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autor destas Viagens, Sr. Lemuel Gulliver, é meu antigo e íntimo amigo, há também alguma relação entre nós por parte de mãe. Cerca de três anos atrás, o Sr. Gulliver, cansado do assédio de pessoas curiosas que íam procurá-lo em sua casa, em Redriff, adquiriu um pequeno pedaço de terra, com uma casa confortável, perto de Newark, em Nottinghamshire, sua terra natal, onde ele vive hoje afastado, embora muito estimado pelos seus vizinhos.
Embora o Sr. Gulliver tenha nascido em Nottinghamshire, onde viveu o seu pai, tenho ouvido ele dizer que a sua família veio de Oxfordshire, cuja confirmação observei no pátio da igreja de Bandury desse condado, diversos túmulos e monumentos dos Gullivers.
Porém, antes de deixar Redriff, ele deixou em minhas mãos a custódia desses documentos, com a liberdade de dispor delas da forma que desejasse. Eu as examinei cuidadosamente durante três vezes. O estilo é muito claro e simples, e a única falha que encontrei é que o autor, à maneira dos viajantes, é um pouco detalhista por demais. Há uma atmosfera de verdade aparente com relação ao todo, e de fato o autor estava tão convencido de sua veracidade, que acabou se tornando uma espécie de provérbio pelos seus vizinhos de Redriff, quando alguém afirmava qualquer coisa, por exemplo, isso era tão verdade como se fosse dito pelo Sr. Gulliver.
Ao conselho de diversas pessoas conceituadas, a quem, com a permissão do autor, mostrei estes documentos, aventuro-me agora a enviá-las para o mundo, esperando que elas sejam, pelo menos por algum tempo, um entretenimento melhor para os nossos jovens nobres do que os rabiscos habituais dos políticos e do partido.
Este volume teria sido pelo menos duas vezes maior, se eu não tivesse tido a coragem de excluir inúmeros relatos sobre os ventos e as marés, bem como às variações e vicissitudes nas diversas viagens, além das minuciosas descrições no manejo dos navios durante as tempestades, no estilo usado pelos marinheiros, da mesma forma a descrição das longitudes e latitudes, embora eu tenha razão para entender, que o Sr. Gulliver possa ficar um pouco insatisfeito. Mas eu havia decidido adequar o trabalho tanto quanto possível à capacidade geral dos leitores. Todavia, caso o meu desconhecimento a respeito de assuntos marítimos tenha me levado a cometer alguns equívocos, somente eu devo ser responsabilizado por isso. E se algum aventureiro tiver a curiosidade de ver todo o trabalho por inteiro, como o recebi das mãos do autor, estarei à disposição para obsequiá-lo.
Com relação a qualquer particular sobre o autor, o leitor encontrará as respostas desde as primeiras páginas do livro.
138547Viagens de Gulliver — Uma Carta do Capitão Gulliver para o seu primo Richard SympsonJonathan Swift
Uma Carta do Capitão Gulliver para o seu primo Sympson.
Escrita no ano de 1727.
Espero que você esteja preparado para reconhecer publicamente, sempre que para isso seja intimado, que por causa de sua grande e frequente pressa você me convenceu a publicar um relato livre e incorreto de minhas viagens, com orientações para contratar algum jovem cavalheiro de qualquer universidade para colocá-las em ordem, e corrigir o estilo, como fez meu primo Dampier, aconselhado por mim, em seu livro intitulado Uma Viagem ao redor do mundo. Porém não me recordo de ter dado autorização para permitir que qualquer fato fosse omitido, e muito menos que qualquer detalhe fosse inserido, portanto, quanto às inserções, eu renuncio aqui a qualquer ato desse tipo, particularmente um parágrafo a respeito de sua majestade a rainha Anne, da mais pia e gloriosa memória, embora eu a reverencie e a estime mais do que qualquer um da espécie humana.
Mas você, ou o seu interpolador, deveriam ter levado em consideração, que eu não tive a menor inclinação, portanto, não foi apropriado louvar qualquer animal de nossa composição diante do meu mestre Houyhnhnm. E além disso, o fato era totalmente inverossímil, pois pelo meu conhecimento, estando na Inglaterra durante alguma parte do reinado de Sua Majestade, ela governou o país por meio de um primeiro ministro, ou melhor, até mesmo por dois sucessivamente, o primeiro dos quais era o senhor de Godolphin, e o segundo o senhor de Oxford, de modo que você me fez dizer coisas que não existiram. Da mesma forma no relato da academia dos projetistas, e nas diversas passagens do meu discurso para o meu mestre Houyhnhnm, você ou omitiu algumas circunstâncias materiais ou fez alguns cortes ou as modificou de tal maneira que, dificilmente admito que seja minha própria obra.
Quando anteriormente por meio de uma carta fiz menção a esse fato, você teve a gentileza de me responder que receava ofender, que as pessoas no poder eram muito cautelosas com a imprensa, e que eram aptas não apenas a interpretar, mas a punir qualquer coisa que se parecesse como uma insinuação (como acho que você chama isso). Mas, como poderia, aquilo que falei há muitos anos e a cerca de cinco mil léguas de distância, em outro reino, ser aplicado a qualquer um dos Yahoos (pessoas rudes e primitivas), que dizem agora estar governando a plebe, especialmente numa época quando pouco pensava ou temia a infelicidade de viver sob o domínio deles? Não teria eu muitas razões para me queixar, quando vejo aqueles mesmos Yahoos transportados em um veículo pelos Houyhnhnms, como se fossem pessoas primitivas, e aqueles as criaturas racionais? E na verdade, para evitar uma visão tão assustadora e detestável foi a causa principal do meu refúgio para estas paragens.
De modo que achei muito apropriado dizer a você com relação a si mesmo, e com respeito à confiança que depositei em você.
Queixo-me, a seguir, com relação à minha grande falta de julgamento, ao deixar-me convencer pelas solicitações e equivocados raciocínios de vossa pessoa e de alguns outros, principalmente contrários à minha opinião, para permitirem que minhas viagens fossem publicadas. Rezo para lembrá-lo quantas vezes desejei que você levasse em consideração, quando você insistiu nos motivos do bem público, que os Yahoos eram uma espécie de animais reconhecidamente incapazes de melhorar seja através de preceitos ou de exemplos, e assim ficou comprovado, porque, ao invés de assistir a uma parada completa de todos os abusos e corrupções, pelo menos nesta pequena ilha, como tinha motivos para esperar, eis que, depois de receber advertências por um período de seis meses, não soube que meu livro tenha produzido um único efeito de acordo com minhas intenções.
Desejaria que você me informasse, através de carta, quando um partido ou uma facção fossem extintos; juízes fossem sábios e justos, peticionários honestos e despretensiosos, com um tom de bom senso, e Smithfield resplandecendo com pirâmides de livros de direito, a educação da jovem nobreza mudou completamente, os médicos foram banidos, as mulheres Yahoos transbordando de virtude, honra, verdade, e bom senso; as cortes e as recepções dos grandes ministros totalmente extirpadas e extintas; a perspicácia, o mérito, e o aprendizado recompensados; todos os detratores da imprensa em prosa e verso fossem condenados a comer nada além de celulose, e satisfizessem sua sede com sua própria tinta. Estas, e milhares de outras reformas, contava firmemente por encorajamento de sua pessoa, como de fato eram completamente dedutíveis dos preceitos apresentados em meu livro.
E é necessário reconhecer, que sete meses foi um tempo suficiente para corrigir todos os vícios e doidices às quais estavam sujeitos os Yahoos, caso suas inclinações tivesse sido capazes da mínima disposição para a virtude e para a sabedoria. Contudo, tão distante estivestes de atender à minha expectativa em qualquer de suas cartas, que, pelo contrário, todas as semanas você está superlotando nosso correio com calúnias, e segredos, e reflexões, e memórias, e segundas intenções, em que me sinto acusado de refletir a respeito do povo do grande estado; de degradar a condição humana (pois assim tem eles ainda a confiança de chamá-la), e de abusar do sexo feminino. Descobri também que os escritores desses volumes não são coerentes com suas próprias bases, pois alguns deles não me permitirão que eu seja o autor de minhas próprias viagens; e outros me fazem autor de livros dos quais não tenho nenhum conhecimento.
Acho também que o seu impressor tem sido tão descuidado a ponto de confundir as datas, de minhas inúmeras viagens e retornos; atribuindo nem sequer o ano verdadeiro, nem o mês verdadeiro, nem o dia do mês: e ouvi dizer que o manuscrito original está todo destruído desde a publicação do meu livro; nem sequer qualquer cópia me foi deixada: todavia, enviei-lhe algumas correções, as quais podem ser inseridas, se algum dia for possível uma segunda edição: e embora não possa esperar por elas, mas deixarei esse assunto para os meus leitores sensatos e imparciais para adequá-la como quiserem.
Ouço alguns de nossos Yahoos marinhos encontrando defeitos em minha linguagem marítima, como não apropriada em muitos aspectos, nem atualmente em uso. Nada posso fazer a esse respeito. Em minhas primeiras viagens, quando era jovem, recebi instruções de antigos marinheiros, e aprendi a falar como eles. Mas desde então descobri que os Yahoos marinhos conseguem, assim como aqueles que vivem em terra, a se adaptarem com as novas terminologias, que mudam todos os anos; tanto que, como recordo a cada retorno ao meu próprio país, o dialeto deles foi tão alterado, que quase não consigo entender o novo. E eu observo, quando algum Yahoo vem a Londres por curiosidade para me visitar em casa, nenhum de nós consegue expressar nossos conceitos de maneira inteligível para o outro.
Se a censura dos Yahoos pudesse me afetar de alguma maneira, eu teria um grande motivo para me queixar, que alguns deles são tão ousados a ponto de considerarem meu livro de viagens uma mera ficção extraída do meu próprio cérebro, e foram tão longe a ponto de inserir insinuações, que os Houyhnhnms e Yahoos não mais existem assim como os habitantes de Utopia.
De fato, devo confessar que, para as pessoas de Lilipute, Brobdingrag (pois é assim que a palavra deve ser escrita, e não erroneamente como Brobdingnag), e Laputa, nunca ouvi falar de nenhum Yahoo tão presunçoso a ponto de discutir sobre a existência deles, ou a respeito dos fatos que narrei sobre eles, porque a verdade atinge a todo leitor com convicção. E há menor probabilidade nos meus relatos dos Houyhnhnms ou dos Yahoos, quando isso é evidente em relação aos últimos, existem tantos milhares até mesmo neste país, que diferem somente de seus irmãos brutos em Houyhnhnmland, porque utilizam uma espécie de linguajar, e não andam nus? Escrevi para que eles melhorem, e não para que eles deem aprovação. A consagração unânime de toda raça seria de menor relevância para mim, do que o relinchar daqueles dois degenerados Houyhnhnms que guardo em meu estábulo; porque estes, degenerados como são, posso melhorar em algumas virtudes sem a mescla de qualquer vício.
