XIX


Fôra grande o escandalo em Lisboa pela fuga do Visconde, repercutindo-se fortemente na villa onde tantos interesses os ligavam a todos.

Havia quem acusasse violentamente a Candida pela leviandade de que dera provas; outros tornavam o Visconde como unico responsavel de todo o mal, e visto que, definitivamente, tinha deixado a politica, já não havia considerações que tolhessem a livre critica dos seus antigos partidarios.

Houve tambem quem arrastasse por todas as baixesas o nome do Braga, ambicioso e usurario, a quem o caso não déra maior abalo, o que parecia indignar os homens sérios e convulsionar em risos chocarreiros as meninas, que a proposito segredavam coisas, pelos modos, nada edificantes.

Não faltou até quem perfidamente quizesse attingir a Viscondessa, que viera acolher-se aos muros amigos da velha casa e se fechára resolutamente na mais completa reserva, porque ao tempo que o caso se déra estava o Ramalho em Lisboa e com João as acompanhára alli.

A pretexto da doença de D. Genoveva escusara-se ella ás visitas dos que pressurosos accorrem sempre onde ha desgraças, não pela natural piedade de corações bem formados mas pelo gosto de insectos poisando com delicia sobre cadaveres e podridões.

Esse affastamento, que em boa logica não devia fornecer pasto á malevolencia, era o que mais a expunha ás considerações dos que nenhuma idealisação affasta da mesquinha curiosidade das vidas alheias e mais irritava as opiniões que tão agremente se referiam já aos primos.

O menoscabo das suas pessoas calava fundo no orgulho d’aquella gente e fazia desembestar saraivadas de doéstos pelas salas e lojas, com estupida superioridade do boticario Domingos José da Silva, appoiado pela mana Josepha, que procurava em vão no principe Rodolpho caso similar e bradava não ter nunca visto uma ingratidão assim.

O Padre Mathias, grave e conspicuamente, como lhe pedia a sua nova encarnação, bordava commentarios phylosophicos sobre o caso, que cahiam no ânimo dos ouvintes como sentenças de prégador. Fazia-os notar o orgulho e ingratidão d’esses herejes, comparada á lhaneza proverbial do conselheiro, que era um talento — a melhor cabeça do paiz! Nem elles sabiam apreciar o bem que tinham com tal protector, — um homem de vastissimos conhecimentos e de uma prodigiosa faculdade assimiladora — coisas que ouvira ao Telles n’uma noite em que tivera que se defrontar em discussão acalorada com um antigo companheiro de casa, algo desdenhoso pelos méritos da Excellencia.

— Sim, comparassem elles o que tinham ganho os seus partidarios, desde o Telles secretario particular e inspector das escolas, até ao Neves vantajosamente empregado na fiscalisação do alcool, ganhando dinheiro sem sahir de casa, nem fazer mais do que assignar o nome no fim de cada mez. E os adversarios?! Nada tinham obtido com a sua dedicação, politica, recebendo por paga o despreso da fidalga que achara maior prazer na degradante companhia dos esfarrapados, seguindo as pisadas da tal inglesa, e do orgulhoso padre a quem o sr. Bispo tivera que expulsar do gremio christão...

Entretanto ia a Viscondessa retemperando as forças, e o seu espirito tão dolorosamente abalado a pouco e pouco se ia alevantando no sadio regimen moral das verdadeiras dedicações, das amisades sem movel interesseiro.

Bella affirmava peremptoriamente que a queria vêr feliz e que não lhe bastava para isso o socego de espirito; precisava tambem de tonificar o organismo, despir, como quem arremessa do corpo uns miseraveis andrajos, os habitos de cidadã que do campo só ama e conhece as avenidas sombreadas dos jardins e quintas de regalo. Seria ella, uma estrangeira, quem lhe faria as honras da paysagem, que já conhecia como os seus dedos. Quem lhe mostraria os mais doces caminhos afofados de musgos que o sol tonisa em toda a brilhante gama de verdes. Quem a acompanharia por essa serra que os castanheiros vestem alternando com os pinhaes sombrios o seu bello verde luzente; ella quem lhe ensinaria os sitios onde a agua corre fresca e leve entre arrendados de avencas e fetos, chorada pelas pedras barbaras do monte.

