Mui grande era o ódio que reinava entre Ciprião do Figueiredo, governador da ilha Terceira, e Ambrósio de Aguiar, governador da ilha de S. Miguel; e cuidando cada um deles com o maior ardor em sustentar a voz do seu Rei, não cessava de vituperar o outro, apelidando-o de rebelde e traidor, e empregando todos os meios para, por terceiras pessoas o matar[1]; de forma que neste o péssimo intento se entretiveram por muito tempo baldadamente, não fazendo com isto mais do que nutrir capitais ódios e inimizades entre os povos de ambas as ilhas; ódios que duraram por muito tempo, e talvez chegaram aos nossos dias. Digamos o que a este respeito sabemos.

Edificava-se a fortaleza de Santo António no porto da cidade, e estando ali em certo dia o governador Ciprião de Figueiredo com alguns oficiais da justiça e com o capitão da mesma fortaleza, Baltasar Gonçalves de Antona, e com outras pessoas, chegou da ilha de S. Miguel um barco com vários passageiros. Imediatamente começou o dito governador a perguntar ao mestre do barco, de que maneira se houveram os moradores daquela ilha com o seu governador Ambrósio de Aguiar e com o corregedor Jorge Cavio de Barros; e dizendo-lhe ele, que muito bem; que lhes fizeram muitas festas, e que a ilha estava com eles mui contente, e eram benquistos do povo; e finalmente que o dito Ambrósio de Aguiar havia publicado a ele governador e a Braz Nogueira, escrivão da correição, e a outros desta ilha por traidores e rebeldes a Sua Majestade; então o mesmo Figueiredo, ouvindo isto e cheio da maior indignação, disse ao arrais do barco: — O governador Ciprião de Figueiredo de Vasconcelos manda que se publique Ambrósio de Aguiar e o corregedor Jorge de Barros por traidores, por serem contra seu Rei natural, e que sejam seus bens confiscados para a Coroa.

Além destas palavras pronunciadas em alto e bom som, lhe fez publicar outras muitas descomedidos e mal sonantes, que se atribuíram a sugestões do referido escrivão, pela preponderância que tinha, e por se aproveitar muitas vezes da sinceridade natural do governador, e da sua pouca sagacidade em circunstâncias tão melindrosas. Com isto, e sem deixar desembarcar pessoa alguma, mandou retirar o barco à ilha de S. Miguel, onde levou aquele inútil e ocioso pregão, que na verdade somente serviu a desafiar a cólera e a provocar a vingança dos compreendidos nele, como se acha pelo seguinte factos: num dos primeiros dias de Janeiro do ano de 1582, amanheceu no porto de Angra um barco vindo da cidade de Ponta Delgada da ilha de S. Miguel, e nele vem um homem, chamado F. de Macedo, aderente à causa de D. Filipe, mas figurando-se do partido de D. António, publicando artificiosamente haver escapado às fúrias dos micaelenses. Porém o certo é que ele vinha por mandado de Ambrósio de Aguiar, e com ânimo deliberado de matar o governador Ciprião do Figueiredo; e tais modos e palavras empregou, manifestando a maior alegria de se ver a salvo de tantos inimigos e manifestos perigos, que facilmente iludiu a todos, que o acreditaram completamente: em consequência do que lhe fizeram muitas honras e cortejos, principalmente o governador, que desde logo o teve por um grande amigo, e bom vassalo de El-Rei seu amo.

Passados alguns dias, vendo Macedo o estado em que se achava a terra, não se atreveu a executar o sinistro intento com que veio, e desistiu de o pôr em prática, arrependendo-se de todos os passos que dera para tão execrando fim. Os remorsos do crime sempre assombram a fisionomia do malvado. Macedo andava sobremaneira triste e pensativo, e Figueiredo, vendo-o assim, começou a suspeitar dele, e lhe disse, que, pois viera a servir o Senhor D. António, embarcasse na nau do capitão Clenis, então surta no porto, e com outros portugueses fosse esperar os navios do El-Rei Católico, que andavam com avisos, pois convinha muito assegurar-se deles. Com este pretexto especioso o fez com efeito embarcar, apesar de alguma repugnância que Macedo mostrou ter à vida do mar.

