XVI


Ia o inverno quasi no fim, e, apesar de não estar frio, os ultimos dias tinham vindo tão chuvosos e tristes que a viscondessa se conservava junto do fogo n’um enregelamento d’alma tiritante de abandonada e tediosa.

O que lhe custára esse ultimo verão que passára, sacrificada, sem ir gosar os seus mezes de verdadeiras férias na casa de provincia em que tinha nascido e onde lhe andavam esparsas as melhores saudades da sua vida, diziam-no bem o empallidecimento das suas faces, o amortecimento dos seus bellos olhos de peninsular. A melancolia que a principio fôra uma ligeira sombra, como nuvem que se esgarça e dilue em céo puro, começava a avolumar-se, carregando-lhe a expressão e avelhentando-a quasi.

Era a impressão que teria quem lhe podesse vêr o ar mortiço, o quebramento de forças e de vontade que a tinha alli em frente do fogão, — um livro aberto, no regaço, os olhos presos na chamma que se avivava ou amortecia, seguindo caprichos de fórmas e phantasias de desenhos varios.

N’aquella hora triste que precede a noite, quando o céo enlividece com a ultima claridade de um dia que se arrastou pardacento e molle, e nas ruas encharcadas o gaz começa a reflectir-se em largas manchas espelhadas, os pregões n’um rouquejar de miseria atiram para a vida o ultimo soluço e os que passam açodados sob a chuva têm o ar de sombras que se esgueiram e desapparecem mysteriosamente na noite, a viscondessa sentia-se tão desoladamente só, tão abandonada de gosto e desejo que pouco mais tinha da vida além do brilho dos olhos, que conservava presos no faiscamento do brazido.

Cahira, havia mezes, n’uma d’essas tristezas vagas e sem causa aparente, que nenhum divertimento consegue afugentar e que já na medicina é tida como prognostico de doença que é das mais teimosas e caprichosas que atacam as almas e os cerebros rudemente experimentados pelo trabalho ou pelo soffrer.

É que a paixão de Bella e João, observada e sentida de perto, como se a sua alma lhe fôsse abrigo, levara-lhe todo um anno n’uma sobre-excitação, n’uma alegria que a volvera criança, que a fizera viver essa época unica da sua existencia em que amara, fôra amada e sonhara a vida um roseo sonho sem despertar, que julgou a realidade.

Ao lado da amiga, aconselhando-a, acompanhando-a e guiando-a em todo o complexo assumpto do enxoval, o seu espirito chegaria, talvez, a possuir-se da ideia de que era sua aquella felicidade.

Depois, com o casamento d’elles, a solidão fizera-se-lhe mais completa, a sua alma cahira mais fundo na indifferença d’uma existencia que não tinha um fim.

É certo que não abandonara o que chamava os seus deveres de mulher de sociedade, tendo camarote em S. Carlos, indo ás primeiras representações, frequentando as festas elegantes, dando o seu nome para todos os divertimentos de caridade, recebendo semanalmente n’umas reuniões intimas a que ia toda a Lisboa, ella que não tinha intimidade com ninguem.

Mas tudo isso o fazia por habito, com o espirito alheado e desinteressado d’aquella vida em que o corpo se lhe fatigava.

Não obstante, — tão grande é em nós essa força! — adquirida pelo uso conseguia communicar ás suas festas uma alegria de que estava bem longe, e tinha espirito e intelligencia bastantes para intellectualisar mesmo essas reuniões, que havia dois invernos estavam na moda e para as quaes se mettia empenhos para ser convidado, como se fosse a iniciação da suprema elegancia ser recebido n’aquelle interior aristocratico.

Na verdade, a severa compostura do seu porte e a graça exangue do seu sorriso diziam bem com o rico mobiliario herdado e que o visconde acrescentava sempre n’um enthusiasmo de apaixonado bric-a-braquista.

Entre os pesados cadeirões com pés de garra, os tamboretes de velludo lavrado, os pannos d’Arrás forrando as paredes onde os avós se alinhavam em solemnes attitudes, os reposteiros armoriados, os bufetes e contadores, n’uma uniformidade de estylo que era a maior preocupação do visconde, essa nobre figura de mulher d’um ancestral perfume como que completava o conjuncto.

