VII.

 

O ferimento de Simão Botelho era melindroso de mais para obedecer promptamente ao curativo do ferrador, enfronhado em aphorismos de alveitaria. A bala passára-lhe de revez a porção muscular do braço esquerdo; mas algum vaso importante rompêra, que não bastavam compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o academico deitou-se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arreeiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a noticia de ter ficado no Porto Simão Botelho.

Mais que as dôres e os receios da amputação, o mortificava a ancia de saber novas de Thereza. João da Cruz estava sempre de sobre-rolda, precavido contra algum procedimento judicial por suspeitas d’elle. As pessoas que vinham de feirar na cidade contavam todas que dois homens tinham apparecido mortos, e constava serem criados d’um fidalgo de Gastro-d’Aire. Ninguem, porém, ouvira imputar o assassinio a determinadas pessoas.

Na tarde d’esse dia recebeu Simão a seguinte carta de Thereza:

«Deus permitia que tenhas chegado sem perigo a casa d’essa boa gente. Eu não sei o que se passa, mas ha coisa mysteriosa que eu não posso adivinhar. Meu pae tem estado toda a manhã fechado com o primo, e a mim não me deixa sahir do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quiz que a pobre viesse pedir esmola debaixo da janella do meu quarto; senão eu nem tinha modo de lhe dar signal para ella esperar esta carta. Não sei o que ella me disse. Fallou-me em criados mortos; mas eu não pude entender... Tua mana Rita está-me acenando por traz dos vidros do teu quarto...

Disse-me tua mana que os moços de meu primo tinham apparecido mortos perto da estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer que tu ahi estás; mas não me deram tempo. Meu pae de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais muito altos.

Ó meu querido Simão, que será feito de ti?... Estarás tu ferido? Serei eu a causa da tua morte?

Diz-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge d’esses sitios; vai para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa situação.

Tem confiança n’esta desgraçada, que é digna da tua dedicação.... Chega a pobre: não quero demoral-a mais... Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ella respondeu que não. Deus o queira.»

Respondeu Simão a querer tranquillisar o animo de Thereza. Do seu ferimento fallava tão de passagem, que dava a suppôr que nem o curativo era necessario. Promettia partir para Coimbra logo que o podesse fazer sem receio de Thereza soffrer na sua ausencia. Animava-a a chamal-o, assim que as ameaças de convento passassem a ser realisadas.

Entretanto Balthazar Coutinho, chamado ás authoridades judiciarias para esclarecer a devassa instaurada, respondeu que effectivamente os homens mortos eram seus criados, de quem elle e sua familia se acompanhára de Castro-d’Aire. Accrescentou que não sabia que elles tivessem inimigos em Vizeu, nem tinha contra alguem as mais leves presumpções.

Os mais proximos visinhos da localidade, onde os cadaveres tinham apparecido, apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro, pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas visinhanças do local, fôra chapotado. N’esta escuridade a justiça não podia dar passo algum.

Thadeu de Albuquerque era connivente no attentado contra a vida de Simão Botelho. Fôra seu o alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das sahidas frequentes de Thereza, na noite do baile. Tanto ao velho como ao morgado convinha apagar algum indicio que podesse envolvêl-os no mysterio d’aquellas duas mortes. Os criados não mereciam a pena d’um desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão Botelho não podiam adduzil-as. Áquella hora o suppunham elles a caminho de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pae. Restava-lhes ainda a esperança de que elle tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local em que o tinham assaltado.

Em quanto a Thereza, resolveu Albuquerque encerral-a n’um convento do Porto, e escolheu Monchique, onde era prioreza uma sua proxima parenta. Escreveu á prelada para lhe preparar aposentos, e ao seu procurador para negociar as licenças ecclesiasticas para a entrada. Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo que medeava até se conseguirem as licenças, resolveu não ter comsigo Thereza, e solicitou a retenção temporaria d’ella n’um convento de Vizeu.

Acabára Thereza de lêr e esconder no seio a resposta de Simão Botelho, que a pobre lhe enviára ao escurecer, pendente de uma linha, quando o pae entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando uma capa e um lenço.

— Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus appellidos — disse com severidade o velho.

— Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sahir á noite... — disse Thereza.

— E a senhora sabe para onde vai?

— Não sei... meu pae.

— Então vista-se, e não me dê leis.

— Mas, meu pae, attenda-me um momento.

— Diga.

— Se a sua ideia é obrigar-me a casar com meu primo...

— E d’ahi?

— De certo não caso; morro, e morro contente; mas não caso.

— Nem elle a quer. A senhora é indigna de Balthazar Coutinho. Um homem do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que falla de noite aos amantes nos quintaes. Vista-se depressa, que vai para um convento.

