XV


Como se previa, e apesar da lucta desesperada do partido maximianista a que se tinham aggregado todos os trunfos da terra, ainda n’essa lucta eleitoral fôra o visconde o vencedor. Mas não desanimava nem afrouxava o enthusiasmo dos vencidos, porque o governo, após as eleições e apesar da maioria nas camaras, cahira vergonhosamente com a publicidade de uns casos de empenhos e empregos por demais escandalosos.

Dissolvidas as camaras pelo novo gabinete, esperava-se que o governo em dictadura marcasse data para eleições, e para ellas trabalhavam já com affan.

Os partidarios do visconde pleiteavam, mais por honra da firma do que pelo interesse que verdadeiramente a lucta já lhes despertava, visto que o chefe a pouco e pouco, tambem, se tinha desinteressado da politica, não faltando mesmo já quem affirmasse que era combinação com o Maximiano, senão pouca vontade de gastar dinheiro... Affirmações estas tão gratuitas quanto mostravam o desconhecimento completo do caracter do visconde, tão incapaz de se prestar a uma traição assim grosseira como era incapaz de vestir uma camisa manchada ou uma casaca fóra da moda; tão incapaz de antepor o dinheiro aos seus compromissos como era incapaz de faltar a um dever de cortezia ou de acrescentar as suas colleções com um objecto de que não podesse authenticar a procedencia. Não obstante, era certo e bem certo que o enthusiasmo da politica lhe passára como até alli lhe tinham já passado muitos outros. Voluvel, apaixonado e enthusiasta, era um d’estes caracteres que não se dão a meio e com a violencia passional com que se entregam a um desejo ou capricho, com o mesmo arrebatamento o abandonam sem piedade nem recordação.

Ficára, pois, deputado, como ficaria sempre emquanto o recenseamento não fosse falsificado ou se desse um caso que não previam, pela forca numerica dos caseiros das tres casas grandes da comarca e pela vontade espontanea do povo da villa que mais lhe queria, apezar de todos os seus defeitos, do que ao Maximiano, que não tinha pretensões nem desejos ambiciosos a realisar-lhes. A noticia de ter vencido recebeu-a com a mesma risonha indifferença com que receberia a da derrota.

Outro era agora o seu empenho, outra a sua ambição e cuidado.

Como o inverno se passára assim na villa decorria o verão, que esse anno não chegou a ter o bulicio e o animado convivio dos precedentes.

Ao conselheiro, agora no partido governamental, não convinha affastar-se muito das altas regiões onde se jogam os interesses politicos; era occasião de acceitar o pretexto que a mulher francamente lhe fornecia com o seu odio confessado á provincia em geral e muito particularmente á terra do marido.

O Vilhegas, casado de fresco, viera apenas com a senhora, no principio da estação, visitar os paes e irmãos de quem se fizera protector e respeitoso amigo, seguindo a maxima do sogro: de que os parentes pobres não se despresam — empregam-se.

E era o que ia fazendo, tendo já á sua conta uma não pequena parte de responsabilidade pelo dinheiro esbanjado criminosamente n’este paiz.

Mandára ainda pedir licença aos Mellos para os visitarem, querendo seguir á risca os preceitos do conselheiro que não gostava de levantar atritos, principalmente com gente rica; mas tanto Josephina como o marido pretextaram doença para os não receber. A maneira porque se apressára em arranjar casamento que lhe servisse os planos ambiciosos davam-lhes a prova de quanto eram justificadas as desconfianças de João e quasi a certeza de que a morte da filha a causára elle mostrando d’alguma maneira, que ainda não conheciam, que era a fortuna que elle visava quando mostrava um tão ardente amôr.