Foi no mês de Maio que ele se embarcou, e andando por espaço de tempo o estudando sempre os meios de se poder evadir com segurança, assim que chegou a terra tratou de pedir a Ciprião do Figueiredo o deixasse voltar à ilha de S. Miguel porque, figurando-se ir fugido, lhe prometia havia de matar Ambrósio de Aguiar. E sem embargo de que o governador entendesse que esta promessa não era sincera, lhe concedeu facilmente o que ele pedia. Três dias depois da sua saída, chegou de França um aviso de que, por cartas recebidas da ilha de S. Miguel, constava ali que ele vinha à Terceira como ânimo deliberado de matar Ciprião do Figueiredo, convindo por isso que, se ele aqui estivesse, o prendessem com segurança. Figueiredo ficou enojado com esta notícia, e escreveu para aquela ilha a ver se podia conseguir a prisão do referido Macedo, mas este havia já partido para Lisboa protegido por Ambrósio de Aguiar, constando haver ali alcançado, por a sua adesão à causa de Filipe II, o hábito de Cristo.

Começou o ano de 1582 na ilha Terceira por uma rigorosa correição, a que procedeu o dito corregedor Ciprião do Figueiredo; o qual, além disso, receando que pela abertura dos pelouros entrassem a servir nas Câmaras pessoas que não eram do serviço de El-Rei, a seu arbítrio as nomeou para os cargos do concelho. Deste feito achámos o auto exarado a fl. 232, verso, do Livro dos Acórdãos da Câmara da Praia, no dia 4 de Janeiro, pelo qual se deliberou que suposto estar ainda por abrir o pelouro dos oficiais que haviam de servir, e por se dizer estarem nele pessoas que não cumpriam ao serviço de El-Rei, guarda e defensão da terra, e por o tempo ser de muitos trabalhos, guerras e haver dissensões e pessoas que não eram tão legítimas portuguesas, ele governador, pelos poderes que tinha, havia por serviço que se não abrisse o pelouro, e mandava que servissem de juízes Gil Fernandes Teixeira (vereador mais velho que ficava para esse ano, na forma da provisão de que falamos no ano de 1533) e António Mendes de Vasconcelos; vereadores, Diogo Lopes Machado, sem embargo do parentesco que tinha com este último, e Miguel do Canto Vieira.

Enquanto passavam estas coisas na ilha Terceira, os governadores de Portugal não se esqueciam de lhe propor todos os meios de pacificação para que se entregasse a El-Rei D. Filipe; e achando-se em Lisboa Gaspar Homem, natural desta ilha e morador nas Lajes, por haver fugido à execução de sentenças e censuras eclesiásticas que lhe foram fulminadas[2], obrigando-o a casar com Maria Gaspar, filha de Gonçalo Pita Feio. Apesar de lhe ter sido posto interdito na ilha, ofereceu-se para fazer reduzir a ilha ao serviço de El-Rei D. Filipe, inculcando-se muito bem aparentado na vila da Praia, e dos principais dela; e que, com ajuda dos amigos e parentes, lhe seria muito fácil conseguir o intento. Pareceu muito bem aos governadores a proposta de Gaspar Homem, e dando-lhe cartas para as autoridades da ilha, e pessoas de maior conceito, o enviaram em uma caravela, a qual surgiu no porto da mencionada vila da Praia em poucos dias; e logo que o enviado Gaspar Homem começou a falar, não faltou muito para o matarem com pedradas, sem lhe poderem valer os parentes e irmãos, em que se confiava; e tomando-lhe todos os papéis que trazia, preso e maltratado, o levaram à cadeia da cidade, onde ficou até à vinda do conde Manuel da Silva, que o soltou para o fim que em seu lugar diremos.

Por este mesmo tempo vieram chegando à ilha alguns socorros de tropa inglesa e francesa, e os capitães Henrique e Duarte Périn, que tinham por superiores e mestres de campo, o grão capitão Carlos, e outro apelidado Baptista, fidalgos de grandes casas de França, aos quais se deram para quartel os melhores edifícios da cidade. Logo que chegaram, fizeram alojamento da tropa na praça e em outras partes, entrando em serviço conforme as ordenanças militares. Seriam ao todo, ingleses e franceses, oitocentos soldados.

Os Portugueses colocaram o seu quartel no adro da Sé, onde estavam efectivamente duas companhias em armas, por não se fiarem dos franceses, entre os quais havia sempre muitas desordens. Havia também vigias por toda a costa da ilha, e gente de cavalo; e todos em serviço como as circunstâncias o exigiam.

