VI.
Ás dez horas e meia da noite d’aquelle dia, tres vultos convergiram para o local, raro frequentado, em que se abria a porta do quintal de Thadeu de Albuquerque. Alli se detiveram alguns minutos discutindo e gesticulando. Dos tres havia um, cujas palavras eram ouvidas em silencio e sem replica pelos outros: Dizia elle a um dos dois:
— Não convém que estejas perto d’esta porta. Se o homem apparecesse aqui morto, as suspeitas cahiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se um do outro, e tenham o ouvido applicado ao tropel do cavallo. Depois apressem o passo, até o encontrarem de modo que os tiros sejam dados longe d’aqui.
— Mas... — atalhou um — quem nos diz que elle veio hontem a cavallo, e hoje vem a pé?
— É verdade! - accrescentou o outro.
— Se elle vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o terem a geito de tiro, mas longe d’aqui, percebem vocês? — disse Balthazar Coutinho.
— Sim, senhor; mas se elle sáe de casa do pae, e entra sem nos dar tempo?
— Tenho a certeza de que não está em casa do pae, já lh’o disse. Basta de palavriado. Vão esconder-se atraz da igreja, e não adormeçam.
Debandou o grupo, e Balthazar ficou alguns momentos encostado ao muro. Soaram os tres quartos depois das dez. O de Castro-d’Aire collou o ouvido á porta, e retirou-se acceleradamente, ouvindo o rumor da folhagem sêcca que Thereza vinha pizando.
Apenas Balthazar, cosido com o muro, desapparecêra, um vulto assomou do outro lado a passo rapido. Não parou: foi direito a todos os pontos onde uma sombra podia figurar um homem. Rodeou a igreja que estava a duzentos passos de distancia. Viu os dois vultos direitos com o recanto que formava a juncção da capella mór, e sobre o qual cabiam as sombras da torre. Fitou-os de passagem, e suspeitou; não os conheceu; mas elles disseram entre si, depois que elle desapparecêra:
— É o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por elle!...
— Que fará a esta hora por aqui?!
— Eu sei!
— Não desconfias que elle entre n’isto?
— Ágora! Se entrasse, era por nós. Não sabes que elle foi mochila do nosso amo?
— E tambem sei que pôz a loja com dinheiro do nosso amo.
— Pois então que mêdo tens?
— Não ha mêdo; mas tambem sei que foi o corregedor que o livrou da forca...
— Isso que tem! O corregedor não se importa com isto, nem sabe que o filho cá está...
— Assim será; mas não estou muito contente... Elle é homem dos diabos...
— Deixal-o ser... tanto entram as balas n’elle como n’outro...
A discussão continuou sobre varias conjecturas. De tudo o que elles disseram uma coisa era certissima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.
Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Balthazar ouviram o remoto tropel de cavalgadura. Ao tempo que elles sahiam do seu escondrijo, sabia João da Cruz á frente do cavalleiro. Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.
— Não ha novidade — disse o ferrador — mas saiba v. s.^a que já podia estar em baixo do cavallo com quatro zagalotes no peito.
O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:
— És tu, João?
— Sou eu. Vim primeiro que tu.
Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse commovido:
— -Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão de urn homem honrado.
— Nas occasiões é que se conhecem os homens — redarguiu o ferrador. — Ora vamos... não ha tempo para fallatorio. O senhor doutor tem uma espera.
— Tenho? — disse Simão.
— Atraz da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não se me dava de jurar que são criados do senhor Balthazar. Salte abaixo do cavallo, que ha de haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas v. s.^a veio, e agora é andar com a cara para a frente.
— Olhe que eu não tremo, mestre João — disse o filho do corregedor.
— Bem sei que não; mas, á vista do inimigo, veremos.
Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavallo, recuou alguns passos na rua, e foi prendêl-o á argola da parede de uma estalagem.
Voltou, e disse a Simão que o seguisse a elle e ao cunhado na distancia de vinte passos; e que, se os visse parar perto do quintal de Albuquerque, não passasse do ponto d’onde os visse.
Quiz o academico protestar contra um plano, que o humilhava como protegido pela defeza dos dois homens; o ferrador, porém, não admittiu a réplica.
— Faça o que eu lhe digo, fidalgo — disse elle com energia.
João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram de fronte do quintal de Thereza, e viram um vulto a sumir-se no angulo da parede.
— Vamos sobre elles — disse o ferrador — que lá passaram para o adro da igreja; n’este entrementes, o doutor chega á porta do quintal e entra; depois voltaremos para lhe guardar a sahida.