Hortencia, durante a sua estada na villa, aborrecia-se francamente, agora que já casada não encontrava na conversa com o marido os attrativos picantes do galanteio, e para uma sã e honesta intimidade espiritual nem um nem outro tinham alma nem educação. Affirmava cathegoricamente ao Móttasinho e ao Telles e mais ás Souzas e ás Cunhas, que lhe formavam a limitada côrte, — que se o Emygdio quizesse podia ficar; emquanto a ella, pas possible... A mamã esperava-a para irem juntas para Cascaes e não podia trocar por nenhuma a companhia da mamã, que demais a mais escolhera a praia chic, onde se reune a côrte e com ella toda a haute-gomme... Cela va sans dire...

A Candida tambem conseguira que o Braga a não obrigasse a vir alli passar o verão, tendo demais a mais o chalet em obras, que lhe não podia dar o conforto a que estava habituada. E o visconde, a pretexto de que o ar das montanhas não é aconselhado aos cardiacos, convenceu a viscondessa em procurar para a mãe uma estancia onde passasse socegada os grandes calores de julho a outubro, mais perto da casa e das commodidades da capital.

Apenas João e Isabella se estabeleceram alli, depois de uma visita larga a Inglaterra e d’alguns doces dias de inverno italiano passados a reverem juntos o que ambos já conheciam e admiravam.

Mas nem um nem outro animavam a terra: «dois bichos — no dizer espevitado das Souzas — que nem sabiam para que lhes servia o dinheiro e a educação...

Indifferentes a taes opiniões, um e outro começavam a pôr em prática o sonho de altruismo que juntos tinham architectado. No meio da sua grande felicidade um como pugir de remorsos lhes amargurava o espirito, achando injusta a vida que a uns colloca tão alto, bafejados pela fortuna em calentoso ninho, e a outros faz rastejar tão baixo pela estrada poeirenta da miseria e da dôr.

Ha muitos, ricos como elles, que sentem no silencio das suas almas piedosas o agrôr da comparação, e gosando do desafogo da propria vivença não podem fechar os olhos inteiramente á pávida realidade. Mas, incapazes de juntar a acção ao pensamento, traduzem essa piedade que os devia tornar uteis obreiros na grandiosa obra que o futuro reclama, dando esmolas, protegendo um ou outro, associando se á caridade farfalhuda e acomodaticia, fazendo o que se convencionou chamar o bem philantropico, e não passa de fórmula egoista para assocegar aturvados ânimos em sobresaltos...

João e Bella intentavam pôr em prática o seu ideal humanitário, não dando esmolas para entreter o vicio da pobreza mas educando individuos que, conscientes do seu valor e dos seus direitos e deveres, se acerquem da meza lauta que a natureza e a industria reservam aos que juntarem ao esforço material de obreiros a intelligencia e a educação.

Ajudada pelo dr. Ramalho e pelo velho abbade, já Isabella tinha organisado um rasoavel serviço de inspecção á miseria, que nas populações ruraes é tanto ou mais desoladora do que é nas cidades. Visitados pela doença e pela morte amiudadas vezes, curtindo fomes e frios sem alimento nem abrigo, quasi inconscientes e irresponsaveis pela ignorancia profunda em que se abysmam, mais do que a entes humanos se podem comparar a bravos animaes do monte...

Adaptando provisoriamente para hospital e para escolas duas velhas casas pertenças da familia, esperava em breve completar esses beneficios criando officinas, instituindo a créche, juntando ao asylo-escola para crianças, um asylo para velhos, mas governado de maneira a não fazer dos desditosos que se obstinam em viver uma especie de revoltados contra a propria beneficencia que os força á prisão.

Entretanto ia João pondo em execução o seu plano de um bairro operario, com casas simples mas não desprovidas do encanto que só a arte pode dar, bem saneadas e arejadas, com janellas e portas bem largas e com seu jardinsinho á frente e pateo interior onde se faziam as construcções proprias para acomodação dos animaes, que em toda a população rural fazem parte integrante e importantissima da familia.

