Falecido Álvaro Martins Homem capitão da Praia no fim do ano de 1482[1], sucedeu-lhe seu filho Antão Martins Homem, e foi confirmado na capitania em 26 de Março de 1483. Casou com Isabel de Ornelas, filha mais velha de Pedro Álvares da Câmara e de Catarina de Ornelas Saaveda, instituidores do morgado do Porto Martins, da qual teve Álvaro Martins Homem, o segundo do nome, que lhe sucedeu na capitania, e outros filhos que não fazem ao nosso intento. Contra Antão Martins Homem continuou Duarte Paim, e seu filho Diogo Paim, o pleito a respeito desta capitania. O mesmo capitão Antão Martins Homem promoveu a fundação do mosteiro da Luz [na Praia] no ano de 1483, e nele foi primeira religiosa professa Catarina de Ornelas, filha de Diogo de Teive Ferreira e de Inês Machado de Andrade, fundadores da capela de Nossa Senhora da Luz[2].

Tendo seu defunto pai edificado alguns moinhos na Agualva, tanta era a concorrência dos povos desta capitania a moer neles, que por não darem expedição, e querer o donatário usar do privilégio exclusivo, houveram queixas à Infanta, a qual o mandou intimar para que em certo prazo fizesse moendas em abastança; e porque não satisfez a isto, no ano de 1487, sendo ouvidor geral na ilha Vasco Afonso, proferiu sentença[3] pela qual ordenou que Antão Martins Homem fizesse quatro moendas até ao ano de 1488, e trouxesse as de Agualva bem corrigidas[4]; e não o fazendo que de ali por diante fizesse moendas e atafonas quem quisesse, sem pagar foro nem tributo a El-Rei nem ao donatário. Assim mesmo não cumpriu; então Afonso de Matos, que servia de ouvidor no ano de 1491, lhe assinou, estando em correição, três meses para a factura de tais moendas; porém nunca ele as fez, até que João Gomes, João Correia e Afonso Anes, e outros mais proprietários e lavradores abastados daquela capitania fizeram atafonas para moerem as suas novidades; e pondo-lhe Antão Martins demanda, decidiu-se[5] que por escassearem as águas desde Maio até Outubro, nestes seis meses pudessem os moradores daquela capitania usar de atafonas, contanto que fosse para moerem somente o seu pão: e com isto se pôs termo a esta renhida questão popular.

Não só as desavenças internas inquietavam os habitantes da Terceira[6], também os inimigos externos por parte de Castela, haviam dado que sentir nas ilhas dos Açores, e talvez saqueado a Praia, como refere Frutuoso, citado no Capítulo IV; motivo por que a Infanta D. Brites havia mandado fazer povoação ali, e para que pudesse melhor resistir a qualquer tentativa, deu-se princípio aos muros, portões, e baluartes que a defendiam[7], e nisto muito se empenhou Antão Martins Homem (por sobrevir imediatamente a morte do capitão seu pai) servindo nesta obra de ultima importância o zelo, e inteligência do provedor das fortificações, Pedro Anes Rebelo, que a mesma Infanta havia mandado à ilha acautelar o que a este respeito convinha. Examinando a costa, achou este provedor que era indispensável fortificar-se a Praia, e recolherem-se os seus moradores a um ponto, onde se pudessem defender, por ser nesse tempo mui pouca a gente para guarnecer a grande baía em um desembarque hostil. Por isto bem se manifesta que na ilha Terceira se não fez naquele tempo senão o Castelo dos Moinhos, e o amuramento da Praia, deixando-se a costa aberta ao inimigo por falta de gente e dos outros meios.