Será que estes miseráveis animais ousam pensar que eu seja tão degenerado a ponto de defender minha própria verdade? Sendo Yahoo como sou, é de conhecimento de todo Houyhnhnmland, que, segundo as instruções e exemplos do meu ilustre mestre, eu consegui num período de dois anos (embora confesse com a maior dificuldade) tirar de mim aquele hábito infernal de mentir, trapacear, enganar e confundir, tão profundamente enraizados dentro das próprias almas de minha espécie, particularmente os europeus.
Tenho outras queixas a fazer em torno desta situação vexatória; mas eu irei abster-me de entediar a mim ou a vossa pessoa por um tempo maior. Devo sinceramente confessar, que desde meu último retorno, algumas corrupções de minha natureza Yahoo ressuscitaram em mim ao conversar com alguns da sua espécie, e notadamente aqueles da minha própria família, em razão de uma necessidade inevitável, caso contrário, eu jamais teria tentado um projeto tão absurdo como o de melhorar a raça dos Yahoos deste império: Mas agora eu pus fim em todos esses planos visionários para sempre.
O autor fornece algumas informações sobre ele, sua família. Seus primeiros estímulos para viajar. Ele naufraga e nada para salvar sua vida. Chega são e salvo no país de Lilipute; torna-se prisioneiro e é levado para o interior do país.
Meu pai tinha uma pequena propriedade em Nottinghamshire; eu era o terceiro de cinco filhos. Ele me mandou para o Colégio Emanuel, em Cambridge, aos meus catorze anos de idade, onde ali permaneci três anos e me dediquei bastante aos estudos; mas o fardo de me sustentar, embora eu tivesse uma mesada muito escassa, sendo pesado demais para uma pequena fortuna, tive que tornar-me aprendiz do Sr. James Bates, um eminente médico-cirurgião de Londres, com quem conviví durante quatro anos. Como meu pai me mandava, de vez em quando, pequenas somas em dinheiro, eu o investia no estudo da navegação e em outros ramos da matemática, úteis a quem pretende viajar, como sempre acreditei que seria, cedo ou tarde, meu destino fazer. Quando deixei o Sr. Bates, voltei a ficar com meu pai. Com a sua ajuda, a de meu tio João e a de alguns outros parentes, consegui 40 libras e a promessa de trinta libras por ano para me manter em Leyden. Ali estudei física durante dois anos e sete meses, certo de que isso poderia ser útil em longas viagens.
Logo após o meu regresso de Leyden, fui recomendado pelo meu bom mestre, Sr. Bates, a ser um cirurgião para o Swallow, Capitão Abraham Pannel, que era o comandante; com quem permaneci por três anos e meio, fazendo algumas viagens para o Levante, e para algumas outras regiões. Quando regressei decidi me fixar em Londres; para o qual meu mestre, Sr. Bates me encorajou, e por ele fui recomendado para diversos pacientes. Fiquei com parte de uma pequena casa em Old Jewry; e sendo aconselhado a mudar de situação, casei com a Sra. Mary Button, segunda filha do Sr. Edmund Burton, camiseiro na Rua de Newgate, de quem recebi quatrocentas libras por um pedaço de terra.
Mas o meu bom mestre Bates faleceu dois anos depois, e tendo eu poucos amigos, meu negócio começou a decair; pois a minha consciência não me permitia imitar as más práticas cometidas por alguns de meus irmãos. Assim consultei a minha mulher e algumas das minhas amizades e resolvi voltar de novo ao mar. Fui cirurgião sucessivamente em dois navios, fiz várias viagens, durante seis anos, para o Oriente e as Índias Ocidentais, conseguindo aumentar ainda mais a minha fortuna. Minhas horas de lazer passei lendo os melhores autores, antigos e modernos, sempre munido com um bom numero de livros; e quando em terra, fui observando os hábitos e os costumes dos povos, assim como aprendendo seus idiomas; no que eu tinha grande facilidade, devido a força da minha memória.
A ultima destas viagens não me foi muito promissora, comecei a ficar cansado do mar, e decidi ficar em casa com minha esposa e minha familia. Mudei-me de Old Jewry para Fetter Lane a dai para Wapping, na esperança de encontrar uma ocupação entre os marinheiros; mas isso nunca chegou a acontecer. Passados três anos na expectativa que as coisas iriam melhorar, acabei por aceitar uma proposta do Capitão William Prichard, mestre do Antílope (nome do navio), que estava fazendo uma viagem para o mar do Sul. Partimos de Bristol, em 4 de Maio de 1699, e nossa viagem foi a princípio muito próspera.
Não seria propicio, por algumas razões, incomodar o nosso leitor com detalhes de nossas aventuras naqueles mares; sendo o suficiente informá-lo, que na nossa passagem dali para as Índias Ocidentais, fomos apanhados por uma violenta tempestade que nos conduziu para noroeste da Terra de Van Diemen. Apenas por observação, estávamos a 30 graus e 2 minutos de latitude sul. Doze dos nossos tripulantes morreram por excesso de trabalho e por causa da má alimentação; todos os outros encontravam-se em condições de extrema debilidade. Em 5 de Novembro, que era o inicio do Verão naquelas regiões, o tempo começou a ficar muito nublado, os marinheiros avistaram um rochedo à meia distância do tamanho do cabo do barco, mas como o vento estava muito forte, fomos directamente impulsionados para ele e imediatamente nos desintegramos. Seis homens da nossa tripulação, entre eles incluindo eu, descemos o bote no mar e deslocamo-nos para nos afastarmo-nos do barco e do rochedo. Remamos, segundo meus cálculos, cerca de três léguas, até não podermos mais, estando já muito desgastados com o trabalho que havíamos realizado no navio.
Assim ficámos á mercê das ondas e durante meia hora o bote foi tombado por uma súbita agitação de norte. O que aconteceu com os meus companheiros do bote, bem como com aqueles que escaparam do rochedo, ou foram deixados no navio, não sei dizer; mas chego a conclusão de que se perderam. Quanto a mim, nadei levado pela sorte, fui empurrado para a frente pelo vento e pela maré. Muitas vezes deixei as minhas pernas afundarem, sem sentir nenhum fundo; mas quando estava quase a desfalecer, e incapaz de lutar mais, acabei ficando com a água até minha altura; e neste momento a tempestade já havia diminuído um pouco. A inclinação era muito pequena, que acabei por caminhar quase uma milha antes de chegar à costa, que segundo meus cálculos já eram 8 horas da noite. Caminhei aproximadamente quase meia milha, mas sem descobrir nenhum sinal de casas ou de moradores; ou pelo menos como estava numa condição de tanta fraqueza, que não consegui observá-los. Estava extremamente cansado, e com isso, e devido ao calor do tempo e com cerca de mais de meio litro de conhaque que bebi quando deixei o navio, acabei por ficar com muito sono. Deitei-me na grama, que era muito baixa e macia, onde dormi tão profundamente como nunca me lembro ter dormido assim em toda a minha vida, e segundo me lembro, cerca de nove horas, pois quando acordei, já era pleno dia.
Tentei me levantar, mas não conseguia nem me mover: Porque, como eu estava dormindo de costas, descobri que minhas pernas e braços estavam fortemente presos nos dois lado ao chão; e meus cabelos, que eram longos e espessos, amarrados da mesma maneira. Além disso, eu sentia várias finas amarrações ao longo do meu corpo, das axilas às coxas. Eu podia tão-somente olhar para cima; O sol se tornava cada vez mais quente e a luz feria meus olhos. Ouvi um ruído incompreensível em torno de mim; mas da forma como estava deitado, não pude ver nada que não fosse o céu. Dentro em pouco percebi algo vivo se movendo sobre minha perna esquerda, que avançando suavemente sobre meu tórax, chegou quase ao meu queixo; Quando, baixando meus olhos tanto quanto pude, percebi que se tratava de um ser humano que mal alcançava quinze centímetros de altura, com um arco e uma flecha na mão, e uma aljava nas costas. Enquanto isso, senti pelo menos quarenta mais destes homenzinhos (como supus) seguindo o primeiro. Eu estava muito assustado, e gritei tão alto que todos correram de volta aterrorizados; e alguns deles, como me contaram depois, se feriram quando caíram de cima do meu corpo até o chão. No entanto, logo voltaram, e um deles se aventurou a ponto de contemplar completamente meu rosto, levantando suas mãos e olhos em total admiração, gritando com uma voz aguda, porém compreensível "Hekinah degul": os outros repetiram essas palavras várias vezes, mas naquela época eu não saiba do que se tratava. Estava eu por todo esse tempo, como o leitor poderia pensar, em grande inquietude. Àquela altura, lutanto para me soltar, eu tinha, felizmente, rompido as cordas e me livrado das amarras que prendiam meu braço esquerdo ao chão; pois por levar o braço ao rosto eu descobri os métodos que usavam pra me atar, e ao mesmo tempo, puxando violentamente - o que me causou uma dor lancinante - eu afrouxei um pouco as cordas que atavam a parte esquerda do meu cabelo, de modo que pude então mover minha cabeça por cerca de cinco centímetros.
Mas as criaturas fugiram uma segunda vez antes que eu as conseguisse agarrar; alguém deu um berro muito agudo, e depois ouvi um deles gritar "Tolgo phonac"; então senti uma centena de setas acertarem na minha mão esquerda, que me arranharam como se fossem outras tantas agulhas; além disso, atiraram outros projécteis pelo ar, como nós lançamos bombas na Europa, muitos dos quais penso que atingiram o meu corpo (embora não os tenha sentido), e alguns o meu rosto, que de imediato cobri com a minha mão esquerda. Quando esta chuva de setas terminou, dei um gemido e senti aflição e dor; tentei de novo libertar-me e eles lançaram novo ataque ainda maior do que o primeiro, e alguns deles tentaram espetar-me lanças nos meus flancos; mas felizmente trazia vestido um colete de pele de búfalo, que eles não conseguiram trespassar. Achei por bem ficar quieto e tencionava assim permanecer até à noite, quando, usando a minha mão esquerda solta, consegui facilmente me libertar.: quanto aos habitantes, tinha razões para crer que que seria capaz de enfrentar o exército mais poderoso que eles conseguissem reunir, desde que todos eles fossem do mesmo tamanho dos que eu tinha visto. Mas quis o acaso que assim não sucedesse.