— Ah como esse paiz é lindo e como até ahi o tinha desconhecido, assim como tinha ignorado o encanto de ser livre, de viver ao seu gosto, sem ser confragida pela vontade alheia! — pensava ella, remoçada, tendo readquirido, no pouco tempo que decorrera, o encanto do riso sem constrangimento, a alegria das côres perdidas na descrença e na melancolia, que envenenam o espirito e o sangue.

E com a saude e a serenidade vinha-lhe o desejo de trabalhar, de ser util, de acrescentar á iniciativa dos primos a energia da sua actividade e da sua intelligencia. Isto alegrava Isabella, que assim a via resurgir para a vida e para a felicidade como se milagre fosse, e de boa vontade lhe ia confiando as multiplas obrigações, que nos derradeiros tempos de gravidez já lhe custavam a desempenhar.

Planeavam novos estabelecimentos, gisavam melhorías nos existentes, que urgia completar para que a obra fosse verdadeiramente justa e util. Queriam todos que a criança de pequenina arrancada á miseria e á dôr não tivesse que voltar para a vida mais infeliz do que nunca, com a alma vulneravel a todas as amarguras, a todas as faltas, que mais sentirá depois de ter conhecido o aconchego e asseio da roupa, a delicia de uma cama limpa, a fortuna de comer sem ter sentido o estomago crispar-se com fome, o luxo das abluções e dos sabonetes, tendo adquirido, pelo simples uso de singelissimos habitos de hygiene, necessidades materiaes, impossiveis de satisfazer entre a miseria dos seus, tendo aberto o espirito a horisontes largos, que a tornarão na propria familia uma estrangeira, victima indefesa da philantropia usada luxuosamente por quem nada se importa da desgraça alheia.

Para evitar esse mal é que tinham criado, como continuação do asylo e do hospital, as escolas-officinas onde rapazes e raparigas adquiriam aptidões para seguirem o caminho traçado pela propria intelligencia e gosto, tendo junto real a real e com o proprio trabalho, o pequeno capital com que fazer face aos primeiros embates da lucta, chegados que sejam á idade de serem livres e tratar de si.

De todo o paiz tinham já vindo modelos de industrias acompanhados por quem as podesse ensinar alli, porque Isabella punha muito de phantasia e de arte na maneira prática de ver e apreciar a vida.

Mas para o trabalho de administração propriamente dita, para seguir pacientemente o fio encetado, esperando que o tempo lhe trouxesse o resultado benefico, não tinha maior paciencia. Não, para isso era melhor Maria Helena e o proprio dr. Ramalho, encarregando-se de calculos meticulosos, sempre sereno e bondoso, sob a mesma calma e apparencia de reserva.

O velho abbade, que não descançava um instante, descobrindo meio de ser util em toda a parte, augmentando cada dia o asylo, enchendo a créche de pequenos, que vinham entregar-lhe sem receio, desde que constara que não se olhava a procedencia nem se esperava idade para admissão, que se dispensava dinheiro e enxoval, não só a desgraçadas sem marido infelizes que os homens abandonam com um filho nos braços e a fome a brutalisa-las ferozmente, como a casa das cujos homens mal podem sustentar o rancho esfomeado que pede pão, com o producto da sua enxada de cavador ou das ferramentas officinaes.

Trouxessem lhe pequenos entes fracos a criar e a proteger, que a todos egualmente abriria os braços e o coração, novo apostolo dos desherdados, casto como uma virgem, puro como criança de um anno, ardendo em fogo sagrado de espiritual fraternidade.

João triumphava com o seu lindo bairro operario — o encanto de mr. Burns, que ajudava todos com o seu lucido criterio e vastos conhecimentos, aconselhando, fornecendo capitaes, e comprando, por fim, terrenos incultos que repartia com egualdade em arrendamentos que terminariam pela posse, em tempo marcado para a remissão. Lembrava ao sobrinho a utilidade de uma industria que aproveitasse e desenvolvesse energias e aptidões, que fosse o complemento do trabalho rural, como a escola deve completar o asylo, seguido da aprendizagem prática.