João, todo radical e violento, como o avô materno que não transigira nunca com opiniões e preconceitos alheios, queria dispensar o concurso de toda essa gente da villa, que de sobra conhecia, e entender-se só com aquelles que devia melhorar. Mas n’isso não concordavam Isabella nem o abbade e o próprio Ramalho, antes mais habil lhes parecia utilisar elementos existentes para a organisação immediata de uma escola onde rapazes e raparigas aprendessem officios e misteres que os habilitassem a ganhar a vida no futuro. Para isso foram convidadas as pobres Sebastianas, que serviriam como professoras de bordados e roupa branca, o que fez com que a Aurora Costa, invocando a amisade da Pillar, viesse pedir tambem um emprego — pois o pae ganhava pouco e a familia era muita. Sabia talhar alguma coisa, se bem que nunca tivesse sido ensinada, e fazia flores e bordados muito especiaes em cascas e aparas...

Isabella teve um sorriso de amargurada censura a tão pouco prática educação e disse-lhe — que sim, que a utilisaria como ajudante de uma professora de córte que mandára procurar em Lisboa, e que, mais tarde, se essa senhora não quizesse ficar ou ensinasse outra qualquer coisa, a Aurora, em sabendo bem, tomaria o seu logar.

— Mas — lembrava-lhe ainda — precisava d’uma senhora que a auxiliasse no trabalho de escripturação e contas que taes emprehendimentos necessitam, um trabalho material que não requer grandes conhecimentos e sim escrupulosa meticulosidade e uma lettra rasoavel. Se quizesse, podia ficar já n’esse logar.

A Aurora córou e confessou, vexada, que escrevia muito mal e que de contas sabia pouco; piano é que tocava alguma coisinha, se fosse preciso ensinar...

— Não, — respondeu-lhe a outra tambem vexada porque, naturalmente bondosa, nunca fazia sentir a ninguem a sua inferioridade — piano não precisava, porque pretendiam educar para o trabalho e para a vida, e o piano, como qualquer outro instrumento ou arte, só se queria cultivado em pessoas de rarissima vocação e ensinado por professores bem habilitados, aliás era uma inutilidade. Mas experimentasse ella estudar um pouco de contas e português e depois com a prática faria o resto.

O abbade andava radiante: aquillo sim, aquillo é que era a verdadeira religião, que fervorosamente praticava. Mal de manhã dizia a missa conventual, abalava para os campos a farejar desgraça, que podessem minorar. E doente que encontrasse ou criancita a mandar para a escola, ou mulher a reclamar cuidados de sabia hygiene, era logo apontado na carteira, com o alvoroço de quem aponta rendoso negocio a aproveitar e que não deve esquecer.

Práticas que fazia aos domingos todas versavam sobre a conveniencia de se instruirem e trabalharem, que era assim que Deus queria o seu povo. — «Casa onde não ha pão todos ralham e ninguem tem razão — dizia na sua phrase chã, simples como a sua alma e facil de comprehender por todos os humildes que lhe frequentavam a igreja — ora vocês trabalhando e tendo saude têm que comer. Aos domingos, se se entretiverem a estudar um pouco, a lerem bons livros para não ficarem uns brutos como os animaes que os servem, se cultivarem as suas flores no quinxoso ou nos vasos da janella, que isso não é peccado nenhum, desamparam as tabernas e não se mettem em rixas e bulhas que não dão bom pão. Olhem vocês que o que Deus quer é a alegria e a felicidade de nós todos; deixai dizer quem préga o contrario...

Na sua santa inconsciencia, que bem preoccupava as irmãs, deixava que o cura se assenhoreasse a pouco e pouco das obrigações da parochia que traziam bem estar e lucro, que as outras as ia desempenhando sempre o velho. Era agora elle, o padre Mathias, quem dizia a missa das onze e esperava na sachristia a passagem das senhoras que se habituavam a encontra-lo alli para tratarem dos negocios espirituaes em que as entretinha. Era elle que as confessava e lhes insuflára o gosto pela devoção do mez de Maria, tão habilmente escolhida para esse dulcido mez de maio em que as rosas desabrocham perfumando a atmosphera, e os corações moços deliquiescem em ansias de consoladora ternura... Era quem lhes fazia as novenas e lhes levava as filhas á primeira communhão, em procissional theoria; era o indispensavel em tudo.