Quando me viram tranquilo, deixaram de me assediar com flechas; mas pelo rumor que ouvi, compreendi que o seu número aumentava consideravelmente e, perto de duas toesas, defronte do meu ouvido esquerdo, sentí um ruído durante mais de uma hora como de pessoas que trabalhavam. Por fim, voltando um pouco a cabeça para esse lado, tanto quanto me permitiam as estacas e os cordões, ví um tablado erguido palmo e meio do chão, onde quatro desses homenzinhos poderiam caber, e uma escada que lhe dava acesso; daí, um deles, que parecia ser pessoa de importância, dirigiu-me um longo discurso, de que não percebi palavra.
Porém como pude perceber, antes que o líder começasse o discurso, ele gritou três vezes, Langro dehul san (estas palavras e as anteriores foram posteriormente repetidas e explicadas para mim); depois, imediatamente, cerca de cinquenta dos habitantes avançaram e cortaram os cordões que seguravam a parte esquerda da minha cabeça, o que deu ensejo a que eu pudesse movê-la livremente para a direita, e observar a cara e o gesto daquele que falava.
Pareceu-me ser de meia idade e, de estatura maior do que os três que o acompanhavam, um dos quais, que tinha o aspecto de pajem, lhe segurava a cauda da beca, e parecia ser um pouco mais longo que o meu dedo mediano, enquanto os outros dois permaneciam de pé, aos lados, para o amparar. Pareceu-me bom orador e pude observar muitos períodos de ameaças, e outras partes de promessas, misericórdia e bondade.
Respondi em poucas palavras, mas de um modo cheio de submissão, erguendo a mão esquerda e os dois olhos ao sol, como que a tomá-lo por testemunha de que morria de fome, pois já não comia havia algum tempo, não tendo comido quase nada algumas horas antes de deixar o navio. O meu apetite era, de fato, tão violento, que não pude deixar de fazer ver a minha impaciência, (talvez contra os restritos preceitos da civilidade), levando várias vezes a mão à boca para dar a perceber que carecia de alimento.
O Hurgo (é assim que entre eles se designa um fidalgo, como soube mais tarde), pareceu me entender perfeitamente. Ele desceu do tablado, e deu ordem para que encostassem em mim muitas escadas de mão pelas quais subiram mais de cem homens, que se dirigiram para a minha boca, carregados com cestos cheios de alimentos, os quais tinham sido fornecidos e enviados por ordens do rei, diante dos meus primeiros sinais de impaciência por este percebido. Notei que havia carnes de diversos animais, mas não pude distinguí-los pelo sabor. Eram quartos, pernas e lombos parecidos com os de carneiro, e magnificamente preparados, mas menores do que as asas de uma cotovia. Engolí uns dois ou três bocados, com três pães de cada vez, que tinham o tamanho de balas de mosquete.
Forneceram-me tudo isso com a rapidez possível, dando grandes mostras de assombro e de admiração diante da minha estatura e do meu prodigioso apetite. Fiz-lhes então outro sinal de que estava com sede. Eles achavam, pela maneira como comí, que uma pequena quantidade de água não seria suficiente, e sendo eles bastante criativos, levantaram eles, com grande habilidade, um dos maiores tonéis de vinho que possuíam, fazendo-o rolar até minha mão, destapando-o em seguida; bebí-o de um só gole, o que eu consegui fazer muito bem, pois sua quantidade era menor que um litro, e tinha o sabor de vinho suave de Borgonha, mas muito mais delicioso.
Trouxeram-me outro tonel, que eu engoli com a mesma voracidade, e fiz sinal de que queria mais; mas tudo havia acabado. Depois de me haverem visto praticar todas aquelas maravilhas, soltaram gritos de alegria, e começaram a dançar sobre meu peito, gritando diversas vezes o que haviam feito a princípio, Hekinah degul.
Fizeram-me um sinal de que eu deveria derrubar as duas barricas, mas primeiro alertando as pessoas que estavam em baixo para ficarem fora do caminho, gritando em voz alta, Borach mevolah; e quando eles viram os tonéis sendo derrubados, todos eles gritam juntos Hekinah degul.
Confesso que muitas vezes tentei, enquanto eles estavam passando pra frente e pra traz do meu corpo, cercar quarenta ou cinquenta dos primeiros que estavam ao meu alcance, e atirá-los ao chão. Mas a lembrança do que eu havia sentido, o que poderia não ser o pior que eles pudessem fazer, e a promessa de honra que eu fizera a eles por - assim terem interpretado meu comportamento submisso - desfez sem demora esses pensamentos.
Além disso, eu agora me considerava um aliado pelas leis da hospitalidade, a um povo que havia me tratado com tanto tanto sacrifício e pompa. No entanto, em meus pensamentos, eu não conseguia imaginar a coragem desses diminutos mortais, que ousaram montar e caminhar sobre meu corpo, enquanto uma de minhas mãos estava livre, sem titubear diante da visão que uma criatura tão prodigiosa quanto eu pudesse representar para eles.
Depois de algum tempo, quando eles perceberam que eu não fazia mais exigências com relação à alimentação, eis que apareceu diante de mim uma pessoa de alto gabarito da sua majestade imperial. A sua excelência, tendo montado num pequeno pedacinho da minha perna direita, adiantou-se um pouquinho até o meu rosto, acompanhado de uma dúzia de seus subordinados, e mostrando suas credenciais sob o selo real, as quais ele apresentou bem perto dos meus olhos, falou durante dez minutos sem quaisquer vestígios de inquietação, com exceção de uma certa resolução deliberada, às vezes apontando para a frente, o que, como descobri posteriormente, dizia respeito à capital da cidade, distante aproximadamente meia milha, para onde eu deveria ser transportado por determinação de um conselho de sua majestade.
Eu respondi com poucas palavras, sem nenhum propósito, e fiz um sinal com a mão que estava livre, apontando para a outra (mas acima da cabeça da autoridade com medo de magoá-lo ou ao seu cortejo), e depois para a minha própria cabeça e corpo, para significar que eu desejava ser libertado. Me pareceu que ele entendeu perfeitamente, pois ele balançou a cabeça com jeito de desaprovação, mantendo sua mão numa posição indicando que eu deveria ser levado como prisioneiro.
No entanto, ele fez outros sinais que me permitiram entender que eu já deveria ter comido e bebido o bastante, e muito bem tratado. Diante disso, mais uma vez eu pensei em tentar romper as amarras; mas, novamente, quando eu senti o ardor de suas flechas em meu rosto e mãos, que estavam todos com bolhas, e muitas das setas ainda estavam com eles, e observando igualmente que o número dos meus inimigos aumentava, fiz sinais para informá-los de que poderiam fazer comigo o que entendessem. Diante disto, o hurgo e sua comitiva se retiraram, com muita civilidade e semblantes alegres.
Pouco depois ouvi uma aclamação geral, com frequentes repetições das palavras Peplom selan, e percebi um grande número de pessoas do meu lado esquerdo afrouxando as amarras de tal modo, que eu conseguia virar para a direita, e satisfazer o desejo de urinar; o que fiz copiosamente, para grande assombro das pessoas, que, concluindo por causa do meu movimento o que eu estava por fazer, imediatamente se afastaram para os lados direito e esquerdo, para evitar a torrente, que saía ruidosa e violentamente de mim.
Mas, antes disso, eles tinham untado meu rosto e minhas mãos com uma espécie de pomada, de cheiro muito agradável, que, em alguns minutos, removeu todas as punções de suas flechas. Estas circunstâncias, reunidas às ingestões que eu havia recebido junto com os alimentos e a bebida, que me foram bastante nutritivos, predispuseram-me para dormir. Dormi aproximadamente oito horas, como me asseguraram mais tarde, e não era de admirar, pois os médicos, por ordem do imperador, misturara uma poção de sonífero nos tonéis de vinho.
Parece que, desde o primeiro momento quando fui descoberto dormindo no chão, depois da minha chegada, o imperador recebera as primeiras notícias por meio de um correio, e por determinação de um conselho, eu deveria ser amarrado da maneira como relatei, (o que foi feito na noite que eu havia dormido), e que muita comida e bebida deveria ter sido enviada para mim, e uma máquina foi preparada para me transportar para a cidade principal.
Esta resolução talvez possa parecer muito ousada e perigosa, e estou confiante de que não seria imitada por nenhum outro príncipe da Europa em ocasião semelhante. Contudo, na minha opinião, ela foi extremamente sensata, bem como generosa: pois, supondo que estas pessoas tivessem planejado me matar com suas lanças e flechas, enquanto eu estava dormindo, eu certamente teria acordado com o primeiro sinal de picada, que poderia até o momento ter despertado o meu ódio e as minhas forças, a ponto de me possibilitar o rompimento das cordas com as quais eu estava amarrado, depois do qual, como eles não poderiam oferecer resistência, também não poderiam esperar misericórdia.
Este povo era de matemáticos excelentes, e chegaram a uma excelente perfeição em mecânica, por graça e coragem do imperador, que era renomado patrono da ciência. Este príncipe tinha diversas máquinas fixadas sobre rodas, para o transporte de árvores e outros pesos enormes. Mandou construir seus maiores navios de guerra, dos quais alguns tinham quase três metros de comprimento, nas matas onde crescem as árvores, e faz transportar sobre esses mecanismos a trezentos ou quatrocentos metros do mar.
Quinhentos carpinteiros e engenheiros foram imediatamente postos a trabalhar para preparar o maior dispositivo possível. Era uma viatura de madeira levantada a oito centímetros do chão, cerca de dois metros de comprimento, e um metro de largura, movendo-se sobre vinte duas rodas. A gritaria que eu ouvia foi no momento da chegada da viatura, a qual, me parece, partiu quatro horas depois do meu desembarque. Ela foi colocada paralela à posição do meu corpo deitado. Mas a dificuldade principal foi levantar e me colocar neste veículo. Oitenta varas, cada uma com trinta centímetros de altura, foram fixadas para este propósito, e cordas muito fortes, da grossura de um barbante, foram amarradas a muitas ataduras, que os trabalhadores haviam colocado ao redor do meu pescoço, das mãos, do corpo e das minhas pernas.
Novecentos dos homens mais fortes foram usados para puxar estas cordas, através de inúmeras roldanas fixadas às varas, e assim, em menos de três horas, eu era içado e ajustado ao mecanismo, e aí bem amarrado. Tudo isso me foi dito, pois, enquanto essa operação estava sendo realizada, eu dormia profundamente, em razão do remédio soporífero ministrado no meu licor. Quinhentos dos maiores cavalos do imperador, cada um com aproximadamente onze centímetros de altura, foram utilizados para me arrastar para a metrópole, que, como eu disse, ficava a meia milha de distância.