O tempo caminhava e com elle cresciam as impaciencias e cuidados, que mais ou menos todos sentiam por ver chegar o momento em que Bella, emfim livre dos incommodos e do mal estar que em vão tentava disfarçar, lhes desse o pequenino anjo que tantos braços esperavam para acalentar, que tantos carinhos encontraria á sua chegada ao mundo.

Antonio de Mello e Josephina sentiam-se remoçar aguardando o primeiro neto, como outrora tinham esperado com alvoroço a vinda do primeiro filho. A velha Engracia descrevia ás amigas o enxoval que esperava o seu menino e não se continha sem mostrar cada peça de roupa que das artisticas mãos da mãe e da viscondessa sahia, como modelo de outros mais, que a Aurora Cunha fazia executar no asylo.

Maria Helena contava as horas e os dias e em cada noite que se despedia não deixava de recommendar — que havendo qualquer coisa a fossem prevenir.

Uma madrugada, emfim, Isabella queixou-se mais. João, nervoso, correra ao quarto da mãe, que lhe dizia em modo de consolação: — coitadinha, soffria, soffria muito, mas então!? Tivesse paciencia, quem lhes dera que soffresse muito mais, que era para se despachar depressa.

Pobre João! elle queria sorrir da prática phylosophia da mãe, queria convencer-se da justeza das suas observações, mas custava-lhe tanto ver Bella muito pallida, silenciosa, encostando-se aos moveis a cada assalto das dôres, arrumando o enxoval na cestinha forrada de seda azul — pois se seria um rapaz, todos sabiam!... — sorrindo-lhe com resignação e coragem, entre dois gemidos abafados.

Elle mexia em tudo, arrumava tambem, pensava em muitas coisas, excitado, atordoando-se um pouco, dando ordens, e pretendendo ser o que tinha mais sangue frio para pensar em todas as coisas; para o provar repetia mil vezes que fossem chamar a comadre, e que não se esquecessem tambem de ir ao palacio prevenir Maria Helena, e a casa do dr. Ramalho, isto já quando todos estavam em casa e rodeavam a doente.

Emquanto ao tio, lembrou Bella que o não prevenissem e encarregassem o abbade de o levar para longe n’alguma visita ás propriedades que adquirira e que andava melhorando.

Soffreu ella muito todo o dia; João já desanimava, perdia a energia, pareciam-lhe eternas aquellas horas, e, disfarçadamente, a cada gemido de Bella, limpava uma lagrima silenciosa que lhe vinha aos olhos.

Só mais tarde já quando no horizonte aclarava o céo de uma rosea aurora primaveril, é que; n’uma convulsão de dôres e de gritos, a criança nasceu.

Josephina chorava de alegria recebendo o embrulho precioso que a parteira lhe pusera nos braços, indo palavrosa e desembaraçada tratar da mãe, que já sorridente e feliz perguntava — se era rapaz.

Todos fallavam a um tempo, em voz baixa, havia risos felizes olhando João, que não queria crêr que fosse um menino — nem já lhe importava, nem mesmo que morresse, o que queria era a mãe com vida, a mulher que amava com todos os transportes de amante, que o sentimento paternal não podia extinguir e tão sómente completar.

— Viviam ambos, felizmente, e que engraçado que era o gorducho, e tão feiosinho com a carita inchada de recemnascido, mas tão engraçado aos seus olhos, e tão amado tambem!

O restabelecimento foi rapido, e com a saude voltou a Bella a sua energia e bom humor. A criancita crescia a olhos vistos, querido e amimado por todos, só lhe chegando aos braços na hora marcada para mamar. Mas então o seu orgulho de mãe satisfazia-se bem com a alegria animal do pequenino glotão, que era bem seu, duas vezes seu, pelo sangue rubro de que o alimentara em seu seio e pelo branco leite correndo dos seus peitos como fonte de vida, de alegria e de amôr.