No entanto, a verdadeira alma de todas aquellas festas era o proprio visconde, que nos ultimos tempos mudara as suas predilecções e habitos, a quasi ser outro homem. Conservava-se sempre no salão junto das senhoras, indo de fugida e contrariado á sala de jogo, respondendo distrahidamente a quem o abordasse para negocios e politica.

Tornára-se o idolo das mulheres, que lisongeava nos seus gostos e caprichos, discutindo modas, organisando festas onde podiam exibir o encanto dos sorrisos e o luxo dos vestidos copiados dos grandes retratos de mestres, escolhendo as musicas com que as fazia dançar, e não deixando fugir os rapazes para as salas de fumo, sendo emfim a alma de toda uma sociedade que vive para se divertir.

Tinha ditos de espirito que faziam época, e a pessôa que distinguisse uma vez tinha a certeza de estar em evidencia, pelo menos oito dias.

Mas eram ainda as mulheres as suas mais sinceras admiradoras, porque lhes deviam momentos de orgulho satisfeito, porque as envaidecia e lisongeava sem o dizer, só porque era um homem d’espirito que se divertia e se mostrava alegre junto d’ellas.

Por isso sorriam n’uma tacita desculpa, quando os descontentes e os adversarios boquejavam sobre a sua grande intimidade com o Braga usurario, que aproveitava a situação politica do Visconde para fazer o seu jogo e augmentar a fortuna, sem embargo do fausto em que a Candida vivia.

Tambem esta se tornára a mulher da moda, em que todos fallavam, que as modistas vestiam como figurino, que os homens cortejavam, que as outras invejavam, procurando-a e convidando-a, não obstante, para todas as festas, porque seria uma falta de actualidade imperdoavel não mostrar entre as flores das grandes jarras da China, os espelhos de Veneza e os biombos laqueados, esse busto de mulher que se desnudava com orgulho e tinha soberbas attitudes de marmore antigo.

Sorria, sentia-se feliz, quasi bondosa á força de felicidade n’aquelle meio elegante e futil que correspondia a todas as aspirações do seu espirito. Se n’elle tivesse nascido, se não tivesse consumido a infancia no sonho ardente de todos os gosos que o dinheiro pode trazer a uma alma que de vaidades vive, não teria sido a mesma Candida que empurrara para a sepultura a que lhe fôra mais do que irmã.

Perversamente egoista e ambiciosa era tão culpada por isso como pela belleza fatal que a tornara uma força da natureza.

Filha do meio, herdeira d’um sangue que o alcool envenenara, adulada em vez de severamente orientada pela educação, era como bella e orgulhosa flor cujo pé mergulhado no pantano de morte e podridão nutre o encanto das suas petalas.

Desvanecida a anthipathia que a principio inspirara á Viscondessa, tornara-se á força de delicadezas e blandicias a sua amiga mais intima, quasi da familia, um dos atractivos das suas festas. E n’esse convivio aprendêra o segredo de usar o luxo com a indifferença elegante, que raro alcançam os ambiciosos que a fortuna visitou tarde, já depois da miseria lhes ter imprimido a marca de vulgaridade.

A Viscondessa é que não era feliz n’um meio onde tudo é falso mas brilhante, onde só se cuida de apparencias, n’uma sociedade que se acotovella desrespeitosa na ambição de gosar e subir, n’uma sociedade que despresa almas e sómente se curva ao dinheiro e ao poder.

D’ahi aquelle eterno sorriso, aquelle deixar correr a existencia sem lagrimas nem alegrias, que lhe dava o ar mortiço e egual de quem anda por habito no mundo, sem energia nem desejo de correr á feira d’interesses e luctas que desvaria quasi todos.

Sentia-se só. Faltava-lhe a companhia de Isabella Burns, cujo espirito arejado e vivo se tornara uma necessidade do seu coração. Porque, se é verdade que Bella tinha uma dôce e nobre alma feita para comprehender os mais elevados ideaes, no seu espirito deixara fundo traço a educação prática que recebera. Era uma meredional pelo queimor do sangue, pela vivacidade da phrase e pela paixão; mas tinha a dar-lhe a fórma viavel no mundo o altivo bom senso, que a tornava um espirito prático, um d’estes caracteres que as mesquinhas contrariedades não quebrantam e á força de persistente energia realisam o que no dizer da maior parte não passa de utopias de sonhadores.

