem Alvares de Azevedo, nem Casimiro de Abreu, se deixaram assim inspirar, tão sincera e vivamente, pelas scenas familiares da vida brazileira, cuja graça pittoresca e especial dá um cunho inteiramente novo aos versos de Gonçalves Crespo.

E que o poeta tinha saudade?uma saudade que lhe estava no sangue, que era parte do seu temperamento, saudade que era um instincto contra o qual elle luctava em vão?de todos os esplendidos aspectos com que os seus olhos, ao abrirem-se á luz, se tinham inconscientemente embriagado.

Um dia de agosto, tropicalmente calmoso, passado no campo, á sombra das arvores, dava-lhe uma excitação penetrante, envolvia-o n'um banho de sensações voluptuosas. Sem mesmo dar por isso, era a lembrança tão viva e tão dominadôra da patria longinqua, que produzia em todo o seu sêr este effeito anormal.

É isto ainda que se traduz na melancolia sonhadora e vaga, d'esse pequeno poema, em que eu já fallei, intitulado as Velhas Negras.

Conheceram tanto dono!...
Embalaram tanto somno
De tanta sinhá gentil!...

Pódem as tristezas mudas d'uma raça escrava ser notadas com uma subtileza maior, com uma doçura mais ideal!...

A simplicidade que dá estes effeitos é que é a grande arte.

Ao longe, evocados magicamente pela voz do poeta, surgem os brutaes senhores, para quem as tristes filhas da raça negra foram o joguete d'um instante, a distracção d'uma hora de tedio ou de preguiça, e ellas, inconscientes, vagamente assombradas, tendo o pasmo silencioso d'um destino extranho, a angustia sem expressão e sem formula d'uma esmagadora injustiça, passaram de mão em mão, cumprindo o seu cruel fadario, e embalando de vez em quando nos braços emmagrecidos ou vergastados pelo azorrague do feitor, uma creança loura, rosada e branca que lhes sorria, dando-lhes n'esse sorriso a indefinida revellação de alguma cousa de superior, de caricioso, de celeste!...

Só n'um coração de filho, e de filho saudoso, de filho amantissimo, pódem retratar-se, tão vivamente illuminadas, pódem destacar-se com tão magistral relevo, scenas entrevistas um dia, nas horas da imprevidente e distrahida infancia.

E a Sésta? Qual é a leitora que não ficou sabendo a Sésta de cor!

Na rêde, que um negro moroso balança,
Qual berço de espumas,
Formosa creoula repousa e dormita,
Emquanto a mucamba nos ares agita
Um leque de plumas.

Na rêde perpassam as tremulas sombras
Dos altos bambús;

E dorme a creoula de manso embalada,
Pendidos os braços da rêde nevada
Mimosos, e nús.
..........................................................
..........................................................
O vento que passe tranquillo, de leve,
Nas folhas do engá;
As aves que abafem seu canto sentido;
As rodas do engenho não façam ruido,
Que dorme a Sinhá.

Como se vê bem que este languido rythmo, a vaga suavidade d'estes versos, parecem feitos para acompanhar o movimento cadenciado e lento da rêde, e embalar o sonho de alguma filha gentil d'esse paiz, em que o clima dá ao corpo as preguiças infinitas, e a natureza luxuosa e desbordante dá ao espirito a mollesa, o cançasso fatal d'uma permanente lucta, na qual o homem é sempre vencido pela força inconsciente das cousas!...

Em Gonçalves Crespo havia pois a indolencia atavica, que elle só por extraordinario e doloroso esforço era capaz de vencer temporariamente. Por isso, emquanto as circumstancias excepcionalmente favoraveis lhe não amenizaram a existencia, elle viveu sempre em absoluto desaccordo com o seu meio.

A lucta pela vida, essa lei brutal das sociedades modernas, esmagava-o a elle, filho preguiçoso dos tropicos, artista quasi feminino, pela graça delicada e fragil do engenho, pela caprichosa subtileza da inspiração.