Também o donatário referido Antão Martins Homem pretendeu na sua capitania imitar o que em Angra, apesar do grande escândalo, havia posto em prática o seu colega João Vaz Corte Real, perseguindo os donos de algumas terras, que lhe foram dadas de sesmaria: pois achámos demandara ao ouvidor Álvaro Lopes da Fonseca, para lhe tirar parte da sua data na Fonte do Bastardo[8]. Tais foram os efeitos de um desmesurado poder concedido aos donatários, que na verdade se podiam considerar como uns perfeitos régulos. O Livro de Registo da Câmara da Praia oferece várias sentenças da Relação, em que se mostra que Antão Martins Homem se ocupou uma grande parte sua vida em fazer brilhar o poder desta autoridade tremenda e em publicar a sua ambição limitada. É quanto sabemos do governo do capitão da Praia, Antão Martins Homem, durante esta Segunda Época; na seguinte dizemos o mais que dele consta.

Continuemos agora com o donatário de Angra. Falecido o capitão, e alcaide-mor, João Vaz Corte Real no ano 1496, como deixámos escrito no capítulo antecedente[9], sucedeu-lhe seu filho Vasco Anes Corte Real, por carta passada em Évora a 2 de Julho de 1497: com a seguinte limitação: que o filho primeiro, e assim de seus descendentes, se entendesse aquele, que à hora de sua morte ficasse vivo; e quando o primeiro não ficasse de tal siso e entendimento que devesse governar, então queria que houvesse a capitania o filho segundo na maneira declarada. Serviu Vasco Anes Corte Real de vedor de El-Rei D. Manuel, alcaide-mor em Tavira, no Algarve, capitão da ilha de São Jorge, e casou com D. Joana da Silva, filha de Garcia de Melo, alcaide-mor de Serpa. Foi um dos bravos que se acharam no sítio de Ceuta, e o primeiro que lhe subiu os muros. Não consta que habitasse algum dia na Terceira; nem também que por estar na corte lhe promovesse o mais insignificante benefício: antes governou a capitania por ouvidores de sua nomeação[10].

Muito amplos foram os poderes que tiveram estes e os outros donatários das ilhas dos Açores, como se manifesta do alvará que o infante D. Henrique deu ao comendador Gonçalo Velho Cabral, datado em Lagos a 19 de Maio de 1460. De igual importância foram os poderes concedidos aos capitães Álvaro Martins Homem e João Vaz Corte Real, como atestam as respectivas cartas (Documento D e Documento E). Por elas vemos que davam livremente as terras incultas; tinham a décima parte dos dízimos e rendas reais; o direito exclusivo dos moinhos e o monopólio do sal. A sua alçada no cível e crime não era de menos vulto, porquanto sentenciavam em última instância todas as causas, ressalvando morte ou talhamento de membro, únicos processos de que se podia recorrer por apelação e agravo. Daqui veio que, por abuso de autoridade, se declarou nos tribunais superiores, que o conceder-se uma ilha ao capitão com jurisdição cível e crime, não era fazê-lo governador das justiças; e que uma posse, ainda que imemorial, não valia contra a jurisdição de El-Rei[11]. Ora se todos estes poderes eram exorbitantes na pessoa dos donatários, muito mais excessivos se mostravam nas correições e eleições de juízes ordinários e Câmaras, a que procediam em falta dos corregedores: isto foi na verdade um perene manancial de discórdias.

Só no governo municipal lhes foi vedada toda a intervenção; nem os donatários se podiam escusar ao cumprimento das posturas e acórdãos jurídicos: de forma que nas fintas e derramas eram a elas sujeitos como os demais cidadãos; nem podiam embarcar seu pão sem previa licença das Câmaras, a cargo das quais estavam os portos desta ilha; e tudo isto porque não lhes era permitido entrarem nas vereações senão quando chamados para alguma consulta, ou quando iam requerer de sua justiça, depois do que se retiravam deixando livremente os vereadores[12].