— Promptamente, meu pae. Esse destino lh’o pedi eu muitas vezes.

— Não quero reflexões. D’aqui a pouco appareça-me vestida. Suas primas esperam-a para a acompanharem.

Quando se viu sósinha, Thereza debulhou-se em lagrimas, e quiz escrever a Simão. Áquella hora quem lhe levaria a carta? Appellou para o retabulo da Virgem, que ella fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que a protegesse, e désse forças a Simão para resistir ao golpe, e guardar-lhe constancia através dos trabalhos que succedessem. Depois vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o tinteiro, o papel, e o massête das cartas de Simão. Sahiu do seu quarto, relanceando os olhos lagrimosos para o painel da Virgem, e encontrando o pae, pediu-lhe licença para levar comsigo aquella devota imagem.

— Lá irá ter — respondeu elle. — Se tivesse tanta vergonha como devoção, seria mais feliz do que ha de ser.

Uma das primas, irmãs de Balthazar, chamou-a de parte, e segredou-lhe:

— Ó menina! estava ainda na tua mão dares remedio á desordem d’esta casa...

— Qual remedio?! — perguntou Thereza com artificial seriedade.

— Diz a teu pae que não duvidas casar com o mano Balthazar.

— O primo Balthazar não me quer — replicou ella, sorrindo.

— Quem te disse isso, Therezinha?

— Disse-m’o meu pae.

— Deixa fallar teu pae, que está desatinado com o amor que te tem. Queres tu que eu lhe falle?

— Para que?

— Para se remediar d’este modo a desgraça de todos nós.

— Estás a brincar, prima! — redarguiu Thereza. — Eu hei de ser tua cunhada, quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para elle; mas se quizerem que eu morra por elle, abençoarei todos os meus algozes. Pódes dizer isto ao primo Balthazar, e diz-lh’o antes que te esqueça.

— Então, vamos?! — disse o velho.

— Estou prompta, meu pae.

Abriu-se a portaria do mosteiro. Thereza entrou sem uma lagrima. Beijou a mão de seu pae, que elle não ousou recusar-lhe na presença das freiras. Abraçou suas primas, com semblante de regosijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou, com grande espanto das monjas:

— Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.

As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra «coração» uma heresia, uma blasphemia proferida na casa do Senhor.

— Que diz a menina?! — perguntou a prioreza, fitando-a por cima dos oculos, e apanhando no lenço escarlate a distillação do esturrinho.

— Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.

— Não diga minha senhora — atalhou a escrivã.

— Como hei de dizer?

— Diga «nossa madre prioreza.»

— Pois sim, nossa madre prioreza, disse eu que me sentia aqui muito bem.

— Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem — tornou a nossa madre prioreza.

— Não?! — disse Thereza com sincera admiração.

— Quem para aqui vem, menina, ha de mortificar o espirito, e deixar lá fóra as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de noviças, a quem compete encaminhal-a e dirigil-a.

Thereza não redarguiu: fez um gesto de respeito á mestra de noviças, e seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.

A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Thereza que era sua hospeda em quanto alli estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pae escolheria aquelle convento ou outro.

— Que importa que seja um ou outro? — disse Thereza.

— É conforme. Seu pae póde querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou bernardas.

— Professe! — exclamou Thereza. — Eu não quero ser freira aqui, nem n’outra parte.

— A senhora ha de ser o que seu pae quizer que seja.

— Freira!? a isso não póde ninguem obrigar-me! — recalcitrou Thereza.

— Isso assim é — retorquiu a prioreza — mas como a menina tem de noviciado um anno, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não ha vida mais descansada para o corpo, nem mais saudavel para a alma.

— Mas a nossa madre — tornou Thereza, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual — já disse que a estas casas ninguem vem para se sentir bem...

— É um modo de fallar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de côro e de serviços para que nem sempre o espirito está bem disposto. Ora vês-a-hi. Mas em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento é um paraizo. Aqui não ha paixões nem cuidados que tirem o somno, nem a vontade de comer, bemdito seja o Senhor! Vivemos umas com as outras, como Deus com os anjos. O que uma quer, querem todas. Más linguas é coisa que a menina não ha de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Emfim, Deus fará o que fôr servido. Eu vou á cosinha buscar a ceia da menina, e já volto. Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude n’estas santas casas.

Apenas a prioreza voltou costas, disse a organista á mestra de noviças:

— Que grande impostora!

— E que estupida! — acudiu a outra. — A menina não se fie n’esta trapalhona, e veja se seu pae lhe dá outra companhia em quanto cá estiver, que a prioreza é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta annos, falla das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fóra. Em quanto foi nova, era a freira que mais escandalos dava na casa; depois de velha era a mais ridicula, porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrepita, anda sempre este mostrengo a fazer missões, e a curar indigestões.

