Com a retirada do marquês de Santa Cruz dos mares dos Açores, desvaneceram-se em parte os receios de El-Rei D. António, que todavia não podia consolar-se, magoado pelo desbarato da armada naval e morte ignominiosa dos prisioneiros franceses; receando, além disto, que a corte de França lhe imputasse a culpa destes males, e recusasse dali em diante os novos socorros de que ele tanto carecia. E temendo com razão, não voltassem os espanhóis a lançá-lo fora destas ilhas, fortificou a cidade de Angra, e todos os lugares por onde os inimigos poderiam atacar.

Sendo porém já no fim de Agosto do ano de 1582, e vendo aproximar-se o Inverno, determinou o mesmo Rei, com os do seu conselho, se apercebesse a armada, sem se saber o fim para que era. Em consequência desta deliberação mandou recrutar nela e nas mais ilhas de baixo, 3 000 homens. Mandou outrossim fazer muitos instrumentos de guerra, e ferramentas indispensáveis a uma conquista; provendo a armada destas coisas, e dos bastimentos necessários para muito tempo. De forma que estes preparativos deram lugar a muitos juízes temerários do povo; porque uns diziam se preparava esta força para conquistar as ilhas Canárias, ou a Madeira, e outros, com mais probabilidade, afirmavam que ela se dirigia em direitura a Lisboa.

Constava esta armada de 70 velas grandes e pequenas, com muitos navios à latina, e poderiam ir nela, portugueses, ingleses e franceses, sete para oito mil homens. Cantavam-se entre elas sete navios, que eram o resto da armada inglesa constante de 18 velas, da qual fora capitânia a nau Santo António, que se queimara quando saíra de França, morrendo nela o capitão-mor João Fernandes de Seia, perto de 200 soldados e muitos fidalgos[1].

A 15 de Outubro foi El-Rei confessar-se e comungar ao convento de S. Francisco, entrou na igreja de Nossa da Conceição, e lhe ofereceu, para se concluir a mesma igreja, a esmola de 500 cruzados. Dali tornou a visitar a matrona D. Violante da Silva e a despedir-se das religiosas da Esperança[2].

Antes que El-Rei D. António partisse com esta armada, havia na ilha grande número de homens de suspeita, e principalmente a companhia dos 80 nobres que muito mal o tinham servido[3]; e receando ele que na sua ausência se rebelassem, determinou de os levar consigo; mas porque andavam por diferentes lugares, sem constar onde paravam, e lhe delataram que só os padres da Companhia de Jesus sabiam deles, e as mulheres dos homiziados, usou de um estranho estratagema para os colher à mão com facilidade, como aconteceu: porquanto fazendo prender os ditos padres em um navio que estava no porto, e as mulheres dos ausentes em outro, fingiu querer afundá-los para de uma vez acabar com aquela pobre gente[4].

À vista de tão espantoso procedimento, a humanidade estremeceu, e a natureza gritou. Todos os padres deram de si grande exemplo de paciência; porém as mulheres e os filhos que estavam a bordo do navio, atroaram os ares com grande choro e alaridos, de modo que os maridos, e mais pessoas que lhes diziam relação, e andavam escondidos havia mais de dois anos, vieram a toda a pressa entregar-se, resgatando-lhes as vidas à custa das suas próprias.

Deste número foram João Lopes Fagundes, e seu filho Lopo Gil Fagundes, António Francisco Barreto, seu cunhado e seu filho Lopo Gil, que depois foi deão em Angra; um seu parente por nome Bulião, Luiz Mourato e outros, aos quais El-Rei prezou e honrou muito, segundo a qualidade de suas pessoas, mandando-os embarcar em duas naus grandes, e aos mais que estavam presos e lhe eram suspeitos, respondendo aos que lhe pediam por eles: — Que dos moços carecia para sua segurança, e dos velhos para seu conselho[5].