Cerca de quatro horas após nós começarmos nossa jornada, acordei por causa de um ridículo acidente; pois o veículo foi parado por um momento, para ajustar algo que estava com problema, dois ou três do jovens nativos tiveram a curiosidade de ver como eu ficava quando estava dormindo; eles subiram no veículo, e avançando bem suavemente sobre o meu rosto, um deles, que era o oficial da guarda, enfiou a ponta afiada de sua meia-lança dentro do lado esquerdo do meu nariz, o que coçou meu nariz como se fosse uma palha, e me fez espirrar violentamente, e com isso eles fugiram despercebidamente, e isso foi três semanas antes de saber a causa do meu despertar tão repentino.
Fizemos uma longa caminhada durante o resto do dia, e, descansamos à noite com quinhentos guardas de cada lado meu, metade com tochas, e metade com setas e flechas, prontas para atirar em mim ao primeiro movimento que fizesse. Na manhã seguinte, ao romper do sol, continuamos a nossa marcha, e chegamos a duzentos metros dos portões da cidade por volta do meio dia. O imperador e toda sua corte, saíram para nos encontrar, mas seus grandes oficiais de modo algum permitiram que sua majestade arriscasse a sua pessoa subindo em meu corpo.
No lugar onde o carro parou, havia um antigo templo, considerado como o maior de todo o reino, o qual, tendo sido difamado alguns anos antes por causa de um homicídio acidental, era, em razão do cuidado dessas pessoas, considerado profano, e portanto, tinha sido designado para uso comum, e todos os enfeites e mobiliário levados embora. Nessa construção ficou determinado que eu deveria ser alojado. O grande portão com vistas para o norte tinha cerca de 1,2 m de altura, e quase 60 cm de largura, através do qual eu poderia me arrastar facilmente.
Em cada lado do portão havia uma pequena janela, não mais que 1,8 m acima do chão: dentro dele e do lado esquerdo, o serralheiro do rei colocou onze correntes, como aquelas que ficam penduradas nos relógios das senhoras da Europa, e quase tão grandes, as quais foram presas à minha perna esquerda com trinta e seis cadeados. Em frente do templo, do outro lado da grande estrada, a uma distância de 6 m, havia uma torre que deveria ter pelo menos 1,5 m de altura. Nesse ponto, o imperador subia, com os principais senhores da sua corte, para terem a oportunidade de me ver, como me disseram, pois eu não poderia vê-los. Admite-se que mais de cem mil habitantes saíram da cidade atraídos pela mesma curiosidade, e, apesar dos meus seguranças, acredito que poderia haver não menos que dez mil nas diversas vezes que montaram o meu corpo com a ajuda de escadas.
Mas uma proclamação logo foi emitida, para proibir isso sob pena de morte. Quando os trabalhadores chegaram à conclusão de que era impossível a minha libertação, eles cortaram todas as cordas que me amarravam, e aí eu me levantei, com uma disposição melancólica que nunca havia sentido em minha vida. Mas o barulho e o espanto das pessoas, ao me verem levantar e caminhar, é impossível descrever. As correntes que prendiam minha perna esquerda tinham dois metros de comprimento, e me davam não apenas a liberdade de caminhar para traz e para a frente em semi-círculo, porém, estando fixadas a 10 cm do portão, permitiam me arrastar e deitar em todo o meu comprimento dentro do templo.
O Imperador de Liliput, acompanhado por diversas pessoas da nobreza, veio ver o autor em seu confinamento. Descrição da pessoa e do traje do imperador. Homens de letras são designados para ensinar o idioma do país ao autor. Alguns favores lhe são concedidos por causa de sua conduta pacífica. Seus bolsos são vasculhados e sua espada e pistolas lhe são retiradas.
Quando fiquei de pé, olhei no entorno, e devo confessar que nunca vi nada mais divertido. O campo ao redor parecia um interminável jardim, e os campos anexos, que tinham em geral doze metros quadrados, pareciam com imensos canteiros de flores. Estes campos se entrelaçavam com árvores de médio porte, e as árvores mais altas, segundo pude avaliar, pareciam ter dois metros de altura. Eu via a cidade do meu lado esquerdo, que parecia a cena de uma cidade pintada em um teatro.
Durante algumas horas fui extremamente pressionado pelas necessidades naturais, o que não era de admirar, pois já se haviam passados dois dias desde que eu havia sido desamarrado. Eu estava com enormes dificuldades entre a urgência e a vergonha. O melhor expediente que eu pude pensar foi arrastar-me para dentro de casa, o que eu fiz sem nenhum problema e fechando a porta em seguida, distanciando-me tanto quanto me permitiam as correntes, e aliviei o meu corpo daquela carga incômoda. Mas essa era a única vez que eu era o responsável por uma ação tão suja, para a qual somente posso esperar que o gentil leitor me perdoe, depois de considerar com maturidade e imparcialidade o meu caso, e a tensão na qual me encontrava.
Daí em diante a minha prática constante era, assim que me levantava, fazer essa necessidade ao ar livre, com as correntes esticadas, e um cuidado especial era tomado todas as manhãs antes que chegassem as companhias, de maneira que a matéria ofensiva fosse transportada em tonéis com rodas, por dois servidores nomeados para esse propósito.
Eu não teria vivido tanto tempo sob essas circunstâncias, que, talvez, à primeira vista, possa parecer bastante efêmera, se eu não tivesse achado isso necessário para justificar o meu caráter, com relação a limpeza, para o mundo, que, segundo me disseram, teria deixado feliz alguns dos meus difamadores, a respeito desta ou daquela situação, ao se referir sobre a questão.
Quando esta aventura terminava, eu tornava a sair da minha casa, tendo a chance de respirar ar fresco. O imperador já havia descido da torre, e avançava sobre o dorso do cavalo em minha direção, o que poderia ter-lhe custado caro, pois o animal, embora muito bem treinado, todavia desacostumado com aquilo que via, o que parecia como se uma montanha se movesse diante dele, empinou sobre suas patas traseiras: mas esse príncipe, sendo um excelente cavaleiro, permaneceu sentado, até que seus acompanhantes acorreram, e lhe seguraram a rédea, enquanto Sua Majestade ganhava tempo para desmontá-lo.
Quando ele desceu do cavalo, me perscrutou com grande admiração, mas manteve-se fora do alcance da minha corrente. Ele ordenou a seus cozinheiros e mordomos, que já estavam preparados, para me oferecerem alimentos e bebida, que foram empurrados para a frente em uma espécie de veículos sobre rodas, até que eu pudesse alcançá-los. Eu pegava esses recipientes e logo os esvaziava todos, vinte deles foram enchidos com comida, e dez com licor; cada um dos quais representando dois ou três bons bocados; e eu esvaziei o licor dos dez recipientes, que estava contido em frascos de barro para um único recipiente, bebendo de um só gole, e assim fazendo com o resto.
A imperatriz, as princesas e os príncipes consanguíneos, acompanhados por muitas damas, se sentaram a alguma distância em suas poltronas; mas,devido ao acidente que ocorreu com o cavalo do imperador, eles desceram e se aproximaram de sua pessoa, como vou descrever agora. Ele é mais alto que quase a largura da minha unha, do que qualquer um da sua corte, o qual sozinho é capaz de assustar aqueles que o vêem.
Suas características eram fortes e masculinas, lábio austríaco, e nariz aquilino, tez esverdeada, postura ereta, seu corpo e membros bem proporcionados, todos os seus movimentos graciosos e de comportamento majestoso. Tinha já passado a flor da sua mocidade, tendo vinte e oito anos e nove meses de idade, dos quais ele tinha reinado cerca de sete anos com grande felicidade, e geralmente vitorioso. Para contemplá-lo com melhor comodidade, me deitei de lado, de modo que o meu rosto ficasse em paralelo ao dele, permanecendo ele a três metros de distância: todavia, eu o tive tantas vezes em minha mão, e portanto não posso estar enganado com a sua descrição.
Seu traje era muito liso e simples, e o seu estilo era meio asiático, meio europeu, mas cingia-lhe a cabeça um elmo leve de ouro, enfeitado com joias, e uma pluma no capacete. Mantinha a sua espada em suas mãos para se defender, e se eu tentasse me libertar, ela tinha quase oito centímetros de comprimento; o punho e a bainha eram de ouro repletos de diamantes. A sua voz era áspera, mas muito clara e articulada, e eu podia ouví-lo distintamente quando ficava de pé. As damas e os cortesãos estavam todos magnificamente trajados, de modo que o lugar que eles ocupavam pareciam a uma saia estendida até o chão, bordada com figuras de ouro e prata. Sua Majestade imperial falava frequentemente comigo, e eu lhe dava respostas: mas nenhum de nós entendia uma única palavra.
Havia diversos sacerdotes e advogados presentes (conforme deduzi por causa de suas indumentárias), que foram obrigados a se dirigirem a mim, e eu falava com eles em muitos idiomas dos quais eu tinha um conhecimento superficial, tais como o Alto e Baixo Holandês, o Latim, o Francês, Espanhol, Italiano, e a Lingua Franca, mas todos sem qualquer resultado. Ao cabo de duas horas a corte se retirava, e eu era deixado com uma poderosa guarda, para impedir a impertinência, e provavelmente a maldade da plebe, que estavam muito impacientes em se tumultuarem em torno de mim tão perto quanto se aventuravam, e alguns deles tiveram o descaramento de me flecharem, enquanto eu estava sentado no chão perto da porta da minha casa, e um deles por pouco me fez perder o olho esquerdo.
Mas o coronel ordenou a prisão de seis dos líderes, e não julgou pena mais adequada para eles do que entregá-los às minhas mãos; o que fizeram alguns dos soldados, empurrando-os para a frente com as pontas de suas lanças até o meu alcance. Peguei todos eles com minha mão direita, e coloquei cinco deles dentro do bolso do meu casaco, quanto ao sexto, fiz de conta que iria comê-lo vivo. O pobre homem berrava terrivelmente, e o coronel e os seus oficiais se condoeram dele, principalmente quando eles me viram tirando o canivete: mas sem demora lhes fiz cessar todo o espanto, pois, parecendo tranquilo, e cortando imediatamente as cordas que lhe amarravam, coloquei-o gentilmente no chão e ele fugiu pra longe. Tratei os outros da mesma maneira, tirando um a um do meu bolso, e observei que tantos os soldados como as pessoas tinham ficado muito comovidos com aquele gesto de humanidade, o qual foi apresentado com muita vantagem diante da corte.