As suas cartas vinham cheias de enthusiasmo pelos trabalhos já executados e vibrantes de esperança pelo muito que ainda tencionavam fazer. Fôra por ellas que a viscondessa soubera da intriga que tornara o velho abbade uma victima das invejas e ambições do cura, e fôra por ellas tambem que lhe constara a entrada para o hospital e para o asylo da Misericordia das irmãs hospitaleiras, tornados assim succursaes de conventos e collegios, com pretexto de beneficencia... O que podiam fazer os seus amigos n’uma terra assim illaqueada, com a protecção interesseira do Maximiano que sem embargo se apregoava ainda um velho e convicto liberal?!... Por ella, sem força nem vontade para luctar, decerto que desistiria limitando-se a fazer o bem compativel com as suas forças. Mas Isabella protestava. — Que lhe importava que todos esses burguezes roidos de ambições e mesquinhos de interesse preferissem continuar a viver na ignorancia e na falsidade?! Ella oppunha-lhe o futuro com a fundação da sua escola de enfermeiras para a qual o tio lhe abrira já um crédito no banco de Londres, opporia a illustração e a intelligencia á rotina e á ignorancia. Quando tivesse no seu instituto enfermeiras bastantes, educadas segundo os preceitos da sciencia e da hygiene moderna, com ellas se apresentariam a todos os medicos dos hospitaes portugueses e veria então a Maria Helena se esses homens, que representam a sciencia e são como que os fiadores da vida de seus irmãos, teriam coragem, ainda os mais reaccionarios, para lhes preferirem outras, ainda que bondosas, mas sem illustração ou curso que as faça uteis collaboradoras na obra da sciencia. Esperava fazer em Portugal a luminosa obra que em Inglaterra realisou Miss Florence Nightingale, assim vivessem... E com respeito a asylos e escolas o seu projecto era o mesmo... A não ser que n’este pais já se tivesse obliterado por completo a noção da justiça, claro que os mais bem apercebidos para a lucta é que seriam preferidos...

Maria Helena duvidava... tinha já visto tanto e sentia-se tão desanimada de triumphos que a politiquice e a mariolada eleitoral não bafejassem, que sem querer o espirito se lhe entravava na descrença que aliena tantos corações honestos, que quebra tanta iniciativa proveitosa.

Quedava-se n’aquelle vago scismar que era agora a sua melhor distracção, quando uns passos apressados pararam á porta e uma voz perguntou de fóra:

— «Minha senhora, minha senhora, posso entrar?

— «Entra.

E Rosalina, a criada de quarto, uma trigueirita alegre que adorava a ama, entrou dizendo vivamente:

— «É a senhora D. Bella, apeou-se agora, vae entrar...

— Que tolice! — duvidou, entre alegre e desconfiada, a viscondessa.

— «Tenho a certeza! — affirmava a rapariga, expansivamente, feliz em trazer uma alegria assim.

Emquanto ella ia á janella ver se descobria alguma coisa que confirmasse a noticia, Rosalina accendia o candieiro velado pelo abat-jour de seda rosa e dispunha com uma certa ordem os livros e retratos que se amontoavam sobre o grande buffete do centro.

Mas a porta abriu-se logo e a voz clara de Isabella chamou:

— «Maria Helena, estás aqui?

Por um momento as duas estiveram abraçadas, beijando se e rindo com aquelle riso chalrante de mulheres novas que se estimam e se vêem depois de grande ausencia.

— «Bôa surpreza! Como se resolveram?... — perguntava, custando-lhe ainda a acreditar.

Foi preciso que Bella recebesse primeiro os comprimentos de Rosalina e lhe desse noticias circunstanciadas dos seus, que tinham ficado de saude e mandavam recados; que se desembaraçasse depois do chapéo e da grande capa de viagem e passasse ligeira os dedos pelos cabellos, a concertá-los, para responder ás perguntas insistentes da amiga.