Constando em Angra que em Ponta Delgada da ilha de S. Miguel, e defronte da fortaleza, estava ancorado um galeão português, denominado S. Cristóvão, que facilmente poderia ser tomado de noite o mandou o governador Ciprião do Figueiredo equipar 20 batéis de pesca, e alguns barcos armados à latina, que entre todos seriam 25, e neles 120 soldados arcabuzeiros e mosqueteiros, e os mandou sair para tomarem o dito galeão, servindo de capitania a embarcação maior, na qual ia toda a oficialidade. Partiu com efeito esta expedição com mar pacífico e vento favorável, e no outro dia pela manhã estava ao norte da ilha de S. Miguel, desviado 5 léguas, pouco mais ou menos; porém, à meia-noite, começou a escassear o vento, e se mudou para o sudeste. Como o tempo estava muito claro, foram vistos da ilha, figurando serem 25 navios, o que ocasionou grande reboliço no povo, porque se ignorava que armada poderia ser, e o que procurava naquela ilha. Já o vento era muito contrário, e começou a entumecer o mar de forma que foi necessário que esta armada desse à vela para Angra, e com grande trabalho e perigo deu fundo no porto dela, ficando-lhe baldada a tomada do galeão.

Daí a poucos dias souberam os micaelenses, por um barco das Ilhas de Baixo ali arribado, o que armada era, e o fim a que se propunha, que era tomar o galeão para se utilizar da artilharia grossa que nele havia. Recolheram então os micaelenses o galeão mais para dentro, porém não tanto, que deixasse de ficar sujeito a ser tomado, e exposto às balas da fortaleza quando o quisesse defender.

Melhorando o tempo, e abonançando o mar, determinou o governador Ciprião de Figueiredo mandar outra vez a mesma expedição, mas soube que já os micaelenses tinham recolhido para dentro do porto o galeão, e que de noite dormia dentro dele muita gente para o defender, e por isto era arriscada a empresa, e decerto o resultado não poderia ser favorável aos terceirenses, que jamais a tinham aprovado. Assim em presença destas dificuldades desistiu do intento.

Ouvindo isto os ingleses e franceses o pediram ao governador que lhes concedesse o casco do galeão e que eles lhe dariam a artilharia dele e o queriam ir tomar com suas naus, e com o navio queriam andar ao serviço de El-Rei D. António; e que até não duvidavam permutá-lo por outro, à vontade do governador. À vista de proposição tão vantajosa, não duvidou o governador conceder a licença pedida; e desta forma, preparados os ingleses e franceses em nove grandes navios, a que chamavam naus, e com alguns portugueses, desferraram do porto de Angra com vento norte, que era o mesmo que reinava na ilha de S. Miguel, e ao romper da manhã do dia seguinte achava-se a esquadra defronte dos Mosteiros na referida ilha de S. Miguel, o que motivou grande perturbação na gente da ilha, que atemorizados se puseram em armas[3].

Foi a armada costeando a ilha até poderem abordar o galeão, e como os negócios de El-Rei D. António eram sempre mal sucedidos desde o seu princípio, também parece que este não podia ter bom fim, pois tinha começado mal. Estava o galeão ancorado, e as naus, por mais esforços que fizeram, o não puderam aferrar, excepto uma e foi esta a do capitão Clenis.

Travou-se então com esta um combate assaz cruel de parte a parte, mas o resultado foi a favor do galeão, apesar de ficarem nele vivos somente três homem. O capitão Clenis foi morto, e os que ficaram na nau se retiraram bem destroçados e com muita gente morta.

Depois de fundeadas no porto de Angra as naus desta fatal expedição, se pôs em terra o cadáver do finado capitão Clenis, e com grande pompa foi sepultado, não sem bastante sentimento, dos terceirenses, que viram malograda esta empresa pela segunda vez: e porque se murmurava muito contra os capitães das outras naus, que não acudiram ao combate, o capitão inglês Henrique passou a tal furor, que desafiava a todos os capitães ingleses, franceses e portugueses, para um duelo, porque se achara afrontado do que se dizia dele, como um dos que foram naquela expedição.

Nenhum dos provocados ao desafio o recusava, porque o seu autor não era suficiente para o sustentar, por ser o mancebo delicado, incapaz de semelhantes duelos; mas porque daqui se poderiam seguir maiores infelicidades, o corregedor e governador Ciprião do Figueiredo se meteu de permeio, apaziguando os ânimos de todos, e facilmente o conseguiu por sua consumada prudência e pelo respeito da sua autoridade. E porque o dito capitão Henrique era pajem da Rainha de França, e seu privado, lhe deu o corregedor parte da sua condição e maneira de proceder; do que resultou que dali a pouco tempo foi mandado retirar da ilha, e ficaram os outros capitães, que bem desnecessários foram nela, pois não fizeram coisa boa, antes fomentaram continuadas desordens, roubos e motins dos quais procederam mortes entre eles e os portugueses, dentro da cidade e fora dela, em qualquer parte em que se achavam destacados.