Thereza, apesar de sua dôr, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se da vida de Deus com anjos que as esposas do Senhor alli viviam, no dizer da madre prioreza.

Pouco depois entrou a prelada com a ceia, e sahiram as duas freiras.

— Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina? — disse ella a Thereza.

— Pareceram-me muito bem.

A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho liquido, e regougou:

Hum!... está feito, está feito!... Ainda não são das peores; mas, se fossem melhores, não se perdia nada... Ora vamos a isto, menina; aqui tem duas pernas de gallinha, e um caldo que o podem comer os anjos.

— Eu não cômo nada, minha senhora — disse Thereza.

— Ora essa! não come nada!? Ha de comer; sem comer ninguem resiste. Paixões!... que as leve o porco-sujo!... As mulheres é que ficam logradas, e elles não tem que perder!... Que eu cá de mim, até ao presente, Deus louvado, não sei o que sejam paixões; mas quem tem cincoenta e cinco annos de convento, tem muita experiencia do que vê penar ás outras doidibanas. E para não ir mais longe, estas duas, que d’aqui sahiram, tem pagado bem o seu tributo á asneira, Deus me perdôe se pécco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao locutorio derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de noviças á falta d’outra que quizesse sêl-o, se eu lhe não andasse com o olho em cima, estragava-me as raparigas...

Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã que vinha, palitando os dentes, pedir á prelada um copinho de certo vinho estomacal com que todas as noites era brindada.

— Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a mestra — disse a prioreza.

— Oh! são para o que lhe eu prestar! Lá foram ambas para a cella da porteira. A esta hora está a menina a ser cortada por aquellas linguas, que não perdoam a ninguem.

— Vaes tu vêr se ouves alguma coisa, minha flôr? — disse a prelada.

A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos dormitorios até parar a uma porta que não vedava o ruido estridente das risadas.

No entanto dizia a prelada a Thereza:

— Esta escrivã não é má rapariga: só tem o defeito de se tomar da pinguleta; depois não ha quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo em vinho, e tem occasiões de entrar no côro a fazer ss, que é mesmo uma desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga. É verdade que ás vezes... (aqui a prelada ergueu-se a escutar nos dormitorios, e fechou por dentro a porta) é verdade que, ás vezes, quando anda azuratada, dá por paus e por pedras, e descobre os defeitos das suas amigas. A mim já ella me assacou um aleive, dizendo que eu, quando sahia a ares, não ia só a ares, e andava por lá a fazer o que fazem as outras. Forte pouca vergonha! Lá que outra fallasse, vá; mas ella, que tem sempre uns namorados pandilhas que bebem com ella na grade, isso lá me custa; mas, emfim, não ha ninguem perfeito!... Boa rapariga é ella... Se não fosse aquelle maldito vicio...

Como tocasse ao côro n’esta occasião, a veneranda prioreza bebeu o segundo calice do vinho estomacal, e disse a Thereza que a esperasse um quarto de hora, que ella ia ao côro, e pouco se demoraria. Tinha ella sahido, quando a escrivã entrou a tempo que Thereza, com as mãos abertas sobre a face, dizia em si: «Um convento, meu Deus! isto é que é um convento!»

— Está sósinha? — disse a escrivã.

— Estou, minha senhora.

— Pois aquella grosseira vai-se embora, e deixa uma hospeda sósinha? Bem se vê que é filha de funileiro!... Pois tinha tempo de ter prática do mundo, que tem andado por lá que farte... Pois eu havia de ir ao côro; mas não vou para lhe fazer companhia, menina.

— Vá, vá, minha senhora, que eu fico bem sósinha — disse Thereza, com a esperança de poder desafogar em lagrimas a sua afflicção.

— Não vou, não!... A menina aqui estarrecia de mêdo; mas a prelada não tarda ahi. Ella, se póde escapar-se do côro, não pára lá muito tempo. A apostar que ella lhe esteve a fallar mal de mim?

— Não, minha senhora, pelo contrario...

— Ora diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não falla bem de ninguem. Para ella tudo são libertinas e bebadas.

— Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito d’alguma freira.

— E se disse, deixal-a dizer. Ella o vinho não o bebe, suga-o, é uma esponja viva. Em quanto a libertinagem, tomára eu tantos mil cruzados como de amantes ella tem tido! Faz lá uma pequena ideia, menina!...