E gabava-se para o Telles:

— «Você verá quem vem para a festa do Sagrado Coração! É uma bomba que ha de estoirar ahi.

— «Quem é então?

— «Se lho disser fica sabendo mais do que eu...

— «Ora diga lá, ande, bem sabe que sou de confiança. É alguem que eu conheça?

— «É alguem que nos dá a certeza de nunca mais cá metterem o bico no concelho...

— «Ah!... É o André de Athayde?...

— «Adivinhou ou alguem lho disse. Apre! Tem custado, mas agora é que é definitivamente nossa a victoria.

— «O recenseamento já não estava mau...

— «Mas o grande caso ainda não é esse...

— «Então qual é?

— «Não digo; confio em você mas o seguro morreu de velho...

— «Olhe que isso até me offende! Sendo eu de confiança do Emygdio, que até me fará seu secretario particular logo que seja ministro, nem sei agora o que pensar dos seus segredos.

— «Vá lá, não se zangue. O caso é que não só vem o André Athayde com o Padre Sancho como trazem os dois missionarios que têm levantado toda essa provincia com a sua palavra temerosa!...

— «O que vejo é que você mudou de todo! Ha pouco mais de um anno que era todo liberalão e até tinha raiva a esse André da Fradosa por causa de ter causado a morte ao filho, com a beatice. Lembra-se?

— «Agora vejo as coisas melhor... O Pedro era um asno, quem no mandou fallar antes de tempo? Casasse primeiro que depois de senhor da fortuna da prima é que podia cantar...

— «Mas você era o primeiro que dizia que elle era uma joia, um caracter esplendido, e que foi o pae quem o matou com as más ideias reaccionarias.

— «Não se queria sugeitar, pois neste mundo quem quer ser independente de mais acontece-lhe assim. Diz que foi o pae que o matou, ora! Foram mas foi as pandegas lá de Paris.

— «Oh homem, já lhe ouvi dizer, e a muita gente mais, que o Pedro era até um rapaz honesto e sério, como dizem que é o sobrinho, que foi companheiro e amigo intimo do João de Mello...

— «Pois sim, era até honesto de mais porque chegava a ser parvo com as taes franquesas. E d’ahi, que mal lhe faziam os padres e as irmãsinhas lá em casa? Deixasse. Hãode ir para muito longe os taes meninos educados nas ideias modernas!

— «Oh Sr. Padre Mathias, olhe que parece que o voltaram de pernas para o ar. Parece até impossivel que um homem como você era se mudasse assim! Isto até me faz mal, creia. Tomára que o Vilhegas me arranjasse um logar lá por Lisbôa, porque aqui abafa-se. Hãode tornar esta terra inhabitavel. Eu, que me preso de ser liberal e tenho confiança que a sciencia e a instrucção hãode transformar o mundo, sinto-me manietado e impotente, com os nervos tangidos n’um sobresalto deante do reaccionarismo triumphante.

— «E você cuida que lá por Lisbôa não é o mesmo?... Está enganado, pergunte ao Vilhegas quem é que lá manda agora.

— «Mas a par d’isso ha muito quem se liberte, ha maneira mesmo de se reagir sem todavia ser um revoltado.

— «Pois sim, faça você versos, que eu cá trato da vida comforme calha. E deixa-me ir á prosa, que é como quem diz á vida, que a morte é certa. Preciso de encontrar sem falta aquelle velho tonto do abbade que sae de madrugada e só recolhe á noite. Hade ganhar muito em se metter com a ralé, deixe, assim como o Ramalho e a tal inglesa e o marido que querem fazer d’estes brutos gente livre!...

— «E porque não?

— «Você é nephelibata, oh Telles! Eu cá não o entendo. Pois se approva aquellas lindas ideias, — que lhes hãode dar na cabeça, verão! — vá com elles.