— «Não imaginas como vinhamos alegres pela alegria que tu sentirias — dizia pouco depois. — Durante a viagem não fallámos n’outra coisa, o João e eu.

— «É verdade, e o João onde está?

— «Foi arranjar quarto no Alliança e mandar para lá as malas, emquanto eu vim dizer-te que tinhamos chegado. Quiz ir ajuda-lo, mas não consentiu porque entendeu que nós estavamos anciosas por nos abraçarmos. Era verdade, não era?

Voltou-se toda, pondo as mãos nos hombros da amiga.

— «Mas o que é isso, Bella?! Estás d’uma gordura espantosa!

Rindo muito, a outra sentou-se com a maneira pesada e desgraciosa da mulher gravida, e respondeu:

— «É verdade, carrée, como diria mademoiselle Hortense, d’uma gordura que nos enche de esperanças e de felicidade.

— «Oh Bella, e não me dizias nada?!

— «Isto era a maior surpreza projectada.

— «Como eu vou amar esse pequenino anjo que é teu, que é do João, que hade tambem ser um pouco meu, não é assim? E não dizeres nada! É capaz de lhe teres já feito enxoval sem eu ter pensado em coisa alguma. Quem o déra ver! de quanto tempo, para quando vem?

Sorria para a amiga, pegando-lhe na mão, enchendo-a de carinhos maternaes, approximando um tamborete para descançar os pés, voltando o écran para lhe tirar o calor do rosto, perguntando coisas, fallando sempre na criancita que lhes viria encher a existencia, vibrando na approximação d’essa maternidade que a tornava quasi mãe, a ella que soffrera sempre da esterilidade que a deixara em irremediavel solidão, quando, por desilludida, o amôr do marido lhe desaparecera.

Bella sorria pacificamente, n’uma grande beatitude de felicidade intima; a voz tornara-se-lhe mais grave, pontoada de grandes silencios extaticos, por vezes irritada, outras, á menor contrariedade, chorando nervosamente por coisa nenhuma.

— «Isto — contava, risonha, á amiga — faz andar o João sempre em cuidados, e parece que mais me estima ainda pelo que eu soffro.

— «Mas soffres muito, muito? Porque mo não dizias? É preciso consultar algum medico.

— «Para quê? D’aqui a cinco mezes todos os encommodos serão passados...

— «Como és corajosa, bravo! não sentes então nenhum receio?

— «Para fallar com franqueza, lembra-me ás vezes que posso morrer e isso faz-me passar um calafrio pela espinha. Não me importaria morrer se fôsse infeliz, mas sinto-me tão amada, que na verdade seria estupida a morte. Demais tendo tanto desejo de ter filhos, que já me ia tardando esta gravidez, que me deixou mais de um anno na espectativa... Nem eu queria dizer o desgosto que tinha para não torturar o João!... Mas agora estou socegada; anima-me o pensamento de que ha tantas mulheres que têm filhos sem perigo, que é impossivel que a mim me não aconteça o mesmo. Quando vejo os pastores trazerem á tarde para casa os cabritinhos e cordeiritos, que as mães tiveram no campo entregues a si mesmas, sem trabalhos nem perigos... penso que nós não devemos ser menos protegidas pela sabia natureza. É uma coisa tão natural esta!...

— «Pois é, e tu has de ser muito feliz, verás. Dizem os medicos que a vida sedentaria e a má educação physica da mulher é que trazem todos os perigos á mãe dos nossos dias.

— «É verdade. Todos os tratadistas o dizem.

— «Já vês; então não ha perigo para ti, que tiveste uma educação physica bem dirigida e ainda hoje tens uma vida activa.

— «No fim de contas, é uma questão de sorte. Quantos animaes soffrem e morrem tambem!... No entanto, não vale a pena pensar n’isso, é uma pequena percentagem.

— «Ora, tu has de ser feliz, tenho a certeza. Quem me dera já ver o focinhito tontinho do nosso bébé! Eu que gosto tanto de crianças, como hei de amar esse que é nosso!... Acho-lhes tanta graça quando são pequeninos e fecham as mãosinhas em murro, e riem, e fazem caretas!...