N’este proposito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou com as pistolas aperradas na direcção da porta.
Em frente do muro do jardim de Thereza havia uma cascalheira escarpada, que se esplainava depois n’uma alamêda sombria.
Os dois criados de Balthazar, quando o tropel do cavallo parou, recordaram as ordens do amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram sitio azado para o espreitarem na sahida, e entraram na alamêda quando o academico chegava á porta do quintal.
— Agora está seguro — disse um.
— Se lá não ficar dentro.... — respondeu o outro, vendo-o entrar, e fechar-se a porta.
— Mas além vem dois homens... — disse o mais assustado, olhando para a outra entrada da alamêda.
— E vem direitos a nós... aperra lá a clavina...
O melhor é retirarmos. Nós estamos á espera de outro, e não d’estes. Vamos embora d’aqui...
Este não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira do cascalho. O mais intrepido teve tambem a prudencia de todos os assassinos assalariados: seguiu o assustadiço, e deu-lhe razão, quando ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores. Sahiu-lhes o amo de frente, quando dobravam a esquina do quintal, e disse-lhes:
— Vocês a que fogem, seus poltrões?
Os homens pararam de envergonhados, aperrando os bacamartes.
João da Cruz e o arreeiro appareceram, e Balthazar caminhou para elles, bradando:
— Alto ahi!
O ferrador disse ao cunhado:
— Falla-lhe tu, que eu não quero que elle me conheça.
— Quem manda fazer alto? — disse o arreeiro.
— São tres clavinas — respondeu Balthazar.
— Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saia — disse João da Cruz ao ouvido do arreeiro.
— Pois nós cá estamos parados — replicou o criado de Simão. — Que nos querem vocês?
— Quero saber o que tem que fazer n’este sitio.
— E vocês que fazem por cá?
— Não admitto perguntas — disse o de Castro-d’Aire, aventurando alguns passos vacilantes para a frente. — Quero saber quem são.
Mestre João disse ao ouvido do cunhado:
— Diz-lhe que se dá mais um passo que o arrebentas.
O arreeiro repetiu a clausula, e Balthazar parou.
Um dos criados d’este chamou-o ao lado para lhe dizer que aquelle dos dois, que não fallava, parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e quiz esclarecer-se; mas o ferrador ouvira as palavras do criado, e disse ao cunhado:
— Vem comigo, que elles conhecem-me.
Dizendo, voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do quintal de Thadeu de Albuquerque. Os criados de Balthazar, gloriosos da retirada, como de uma derrota certa, apressaram o passo na cola dos suppostos fugitivos. O morgado ainda lhes disse que os não seguissem; mas elles, momentos antes covardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugido antes.
Simão Botelho ouvira os passos ligeiros dos seus homens, e, compellido pelo susto de Thereza, abrira a porta do quintal, sem saber ainda quem elles fossem. João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando os perseguidores se viam, disse ao filho do corregedor, se estava ajustado o casamento, que não havia panno para mangas.
Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Thereza, e retirou-se. Queria elle reconhecer os dois vultos parados a distancia; mas João da Cruz, com o tom imperioso de quem obriga á submissão, disse ao filho do corregedor:
— Vá por onde veio, e não olhe para traz.
Simão foi indo até encontrar o cavallo. Montou, e esperou os dois inalteraveis guardas que o seguiam a passo vagaroso. Maravilhara-os o subito desapparecimento dos criados de Balthazar, e recearam-se de alguma espera fóra da cidade. O ferrador conhecia o atalho que podia levar os da emboscada ao caminho, e revelou o seu receio a Simão, dizendo-lhe que picasse a toda a brida, que elle e o cunhado lá iriam ter. O academico recebeu com enfado a advertencia, admoestando-os a que o não tivessem em tão vil preço. E acintemente soffreou as rédeas, para não forçar os homens a aligeirar o passo.
— Vá como quizer — disse mestre João — que nós vamos por fóra do caminho.
E subiram a uma rampa de olivaes, para tornarem a descer encubertos por moitas de giestas, cozendo-se aos torcicolos d’uma parede parallela com a estrada.
— O atalho vai acolá onde a serra faz aquelle cotovêllo — disse o ferrador ao cunhado — hão de alli passar, ou já passaram. A estrada vai mesmo na quebrada d’aquelle outeirinho. Os homens é d’alli que lhe vão atirar, encobertos pelos sobreiros. Vamos depressa...