E digo muito de proposito inspiração, apesar da palavra andar proscripta dos modernos codigos artisticos.

Gonçalves Crespo trabalhava minuciosamente, como o mais esmerado operario, a factura dos seus versos, mas necessitava d'essa influencia qualquer, superior e extranha, que póde vir ao artista do seu mundo intimo, ou do mundo que o rodeia, que póde ser determinada pelo estado especial dos seus nervos, ou que póde provir de mil causas externas e independentes da sua vontade.

Quando elle escreveu as Miniaturas, dando-nos nas confidencias talvez involuntarias da sua alma, a revellação d'um artista adoravel, duas grandes tristezas o opprimiam, tristezas que elle, seguindo talvez sem dar por isso, o fecundo conselho de Goethe, transformou em poesia, que será lida emquanto se fallar e se escrever portuguez.

Eram-lhe hostis o meio physico e a atmosphera moral em que vivia.

Para ser grande na Arte, creio eu, que é preciso antes de tudo, ser sincero. Nunca ninguem logrou traduzir bem as dôres que não sentiu.

Brutalidades inconscientes do Destino tinham feito d'este moço,―de uma organisação nervosa como a d'uma mulher, accessivel, como os organismos mais sensiveis á influencia de todas as sympathias, gostando de agradar aos que viviam perto d'elle, impressionavel, desconfiado, sempre prompto a julgar-se com severidade injusta,―um estudante pessimo, um filho familia, quasi rebelde.

Queriam que elle, a livre phantasia graciosa e borboleteadora, caprichosa, e facil aos cançassos rapidos e aos tedios anulladores, se cingisse ao estudo arido e disciplinador da mathematica; que elle, exigente, doido por tudo quanto era bello, elegante, fino e distincto, tivesse a economia calculista e minuciosa d'um mediocre ou d'um grosseiro.

D'aqui, as luctas de familia, os descontentamentos do homem intelligente, que se vê injustamente julgado porque lhe prevertem as faculdades em vez de as aproveitarem.

Triste, isolado, sem affectos, descontente de si que não sabia sujeitar-se ao destino, e descontente com o destino que tão hostil lhe estava sendo, Gonçalves Crespo surprehendeu-se um dia a vazar no molde perfeito dos seus versos, as melancolias intraduziveis até ali, do seu pobre coração triturado e desconhecido.

Teixeira de Queiroz, o consciencioso analysta dos Noivos, o ironico observador de Salustio Nogueira, o pintor pittoresco e impressionista da Comedia do Campo, escreveu na terceira edição das Miniaturas um prologo admiravel, um prologo por assim dizer vivido, que desenha com singular vigor e com exactidão minuciosa a physionomia litteraria e moral de Gonçalves Crespo.

Elle que foi um amigo da mocidade e um amigo da ultima hora, que recebeu as primeiras expansões do poeta e quasi que o ultimo suspiro do moribundo, comprehendeu bem e soube bem traduzir, a estranha dualidade moral que fazia de Gonçalves Crespo o mais alegre e o mais triste dos homens.

Porque muitos dos amigos d'elle, hão de morrer na falsa persuasão de que o lado menos verdadeiro do auctor das Miniaturas era a tristeza funda, a magoa docemente resignada, que nas suas poesias transluzem. Tinham-n'o por um alegre, um doidivanas de phantasia picaresca e de imprevistas aventuras; formavam-lhe em volta do nome, sympathico a toda a mocidade do seu tempo de Coimbra, como depois se tornou sympathico a todas as classes sociaes de Lisbôa, uma lenda de bohemia extravagante, de ruidosa e turbulenta alegria.

Poucos o conheceram; poucos viram atravez da ironia bondosa e sympathica do seu sorriso, da bonhomia um tanto sceptica da sua palavra, vivamente e pittorescamente original, o verdadeiro homem que elle era.