Quando a noite chegou tive alguma dificuldade para entrar na minha casa, onde me deitava no chão, e continuei a viver assim durante quinze dias, durante esse tempo, o imperador dava ordens para prepararem uma cama para mim. Seiscentas camas das medidas normais para eles foram trazidas em veículos, e montadas em minha casa; cento e cinquenta de suas camas, amarradas juntas, formavam a largura e o comprimento; e estas eram quatro duplas: as quais, todavia, me mantinham protegido da dureza do piso, feito de pedras macias. Segundo o mesmo cálculo, eles me forneceram lençois, cobertores, colchas e agradáveis o bastante para quem há muito tempo se adaptara às dificuldades.
À medida que a notícia da minha chegada se espalhava pelo reino, isso atraiu uma grande quantidade de pessoas ricas, ociosas e curiosas para me ver, de maneira que as aldeias ficaram quase despovoadas, e completa negligência de assuntos de lavoura e familiares deve ter ocorrido, caso a sua majestade imperial não tivesse fornecido, através de inúmeras proclamações e ordens de estado, em detrimento desta calamidade. Ele decretou que aqueles que já tinham me visto deviam voltar para casa, e que não tentassem se aproximar a menos de cinquenta metros de minha casa, sem licença da corte, caso contrario os secretários de estado aplicariam taxas consideráveis.
Durante esse período o imperador convocara diversos conselhos, para deliberar as medidas que seriam tomadas em relação a mim, e fui informado posteriormente por um amigo particular, uma pessoa com grandes qualidades, que fora informado a respeito do segredo, de que a corte se achava seriamente comprometida por minha causa. Eles receavam que me soltasse, que a minha alimentação lhes causaria enormes despesas, chegando até a causar escassez de víveres. Algumas vezes deliberavam que eu devia passar fome, ou até mesmo lançarem flechas envenenadas em meu rosto e mãos, e isso acabaria logo comigo, mas voltavam a considerar, que o fedor de uma carcassa tão grande poderia produzir uma epidemia na metrópole, e se espalharia por todo o império.
No meio dessas deliberações, diversos oficiais do exército dirigiam-se à porta da grande câmara do conselho, e dois deles que tinham acabado de entrar, fizeram um relato do meu comportamento em relação aos seis criminosos que mencionamos anteriormente, o que causou uma impressão tão favorável ao espírito de sua majestade e de todo o conselho, em relação a mim, que uma comissão imperial foi enviada, para obrigar a todas as aldeias, a oitocentos metros ao redor da cidade, a fornecer todas as manhãs seis bois, quarenta carneiros, e outros víveres para minha sustentação; junto com uma quantidade proporcional de pão, e vinho, e outros licores, para cujo pagamento devido, sua majestade deveria atribuir ao tesouro:- pois este príncipe vivia principalmente de suas propriedades, e raramente, somente em ocasiões especiais, criava alguns subsídios para os seus súditos, que eram obrigados a atendê-lo nas despesas de guerra por sua própria conta.
Estabeleceu-se também que seiscentas pessoas ficariam à minha disposição, as quais recebiam uma gratificação para sua manutenção, e tendas muito confortáveis construídas para elas de cada lado da minha porta. Ficou também deliberado, que trezentos alfaiates deveriam fazer para mim algumas roupas, segundo a moda do país; que seis dos maiores eruditos de sua majestade seriam utilizados para me ensinarem o idioma deles, e por último, que os cavalos do imperador, e aqueles da nobreza e as tropas da guarda, deveriam fazer exercícios na minha presença, para que se acostumassem comigo. Todas estas ordens foram devidamente cumpridas; e três semanas depois eu já tinha feito grande progresso no aprendizado do idioma deles; e durante esse tempo o imperador frequentemente me honrava com suas visitas, e ficava feliz em auxiliar meus professores a me instruírem.
Logo iniciamos algum tipo de conversação, e as primeiras palavras que aprendi, foram para expressar o meu desejo “de que ele me concedesse a liberdade”; o que todos os dias repetia de joelhos. A sua resposta, pelo que pude entender, era “de que isto seria uma questão de tempo, e que não poderia ser decidido sem ouvir a opinião do conselho, e que primeiro eu devia LUMOS KELMIN PESSO DESMAR LON EMPOSO; isto é, fazer um juramento de paz para com ele e seu reino. Todavia, que eu seria tratado com toda delicadeza possível. E ele me aconselhou a “conquistar, com minha paciência e meu bom comportamento, a sua estima e a de seus súditos.”
Ele queria que “eu não o interpretasse mal”, se ele desse ordens a determinados oficiais para que me revistassem; pois provavelmente eu trazia comigo diversas armas, que poderiam ser perigosas, caso fossem utilizadas por uma pessoa tão grande. Eu disse, “Sua Majestade deve ser atendida, pois eu estava disposto a me despir, e a colocar pra fora todos os meus bolsos diante dele.” Disse isso parte em palavras, parte em sinais. Ele respondeu. “que, segundo as leis do império, eu deveria ser revistado por dois oficiais; que ele sabia que isto não poderia ser feito sem o meu consentimento e a minha aprovação, e que ele fazia tão bom conceito de minha generosidade e justiça, que ele depositava aquelas pessoas em minhas mãos, e que qualquer coisa que eles tirassem de mim, seria devolvida ao deixar o país, ou ressarcido segundo o valor que eu estabelecesse.
Peguei os dois oficiais em minhas mãos, coloquei-os primeiro nos bolsos do meu casaco, e depois em todos os outros bolsos que havia, exceto meus dois bolsos com relógio, e um outro bolso secreto, os quais eu pensava que não deveriam ser revistados, dentro dos quais eu guardava algumas coisas necessárias que não tinham importância exceto para mim mesmo. Em um dos meus bolsos havia um relógio de prata, e no outro uma pequena quantidade de outro dentro de uma bolsa. Estes senhores, tendo lápis, tinta e papel, perto deles, fizeram um completo inventário de tudo que viram, e quando terminaram, me pediram para que os pusessem no chão, para que pudessem entregá-lo ao imperador. Este inventário foi depois traduzido por mim em Inglês, e literalmente ele diz o seguinte:
“IMPRIMIS, no bolso direito do casaco do grande homem montanha” (pois assim eu interpretei as palavras QUINBUS FLESTRIN), “após minuciosa busca, encontramos somente um pedaço grande de pano rústico, grande o bastante para servir de tapete para a sala de recepção do ministro de Sua Majestade. No bolso esquerdo encontramos um enorme cofre de prata, com uma tampa do mesmo metal, que nós, os comissários, não conseguimos levantar. Queríamos que fosse aberto, e um de nós caminhando em sua direção, viu-se numa espécie de poeira até a metade da perna, e uma parte dela atingiu os nossos rostos o que nos fez espirrar juntos por diversas vezes. Em seu bolso direito do colete encontramos um maço imenso de substâncias brancas e finas, dobradas uma sobre a outra, do tamanho de três homens, amarrado a um cabo muito forte, e marcadas com figuras negras, que nós humildemente acreditamos ser manuscritos, sendo cada letra tão grande quanto as palmas de nossas mãos.
No bolso esquerdo havia uma espécie de mecanismo, no verso do qual estendiam-se vinte varetas longas, semelhantes às paliçadas que está em frente da corte de sua majestade: objeto esse que acreditamos que o homem montanha penteia seus cabelos; pois não queríamos incomodá-lo com perguntas, porque encontramos grande dificuldade em nos fazer entender. Dentro do bolso grande, no lado direito de sua cobertura média (pois assim traduzi a palavra RANFULO, com a qual eles queriam significar meus calções,) vimos um pilar oco de ferro, aproximadamente da altura de um homem, amarrado a uma forte peça de madeira maior que o pilar, e de um lado desse pilar, havia enormes pedaços de ferro em relevo, talhada com figuras estranhas, o que não sabemos do que era feito.
No bolso esquerdo, encontramos um outro mecanismo do mesmo tipo. No bolso menor do lado direito, havia muitas rodelas de metal branco e vermelho, de diferente tamanho, algumas da peças brancas, que acreditamos ser de prata, eram tão grandes e pesadas, que meu camarada e eu tivemos certa dificuldade em levantá-las. No bolso esquerdo havia dois pilares negros com formato irregular: não conseguimos, sem uma certa dificuldade, alcançar o topo deles, uma vez que nós estávamos no fundo do seu bolso. Um deles estava coberto, e tudo parecia uma peça só: mas a extremidade superior do outro mostrava uma substância branca e circular, cerca de duas vezes o tamanho de nossas cabeças.
Dentro de cada um destes havia um enorme placa de aço, a qual, sob nosso comando, o obrigamos a nos mostrar, porque entendíamos que poderiam ser mecanismos perigosos. Ele as retirou de seus estojos, e nos disse, que em seu país ele a utilizava para fazer a barba com uma delas, e cortar alimentos com a outra. Havia dois bolsos que nós não conseguimos entrar: a estes ele dizia que eram bolsos de relógio, eram duas grandes aberturas talhadas no topo da sua ceroula, mas muito apertadas devido à pressão exercida pelo seu estômago. Fora do seu bolsinho direito havia uma enorme corrente de prata, com uma maravilhosa espécie de mecanismo no fundo.
Pedimos para que ele retirasse tudo que estivesse na extremidade dessa corrente, que nos pareceu ser um globo, metade prata, e a outra metade de um metal transparente; do lado transparente nós vimos certas figuras estranhas desenhadas de modo circular, e embora pudéssemos tocá-las, até que percebemos que os nossos dedos foram retidos por uma substância transparente. Ele pôs este mecanismo em nossos ouvidos, que fazia um ruído contínuo, como o de um moinho d’água: e pensamos que fosse de algum animal desconhecido, ou a divindade por ele adorada; mas nós tendemos mais para esta última opinião, porque ele nos garantiu, (se nós o entendemos direito, pois ele se expressava muito imperfeitamente) que ele raramente fazia alguma coisa sem consultá-lo.
Dizia que era seu oráculo, e afirmava que esse mecanismo determinava o tempo para todas as ações de sua vida. Do bolso esquerdo ele tirou uma rede grande o bastante para um pescador, porém que se abria e fechava, e lhe servia para o mesmo uso: encontramos também diversos pedaços enormes de um metal amarelo, o qual, se for realmente ouro, deve ter um valor incalculável.