A escrivã bebeu um calice de vinho da sua prelada, e continuou:

— Faz lá uma pequena ideia! Ella é velhissima como a sé. Quando eu professei já ella era velha como agora, com pouca differença. Ora, eu sou freira ha vinte e seis annos; calcule a menina quantas arrobas de esturrinho ella tem atulhado n’aquelles narizes! Pois olhe, quer me creia, quer não, tenho-lhe conhecido mais de uma duzia de chichisbeos, não fallando no padre capellão, que esse ainda agora lhe fornece a garrafeira, á nossa custa, entende-se. É uma dissipadora dos rendimentos da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ella rouba. Eu tenho immensa pena de vêr a menina hospedada em casa d’esta hypocrita. Não se deixe levar das imposturices d’ella, meu anjinho. Eu sei que seu pae lhe mandou fallar, e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber cartas; mas olhe, minha filha, se quizer escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel, obreias e o meu quarto, se para lá quizer ir escrever. Se tem alguem que lhe escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome; eu chamo-me Dionizia da Immaculada Conceição.

— Muito agradecida, minha senhora — disse Thereza, animada pelo offerecimento. — Quem me déra poder mandar um recado a uma pobre que mora no bêcco do...

— O que quizer, menina. Eu mando lá logo que fôr dia. Esteja descansada. Não se fie de alguem, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças e a organista são duas falsas. Não lhe dê trela, que, se as admitte á sua confiança, está perdida. Ahi vem a lêsma... Fallemos n’outra coisa...

A prelada vinha entrando, e a escrivã proseguiu assim:

— Não ha, não ha nada mais agradavel que a vida do convento, quando se tem a fortuna de ter uma prelada como a nossa... Ai! eras tu, menina? Olha, se estivessemos a fallar mal de ti!

— Eu sei que tu nunca fallas mal de mim — disse a prelada, piscando o olho a Thereza. — Ahi está essa menina que diga o que eu lhe estive a dizer das tuas boas qualidades...

— Pois o que eu disse de ti — respondeu soror Dionizia da Immaculada Conceição — não precisas de perguntar, porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo. Oxalá que se podesse dizer o mesmo das outras que deshonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado n’uma meada, que é mesmo coisa de peccado.

— Então não vaes ao côro, nini? — tornou a prioreza.

— Já agora é tarde... Tu absolves-me da falta, sim?

— Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitencia beberes um copinho...

— Do estomacal?

— Podéra...

Dionizia cumpriu a penitencia, e sahiu para, dizia ella, deixar a prelada na sua hora de oração.

Não delongaremos esta amostra do evangelico e exemplar viver do convento, onde Thadeu de Albuquerque mandára sua filha a respirar o purissimo ar dos anjos, em quanto se lhe preparava crysol, mais depurador dos sedimentos do vicio, no convento de Monchique.

Encheu-se o coração de Thereza de amargura e nojo n’aquellas duas horas de vida conventual. Ignorava ella que o mundo tinha d’aquillo. Ouvira fallar dos mosteiros como de um refugio da virtude, da innocencia e das esperanças immorredoiras. Algumas cartas lêra de sua tia, prelada em Monchique, e por ellas formára conceito do que devia ser uma santa. D’aquellas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer ás velhas e devotas fidalgas de Vizeu virtudes, maravilhas de caridade, e até milagres. Que desillusão tão triste e ao mesmo tempo que ancia de fugir d’alli!

A cama de D. Thereza estava na mesma cella da prioreza em alcova separada, com cortinas de cassa.

Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se querendo, perguntou-lhe a menina se poderia escrever a seu pae. A freira respondeu que no dia seguinte o faria, posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua filha não escrevesse: assim mesmo, ajuntou ella, que lh’o não prohibiria, se tivesse tinteiro e papel na cella.

Thereza deitou-se, e a prelada ajoelhou diante d’um oratorio, rezando a corôa a meia voz. Se o murmurio da oração infadasse a hospeda, não teria ella muita razão de queixa, por que a devota monja ao segundo Padre-Nosso cabeceava de modo que já não atinou com a primeira Áve-Maria. Levantou-se, cambaleando uma mesura ás imagens do sanctuario, foi deitar-se, e pegou a ressonar.

Thereza afastou subtilmente as cortinas do seu quarto, e tirou de entre o seu fato o tinteiro de tarraxa e o papel.

A lampada do oratorio lançava um froixo raio sobre a cadeira, em que Thereza pozera os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lhe miudamente os successos d’aquelle dia. A carta rematava assim:

«Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os comparo ao que tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projectos. São alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova resolução que meu pae tome, dir-t’a-hei logo podendo, ou quando podér. A falta das minhas noticias deves attribuil-a sempre ao impossivel. Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor e de conforto. Vou vêr se posso esquecer-me dormindo. Como isto é triste, meu querido amigo!... Adeus.»