No meio da satisfação geral sómente D. Genoveva soffria da doença incuravel que trazia a filha em sobresalto e da ferida que o seu orgulho sentira com o escandalo dado pelo visconde, aggravado a seus olhos pela noticia que lera nos jornaes de que um grande leilão liquidaria em breve o palacio de Lisboa recheado de magnificencia e preciosidades, um verdadeiro museu de arte e mobiliario, como se não reuniria tão cedo outro na capital.

Sentia-se ferida na sua vaidade vendo o nome do genro, que era o seu proprio como tia, lançado assim á curiosidade publica, baralhado na confusão da sociedade como o de qualquer bricabraquista interesseiro ou pretencioso. Achava que a viscondessa se devia oppôr a tal venda, e era baldado o esforço do velho abbade para lhe fazer comprehender as vantagens que da presente situação advinham á filha, senhora emfim de viver ao seu gosto na serenidade de uma existencia sem obrigações, que intimamente despresava.

Muito agarrada aos velhos codigos nobiliarchicos, á boa senhora era custosa a conformação com essa maneira simples de ver as coisas, que se lhe antolhava por demais despresadora das leis da sociedade a que pertenciam.

A seu ver não devia Maria Helena ter sahido de sua casa, do seu mundo, não deveria ter despresado os parentes e amigos que em Lisboa lhe fariam uma côrte, de lamentos, anathematisando o procedimento do Visconde.

Custava-lhe realmente a comprehender que se preferisse a solidão d’aquelle grande palacio ao convivio das relações mundanas. Não attingia o motivo que levara a filha a, mesmo alli, cortar relações com toda a gente que mais ou menos a distrahiriam. Dir-se-hia que era ella a criminosa, ella a que tinha motivos para se envergonhar e fugir.

Depois essa maneira de fazer bem educando os filhos do povo para serem tanto ou mais do que os nobres, não lhe quadrava.

— Decididamente já não comprehendia nada do mundo, nem a gente nova se parecia com a velha — concluia pegando no crochet de lã grossa com que se entretinha a fabricar saias e casacos para as criancitas pobres, na convicção intima de que era assim que se praticava o bem; distribuir esmolas a uns e a outros conforme o capricho e a sympathia de cada qual, sem livros e sem escolas... Escolas para que?! Só se era para os criados se julgarem mais senhores do que os proprios patrões... A seus olhos, o mundo tinha-se voltado do avesso; se até o velho abbade passava sem dizer missa e respondêra com o despreso ás accusações que da camara ecclesiastica lhe tinham mandado!...

Valia-lhe o dr. Pinto, a irmã mais nova do abbade e as Cunhas para lhe fazerem a partidinha do whist e lhe irem contando os casos da villa; era o que a distrahia um pouco depois das rezas obrigatorias e da leitura, feita pela dama de companhia, de toda a grinalda romantica do principio do seculo passado.

Com a aproximação do inverno seguinte a sua saude resentira-se-lhe e muitos dias havia já em que a filha a não podia deixar. Habituada áquelle affecto sempre prompto e tocante, acostumara-se tambem a vê-la sacrificada sem um murmurio e acceitava como obrigatorio o que só o amor lhe offerecia.

N’um d’esses dias, em que, por Maria Helena não sahir, Bella a fôra visitar, viu com surpreza, á sahida, que uma carroagem parava ao portão e um homem se apeava, fechando-a logo cuidadosamente. Ia passar sem procurar conhecer o visitante, mas sabendo que a amiga não tinha segredos para ella e presentindo desgosto ou incommodo que a sua interferencia podia talvez evitar, resolveu dirigir-se ao desconhecido.

Sem saber porquê, pensou no Visconde e lembrou-se que seria porventura estrangeiro rico seduzido pelas maravilhas de arte expostas no catalogo do leilão, que preferisse comprar a propriedade em globo e para isso necessitasse a assignatura da viscondessa.