— «Olhe, sr. padre Mathias, a dizer a verdade, a minha sympathia intellectual têm-na toda. Não vou com elles porque sou amigo do Emygdio e tenho necessidade de subir, de ser mais alguma coisa do que simples boticario d’aldeia. Para isso têm cá o Domingos desde que você o passou, com a tropa toda, para o seu lado...

Torcia o bigode, ironico, emquanto o cura, para não responder, protestava pressa e ia dizendo entre dentes:

— «Pois sim, rala-te! Tem mais juiso do que tu com as tuas republicanices...

Foi a correr para apanhar o abade na igreja depois de recolher do enterro de uma pobre viuva, que deixava quatro filhos sem outro patrimonio mais do que o dia e a noite. Preferia fallar-lhe alli, de surpreza, antes do que em casa, onde os olhos de D. Joanna o obrigavam a morder-se n’uma impotencia de remordimento culposo.

Tão feliz que foi a tempo de o abordar já quando recolhia, tiradas as vestes cultuaes, e, de passagem, piedosamente, se ajoelhára nos degraus do altar mór.

Pedia-lhe o seu consentimento e concurso para que nova e mais luzida festa se fizesse ao Coração de Jesus, coincidindo com a communhão das meninas, que andava preparando...

— «Que sim, — respondera o velho, farto de ouvir reprimendas da irmã mais nova e de perceber os sustos em que vivia D. Joanna — que prestaria o seu concurso de bôa vontade. Como era servir a Deus, de qualquer maneira lhe agradava...

— «Mas, sr. abbade, é que nós tinhamos ideia de convidar os dois santos missionarios que têm levantado a sua voz auctorisada até na Sé, deante do sr. bispo, para virem fazer algumas práticas e preparar as crianças, e moralisar esse povo tão desenfreado...

Aqui deu um salto o velho abbade e, olhando o cura de alto a baixo, respondeu-lhe com uma voz vibrante, que o tornava respeitavel, apesar da sua estatura quasi a dobrar e da sua pobre batina no fio:

— «Mal me parece, sr. cura, que venham a esta terra, onde só ha ovelhas mansas, esses caçadores de terriveis lobos, para, em vez dos seus pastores naturaes, as conduzirem a melhor pastio. Se para missionarios têm vocação, para que preferem estas bôas terras onde todos adoram Nosso Senhor Jesus Christo e na sua lei vivem, e abandonam tanto infiel á negra ignorancia e idolatria?!...

— «Nós não temos nada com isso; prouvera a Deus que eguaes meritos me fizessem a mim tão admirado e estimado como elles.

— «Pois sim, mas esta gente é que não precisa de quem lhe faça práticas, antes lhe faz mingua quem lhe dê pão...

— «Sr. abbade, sr. abbade, — gritou o cura desvairadamente, vendo-se contrariado por quem até ahi lhe não tolhêra o passo.

— «O que é? — respondeu o velho com serena grandeza.

— «Veja o que faz, olhe que o sr. bispo approva a nossa ideia e elle saberá quem nos contraria.

— «O sr. bispo, como meu superior, póde affastar-me da minha igreja, mas não pode, emquanto eu estiver sentado n’aquella cadeira de parocho, obrigar-me a receber intrujões que só querem desvirtuar a palavra de Christo e conduzir o povo ao barbarismo. A isso não me obrigará elle, nem ninguem!...

— «Previno-o mais uma vez, sr. abbade!... Olhe que lá diz o dictado: «com teu amo não jogues as peras».

— «Podem tirar-me o pão, mas ninguem me obrigará a falsear a minha consciencia.

— «Aqui não ha consciencia, ha desobediencia, — gritou fóra de si.

— «Vá, sr. cura; demais sei eu o que o senhor é e o que pretende. Diga ao sr. bispo que estes braços trémulos de velho, cançados de se levantarem em supplicas ao Deus piedoso e bom que nos deixou o testamento do Evangelho, ainda terão forças para pegar na enxada e ganhar o pão honradamente para mim e para os meus.

