Alice no País das Maravilhas (Trad. Lobato, 8ª edição)/Capítulo 12
CAPÍTULO XII
O DEPOIMENTO DE ALICE
PRESENTE! respondeu ela. E esquecendo-se que havia crescido muito nos últimos minutos, pulou de um salto para a frente de Suas Majestades, varrendo com a saia todo o tribunal do júri.
— Oh, peço que me perdoem! exclamou logo que deu pelo desastre. E começou a juntar do chão os pobres jurados para pô-los de novo nos seus lugares.
— O julgamento não pode continuar sem que todos os jurados estejam direitos nos seus postos, declarou o Rei gravemente, deitando sôbre Alice um olhar terrível.
Alice, que já havia arrumado os jurados, olhou para a mesa para ver se faltava algum, e viu que estavam todos. A única diferença era que havia colocado o Periquito de cabeça para baixo. O pobrezinho sacudia no ar a cauda, feito um chicotinho, não sabendo como desvirar-se. Alice correu a tirá-lo daquela triste posição, refletindo consigo que bem pouco adiantava ao julgamento que a criaturinha estivesse de cabeça para baixo ou para cima.
Assim que os jurados se refizeram do susto, tomaram as pedras e os lápis, começando a escrever a história do acidente. Só Periquito nada escrevia, tal era a sua emoção. Estava de bôca aberta, com os olhos fitos no fôrro.
— Que sabe você a respeito dêste caso? perguntou o Rei afinal. — Eu? Nada!
— Nada, nada mesmo? insistiu o Rei.
— Nadíssima mesmíssimo! continuou a menina.
— Êste depoimento é muito importante, disse o Rei aos jurados, que imediatamente escreveram nas pedras as reais palavras. Mas o rei distraiu-se com a palavra “importante” e começou a repetir de si para si, em voz alta: “importante, sem importância, importante, sem importância...” e os jurados escreveram as duas coisas, o que era um absurdo. Alice viu o êrro, mas refletiu que no fim tudo dava certo.
Nesse momento o Rei, que também escrevera qualquer coisa no seu livro de notas, exclamou: "Silêncio!" Em seguida passou a ler.
— Diz o artigo 42: Tôdas as pessoas cujo tamanho exceda de um quilômetro, são obrigadas a deixar o recinto do tribunal.
A assistência inteira olhou para Alice. — Que é que querem de mim? gritou ela. Eu não tenho um quilômetro de altura.
— Tem! afirmou o Rei.
— Tem até dois! ajuntou a Rainha.
— Pois muito bem! declarou Alice com energia. De qualquer forma não sairei daqui, porque êsse artigo não é legal. Foi você quem o inventou agorinha mesmo!
— É o artigo mais velho da constituição dos tribunais, declarou o Rei.
— Se é o mais velho, devia ser o artigo número um e não o número quarenta e dois.
O rei empalideceu e apressou-se em guardar o livro de notas. Estava evidentemente todo errado.
— Vejamos a sentença, disse êle voltando-se para os jurados.
— Há mais provas a examinar, interveio o Coelho Branco. Este papel ainda não foi lido ao tribunal.
— Que é que está escrito nêle? inquiriu a Rainha.
— Não sei. Ainda não o abri, disse o Coelho BranCo. Mas parece-me carta do acusado escrita para alguém.
— Qual o nome do destinatário? perguntou um jurado.
— Não tem enderêço nenhum, disse o Coelho. Nada há escrito do lado de fora — e, enquanto ia falando, desdobrava no ar o tal papel.
— Não é carta, declarou por fim. É uma poesia!
— Escrita pelo próprio punho do Valete de Copas? inquiriu um jurado.
— Não! respondeu o Coelho. A letra não é dêle. Deve ter imitado a caligrafia de alguém.
O tribunal estava boquiaberto de curiosidade.
— Perdão, Majestade! disse o Valete de Copas. Eu não posso ser acusado de ter escrito o que não assinei e o que não representa minha letra.
— Nesse caso, pior ainda! objetou o Rei. Se não assinou e não usou a sua letra natural, então é que tinha algum mau intuito. Se não fôsse assim, assinaria naturalmente e não mudaria de letra.