Tudo isto lhe atravessou o cerebro apenas no tempo preciso para se lhe dirigir perguntando o que desejava.

Muita habituada a conhecer a sociedade a que pertence qualquer individuo pelo exame rapido de toda a sua pessoa, Bella constatou no olhar em que o envolveu por completo que nada faltava ao trajo, consagrado pelo figurino britannico, de um homem rico em viagem.

Não sabendo muito bem em que lingua devia fallar a um homem que o cosmopolitismo parecia ter marcado fórtemente tirando-lhe a distincção de qualquer nacionalidade, perguntou em francez o que desejava.

Elle parou, cumprimentando. Era um homem de que se não poderia bem precisar a idade porque, se o busto se endireitava n’uma arrogancia de juventude, o cabello e o bigode já grisalhos davam-lhe uma apparencia de velhice precoce.

A pelle de um amarello verdoso denunciava longos annos de vida nos tropicos, as pregas mal difarçadas junto aos olhos, de uma intelligente viveza, accusavam uma longinqua mocidade mal aproveitada em vigilias e prazeres ou esgotadoramente trabalhosa. A bocca, onde fortes dentes ainda brilhavam, tirava ao rosto toda a expressão de bondade, franzida n’um rictus de ironia.

— «V. Exc.ᵃ poder-me-ha dizer se a sr.ᵃ Viscondessa está? — respondeu no mais correcto portuguez, acompanhando a phrase do seu riso escarninho, como quem esperava gosar do espanto da interlocutora.

Mas Bella pensou: — bom, já sei que é brazileiro que deixou a patria e com ella o soutaque da pronuncia e que vive cá pela Europa muito ao seu gosto. Conheço o typo geral, tão poucos existem, por cá! Principalmente em Paris, que é para todo o legitimo brazileiro o resumo das perfeições humanas, a terra promettida onde vão terminar todos os seus sonhos de ambição. — E respondeu sem se desconcertar:

— «A sr.ᵃ Viscondessa tem a mãe tão perigosamente enferma, que me parece inutil qualquer pedido de attenção. Mas se não é caso urgente, V. Ex.ᵃ esperará...

Reprimindo sob o seu eterno sorriso um gesto de impaciencia, respondeu:

— «Perdão, o caso não admitte a menor de longa.

— «Então, asseguro a V. Ex.ᵃ que minha prima não tem segredos para mim e pode confiar-me a sua pretensão. N’este momento é inteiramente impossivel obter d’ella uma audiencia.

— «Em todo o caso, repito, o que tenho a dizer-lhe não admitte delongas...

— Entraremos, pois, porque me parece que o mysterio se liga á urgencia e V. Ex.ᵃ me confiará a sua missão, subindo eu depois a communicar-lha. É o unico remedio que vejo.

— «Effectivamente... — respondeu curvando-se — não ha grande inconveniencia em dar contas a uma amiga da sr.ᵃ Viscondessa da minha espinhosa e mysteriosa missão.

Isabella baixou a cabeça e passando á frente fê-lo subir alguns degraus e entrar na sala, de que fechou cautelosamente a porta. Sentou-se junto a uma meza e indicou-lhe uma cadeira a que elle preferiu encostar-se, ficando de pé.

Tudo isto tinha sido feito com tanta serenidade e gentileza natural, tão sem sombra de pretenção ou vaidade, que o estrangeiro, evidentemente apreciador e habituado a julgar os mais raros exemplares da graça feminina, não poude deixar de manifestar no sorriso o encanto que o subjugava.

— «V. Ex.ᵃ dirá... — começou Bella para terminar o silencio.

— «Não sei bem como principiar, pois é estranho, em verdade, o motivo que me traz... — disse um pouco embaraçado.

— «Em todo o caso... — sublinhou com ironia.

— «Sim, em todo o caso o tempo urge e eu não posso deixar de dizer a V. Ex.ᵃ o que vinha pedir á dona da casa. Em primeiro logar, minha senhora, é da mais rudimentar cortezia dizer-lhe o meu nome. Chamo-me Pedro de Albuquerque. Isto decerto nada lhe diz porque estes grandes appellidos andam em todas as caras cá no nosso paiz...