Tendo portanto, em cumprimento das ordens de sua majestade, revistado cuidadosamente todos os seus bolsos, observamos um cinto em torno da sua cintura feito da pele de algum animal gigante, do qual, do lado esquerdo, havia uma espada da altura de cinco homens, e à direita, havia uma bolsa ou algibeira dividida em dois compartimentos, podendo cada compartimento conter três dos súditos de sua majestade. Em um desses compartimentos havia diversos globos, ou bolas, de uma metal muito pesado, quase do tamanho de nossas cabeças, e que exigia uma forte mão para levantá-los: o outro compartimento continha uma porção de certos grãos pretos, mas relativamente pequenos e leves, pois podíamos reter cerca de cinquenta deles na palma das mãos.
Este é o inventário exato do que encontramos no corpo do homem montanha, que nos recebeu com grande civilidade, e com o devido respeito ao conselho de sua majestade. Assinado e selado aos quatro dias da octagésima nona lua do auspicioso império de sua majestade.
CLEFRIN FRELOCK, MARSI FRELOCK
Assim que o inventário foi lido diante do imperador, este me ordenou, embora com maneiras muito gentis, que entregasse os diversos objetos. Primeiro pediu o meu sabre, o qual eu tirei, com bainha e tudo. Durante esse período, ele ordenou a três mil de suas melhores tropas (que imediatamente o atenderam) que me cercassem a uma certa distância, com seus arcos e flechas prontos para disparar; mas eu não percebi isso, porque os meus olhos totalmente voltados para a sua majestade. Ele então me pediu para retirar o sabre, o qual, embora estivesse um pouco enferrujado pela água do mar, estava ainda bastante brilhante em algumas partes. Fiz isso, e imediatamente todas as tropas deram um grito de terror e espanto, pois o sol brilhava forte, e o reflexo cegava-lhes os olhos, a medida que eu fazia movimentos de uma lado e de outro com o sabre.
Sua majestade, sendo um príncipe magnânimo, era menos assustado do que podia esperar: ele me ordenou que o colocasse de volta na bainha, e o jogasse no chão tão suavemente quanto possível, cerca de dois metros a partir da extremidade da minha corrente. A próxima coisa que ele exigiu foram os pilares ocos de ferro, referindo-se às minhas pistolas. Retirei-a, e a seu comando, tão bem quanto pude, expliquei a ele como usá-las; e carregando-a somente com pólvora, que devido à proximidade do meu bolso, conseguiu escapar da umidade do mar (um inconveniente que todos os marinheiros prudentes tomam a maior precaução), eu, primeiro, avisei o imperador para não se assustar, e depois disparei-o para o ar. O espanto então foi muito maior do que quando haviam visto o sabre.
Centenas deles caíram com que fulminados até a morte, e até mesmo o imperador, embora permanecesse de pé, durante algum tempo não conseguiu se refazer do susto. Entreguei as minhas duas pistolas da mesma maneira que havia feito com o meu sabre, e depois o meu bolso de pólvora e munições, alertando-os para que as balas fossem mantidas longe do fogo, pois elas poderiam se acender com a menor fagulha, explodindo o seu palácio imperial para o ar. Da mesma forma lhe entreguei o relógio, o qual o imperador teve muita curiosidade de observar, e ordenou que dois de seus maiores guardas o carregassem em uma vara sobre os seus ombros, como fazem os carregadores na Inglaterra com os barris de cerveja.
Ele ficou admirado com o ruído contínuo que ele fazia, e com o movimento do ponteiro de minuto, o qual ele conseguia discernir facilmente, pois a visão deles era muito mais acentuada que a nossa: ele pediu a opinião de seus homens de letra, as quais foram diversas e desencontradas, como o leitor facilmente poderá imaginar sem que precise dizê-lo; embora de fato não pudesse entendê-los perfeitamente bem. Dei então a eles minhas moedas de prata e de cobre, minha algibeira, com nove lascas enormes de ouro, e algumas pequenas; minha faca e meu canivete de barbear, meu pente e a caixa de prata de rapé, meu lenço e um jornal. Meu sabre, as pistolas e a algibeira com pólvora foram levados em veículos para os armazéns de sua majestade, mas o resto dos meus pertences me foram devolvidos.
Eu tinha, como observei anteriormente, um bolso à parte, que não foi revistado por eles, onde estavam meus óculos (os quais eu utilizo algumas vezes por causa da minha vista fraca), um telescópio de bolso, e algumas outras pequenas utilidades, as quais, não oferecendo nenhum risco ao imperador, não me senti na obrigação de mostrar, temendo que pudessem se perder ou estragar caso não estivessem aos meus cuidados.
O autor diverte o imperador, e toda a nobreza de ambos os sexos, de uma forma bastante singular. Descrição das diversões da corte de Lilipute. A liberdade é concedida ao autor mediante determinadas condições.
A minha gentileza e o bom comportamento haviam influenciado o imperador e sua corte, e também o exército e o povo em geral, de maneira que eu comecei a alimentar alguma esperança de conseguir a minha liberdade num espaço curto de tempo. Fiz uso de todos os recursos aos meu alcance para cultivar esta disposição favorável. Pouco a pouco os nativos começavam a ficar relativamente menos apreensivos a algum perigo de minha parte. Às vezes me deitava, e permitia que cinco ou seis deles dançassem sobre minha mão, e finalmente os jovens e as garotas arriscaram brincar de esconde-esconde entre meus cabelos.
Eu havia feito bom progresso em entender e falar o idioma deles. O imperador um dia teve a ideia de me entreter com diversos espetáculos populares, no que eles superavam todos os países que já visitei, tanto pela habilidade quanto pela magnificência. Nunca me diverti tanto como com os dançarinos de corda, que fizeram uma exibição sobre um fino cordão branco, com cerca de sessenta centímetros de comprimento, e a trinta centímetro do chão. Sobre os quais, com a paciência do leitor, tomo a liberdade de estender-me um pouco.
Esta diversão é somente praticada por aquelas pessoas que são candidatas a cargos elevados e aos favorecidos da corte. Eles são treinados nessa arte desde tenra idade, e nem sempre são nobres de nascença, ou de educação liberal. Quando um cargo importante está vago, ou por motivo de falecimento ou por ter caído no desagrado (o que acontece com frequência) do imperador, cinco ou seis desses candidatos, solicitam ao imperador uma apresentação para divertir a Sua Majestade e a corte com uma dança da corda; e aquele que pular mais alto, sem cair, conquista o lugar. Muitas vezes os principais ministros são convidados a demonstrarem suas habilidades, e a convencer o imperador de que não perderam suas qualidades.
Flimnap, o tesoureiro, fez questão de dar uma cambalhota na corda estendida, pelo menos 2,5 cm mais alto do que qualquer outro cavalheiro em todo o império. Por várias vezes o tenho visto dar vários saltos mortais, sobre uma tábua fixada à uma corda que não é mais grossa do que um barbante usado para embrulhar na Inglaterra. O meu amigo Reldresal, secretário principal para assuntos privados, é, na minha opinião, não querendo ser parcial, o segundo depois do tesoureiro, o restante dos grandes oficiais estão em situações semelhantes.
Estas diversões frequentemente são praticadas com acidentes fatais, muitos dos quais são dignos de registro. Eu mesmo vi dois ou três candidatos quebrarem a perna. Mas o perigo é muito maior, quando os próprios ministros são obrigados a demonstrar suas habilidades; porque, ao competirem para superar a si mesmos e a seus colegas, eles fazem tanto esforço que raramente um deles não cai, e algumas vezes dois ou três. Asseguraram-me que, um ou dois anos antes de minha chegada, Flimnap teria infalivelmente quebrado o pescoço, se um dos almofadas do rei, que por acaso estava no chão, não tivesse atenuado o impacto da sua queda.
Há também um outro divertimento, que somente é demonstrado diante do imperador e da imperatriz, e do primeiro ministro, em situações particulares. O imperador coloca em cima da mesa três fios de seda finíssimos de quinze centímetros de comprimento, um é azul, e o outro é vermelho, e o terceiro é verde. Estes fios são propostos como prêmios para aquelas pessoas a quem o imperador quiser distinguir com uma singular demonstração da sua generosidade. A cerimônia acontece na grande sala de recepção da Sua Majestade, onde os candidatos devem passar por um teste de detreza muito diferente do anterior, e de tal ordem que nada de semelhante eu vi em qualquer outro país do novo ou velho mundo.
O imperador segura um bastão em suas mãos, com ambas as extremidades paralelas ao horizonte, enquanto os candidatos avançam, um após o outro, e algumas vezes pulam sobre o bastão, e algumas vezes se arrastam sob ele, para a frente e para traz, diversas vezes, de acordo com a elevação ou abaixamento do bastão. Algumas vezes o imperador segura uma extremidade do bastão, e o seu ministro a outra; outras vezes o ministro o segura sozinho. Aquele que executa a sua exibição com maior habilidade, e resiste saltando e se arrastando mais, é recompensado com a seda de cor azul; a vermelha é oferecida ao próximo, e a verde ao terceiro, as quais são usadas dando duas voltas na metade do corpo; e você pode ver poucas pessoas de importância desta corte que não estão enfeitadas com estas fitas.
Os cavalos do exército, e aqueles dos estábulos reais, que eram levados diante de mim diariamente, não se espantavam mais, mas chegavam a se aproximar dos meus pés sem se assustar. Os cavaleiros fazia-os saltar sobre minhas mãos, quando eu as mantinha no chão, e um dos caçadores do imperador, montado num corcel imenso, pisou o meu pé, com sapato e tudo, o que foi sem dúvida um salto formidável. Um dia eu tive a ideia de divertir o imperador de uma maneira extraordinária. Pedi a ele que mandasse providenciar diversos bastões com sessenta centímetros de altura, e da grossura de uma cana comum, e que fossem trazidos até mim: imediatamente Sua Majestade ordenou ao mestre de suas florestas que tomasse as medidas necessárias; e na manhã seguinte seis madeireiros chegaram com muitas carruagens, cada uma puxada por oito cavalos.
Peguei nove desses bastões, e segurando-os firmemente no chão formando uma figura quadrangular, setenta e seis centímetros quadrados, peguei outros quatro bastões, e os amarrei em paralelo a cada canto, cerca de sessenta centímetros acima do chão; depois amarrei meu lenço aos nove bastões que estavam de pé; e o estendi para todos os lados, até que ficasse tapado como o tampo de um tambor, e os quatro bastões paralelos, subindo cerca de doze centímetros mais alto que o lenço, serviam de bordas em cada lado. Quando terminei meu trabalho, pedi que o imperador permitisse que uma tropa dos seus melhores cavalos que era em número de vinte e quatro, viesse fazer exercícios sobre este plano.