Desta forma se embarcaram na armada muitos fidalgos, cidadãos e alguns poucos mecânicos, a saber: Manuel Fernandes, e seu irmão Jerónimo Fernandes da Cea; Pedro Anes do Canto, António Pacheco, e seu irmão Jerónimo Pacheco de Lima; Jorge de Lemos de Betancor; Vital de Betancor; Fernão Garcia Jacques, e seu filho Sebastião Jacques; Diogo Vieira Pacheco, e seu filho Manuel Henriques; Gaspar de Magalhães; e seu irmão Melchior de Magalhães; Fernão Baião; Álvaro Luiz; o cónego Luiz Alvares; o padre Jerónimo de Fontes; o chanceler Simão Gonçalves; Custódio Vieira Bocarro; Pedro Álvares Cabral; Pedro Álvares Pereira; Melchior Fernandes Rodovalho; Manuel Vieira de Carvalhal; Gaspar Gonçalves, mercador; Gaspar Fernandes Bispo; Francisco das Neves; Álvaro Pires Ramiles; Paulo Gomes; Mateus Pires; Melchior Rodrigues; Manuel Martins; Jorge Cabral; Cristóvão de Lemos; Pantaleão Pires; Gaspar Rodrigues da Cea; Rui Dias de São Paio; Gomes Pacheco de Lima; Diogo Gonçalves Machado, o Veloso; Francisco de Betancor; seu filho o de Ornelas; Francisco Vaz Chama; Pedro Rodrigues de Aguilhar; Francisco Paim da Câmara; Jerónimo Paim da Câmara; Bernardo da Fonseca; Heitor Homem da Costa; Galas Viegas de Ataíde; Estêvão Cerveira; Manuel da Silva Borges; Pedro Fernandes Coelho; e outros mais que já em 1611 não lembravam[6]. Toda esta gente se embarcou, e a maior parte dela foi ter a Inglaterra, onde faleceram muitos de doença, e os que escaparam foram depois mui bem premiados por El-Rei Filipe, e bem assim os herdeiros dos mortos.

Os padres da Companhia[7], em número de dez, com o seu reitor Estêvão Dias, chegaram ao porto de Antona em Inglaterra, e nele foram bem recebidos, e curados pelo embaixador de Castela D. Bernardino de Mendonça, que depois os enviou para Lisboa, excepto o lente de casos André Gonçalves, ali falecido. Pouco depois faleceu também em Lisboa o dito reitor, e ficou superior o padre Pedro Freire. No entretanto El-Rei D. António entregou o colégio, e todo o seu móvel, a outros religiosos que consigo trazia, e nos aposentos do mesmo colégio[8] fez enfermaria de franceses, e armazéns de munições de guerra.

Partiu finalmente esta numerosa armada do porto de Angra com vento favorável, mas pouco tempo depois lhe sobreveio tamanha tormenta, que desgarrando-se os navios uns dos outros, já destroçados, uns foram ter a Lisboa, outros a França, e alguns a Inglaterra. Apenas acabada a tormenta, saiu El-Rei acima do convés, e achando-se junto da ilha de Santa Maria com só 4 naus, esmoreceu, perdendo inteiramente quase todas as esperanças do feliz resultado de suas pretensões à coroa de Portugal. Por cúmulo de males, não sabiam os da ilha que navios eram aqueles, e consequentemente se puseram em armas para a defender.

Aqui mandam El-Rei aviso dizendo quem era, e que esperava lhe obedecessem como tal. Porém, ainda que o povo se mostrou satisfeito e inclinado a isto, o capitão-mor não o quis receber nesta qualidade, desculpando-se com razões, ao que parecia plausíveis, porque fundadas no iminente risco de sua pessoa e fazenda, e bem assim dos moradores daquela ilha, que espontaneamente haviam jurado El-Rei de Castela. Para o assegurar porém da vontade que tinha de o obsequiar, mandou-lhe um grande presente, persuadindo-o do quanto seria estimado, se quisesse honrar aquela terra desembarcando nela como particular, só com alguns fidalgos portugueses, e por esta honra lhe ficariam muito reconhecidos; e que não lhe sendo possível, ou não querendo desembarcar, mandasse dizer, como filho do Infante D. Luiz, o que queria a bordo da sua armada, para francamente lhe ser enviado.

Todos estes oferecimentos foram muito agradáveis a El-Rei, mas não os aceitou, desculpando-se não poder ir a terra por estar incomodado; e acrescentando que se retirava penetrado do mais sincero reconhecimento para com o capitão-mor e moradores da ilha. Assim se fez de vela, e no fim de Outubro chegou ao porto de Angra, onde foi bem recebido, ainda que com bastante pesar do mau sucesso desta viagem[9].

Vendo então o infeliz Príncipe D. António os caprichos da fortuna, que por todos os meios e modos parecia empenhar-se em transtornar os seus projectos, aborrecendo já até a própria vida[10], assentou de novo embarcar-se, como se embarcou, deixando seu lugar-tenente o conde D. Manuel da Silva com 3 000 soldados portugueses; e a cargo do capitão Baptista Florentino, italiano, e do capitão Carlos, francês, 1 800 soldados desta nação, e uma companhia de ingleses.

Além destes, fez embarcar outra vez consigo os 80 nobres atrás nomeados, e partiu com 29 velas em direitura a França, isto no fim de Novembro do ano de 1582. Deixou outrossim em Angra por corregedor, em lugar de Ciprião do Figueiredo, a Gaspar de Gâmboa, a quem trouxera consigo para este cargo[11], o qual lhe conferiu por carta passada a 19 de Novembro, e que achámos a fl. 257 do Livro dos Acórdãos da Câmara da Praia. Daqueles 80 nobres, faleceram por lá 37 de suas doenças, e contra os mais se não procedeu.