— «Ah! V. Ex.ᵃ é portuguez?

— «Não e sim. Sou realmente portuguez de origem, e brasileiro de adopção. Mas como qualquer dos dois paizes me agrada menos do que Paris, foi lá que fixei residencia. E foi lá tambem que conheci ha alguns mezes uma pessoa, um homem que... por certo ainda deve interessar vivamente a amiga de V. Ex.ᵃ

— «Não me parece que exista hoje algum homem em Paris que disperte interesse a minha prima — respondeu ella friamente.

— «Um homem que foi, que é ainda, porque no nosso bello paiz não ha a lei redemptora do divorcio, o seu proprio marido — continuou sem deixar o tom de ironia que lhe era habitual.

— «A minha amiga dispensa bem a liberdade conferida pela lei, sentindo-se moralmente divorciada desse homem.

— «E no emtanto, veja V. Ex.ᵃ o que são as coisas! Eu venho exactamente trazer esse homem moribundo e pedir para elle a piedade da esposa — respondeu imperturbavel.

Bella levantou-se firme, crescida de orgulho e indignação.

— «Nunca lha pedirá, senhor.

— «Pelo amor de Deus, não me obrigue a ser indelicado, insistindo...

— Não! É um abuso, uma violencia. Ha um homem que atraiçôa vilmente sua mulher, que a despreza, sendo-lhe inferior, que a sujeita a todas as vergonhas e que por fim lhe atira com o nome á lama das ruas com o descaramento de um bandido que deixa no cofre, donde roubou os valores, o seu cartão de visita...

— «Minha senhora, mas esse homem está hoje morto e o desgraçado que lhe trago não tem de familia mais ninguem, alem da esposa. É justo que junto a ella se acôlha...

— «Justo porquê? Esse homem deixou de ter familia desde que foi o proprio a despreza-la; com que direito a procura agora?!

— «V Ex.ᵃ não me deixou explicar, não é elle que pede, somos nós, os seus amigos, ou antes os seus companheiros — emendou a um gesto de Bella — que resolvemos tira-lo de Paris onde não poderia viver entregue a criados...

— «Ha muitas casas de saude onde vantajosamente o poderiam internar.

— «Oh, mas seria escandaloso, um homem com o nome d’elle, tendo familia, patria, fortuna...

— «Oh o rico sentimentalismo masculino! Tudo o que elle fez, então, não destruiu aos olhos de V. Ex.ᵃˢ essas raizes que prendem um caracter leal e honesto?... — gargalhou com nervosa ironia.

— «Não seria bem feito, mas é tão vulgar...

— «Será, mas na minha opinião familia já a não tem porque a despresou e insultou. Patria já não a merece. Fortuna gastou-a com as suas leviandades. Portanto, nenhum direito assiste aos seus amigos de vir exigir da esposa um novo e doloroso sacrificio.

— «Mas, tenha V. Ex.ᵃ embora razão, moralmente fallando, o que é certo é que tambem se pode chamar uma crueldade o morrer no abandono o marido tendo a esposa fortuna...

— «Não sei o que a minha amiga faria se fosse chamada aqui, creio que seria bastante generosa para se sacrificar mais uma vez. Sou eu, comprehende V. Ex.ᵃ, eu que não quero, que não consinto que ella saiba esta traição que lhe querem fazer á sua generosidade, á nobreza do seu caracter — respondeu com violencia.

— «Perdão, minha senhora, mas sou eu que não desisto. Não sahirei d’aqui sem obter a resposta da propria dona da casa. Não posso reconhecer em V. Ex.ᵃ o direito de me expulsar — replicou, já alterado tambem, sentindo no embate de vontades crescer-lhe as violencias de um caracter energico.