Majestade aprovou a proposta, e eu os levantei, um a um, em minhas mãos, prontamente montados e armados, com os próprios oficiais para treiná-los. Assim que eles entraram em ordem, foram divididos em dois blocos, realizaram simulações de escaramuças, dispararam flechas sem ponta, sacaram suas espadas, fugiam e perseguiam, atacavam e se retiravam, resumindo, descobriram a melhor disciplina militar que eu já havia visto. Os bastões paralelos lhes impediam que eles e seus cavalos caíssem fora do palco; e o imperador ficou tão maravilhado, que ele ordenou que esta diversão fosse repetida durante vários dias, e uma vez ficou feliz em ser levantado e dar voz de comando, e com grande dificuldade convenceu até mesmo a própria imperatriz a me permitir que a segurasse sua cadeira de perto a dois metros do palco, quando ela conseguiu ter uma visão completa de toda exibição.
Foi minha sorte, que nenhuma acidente terrível tenha ocorrido durante essas diversões, somente uma vez um cavalo esquentado, que pertencia a um dos capitães, ao pisar com seu casco, encontrou um buraco que havia no lenço, e sua pata escorregou, derrubando o cavaleiro e caindo; mas eu imediatamente salvei os dois, e cobrindo o buraco com uma mão, e descendo a tropa com a outra, da mesma maneira que eu os havia levantado. O cavalo que havia caído feriu-se na perna esquerda, mas o cavaleiro não se feriu, e eu consertei o meu lenço tão bem quanto pude: todavia, não confiaria mais na sua resistência, em empreendimentos tão perigosos.
Cerca de dois ou três dias antes de me colocarem em liberdade, estava eu divertindo a corte com este feito, eis que chegou um mensageiro informando sua majestade, que alguns dos seus súditos, que estavam cavalgando perto do lugar que me haviam visto pela primeira vez, tinham visto no chão uma grande substância negra, com forma bastante estranha, cujas extremidades eram maiores que a cama da sua majestade, e que se levantava até a metade da altura de um homem. Não era uma criatura viva, como pensaram a princípio, pois se achava na relva sem movimento; e alguns deles caminharam em torno várias vezes, e que, montando um no ombro do outro, tinham chegado até a parte de cima, que era plana e lisa, e batendo nela, descobriram que tinha um buraco internamente, e que eles humildemente pensaram que pudesse ser algum pertence do homem montanha, e se Sua Majestade desejasse, eles estavam dispostos a trazê-la com apenas cinco cavalos.
Eu naturalmente sabia do que estavam falando, e fiquei imensamente feliz em receber essa notícia. Parece que ao chegar à praia pela primeira vez após o naufrágio, eu estava tão confuso, antes de chegar ao lugar onde havia ido dormir, meu chapéu, que eu havia ajustado com um cordão à minha cabeça enquanto remava, e que ficou colado o tempo todo que eu fiquei nadando, se soltou depois que cheguei em terra, o cordão, suponho, foi rompido por algum acidente, o que eu nunca percebi, mas pensei que o meu chapéu tinha se perdido no mar.
Insisti para que Sua Majestade imperial desse ordens para que ele me fosse trazido tão rápido quanto possível, descrevendo a ele o uso e a natureza desse objeto: e no dia seguinte chegaram os carregadores com ele, mas não em bom estado; eles tinham feito dois buracos na aba, a quatro centímetros da extremidade, e adaptado dois ganchos nos buracos; estes ganchos eram amarrados por um longo barbante até os arreios, e assim meu chapéu foi arrastado por mais de meia milha inglesa; mas sendo o solo desse país extremamente suave e plano, foi menos danificado do que eu esperava.
Dois dias depois desta aventura, o imperador, tendo ordenado que parte do seu exército com quartéis dentro e em torno da metrópole, estivesse de prontidão, teve a ideia de se divertir de uma maneira muito singular. Pediu-me que ficasse de pé como um Colosso, com minhas pernas tão distanciadas quanto pudesse. Ele então ordenou que seu general (que era um líder antigo e bastante experiente, e meu grande protetor) que colocasse a tropa em linha de batalha, e os fizesse passar em revista pelo meio das minhas pernas, a infantaria com vinte e quatro na frente, e a cavalaria com dezesseis, com tambores rufando, bandeiras desfraldando, e lanças em riste.
O corpo do exército era constituído por três mil homens de infantaria, e mil cavaleiros. Sua Majestade deu ordens, sob pena de morte, que todo soldado durante a marcha deveriam expressar o maior respeito em relação à minha pessoa, o que, todavia, não conseguiu evitar que oficiais mais jovens virassem para cima seus olhares enquanto passavam debaixo de mim: e para dizer a verdade, minhas ceroulas estavam em tal estado de conservação, que eles aproveitaram para rir de espanto.
Eu tinha enviado tantos memorandos e petições pela minha liberdade, que sua majestade finalmente mencionou o assunto, primeiro no gabinete, e depois ao conselho de estado, onde ninguém se opôs, exceto Skyresh Bolgolam, que tinha o maior prazer, sem qualquer provocação, de ser meu inimigo mortal. Porém isso foi feito com aprovação de todos e em detrimento dele, e confirmado pelo imperador. O ministro era chamado de GALBET, ou almirante do reino, que merecera a confiança do seu amo, por ser uma pessoa com muitas habilidades nos assuntos, mas de índole sombria e ácida. Todavia, ele foi finalmente convencido a aceitar, porém, desde que os artigos e as condições da minha liberdade, e às quais eu deveria jurar, deveriam ser redigidas por ele.
Estes artigos foram trazidos para mim pessoalmente por Skyresh Bolgolam, acompanhado de dois sub-secretários, e por diversas pessoas de distinção. Depois que os artigos foram lidos, me exigiram que eu os cumprisse sob juramento, primeiro na maneira do meu país, e depois, no sistema criado pelas leis deles, que era, mantendo o meu pé direito em cima da minha mão esquerda, e colocando o dedo médio da minha mão direita no topo da minha cabeça, e o meu polegar na ponta da minha orelha direita. Mas como o leitor deve estar curioso para ter alguma ideia do estilo e da maneira de expressão peculiar daquele povo, bem como em conhecer os termos como reconquistei minha liberdade, fiz uma tradução de todo o documento, palavra por palavra, tão claramente quanto possível, que eu ofereço aqui para o público.
Golbasto Momarem Evlame Gurdilo Shefin Mully Ully Gue, o mais poderoso imperador de Lilipute, delícia e terror do universo, cujos domínios se estendem cinco mil blugstrugs (cerca de doze milhas de circunferência) às extremidades do globo; monarca de todos os monarcas, o mais alto filho dos homens; cujos pés pressionam a terra até o centro, e cuja cabeça chega a bater no sol, e a cujo olhar os príncipes da terra tremem seus joelhos, carinhoso, como a primavera, agradável como o verão, produtivo como o outono, assustador como o inverno: sua veneradíssima majestade propõe ao homem montanha, que chegou nos últimos dias aos nossos domínios celestiais, os seguintes artigos, que, por juramento solene, será obrigado a cumprir:--
1º. O homem montanha não partirá de nossos domínios, sem nossa permissão autenticada com o nosso grande selo.
2º. Ele não ousará entrar em nossa metrópole, sem nossa ordem expressa; em cuja época, os habitantes terão um alerta de duas horas para se fecharem dentro de suas casas.
3º. O referido homem montanha limitará seus passeios às nossas rodovias principais, e não se propor a passear, ou se deitar, nos pastos ou nos campos de milho.
4º. A medida que ele estiver passeando pelas citadas rodovias, terá de tomar o máximo cuidado de não pisar nos corpos de alguns de nossos adoráveis súditos, seus cavalos, ou suas carruagens, nem pegar qualquer um dos nossos súditos em suas mãos, sem consentimento do próprio.
5º. Se for necessário que um mensageiro faça qualquer despacho extraordiário, o homem montanha será obrigado a carregá-lo, em seu bolso, o mensageiro e o cavalo numa jornada de seis dias, uma vez a cada lua, e retornar o mencionado mensageiro (caso seja necessário) em segurança à nossa presença imperial.
6º. Ele será nosso aliado contra nossos inimigos na ilha de Blefuscu, e se empenhará o máximo para destruir a esquadra deles, que agora está se preparando para invadir nossa nação.
7º. O mencionado homem montanha, em suas horas de descanso, estará auxiliando e assistindo nossos operários, ajudando-os a levar certas pedras grandes, com fins de concluir os muros do parque principal, e outros de nossos edifícios reais.
8º. Que o referido homem montanha, num período de duas luas, fará uma pesquisa exata da circunferência de nossos domínios, com cálculos baseados em passos ao redor da costa.
Por último, que, depois de ter feito este solene juramento, de modo a respeitar todos os artigos que foram mencionados, o referido homem montanha terá um fornecimento diário de carne e de bebidas suficientes para o sustento de 1724 de nossos súditos, com livre acesso a nossa majestade imperial, e a outras demonstrações de nossa generosidade. Concluído em nosso palácio de Belfaborac, no décimo segundo dia da nonagésima primeira lua do nosso reino.
Jurei e assinei todos aqueles artigos com grande alegria e contentamento, embora alguns deles não tivessem sido tão honoráveis como gostaria que tivessem sido, o que era resultado totalmente da maldade de Skyresh Bolgolam, o alto almirante: finalmente minhas correntes foram soltas imediatamente, e eu estava em plena liberdade. O próprio imperador, pessoalmente, deu-me a honra de estar presente em toda a cerimônia. Fiz meus agradecimentos ajoelhando-me aos pés de sua majestade: mas ele ordenou que me levantasse; e depois de muitas expressões amáveis, as quais, para evitar a censura da vaidade, não irei repetí-las, ele acrescentou, que esperava que eu desse mostras como útil servidor, e que bem merece os favores que ele já me havia conferido, ou poderia fazê-lo no futuro.
O leitor com certeza irá perceber que, no último artigo da reconquista da minha liberdade, o imperador estipulara a concessão de carne e bebida suficiente para o sustento de 1724 liliputianos. Algum tempo depois, perguntando a um amigo na corte, como é que eles chegaram a fixar essa quantidade exata, ele me disse que os matemáticos de sua majestade, tendo tirado a altura do meu corpo com a ajuda de um quadrante, e descobrindo que ele era maior na proporção de doze para um, concluíram pela similaridade de seus corpos, que a minha proporção deveria ser equivalente pelo menos a 1724 deles, e consequentemente iria exigir tanta comida quanto necessário para alimentar esse número de liliputianos. Com isto o leitor pode ter uma ideia da engenhosidade daquele povo, bem como da prudência e da economia exata de uma príncipe tão sábio.