A mocidade corrêra-lhe tão desflorida e tão triste, que nem os dez annos de tranquilla felicidade, de paz serena e dôce, toda illuminada de affectos intimos, lograram cicatrisar feridas que se lhe tinham rasgado no coração. E que ha mais triste, mais desolador para as almas grandes, do que passarem n'este deserto de homens chamado o mundo, mal julgadas, mal comprehendidas, mal interpretadas, tendo a consciencia de que ninguem cura das suas dôres, ou se preoccupa com os seus intimos e irremediaveis desconsolos?...

As cartas do auctor das Miniaturas, as suas cartas inimitaveis e incomparaveis, porque não conheci nunca quem escrevesse cartas mais perfeitas―perfeitas de graça, de simplicidade, de desleixo artistico―revelam-n'o, preza de melancolias incuraveis e extranhas.

Tinha preoccupações e infantilidades de artista. Nunca chegou a perceber a seducção irresistivel que exercia nos que o approximavam; nunca comprehendeu que tinha, como poucos, o dom da sympathia subita que se impõe, que domina e que vence. Se lh'o diziam sorria-se, com o seu sorriso peculiar de que todos os amigos se lembram com uma saudade enorme, feito de malicia e de duvida, de bondade e de ironia, sorriso que era o encanto caracteristico e mysterioso d'aquelle rosto revolto, expressivo e extranho, que tantos affectos inspirou na terra, que ficou gravado em tantos corações que não esquecem.

Esta duvida de si mesmo fazia-o soffrer. Nunca se consolou de pensar de si proprio o que ninguem mais pensava.

Encantadora fraqueza que o torna ainda mais nosso, que faz com que nós as mulheres todas o amêmos, porque se não envergonhou de partilhar as nossas pequenas vaidades, as nossas imperfeiçõesinhas organicas para as quaes o homem tem tamanho e tão altivo desdem!

Tristezas quasi inconscientes do exilio, nostalgias de ave friorenta, visões vagas, indistinctas, radiosas da patria ausente; desgostos de ordem muito particular,―e a pairar sobre tudo isto, uma impressão dolorosa, indefenivel, que nem aos mais queridos elle confessava, mas que ungia de tristeza ineffavel os seus versos, que punha aqui e ali uma nota abafada e dilacerante na harmonia magistral da sua obra,―eis a triplice inspiração, que deu uma vida intensa ao seu primeiro livro, ao livro da sua mocidade, que tão querido lhe tornou logo o nome aos delicados de ambos os sexos.

As Miniaturas teem já dezesete annos, o que é muito para um livro de versos d'este seculo, que fez da rapidez o seu programma e o seu mote, que não estaciona em cousa alguma e muito menos no modo de exprimir o que sente.

Pois apezar de muitos poetas contemporaneos de Gonçalves Crespo terem passado litterariamente, a geração que principia agora, lê as Miniaturas com o mesmo enlêvo com que as leu a geração que vae envelhecendo já.

É que a verdadeira poesia, a que não se filia servilmente em uma qualquer escola transitoria e ephemera, mas a que exprime do modo mais bello e perfeito que é dado á sua epocha conhecer, os sentimentos que formam o fundo inalteravel da alma humana, não perde nunca o imperio que um dia exerceu, atravessa os tempos immaculada e eterna; é hoje o que será sempre, a fascinadora que nos enfeitiça, a amiga cariciosa que nos embala, a confidente que nos ouve, e que chora comnosco...

Muitos teem comparado Gonçalves Crespo a Theophile Gauthier, eu por mim declaro que acho injusta a comparação.

Theophile Gauthier é um perfeito joalheiro, um impeccavel burilador; cada verso d'elle é uma pedra preciosa, facetada, brilhante, admiravelmente engastada em ouro dos mais finos quilates.

Para dar uma forma peregrina aos metaes preciosos, para esmaltar deliciosamente as joias mais lindamente modeladas, ninguem excede o auctor dos Emaux et Camèes. Elle proprio o sabia e nunca desejou mais nada.