Todos bateram palmas, porque era realmente a primeira coisa sábia que o Rei ainda dissera.
— Prova, nada! berrou Alice. Pois se nem leram o que está escrito, como prova ou não prova? Súcia de imbecis!
— Então leia, ordenou o Rei achando que ela tinha razão.
O Coelho Branco pôs os óculos e indagou:
— Por onde devo começar, Majestade?
— Comece pelo princípio, respondeu gravemente o Rei.
Carrapato, carrapicho,
Carrapicho, carrapato,
Patocarra, pichocarra,
Pichocarra, patopicho...
Carracarra, pichopato.
— Eis a prova mais evidente que ainda vi em minha vida! exclamou o Rei triunfante, esfregando as mãos. Nada mais resta a provar. Os senhores jurados estão habilitados a dar sentença.
— Esperem um pouco! gritou Alice. Se algum dêles puder explicar o que os versos significam, ganhará um tostão furado. Não creio que haja a menor parcela de prova nas palavras que acabam de ser lidas.
— Os jurados escreveram em suas pedras: “Ela não crê que haja a menor parcela de prova no que acabamos de ouvir ler.” Mas nenhum tentou explicar o que significava o papel.
— Se não há a menor parcela de prova na poesia, observou o Rei, isso nos evita o trabalho de procurá-la. Ainda assim, não sei... disse, colocando o papel sôbre os joelhos. Parece-me que há alguma evidência... Pichocarra... Você pichocarra?
O Valete de Copas abanou tristemente a cabeça e respondeu: “Quem me dera pichocarrar!”
O Rei olhou-o de revés.
— Isto aqui tem um sentido oculto, disse. Pichocarra quer talvez dizer o seguinte: “Fui eu mesmo quem comeu os bolos da Rainha e quero ver quem descobre isso.” Notem os senhores jurados que as letras da palavra pichocarra acham-se tôdas repetidas na frase que eu acabo de apresentar.
Os jurados escreveram nas lousas as letras que o Rei grifara e viram que formava a palavra “bichocarra” e não “pichocarra.” Um dêles alegou isso em defesa do réu.
— Sim, concordou o Rei, mas o Valete é dos tais que trocam o B pelo P, vício de pronúncia que nêle notei há tempos. Assim sendo, a prova está provada e agora cumpre aos senhores jurados darem a sentença.
— Não! bradou a Rainha. Primeiro a execução, depois a sentença.
— Que asneira! exclamou Alice. Como é que a execução pode vir sem haver sentença?
— Faça o obséquio de calar essa bôca! disse a Rainha com ironia.
— Sou dona da minha bôca e da minha palavra! Calo ou falo quando me apraz, retrucou Alice colérica.
— Cortem-lhe a cabeça! berrou a Rainha no auge da cólera.
Ninguém se mexeu para executar a ordem.
— Vê? exclamou Alice com desdém. Ninguém liga a mínima importância às ordens de sua Majestade. A senhora não passa de uma simples Rainha de Baralho.
Mal disse aquilo, todo o baralho avançou para ela, numa fúria, fazendo Alice dar um grito de mêdo e aborrecimento. Era uma chuva de naipes, de ases, de valetes, de reis, de damas, de setes, de biscas, de coringas que não tinha mais fim. Tantos e tantos naipes, que Alice se sentiu sufocada e... abriu os olhos. Viu-se en- tão no jardim do comêço desta história, deitada no banco, com a cabeça nos joelhos de sua irmã, que lhe passava carinhosamente a mão sôbre a cabecinha loura.
— Acorde duma vez, Alicinha! Você está dormindo demais hoje.
— Oh, exclamou ela sentando-se e esfregando os olhos. Tive um sonho tão comprido e interessante...
E contou uns pedaços à irmã.
— Muito interessante na verdade, Alice, mas é hora da merenda. Vá para dentro.
Alice ergueu-se e foi a correr tomar a merenda. Enquanto corria tratava de recordar todo o sonho, porque se não fizesse assim, logo o esqueceria completamente. E não queria esquecer aquêle sonho que era o mais lindo que jamais tivera — o sonho das suas aventuras no País das Maravilhas.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