— «Que estupida coisa não teres filhos! E tantas mulheres que os não desejam, que os aborrecem até. Vem-lhes como castigo.

— «Pobres d’elles!

— «A proposito, que interessante ha-de ser o desespero de m.ᵉˡˡᵉ Hortense quando perder a sua elegancia de fada!

— «Faço ideia!

— «Não os tornaste a vêr?

— «Só de longe, felizmente.

— «O Vilhegas está empregado?

— «Quem o poderia estar melhor?! Medico no hospital, especialista em doenças de senhoras, consultorio elegante na rua Nova do Carmo, deputado, lente, e dizem que o primeiro indigitado para ministro...

— «Tudo é possivel n’este paiz.

— «Elle é, incontestavelmente, intelligente.

— «Mas tambem, incontestavelmente, um vil, sem caracter nem escrupulos.

— «O que se diz por lá de politica e do Duarte?

— «Que não fazia caso dos amigos, que não respondia ás cartas de empenhos, e que, por esse motivo, se vão passar os ultimos fieis. Com o auxilio do vosso rico primo da Fradosa aquillo ficou nas mãos dos maximianos, mas aggravado pelo fanatismo que o padre Mathias vae atiçando...

— «E o nosso abbade? Devia ser uma scena desoladora a da sahida da residencia!

— «Se te parece ha quarenta annos que alli viviam! Já a tinham como propriedade sua. A tia Joanna portou-se com heroicidade. O velho chorava de dôr e de alegria, levado em triumpho por toda aquella bôa gente do povo que chorava e gritava. As mulheres faziam uma bulha!... Se houvesse alli quem quizesse dirigi-las, parece-me que o cura havia de passar um mau bocado.

— «Já lá vi duas revoltas d’essas, interessantissimas, uma por causa do fisco, outra d’uns maninhos que queriam tirar ao povo, — sorriu a Viscondessa.

— «Mas o nosso bom abbade não queria violencias; coitado, elle que é todo paz!... A irmã mais nova é que esteve com os sentidos perdidos immenso tempo.

— «Parece impossivel como ha coragem para fazer uma intriga assim tão infame.

— «Pois ha, e lá vive satisfeito e poderoso o sr. abbade que tudo manda. A tal festa ao Coração de Jesus foi um verdadeiro desafio, as crianças da communhão todas de branco e fita azul á cinta, coroadas de rosas como senhoras de Lourdes, os missionarios gritando improperios... As damas de fitinha escarlate no peito... uma verdadeira revista de forças.

— «E o povo?

— «Deixou passar, indifferente e desinteressado.

— «Ah! este povo português que parece já não ter sangue que lhe suba ás faces com vergonha... E ainda vocês sonham com o futuro! Com este povo que só parece já viver pelo unico interesse material de existir e comer!...

— «Falta-lhe educação. Não desanimemos, que talvez alguma coisa se faça ainda. O que me consola, n’aquelle caso do da Fradosa, é que o Pedro ha de vingar a morte do tio e secundar a nossa obra... Por emquanto é segredo entre nós. É um bello caracter.

— «Basta que seja o que foi o tio, coitado, que bem infeliz foi! Dizes então que o Duarte deixa de ter partido?!...

— «Parece, quando o Dómingos lhe fugiu!... O outro dia fez-se encontrado com o João e começou por lhe dizer que estava muito mal, passára toda a noite a conspirar para ver se lhe passava a constipação.

— «É mesmo d’elle!

— «Mas sabes o que queria? Que empregassemos o filho Dómingos Junior na pharmacia do nosso hospital, o tal que não fez inzame porque se lhe tolheu a falla nas gólas.

— «E vocês? — perguntou em frouxos de riso.

— «Dissemos-lhe que não. Ficou desesperado e não ha mal que não diga de todos nós.

— «Agora que está senhor do bolo, ninguem lhe chega á importancia.

— «É verdade, o que é o Telles, sabes?

— «Inspector não sei de quê...

— «É espantoso!... Em todo o caso eu é que ganhei com tudo isso. Ficarei livre de uma vez para sempre dos influentes politicos?!... Poderei pensar na minha terra e na minha casa sem o pesadello que me amargurava o tempo que lá estava, o melhor do meu anno?!...