Em o número dos notáveis acontecimentos que tiveram lugar nesta época foi o descobrimento da Índia oriental no ano de 1497 para o de 1498. Testemunha deste extraordinário sucesso foi a ilha Terceira, vendo aportar em Angra a caravela em que vinha o famoso general Vasco da Gama[13], procurando remediar a saúde de seu irmão Paulo da Gama, que, enfermo de tão dilatada e trabalhosa navegação, aqui veio acabar seus dias, e foi sepultado no mosteiro de São Francisco. O autor da História Seráfica do Padre São Francisco, capítulo 13, Livro 1.º, parte 3.ª, diz assim: Aqui deram os nossos religiosos amorosa sepultura em as entranhas da terra ao insigne herói Paulo da Gama, irmão do grande Vasco da Gama.... Vinha Paulo da Gama enfermo de tão prolixa e larga navegação, qual é a referida, e desembarcando nesta cidade de Angra, ela acabou seus dias... Quis sepultar-se à sombra de S. Francisco em, cova rasa, merecendo seus ossos mausoléus eminentes, sobre que voasse a fama imortal de suas acções ilustres.

Ignora-se quais foram os cumprimentos que este grande homem recebeu na vila de Angra, e as honras fúnebres que deu ao finado seu irmão, e o tempo que na ilha se demorou. Damião de Góis só adianta que Paulo da Gama fora sepultado em uma cova rasa, sobre a qual se impôs uma pedra mármore com o seu nome; e que esta sepultura ficara no alpendre da sacristia; mas hoje se não descobre o lugar onde foi, em razão de se haver dado nova forma à igreja e à sacristia. Também se ignora quantos dias se demorou Vasco da Gama. Assim passavam os grandes acontecimentos sem que na ilha Terceira houvesse quem os datasse, incúria dos tempos, que não manchou somente os nossos antepassados.

Com o descobrimento da Índia oriental começou a ilha Terceira a gozar das jóias, e riquezas daquele novo mundo, dando provimento às naus, e mais embarcações que nela seguravam viagem; e pelo grande rendimento de alfândega lhe deu El-Rei D. Manuel foral, em Lisboa, a 4 de Julho de 1499, e por ele foram criados o juiz e escrivão. Concedeu outrossim El-Rei, o foral do almoxarifado de que já fizemos menção, e que vai no Documento C, que em parte é o mesmo dado para a ilha da Madeira a 2 de Julho de 1437, pelo qual se regulou o primeiro capitão Jácome de Bruges.

E por havermos alcançado quais foram os oficiais da alfândega em tempo de João Vaz Corte Real, e que serviram na vila de Angra, desde então capital da ilha, aqui os vamos relacionar, dando assim remate a esta Segunda Época. Foi o primeiro almoxarife João de Galegos, irmão da capitoa da Praia[14], Inês Martins Cardosa; o segundo foi Isidoro Álvares, casado com Isabel Pacheco, filha de Manuel Pacheco, neta de João Pacheco Pereira, e Branca Gomes de Lima[15]; e depois destes foi Manuel Pacheco de Lima, por antonomásia o Contador. Porém, João Álvares Neto[16] serviu de juiz do mar e da alfândega, e era o maior ministro que houve independente do donatário. Depois dele[17] foi Luiz Casado, e seu escrivão Ambrósio Álvares.

Na vila da Praia estavam a cargo da Câmara os negócios que pertenciam à alfândega, e consta servirem de oficiais do almoxarifado João de Ornelas Saavedra, e Diogo Álvares da Câmara, seu parente, desde os anos de 1492 a 1503.

Faleceu neste ano de 1499 o fidalgo Pedro Álvares da Câmara[18], com testamento feito em 2 de Março, pelo qual instituiu em fidei commisso o grande morgado do Porto Martins, chamando para administrador a seu filho João de Ornelas da Câmara: e falecendo este sem descendência originou-se entre Domingos Homem e o seu sobrinho Antão Martins da Câmara, neto mais velho de Isabel de Ornelas, irmã do finado administrador, tal pleito que, sendo a final decidido a favor deste, pelo direito de representação, serviu o julgado de aresto em semelhantes, e anda nas decisões dos doutos desembargadores. Ainda tornou a caducar esta linhagem, e sucedeu-lhe a de António Paim, de quem procede o actual administrador visconde de Bruges.

Faleceu também em Lisboa Duarte Paim, que seguia os grandes pleitos contra os donatários de Angra e da Praia, como temos dito (Documento G). E porque nem estes pleitos, nem o grande que corria contra João de Teive a respeito da Serra de São Tiago, se acabaram, os continuou seu filho Diogo Paim.