E um pouco descobertos, e outro curvados á sombra das devêzas, chegaram a um vallado d’onde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam o pontilhão de um córrego.
— Já não vamos a tempo — disse afflicto o João da Cruz — os homens vão atirar-lhe, porque o cavallo trupa cá muito atraz.
E corriam já sem temor de serem vistos, porque os outros tinham dobrado o outeiro, em cujo valle corria a estrada.
— Os homens vão atirar-lhe... — disse o ferrador.
— Gritemos d’aqui ao doutor que não vá p’ra diante.
— Já não é tempo... Ou o matem ou não matem, quando voltarem são nossos.
Tinham já passado o pontilhão, e subiam a ladeira, quando ouviram dois tiros.
— Arriba! — exclamou João da Cruz — que não vão elles metter-se á estrada, se mataram o fidalgo.
Tinham vencido a chã, esbofados e anciados, com as clavinas aperradas. Os criados de Balthazar, ao invez da conjectura do ferrador, retrocediam pelo mesmo atalho, suppondo que os companheiros de Simão iam adiante batendo os pontos azados á emboscada, ou se tinham retardado.
— Elles ahi vem! — disse o arreeiro.
— Nós cá estamos — respondeu o ferrador, sentando-se, a coberto de um cômoro. — Senta-te também que eu não estou p’ra correr atraz d’elles.
Os assassinos, a dez passos, viram de frente erguerem-se os dois vultos, e ladearam cada qual para seu lado, um galgando os sucalcos de uma vinha, o outro atirando-se a uns silveiraes.
— Atira ao da esquerda! — disse João da Cruz.
Foram simultaneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um cadaver. Os balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal onde se embrenhára.
A este tempo assomava Simão no tezo d’onde lhe tinham atirado, e corria ao ponto onde ouvira os segundos tiros.
— É v. s.^a, fidalgo? — bradou o ferrador.
— Sou.
— Não o mataram?
— Creio que não — respondeu Simão.
— Este desalmado deixou fugir o melro — tornou João da Cruz — mas o meu lá está a pernear na vinha. Sempre lhe quero vêr as trombas...
O ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre o cadaver, dizendo:
— Alma de cantaro, se eu tivesse duas clavinas não ias sósinho para o inferno!
— Anda d’ahi! — disse o arreeiro — deixa lá esse diabo, que o senhor doutor está ferido n’um hombro. Vamos depressa, que está o sangue a escorrer-lhe.
— Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima de uma ribanceira, e cuidei que eram vocês — disse Simão, em quanto o ferrador, com a destreza de habil cirurgião, lho enfaixava o braço ferido com lenços. — Parei o cavallo, e disse: «Ólé! ha novidade?» Logo que me não responderam, saltei para terra; mas ainda eu tinha um pé no estribo quando me fizeram fogo. Quiz saltar á ribanceira, mas não pude romper o matto. Dei uma volta grande para achar subida, e foi então que dei fé de estar ferido...
— Isto é uma arranhadura — disse João da Cruz — olhe que eu sei d’isto, fidalgo! Estou affeito a curar muitas feridas.
— Nos burros, mestre João? — disse o ferido, sorrindo.
— E nos christãos tambem, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um rei que não queria outro medico senão um alveitar. Hei de mostrar-lhe o meu corpo que está uma rêde de facadas, e nunca fui ao cirurgião. Com ceroto e vinagre sou capaz de ir resuscitar aquelle alma do diabo que alli está a escutar a cavallaria.
N’isto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha saltado o companheiro do morto.
João da Cruz, como galgo de fino olfacto, fitou a orelha e resmungou:
— Querem vocês vêr que ellas se armam!... Dar-se-ha caso que o outro ainda esteja por alli a tremer maleitas!...
O rumor continuou, e logo um bando de passaros rompeu d’entre a folhagem chilreando.
— O homem está alli! — tornou o ferrador. — Passe-me cá uma pistola, senhor Simão!
Correu mestre João, e ao mesmo tempo uma grande rostilhada se fez entre as moitas de codêços e urzes.
— Elle estrinça lenha como um porco do monte! — exclamou o ferrador. — Ó cunhado, bate este matto com alguns penedos; quero vêr sahir o javali da moita!...
Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão, rodeando a sebe, conseguira saltar ao campo por sobre a pedra d’um agueiro.
— Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me! — bradou Simão ao ferrador.
— Pois o fidalgo já ahi anda!?. Então está fechado o cêrco. Eu cá vou fazer de furão. Se este nos escapa, não ha nada seguro n’este mundo!