Em Gonçalves Crespo porém, havia mais do que isto. Havia uma alma transbordante de vida, capaz de comprehender e de traduzir os mais delicados cambiantes, as mais rapidas modalidades das outras almas.

Que intuição que elle tinha de todas as dôres, mesmo das mais extranhas ao espirito e ao coração d'um homem!...

Lembram-se d'aquella perola de tristeza chamada Arrependida?

Ella deixára tudo para correr atraz da [26] sua chimera e um dia desperta perdida, irremissivelmente perdida no abysmo de infamia a que uma mão de homem a arrastou:

Ella scisma ao luar! Todo o passado
A seus olhos avulta, illuminado
Pelos dubios reflexos da tristeza...

Por uma noite assim, limpida e clara,
Sua modesta alcôva ella deixára
Por esse que ali dorme, e que a... despreza!

Que sobriedade de mestre! que melancolia femenina! que profunda comprehensão d'uma dôr, que toda a emphase, toda a phrase diminuiriam forçosamente!

Tentar conhecer o céu do amor completo, do amor heroico, do amor feito de sacrificios superiores e de abnegações infinitas e cahir no lodo... Só um poeta sincero como Gonçalves Crespo saberia notar em dois traços esta agonia silenciosa e sem termo...

O que distingue particularmente o auctor dos Nocturnos dos outros poetas da sua indole, é a ligeireza do traço, é o vago que parece envolver n'uma luz cerulea e dubia, n'um vapor transparente―e comparavel ao que á tarde envolve e esbate suavemente as montanhas,―as suas concepções mais perfeitas.

Não é possivel que ao lêl-o a imaginação se detenha apenas na pagina do livro e o não siga ás regiões de que elle tinha como ninguem a iniciação e o segredo.

Previlegiados entre todos, os poetas que fazem sonhar; os que teem na mão a chave de oiro, do paiz azul habitado pela Chymera!

Os Nocturnos pertencem a uma phase inteiramente diversa, mais pacificada, mais tranquilla, mais perfeita, da vida do homem e da vida do escriptor.

Sem ter perdido nenhuma das suas qualidades de graça delicada e mimosa, nenhuma das subtilezas finissimas do sentimento e da expressão, nenhuma d'aquellas notas dolentes da alma creoula, que tão singular e tão fascinador o tornam para nós, Gonçalves Crespo attinge por vezes a amplidão magestosa e grave, tem o largo folego heroico, que nas Miniaturas ainda se não pressente.

Na evolução progressiva do seu genio poetico, elle subiu mais um gráu.

Nenhum segredo da forma lhe é defezo. Conquistou, venceu, domou inteiramente a caprichosa, que já não ousa, como a Galatheia do poeta latino, sumir-se entre os salgueiros acenando-lhe de longe.

A Morte de D. Quixote, a Resposta do Inquisidor, as Primeiras lagrimas d'El-Rei, a Ceia de Tiberio, prenunciam um poeta feito para os largos commettimentos, um poeta que marcaria o seu logar n'este seculo, com algumas d'essas obras que são a gloria d'uma raça, se a traiçoeira morte não viesse em plena virilidade de annos, em plena alegria de trabalho, arrancar-lhe das mãos a penna prodigiosa.

As traducções de Henrique Heine são no volume dos Nocturnos das joias mais deliciosamente trabalhadas.

A inspiração meridional entrelaça-se de tal modo com a melancolia fugitiva e doce, com a ironica tristeza da musa germanica, que no dizer de alguem, o Intermezzo apparece ali como a obra d'um Heine, mais [30] completo, d'um Heine a quem não faltasse uma só nota na sua vasta alma de homem!

Poucos espiritos tambem, seriam talhados mais de molde para entenderem Heine e dar-lhe por assim dizer uma feição nossa.