Já neste tempo havia El-Rei D. António posto em Angra a Relação[4] sobre todas as ilhas, e dela era presidente o corregedor; os deputados eram o licenciado João Gonçalves Correia[5], o licenciado Baltasar Álvares Ramires[6], Domingos Pinheiro, Domingos Onsel, de quem já falámos; e suposto que eles tivessem condenado em penas de dinheiro e degredo a vários cidadãos, e principalmente a João de Betancor que tinha sentença de morte, e assim mesmo eram passados oito meses em que não só o corregedor dilatava a execução das sentenças, mas ainda requeria a soltura dos réus e a dos padres da Companhia de Jesus, que se achavam entaipados no seu convento e incomunicáveis, como já dissemos.

Procedimento na verdade era este mui próprio de uma alma bem formada, como a deste recto magistrado, mas inadmissível nas actuais circunstâncias em que a desconfiança, com todos os seus horrores, penetrava os espíritos do povo e dos seus influentes, aumentando de dia em dia infundadas suspeitas de que ele se entendia com El-Rei Filipe. E parece que a calúnia tomava maior calor, e se propagava nos ânimos de todos, com a influência dos outros frades inimigos dos Jesuítas[7]; de forma que o governador dito Ciprião do Figueiredo se considerou no último perigo, e escreveu a El-Rei D. António, para que apressasse a sua vinda para a Terceira, da qual lhe fez uma pintura bem pouco agradável, dando-lhe a entender como era mal obedecido, e que não se poderia conservar nela por muito tempo.

Já El-Rei então havia recebido várias cartas contendo muitas queixas contra o dito governador, caluniando-o de inconfidente; e assim, para obviar males tão iminentes, resolveu enviar à ilha Manuel da Silva[8], um dos seus validos e companheiros nos seus desastres, dando-lhe o título de conde de Torres Vedras, para governar as Ilhas Terceiras, e servir de seu lugar-tenente, deixando a seu arbítrio o conservar ou remover o dito corregedor Ciprião do Figueiredo, como bem o entendesse.

  1. Os meios que para este fim se empregaram, expõe o Doutor Frutuoso no Livro 4.º, capítulo 96, a que se remete o Padre António Cordeiro; e nós seguimos a citada Relação, nos capítulos 27 e 28.
  2. Gaspar Homem era filho de João Homem da Costa e de sua mulher Catarina Evangelho, descendente de Heitor Álvares Homem, varão mui distinto, de quem já falámos.
  3. O autor da citada Relação achava-se neste tempo na ilha de S. Miguel, e presenciou o reboliço que houve na cidade, como ele diz no capítulo 33.
  4. Cordeiro (Livro 6.º, capítulo 27, §303), fundado na Relação que seguimos.
  5. Foi este o primeiro que escreveu algumas notícias e a genealogia das pessoas nobres desta ilha; o segundo foi seu filho António Correia da Fonseca de Ávila, que citámos na Primeira Época destes Anais; e o 3.º, e o mais acreditado, foi outro seu filho, chamado frei Cristóvão, mestre e provincial na religião Franciscana.
  6. Foi casado com Catarina do Canto Vieira, filha de Sebastião Martins do Canto, irmão de Braz Pires do Canto, fundador do mosteiro de S. Gonçalo; e deles procedem os Cantos da Praia, por seu filho Pedro Álvares do Canto; e de outro filho chamado João do Canto, procedeu o padre António do Canto Branco, e os Almeidas de Angra.
  7. Assim lemos na História Geral de Herrera, Livro II, capítulo 10. Não faltará quem diga, que este autor não pode ser inteiramente acreditado quando representa os religiosos Gracianos e Franciscanos principais motores das perseguições dos Jesuítas, e dos partidistas de D. António, e caluniadores do corregedor Figueiredo; porém estamos persuadidos de que as rivalidades entre estas corporações, de que existem ainda vários documentos, bastantemente confirmam esta verdade histórica.
  8. [Nota do editor: Manuel da Silva Coutinho, que fora por D. António I feito conde de Torres Vedras, mas que é mais conhecido na historiografia açoriana simplesmente por conde Manuel da Silva.]