Não se enganaram. O criado de Balthazar Coutinho, quando se atirára desamparado á brenha, desnocára um joelho, e cahira atordoado. O arreeiro não examinou o effeito do tiro, porque atirara á ventura, e achava natural que o fugitivo se não molestasse. Quando volveu a si do aturdimento da queda, o homem arrastou-se lentamente até encontrar um cerrado de arvores silvestres, em que pernoitava a passarinhada. Como os melros cacarejassem esvoaçando, o criado de Balthazar retrocedeu para o mato, cuidando que ahi escaparia; mas o arreeiro jogava enormes calhaus em todas as direcções, e alguns acertavam mais que as balas do seu bacamarte. João da Cruz tirou do bolço da jaqueta um podão, e começou a cortar a selva de carvalhas novas e giestaes que se emmaranhavam em redor do escondrijo. Já cansado, porém, e vendo o pouco luzimento do trabalho, disse ao arreeiro:
— Petisca lume, vai alli dentro buscar um pouco de restolho sêcco, e vamos pegar fogo ao mato, que este ladrão ha de morrer assado.
O perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem para fugir, rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o campo de restolho em que o arreeiro andava apanhando palha, e Simão esperava o desfecho da montaria. Correram a um tempo o arreeiro e o academico sobre elle. O fugitivo, sentindo-se alcançado, lançou-se de joelhos e mãos erguidas, pedindo perdão, e dizendo que o amo o obrigára áquella desgraça. Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia direita ao peito, quando Simão lhe reteve o braço.
— Não se bate assim n’um homem! — disse o moço — Levanta-te, rapaz!
— Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada, e estou aleijado para a minha vida.
N’este comenos chegou o ferrador, e exclamou:
— Pois este tratante ainda está vivo!
E correu sobre elle com o podão.
— Não mate o homem, senhor João! — disse o filho do corregedor.
— Que o não mate! essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar... eim?
— Com a forca!? — atalhou Simão.
— Podéra não! Quer que este homem fique para ir contar a historia? Acha bonito? Lá v. s.^a, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou ferrador, posso contar que d’esta vez tenho o baraço no pescoço. Não me faz geito o negocio. Deixe-me cá com o homem...
— Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha não nos póde fazer mal.
— O quê? — redarguiu o ferrador — v. s.^a saberá muito, mas de justiça não sabe nada, e ha de perdoar o meu atrevimento. Basta uma só testemunha para guiar a justiça na devassa. Ás duas por tres, uma testemunha de vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo de Castro-d’Aire a mexer os pausinhos, é forca certa, como dois e dois serem quatro.
— Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro-d’Aire — exclamou o homem.
— Deixe-o ficar, João da Cruz... vamos embora...
— Isso! — acudiu o ferrador — chame-me João da Cruz, para este maroto ficar bem certo de que sou o João da Cruz!... Com effeito, não sei o que me parece v. s.^a querer deixar com vida um alma do diabo que lhe deu um tiro para o matar!
— Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseraveis que me não resistem.
— E se elle o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor doutor!
— Vamos embora — tornou Simão — deixemos para ahi esse miseravel.
Mestre João scismou alguns momentos, coçando a cabeça, e resmungou com descontentamento:
— Vamos lá... Quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre.
Tinham já sahido do plaino e saltado a tapada, e iam descendo para a estrada, quando o ferrador exclamou:
— Lá me ficou a minha clavina encostada á sebe. Vão indo, que eu venho já.
O arreeiro conduzia o cavallo, que pacificamente estivera tozando a relva das paredes marginaes da estrada, quando Simão ouviu gritos. Conjecturou com certeza o que era.
— O João lá está a fazer justiça! — disse o arreeiro. Deixál-o lá, meu amo, que elle é homem que sabe o que faz.
João da Cruz appareceu d’ahi a pouco, limpando com fentos o podão ensanguentado.
— Você é cruel, senhor João! — disse o academico.
— Não sou cruel — disse o ferrador — o fidalgo está enganado comigo; é que diz lá o dictado, morrer por morrer, morra meu pae que é mais velho. Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar um alqueire como tres. As obras devem ser acabadas, ou então o melhor é não se metter a gente n’ellas. Agora, levo a minha consciencia socegada.
A justiça que prove, se quizer; mas não ha de ser por que lh’o digam aquelles dois que eu mandei de presente ao diabo.
Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado com tal homem.