FIM DA SEGUNDA ÉPOCA
  1. Ainda em 6 de Setembro existia, como se vê do protesto transcrito no Documento R.
  2. Foi o primeiro convento de freiras nas ilhas dos Açores, com o número de 26 freiras. Veja-se a sentença da Relação contra a Câmara de Angra, registada a fl. 144 no Livro do Tombo da Câmara da Praia.
  3. Citado Livro de Registo, fl. 7.
  4. Já também os moinhos das Quatro Ribeiras e da vila de São Sebastião eram feitos.
  5. Decidiu-se na relação, em 26 de Maio de 1517.
  6. Corriam neste tempo as grandes demandas de João Leonardes contra João Vaz a respeito da terra do Pico das Contendas; a de Duarte Paim contra João de Teive a respeito da Serra da Praia, e tirava-se à força a data de João Coelho; e andavam outras mais inquietações.
  7. O padre Cordeiro fundado na autoridade de Frutuoso, diz que a Praia era cercada de muralha, que tinha quatro portões e quatro baluartes (Livro 6.º, Capítulo 6. º, §46). Apenas hoje se alcançam mui poucos vestígios desta fortificação.
  8. Álvaro Lopes da Fonseca, fidalgo escudeiro, foi casado com Andreza Mendes de Vasconcelos, fez testamento sob cuja disposição faleceu em 1506; e nele se recorda desta demanda.
  9. Livro 1.º da Câmara de Angra, fl. 312, verso, até fl. 319.
  10. Diogo de Teive, António Afonso e Afonso do Amaral, que lhe precederam, tiveram igual poder, como se vê pela demanda de João Leonardes, não sendo o menor, fazerem correições.
  11. Veremos no ano de 1520 o novo Regimento, que limitou a alçada dos capitães da ilha da Madeira e Açores.
  12. Foi isto o que se determinou por alvará do 1.º de Julho de 1507, registado na Câmara de Ponta Delgada, fl. 4 do livro do tombo, como afirma o mestre frei Diogo das Chagas.
  13. Assim João do Barros na 1.ª Década, Livro 4.º, capítulo 11: Nicolau Coelho com um temporal se apartou de Vasco da Gama, e veio ter a Lisboa em 10 de Julho de 1499. Vasco da Gama com aquele temporal veio ter à ilha de São Tiago; e por trazer seu irmão Paulo da Gama mui doente, deixou por capitão de seu navio a João de Sá, que veio para Lisboa, e ele por remediar a saúde de seu irmão, em uma caravela que fretou, passou-se à ilha Terceira, onde o veio enterrar no Mosteiro de S. Francisco, por vir já mui debilitado.
  14. Consta por uma justificação de nobreza dada no ano de 1660 a requerimento de Gonçalo do Rego de Sousa.
  15. Brasão de armas original, tirado em 12 de Janeiro de 1538, do juiz contador Manuel Pacheco de Lima.
  16. Era fidalgo da casa dos Infantes e casado com Mécia Lourenço Fagundes, flha de Afonso Gonçalves, o Velho de S. Francisco, o qual, segundo refere Maldonado, foi casado em segundas núpcias com Inês Gonçalves, filha de Rodrigo Afonso Fagundes, que tinha sido mestre do Infante D. Henrique, em astrologia judiciária; e havia trazido para a Terceira outra filha, Beatriz Rodrigues Fagundes, que casou com Gil Anes Curvo, ou de Borba, por ser desta vila, companheiro do dito Afonso Gonçalves no descobrimento da Angra dos Ruivos, como o refere João de Barros.
  17. Sabe-se pela demanda de João Leonardes.
  18. Instituiu a capela da Ressurreição no mosteiro de São Francisco da Praia, onde morava. Acha-se hoje a imagem do Santo Cristo em veneração na ermida do Santo Espírito em Angra, depois de terramoto de 15 de Junho do 1841.