— «Fallo-lhe em nome da justiça, senhor! Sei muito bem que os que vivem n’essa brilhante e desvairada vida de prazeres e divertimentos, conhecem d’esta palavra só o que dizem os codigos. Mas acima d’elles ha uma ideia superior, um criterio mais justo a que não creio que o seu espirito se tenha já fechado completamente. Milhares de homens e mulheres honestas e trabalhadoras morrem por dia de miseria e de abandono, longe da patria, escarnecidos pelo destino, abandonados de todos e de tudo. E ninguem corre ansiado a protegê-los, a leva-los nos braços cuidadosamente para os ir depôr na sua patria, para lhes ir deitar a cabeça moribunda no seio das familias. E ha um homem como este, que não teve virtude nenhuma, que não fez senão mal com o seu egoismo, de quem a propria intelligencia foi na sociedade um elemento corruptor, que da vida usufriu todos os gosos, e não ha lagrimas que não repuxem aos olhos, nem lenços de fina seda que não abafem gemidos! O que o senhor e os seus amigos querem fazer, impondo á mulher esse marido, que a villipendiou é, no meu criterio, uma infamia. Oppor-me, é o meu dever.

— «Minha senhora, V. Ex.ᵃ abusa do seu sexo...

— «Pode responder como quizer, porque eu despreso tambem as conveniencias que obrigam um homem a calar uma resposta altiva a uma mulher e o deixam babujar insultos sob forma de galanteios á primeira que passa, queira ou não ouvi-los.

Subjugado, vencido, o brazileiro respondeu conciliador:

— «E, no entanto, elle está lá em baixo moribundo, não contando ser recebido porque não tem já bem a noção do que se passa, mas em todo o caso devendo ser attendido.

— «E lá em cima está uma senhora, uma velhinha que era sua tia e foi-lhe mãe, na orphandade, que é a mãe de sua mulher, e a quem não respeitou os annos nem a saude. Tambem um abalo moral a poderá matar.

— «Mas n’esse caso?!... O que quer V. Ex.ᵃ que se faça?

— «Que o levem.

— «É impossivel. Para onde o levariamos agora?

— «Em Lisboa ha casas de saude.

— «Não chegaria lá. É uma crueldade! — E alterando-se de novo, n’uma violencia de quem não esperava ser contrariado, continuou — hei-de fallar á sr.ᵃ Viscondessa, não sáio sem isso. Elle é ainda o seu marido, o dono legal d’esta casa.

— «Tem razão, senhor — disse por detraz d’elle a voz maguada de Maria Helena, a quem tinha chamado a attenção a carroagem estacionada á porta e Bella altercando na sala com um desconhecido, segundo lhe dissera a criada de quarto. Descendo em seguida podera ouvir parte da discussão e comprehender o sacrificio que o destino ainda lhe exigia.

A ultima phrase do brazileiro ferira-a no seu orgulho e fôra elle quem lhe dictara a interferencia immediata.

Adiantando-se até ao grupo surpreso que os dois formavam, repetiu ao estrangeiro, frizando com ironia a phrase: — «Tem razão, senhor. Elle é ainda meu esposo, o dono legitimo d’esta casa, o senhor da minha vontade... Pode faze-lo entrar, que eu dou ordem para ser recebido como tal.

— «Ó Maria Helena!!... — gemeu a amiga abraçando-a, com as lagrimas a assomarem-lhe aos olhos.

— «Minha senhora! — curvou-se elle, tambem vencido pela emoção.

— «Deixa, Isabella, o sacrificio ainda não estava consumado.

— «Isabella?... V. Ex.ᵃ disse? — tornou atraz o brazileiro ferido por esse nome.

— «Isabella Burns, a minha unica amiga — repetiu a Viscondessa machinalmente.

— «Ó Isabella, como te não reconheci logo?! — rouquejou o desconhecido estendendo os braços n’uma supplica.

— «O senhor?! Porque?!...

E ante o olhar apavorado do homem que a fitava n’uma agonia, Bella deu um grito, reconhecendo-o tambem.

— «Meu pae?!...

— »Sim, sim — repetia estupidificado pela surpreza, recuando esverdeado e tragico, a bocca contorcida pela amargura, o cabello empastado, o bigode descahido n’uma lamentavel decadencia physica.