— «Não soffres então com o triumpho dos maximianos!... — perguntou-lhe Isabella por troça.

— «Oh filha, quanto lho desejava ha muito!

— «Pois nem elle, nem principalmente a mulher, pensam ter-te dado tanta satisfação.

— «Bem sei. Nem admiro que não comprehendam o meu sentir. Somos tão differentes! A politica, esta nauseante politica portuguêsa de empenhos e partidinhos, fez-se para gente com o seu feitio. Custava-me vêr o nome do Duarte baralhado no mesmo jogo. Prefiro vê-lo outra vez o arbitro da elegancia...

— «Um novo Petroneo d’este baixo imperio... — riu ainda Bella.

— «Sim, visto por um binoculo ás avessas, como tudo é por cá... Sabes que a Candida é tambem considerada a elegante maxima de Lisboa?! Tem feito successo. Se a visses este anno em Cintra, n’uma festa de caridade vendendo bilhetes na barraca da Belleza, estava realmente um deslumbramento, a verdadeira personificação do bello. O triumpho mais completo da materia sobre o espirito...

— «Na barraca da Belleza! Como então?!... Não me contaste isso.

— «Não me lembrou realmente. Era uma barraca que o Duarte dirigia e ornamentou consagrada ao amôr como supremo creador da belleza universal...

— «E a Candida é que estava n’essa barraca?...

— «Escolheram para lá as mais bonitas, mas era incontestavelmente ella a mais formosa.

— «E o que vendiam?

— «Objectos d’arte, flores...

— «Dás-te muito com ella?

— «Dou, afinal é uma bôa rapariga que só tem o defeito da vaidade, desculpavel um tanto em quem tem de que a ter...

— «Não me parece, mas emfim!... Visita-te amiudadas vezes?

— «Coitada, aproveita todos os momentos que lhe deixam livres, que não são muitos, para me acompanhar.

— «E tu... gostas muito d’ella?

— «Muito, não, este gostar d’alma que se sente comprehendida e comprehende, não. Mas gosto mais do que d’outras a quem dou o nome de amigas. É muito delicada, muito serviçal, muito meiga. Depois, é um encanto ve-la, está cada vez mais formosa. Aqui tens o seu ultimo retrato.

Tirou uma moldura de crystal de sobre um contador indio com incrustações de madreperola e mostrou uma linda photographia da Candida, largamente decotada, arrastando uma longa cauda de rainha.

— «É realmente bonita, mas uma formosura fria que me assusta — volveu Bella, entregando o retrato.

— «É porque a conheces mal. A mim succedeu-me o mesmo, sentia até uma especie de repulsão.

— «Emfim... eu cá estou para a ver e modificar as minhas opiniões.

— «É verdade, ainda não te perguntei nada lá de casa. Josephina como está? Ainda muito queixosa da morte da filha?

— «Sempre o mesmo. Estimam-me muitissimo e eu como que preencho o grande vacuo que a infeliz deixou no coração de todos. Mas a casa está tão cheia d’ella que eu mesma me desespero com tal morte.

— «E não a conheceste! Era uma criança encantadora, tudo quanto possas imaginar de mais gracioso e intellectual. A morte d’um filho deve ser para enlouquecer!

— «E deve!... Só eu pensar que me pode morrer o meu filho, e mais ainda não vive senão dentro em mim, parece-me que endoideço!...

— «Bem, mas não se deve agora fallar em coisas tristes, faz-te mal. Teu tio, já o viste?

— «Não. Imagina onde estará por este bello tempo dos cães beberem de pé?

— «Aonde?

— «Em Cintra! já para lá telegraphamos. Sabes que vive agora no hotel, aborrecido de se ver só em casa, enfastiado de aturar criados. Mobilou tres quartos e lá está com o velho Dick.

— «Confessou-me o outro dia que está realmente aborrecido de viver só e muito resolvido a fazer-te a vontade indo para a provincia... Offereci-lhe a nossa casa, agora deshabitada e... já me pareceu mais longe d’isso.

— «Quem me dera que assim fosse! Se te lá apanhasse a ti e a elle, era completamente feliz. Vive-se tão bem longe de tudo e de todos!...