Chegando D. António a França foi muito bem acolhido, e se lhe deram os socorros com que ele se foi habilitando para a futura campanha da ilha Terceira; porque o desbarato da armada naval pôs a corte de França em geral consternação, e a barbaridade do marquês de Santa Cruz para com os prisioneiros na ilha de S. Miguel, só serviu de excitar o desejo de uma vingança que em toda a parte desse brado.

No entretanto El-Rei Filipe, depois de providenciar quanta era preciso à conservação do seu domínio em Portugal, assentou voltar a Madrid para efectuar o casamento da Infanta sua filha com o Imperador; mas tendo notícia da morte de seu filho primogénito, o Infante D. Diogo, diferiu para outro tempo a partida, e convocou os Estados Gerais de Portugal, a fim de que fosse reconhecido seu herdeiro e legítimo sucessor o Príncipe D. Filipe, seu filho segundo, que depois governou.

Outros acontecimentos de grande consideração entretiveram a corte de Madrid neste espaço de tempo, e pareciam distrair a conquista da Terceira. Em princípio do ano de 1583 faleceu em Lisboa, em idade de 74 anos, o famoso D. Álvaro de Toledo, Duque de Alba[12]. El-Rei se houve na moléstia e exéquias deste insigne cabo-de-guerra, como seu fiel amigo. Acabadas as últimas honras ao seu corpo, foi El-Rei passar três dias em Belém, para onde mandou trasladar os ossos de El-Rei D. Sebastião, e os do Cardeal Rei, e de outros 20 Príncipes descendentes de El-Rei D. Manuel. Concluídas estas coisas, fez, antes de partir, nova legislação judiciária, o renovou o juramento por ele dado de observar fielmente a palavra solene que já dera, para conservar aos portugueses os seus antigos privilégios, imunidades e prerrogativas.

Dado este juramento, e deixado tudo, ao que parecia, em sossego dentro de Portugal, entregou El-Rei Filipe o governo deste reino ao Arquiduque Alberto de Áustria, nomeando conselheiros a D. Jorge de Almeida, Arcebispo de Lisboa, D. Pedro de Alcáçovas, e D. Miguel de Moura, que já fora Secretario de Estado: partiu a 11 de Fevereiro para Espanha, e começou a governar o Arquiduque. Foi sob o governo deste ministério que se preparou e efectuou a redução da ilha Terceira.

Continuaremos por agora o que nela se passou de mais saliente em princípio do ano de 1583, em que vamos, segundo a ordem dos tempos.

  1. Esta armada saiu de França com D. António; e porque em toda a parte os seus negócios iam mal, aconteceu, em dia de S. João, pegar fogo em certa quantidade de pólvora, de que resultou grande explosão, e falecer o dito capitão-mor, que era natural de Angra. Apenas a nau capitânia se perdeu tão desgraçadamente, os demais navios tomaram diferentes rumos, seguindo o arbítrio dos comandantes, e só chegaram a Angra os 7 de que fazemos menção (citada Relação, no capítulo 55). Também deste desastre escapou D. António de Meneses, suposto que muito queimado.
  2. Veja-se o Padre Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 18, §315 da História Insulana.
  3. Idem, Padre Cordeiro.
  4. Na referida Relação, capítulo 57. O Padre Cordeiro diz assim: — e depois de outras resoluções tomadas, e não executadas ....
  5. Assim o traz Herrera.
  6. Não lembravam ao autor da referida Relação que estes mencionou. Veja-se a relação que fica no Capítulo I desta Época: alguns dos ali nomeados também aqui se repetem.
  7. De alguns destes religiosos, e sua missão política, já tratámos no Capítulo I desta Época.
  8. O citado Padre Cordeiro, no seu Livro 6.º, capítulo 27, §308, referindo-se ao Doutor Gaspar Frutuoso, no Livro 6.º, capítulos 16, 17 e 18. O colégio de que aqui se trata era à Rocha, onde hoje são as casas de João Marcelino.
  9. O Padre Cordeiro diz: — ... e só com 20 naus tornou o Rei a recolher à ilha Terceira.
  10. Se acreditássemos os autores estrangeiros, acharíamos a D. António no curto espaço que se demorou nesta ilha, esquecido de suas passadas desditas, cuidando só em recrear-se.
  11. Veja-se o que dissemos no Capítulo IX.
  12. Foi quem subjugou Portugal. Veja-se o que dissemos no ano de 1580.