É que a ironia que ressalta naturalmente das cousas, a ironia que não é nem uma blasphemia nem um soluço, mas sim o reconhecimento pacifico, tranquillo e triste das desconsoladoras verdades humanas, existe em Gonçalves Crespo na sua forma mais exquisitamente delicada, mais requintadamente artistica.

Como não havia elle pois de entender aquillo que é a propria essencia do genio do poeta allemão!

Já no leito, onde agonisou com divina resignação dois longos mezes, e onde parece que o seu espirito de poeta assumiu uma forma ainda mais idealmente melancolica, Gonçalves Crespo escreveu com a mão tremula de doente um soneto consagrado aos annos d'uma gentil senhora, nossa querida amiga, por quem elle tinha o mais respeitoso dos affectos, em cuja casa hospitaleira elle encontrou sempre um acolhimento fraternal.

Essa senhora é a Condessa de Sabugosa, mulher do amigo, talvez mais ternamente amado por Gonçalves Crespo.

Seria lastima conservar para sempre inedito este soneto que tem para mim um triplo encanto. O perfume camoeano que o impregna deliciosamente, a tristeza dulcissima, que elle respira, e a melancolica circumstancia de ser o ultimo que cahio, como uma perola solta, da lyra quasi partida do poeta moribundo.

Eis o soneto:

Na quadra azul da mocidade, a gente
Parte rindo e cantando, estrada fóra,
Gorgeia a cotovia em cada aurora,
Suspira á noite o rouxinol dolente.

Ai! Ditoso o que parte alegremente,
O que não vio aproximar-se a hora
Em que é força volver atraz... embora
Nos arfe o seio de illusões fremente.

Para ti ainda existe o sonho alado,
A fé robusta, e a candida alegria
Que nos chovem do céu claro e estrellado.

Nunca sejas forçada, flôr, um dia
A erguer, chorando, o braço fatigado
Em busca da ventura fugidia...
...........................................................
...........................................................

A morte não consentiu que elle subisse aonde podia subir, que elle se affirmasse como se poderia ter affirmado. No emtanto, todos os que teem este sexto sentido divino, pelo qual, mesmo apezar dos desenganos que a vida encerra, vale a pena em todo o caso ter vivido, hão-de ler com intimo prazer os dois volumes do encantador poeta de Alguem.

É verdade que elle não respondeu a todas as interrogações que o nosso espirito se achou no direito de fazer-lhe, mas não respondeu porque o tempo lhe não deixou cumprir as mil promessas que a sua mocidade nos fizera.

E hoje que elle partiu para o paiz mysterioso d'onde ninguem voltou, e para onde, na tristeza ou na alegria, convergem os nossos olhares anciosamente prescrutadores, voam as nossas saudades n'um impeto de lagrimas, eu releio aquella soberba e indecifravel Sara, e pergunto a mim mesma se debaixo da forma esculpturalmente pagã dos versos, se não abriga um sentido occulto, um mysterioso symbolo...

Que ardente espiritualismo, tenaz e apaixonado, na carnalidade apparente d'esse poema!

Quanta dôr n'aquella aspiração, sempre trahida, de encontrar uma alma, no bello corpo insensivel que elle, como Pygmalião, quereria animar d'um divino sopro!

Na sua violenta sêde de perfeição, dolorosa e alanceadôra como poucas, nunca o poeta das Miniaturas e dos Nocturnos teve o contentamento da sua obra! Nunca achou que a Musa, que elle beijava, tivesse a vida, o fogo sagrado, que n'esse beijo fecundador a sua alma anceava communicar-lhe!

Era um insaciavel!

Nunca a Arte nem a vida o contentaram, a elle que teve todas as caricias luminosas da Arte, e todos os affectos sãos que a Vida póde dar e que a Vida só dá a rarissimos dos seus escolhidos...

Mas não estará n'esse eterno descontentamento, n'essa aspiração incansavel ao desconhecido, o signal mais caracteristico da sua grandeza?... Eu creio que sim.