— «Lá por mim, se não vou não é por falta de vontade. Agora dizem-me que o clima é mau para mamã... Não creio muito, mas não quero tomar a responsabilidade comprehendes.

— «Pois, na verdade, tua mãe é de lá, sempre lá se deu bem!... Coisas do mundo. E o Duarte como está?

— «Creio que bem, ainda hoje o não vi. Ao almoço não appareceu, mandando pedir desculpa por ter de sahir cedo.

— «Não sabes onde foi?

— «Não sei.

— «É-te indifferente isso?

— «Quasi...

— «Mas o que o retem tanto por fóra?

— «Talvez ainda a politica, talvez os negocios. Sabes que a sua ultima mania é o bric-á-brac?

— «Sempre foi um colleccionador intelligente.

— «Mas agora é negociante. Tem comprado coisas de um alto valor artistico, pequenas maravilhas de arte que nos suggerem toda a grandeza e magnificencia do nosso pais. É prodigioso o que havia e o que ainda existe por ahi!

— «Tem tudo cá em casa?

— «Pouco, o mais precioso e o indispensavel para decorar segundo as suas ideias de artista e de estudioso. Não me interesso como possuidora por essas riquezas que a maré do seu capricho e do seu dinheiro amontôa ou espalha. Doe-me a consciencia só de pensar que o melhor tem seu caminho para o estrangeiro — e nós sem um verdadeiro museu d’arte em Portugal!... Preferia que o Duarte não negociasse, comprasse só para si. Em todo o caso, antes isso do que a politica...

— «Estimas que deixasse a politica pelo bric-á-brac, mas aposto que não gostarias que a abandonasse por uma mulher...

A viscondessa sorriu com amarga ironia.

— «Por uma... meu marido!?... Creio que não conhece o singular nesse genero.

Bella teve um franzir de labios — que queria ser um sorriso — e um gesto de imperceptivel desânimo, emquanto a amiga continuou:

— «Bem sabes que vivemos de modo que não se comprehenderiam os ciumes. Exijo-lhe apenas a delicadeza de não me tornar ridicula e o dever de não amargurar os ultimos dias de minha mãe... Mas espera, nós aqui a conversar, a conversar, e afinal, isto devem ser horas de jantar. Olha, já oito! Como o tempo corre quando se está bem; querida Bella, que alegria me deste hoje! Estava n’um d’estes estagnamentos d’alma em que alegrias e tristezas passam pelo nosso espirito como gota d’agua correndo sem o molhar sobre um panno enxuto... Vieste sacudir-me d’este torpôr, fizeste-me um bem que nem tu sabes!

Ao tempo que se levantava para dar ordem de servirem o jantar, um ruido de vozes fê-la parar na espectativa e a porta, abrindo-se, fez-lhe soltar uma exclamação de alegria ao deparar com o dr. Ramalho.

— «Meu Deus, mas hoje então é o dia das surpresas agradaveis? — dizia comprimentando. E perguntava á amiga se sabia que o doutor estivesse tambem em Lisboa.

— «Viemos juntos.

— «Porque me não disseste?

— «Para ser surpresa completa. Espera, parece-me que oiço a voz do João.

— «Vamos que estou morta por o vêr.

Mas João não se fez esperar, appareceu á porta, sorridente, já de mão estendida para comprimentar a prima, que o abraçou n’uma grande ternura maternal.

— «Agora, para a mesa, que já é tarde para estomagos de viajantes — disse encaminhando-se para a casa de jantar.

— «E teu marido?

— «São oito e um quarto, não appareceu é porque janta fóra.

Os dois homens e Bella entreolharam-se e seguiram-na sem mais fallar no assumpto.

— «Amanhã é que teremos de jantar mais cedo — disse, quando já sentados á meza — para não perdermos nada da Duse. É claro que vão comnosco.

— «Oh filha, cá por mim e pelo João se não tiveres logar não te apoquentes. Eu já a vi em Milão, em Paris e em Madrid, conheço-a em todo o seu reportorio.

— «Mas não fazes sacrificio em vê-la, não?

— «Isso não, pelo contrario. É sempre um saboroso prazer ouvir uma grande artista.

— «Então iremos.