— «Sr. abbade, não me cance a paciencia — rouquejou o cura, vendo o sachristão e o sineiro pararem assombrados á porta da sachristia.

— «Paciencia demais tenho eu tido, sr. cura, e já me basta de lhe ouvir as hypocrisias e fingimentos. Nunca por nunca, fique sabendo, emquanto eu fôr parocho d’esta terra, hãode ouvir os meus parochianos quem os desnorteie e afflija.

O padre Mathias sahiu a deitar lume pelos olhos — na expressão ingenua do sachristão — e n’essa mesma noite partiu aforradamente para Fradosa, a conferenciar com o fidalgo e com os missionarios seus hospedes.

Tres dias depois teve a resposta á sua justa objurgatoria, na noticia de que a missa lhe era tirada, ficando suspenso emquanto não respondesse ás accusações que lhe eram feitas: — de despresar o culto divino, tratar tão sómente do bem corporal, entravar com seus discursos e opposição toda a iniciativa dos bons catholicos para uma salutar propaganda religiosa... A seu tempo seria chamado para se defender.

— «Defender-me eu? — dizia, mal segurando a carta nas pallidas e vacillantes mãos — defender-me de quê, se de nenhum mal me accusa a consciencia?!...

— «Então que lhe dizia eu, mano?! Se o seu defeito é ser franco!...

— «Pois fui e não estou arrependido; tiram-me a igreja, tiram-me as obrigações, mas tenho as devoções...

— «E obrigações tambem, querido amigo, — disse Isabella que tinha entrado, chamada pela criada do abbade que n’um pulo a fôra prevenir d’aquella grande afflicção.

Abraçou os velhos soluçantes, tentando em vão conter as lagrimas que a pungitiva scena lhe repuxava aos olhos.

Por fortuna não tardou que João accorresse ao seu chamamento e, para maior consolo dos velhos, acompanhado pelos paes: Josephina, não querendo abandonar as amigas n’essa hora de provação; Antonio de Mello, muito grave, pesando bem as palavras da carta que o abbade lhe entregára.

— «Mas o que é isto — dizia João, animadoramente — ha aqui quem chore e esmoreça por ser perseguido em nome da hypocrisia e da ambição?!... Ora vamos, tia Joanna — desde criança que assim chamava a velhinha, que bem como sobrinho o amára sempre — isso nem me parece seu! O nosso abbade já o não é da parochia, melhor nos póde servir e ao povo que tanto ama. Tiram-lhe a igreja, tem a escola; tiram-lhe a missa, tem a communhão espiritual dos infelizes. Não acompanhará os mortos que vão para a vala, ajudará a bem morrer os que não tem que deixar em testamento...

— «Vamos, sr. padre Antonio, — ajudou Isabella — mais do que nunca o seu concurso nos é preciso, mais do que nunca é urgente que se dedique á nossa obra de redempção.

— «Nada de lagrimas, que felizmente não lhe tiram o pão. Procuravamos um director para o asylo, têmo-lo felizmente agora, e o melhor que podiamos esperar.

— «Não é a falta de dinheiro que nos mortifica, Joãosinho, é a desconsideração...

— «E vêr aquelle marôto tomar o logar do nosso irmão, como se já estivesse morto! — soluçou a outra irmã.

— «Deixe, mana, que isso não me magôa. Bemventurados os que soffrem perseguição pela justiça. E vamos mas é tratar de sahir d’esta casa, que desde hoje deixa de pertencer-me.

— «Ora até que emfim! — disse João, sorrindo — É preciso trabalharmos todos para hoje mesmo irem para nossa casa e deixarem a residencia para o sr. cura...

— «Não, prefiro que me alugue a primeira casa que se acabou no nosso bairro. Pois não sou eu agora um operario, um trabalhador, como aquelles a quem as destinamos?!

— «Concedido e approvado, e será a melhor festa de inauguração que podiamos sonhar!

— «Chega a ser symbolico — concordou Isabella gravemente — e hade dar-nos ventura, porque prova a justiça da nossa causa.