Mildendo, a metrópole de Lilipute, é descrita, bem como o palácio do imperador. Uma conversa entre o autor e o secretário de Estado relativa aos assuntos daquele império. As ofertas do autor para servir ao imperador em suas disputas.
A primeira exigência que eu fiz, depois de ter conseguido a minha liberdade, foi uma autorização para que eu pudesse visitar “'Mildendo, a metrópole”'; o que o imperador facilmente me concedeu, mas com uma recomendação especial de não machucar nenhum de seus habitantes ou suas casas. O povo foi avisado, por meio de uma proclamação, sobre o meu plano de visitar a cidade. A muralha que a circundava tinha por volta de setenta centímetros de altura, e pelo menos vinte e oito centímetro de largura, e no seu entorno torres robustas dispunham-se à distância de 3 metros.
Adentrei o grande portão ocidental, e caminhei muito vagarosamente, e me esgueirando, através das duas ruas principais, usando apenas meu colete apertado, com medo de danificar os telhados e os beirais das casas com as pontas do meu casaco. Caminhava com o máximo de cautela, tentando não pisar em algum vadio que pudesse permanecer nas ruas, embora as ordens tivessem sido bastante rigorosas, para que todas as pessoas permanecessem em suas casas, correndo perigo por conta própria. As janelas dos sótãos e os balcões das casas estavam tão lotados de espectadores, que eu pensei em todas as minhas viagens não ter visto um lugar tão populoso.
A cidade era um quadrado perfeito, cada lado da muralha tinha cento e cinquenta metros de comprimento. As duas ruas maiores, que cruzavam e se dividiam em quatro quarteirões, tinham um metro e meio de largura. As alamedas e as ruelas, as quais eu não poderia entrar, mas apenas vê-las enquanto passava, tinham de trinta a quarenta e cinco centímetros. A cidade podia comportar quinhentas mil almas: as casas tinham de três a cinco andares: as lojas e os mercados eram bem abastecidos.
O palácio do imperador ficava no centro da cidade, onde as duas ruas principais se encontravam. Ele era rodeado por uma muralha com sessenta centímetros de altura, e a seis metros de distância dos edifícios. Eu tive permissão da sua majestade para passar por cima desta muralha, e, sendo o espaço bastante amplo entre a muralha e o palácio, eu pude facilmente vê-la de todos os lados. O pátio externo era um quadrado de doze metros, e incluía dois outros pátios: no interno ficavam os apartamentos reais, os quais eu tinha muita curiosidade em ver, mas os achei extremamente difíceis; pois os grandes portões, de uma quadra para a outra, tinham apenas quarenta e cinco centímetros de altura, e dezoito centímetros de largura.
No entanto, os edifícios do pátio externo tinham pelo menos um metro e meio de altura, e para mim era impossível galgar sobre eles sem causar riscos imensos ao telhado, embora as paredes fossem fortemente construídas de pedras lavradas com dez centímetros de espessura. Ao mesmo tempo o imperador tinha muito interesse que eu tivesse conhecimento da magnificência de seu palácio; mas isto eu não pude fazer até três dias depois, os quais eu passei cortando com a minha faca algumas das maiores árvores do parque real, a cerca de cem metros de distância da cidade. Com a madeira essas árvores eu construí dois banquinhos, cada um com cerca de noventa centímetros de altura, e fortes o bastante para suportar o meu peso.
Depois das pessoas terem sido notificadas pela segunda vez, entrei novamente na cidade até o palácio com meus dois banquinhos em minhas mãos. Quando cheguei ao lado do pátio externo, fiquei de pé em cima de um banquinho, enquanto segurava o outro em minhas mãos, e assim passei por cima do telhado, e suavemente o coloquei no espaço entre o primeiro e o segundo pátio, que era de 2,4 m de largura. Depois passei muito tranquilamente sobre os edifícios de um banquinho a outro, e puxava o primeiro que estava atrás de mim com uma vara em formato de gancho. Com isso em mente, eu entrei no pátio mais interno, e me deitando de lado, coloquei meu rosto nas janelas dos andares médios, que foram deixadas abertas com esse propósito, e vislumbrei os apartamentos mais maravilhosos que alguém pode imaginar.
Lá eu vi a imperatriz e os jovens príncipes, em seus diversos alojamentos, cercados pelos seus principais assistentes. A sua majestade imperial estava feliz e sorriu para mim com muita graça, chegando até a me dar a mão para eu beijar.
Não irei, porém, antecipar ao leitor dando maiores detalhes a esse respeito, porque eu reservo essas informações para um obra de maior volume, que já está quase pronta para ser impressa, contendo uma descrição geral deste império, desde a sua origem, através de uma série de príncipes, bem como um relato particular de suas guerras e da política, direitos, ciência e religião, sua flora e fauna, seus modos e costumes particulares, com outros assuntos bastante curiosos e úteis, meu objetivo principal na presente obra é apenas relatar esses eventos e ocorrências que aconteceram comigo para o público ou para mim mesmo durante a permanência de nove meses nesse império.
Um dia de manhã, cerca de quinze dias depois da conquista da minha liberdade, “'Reldresal”' (como ele era chamado), o secretário principal para assuntos privados, veio à minha casa acompanhado por um servidor. Deu ordens para que seu coche o esperasse à distância, e solicitou para que lhe concedesse uma hora de entrevista, com o que concordei imediatamente, por conta de suas qualidades e méritos pessoais, bem como pelos bons préstimos que ele havia me concedido durante minhas petições na corte. Propus me deitar para que ele pudesse alcançar os meus ouvidos com mais comodidade, mas ele preferiu permitir que eu o segurasse em minhas mãos durante o nosso diálogo.
Ele começou me parabenizando pela minha liberdade, e disse “que ele supunha ter algum mérito no caso,” todavia, acrescentou, “que se isso não tivesse acontecido devido à situação atual da corte, provavelmente eu não a teria obtido com tanta brevidade. “Pois,” dizia ele, embora a condição de prosperidade em que nos encontrávamos em relação aos estrangeiros, estávamos lidando com dois males devastadores: uma facção violenta interna, e o perigo externo de uma invasão, por um inimigo muito poderoso. Com relação aos primeiros, você deve entender, que durante as últimas setenta luas tem havido dois partidos em combate neste império, que tem os nomes de “'Tramecksan”' e “'Slamecksan”', que se distinguem em razão dos saltos altos e baixos dos sapatos que usam.
Presume-se, na verdade, que os saltos altos são mais condizentes com a nossa antiga constituição, mas, embora fossem assim, sua majestade determinou utilizar-se somente dos saltos baixos na administração do governo, e todos os cargos que dependem da coroa, como você pode não ter observado, e particularmente que os saltos imperiais de sua majestade são mais baixos em cerca de um “'drurr”' do que qualquer outro de sua corte (“drurr é uma medida que vale por volta da décima quarta parte de uma polegada”). As animosidades entre esses dois partidos chegaram a tal ponto, que eles nem comem, nem bebem, nem conversam uns com os outros. Acreditamos que os Tramecksan, ou saltos altos, nos excedam em número, mas o poder está totalmente do nosso lado.
Compreendemos que sua alteza imperial, que é o herdeiro da coroa, tenha uma certa inclinação pelos saltos altos, pelo menos descobrimos naturalmente que um de seus saltos é maior que o outro, o que faz com que ele manque enquanto caminha. Agora, no âmbito dessas inquietações internas, somos ameaçados com uma invasão provinda da “'ilha de Blefuscu”', que é o outro grande império do universo, quase tão grande e poderoso quanto este de sua majestade. De modo que, de acordo com aquilo que temos visto você afirmar, que existem outros reinos e estados no mundo, habitados por criaturas humanas tão imensas quanto você mesmo, os nossos filósofos não tem muita certeza disso, e preferem crer que você caiu da lua, ou de uma das estrelas; porque estamos seguros, de que cem mortais do seu tamanho destruiriam, num curto espaço de tempo, todas as frutas e gados nos domínios de sua majestade: além do mais, os nossos relatos de seis mil luas não fazem menção alguma a outras regiões além dos dois grandes impérios de Lilipute e Blefuscu.
Estavam pois essas duas poderosas potências, como ia lhes falar, empenhadas na mais obstinada guerra durante as últimas trinta e seis luas. E tudo começou pelo seguinte motivo. É de conhecimento geral, que a maneira primitiva de se quebrar ovos, antes de serem comidos, fica na borda mais larga, mas o avô de sua majestade atual, quando ele era um garoto, ao comer um ovo, e ao quebrá-lo de acordo com as práticas antigas, cortou por acaso um de seus dedos. Por causa disso o imperador, seu pai, publicou um decreto, ordenando a todos os seus súditos, sob terríveis punições, para quebrar os ovos na extremidade menor.
O povo ficou tão ressentido com essa lei, que contam os nossos historiadores, ter havido seis rebeliões criadas por esse motivo, onde um imperador perdeu a sua vida, e um outro a sua coroa. Essas revoluções civis eram constantemente fomentadas pelos monarcas de Blefuscu, e quando eles foram subjugados, os exilados sempre buscam esse império como refúgio. Calcula-se que por esse motivo onze mil pessoas foram mortas, para não se submeterem a quebra de seus ovos na extremidade menor.
Muitas centenas de livros volumosos tem sido publicados a respeito desta controvérsia, mas os livros dos adeptos da extremidade maior tem sido proibidos há muito tempo, e todo o partido foi declarado incapaz por lei de exercer cargo público. Durante o curso desses distúrbios, os imperadores de “'Blefuscu”' fizeram frequentes queixas por meio de seus embaixadores, acusando-nos de criar um cisma na religião, e proferindo ofensas contra a doutrina fundamental do nosso grande profeta “'Lustrog”', no quinquagésimo quarto capítulo do Blundecral (que é o Alcorão deles).
Todavia, isto é considerado como sendo apenas uma pequena dilatação do texto, porque as palavras dizem o seguinte: “que todos os fiéis verdadeiros quebram seus ovos na extremidade conveniente.” E qual é a extremidade mais conveniente, parece, em minha humilde opinião, ser deixado para a consciência do próprio homem, ou pelo menos ser decidido pelo poder do magistrado soberano. Ora, os exilados dos adeptos da extremidade maior depositaram tanto crédito na corte do imperador de Blefuscu, e tanto auxílio e encorajamento particular por parte do partido deles em nosso país, que foi travada uma guerra sangrenta entre os dois impérios há trinta e seis luas, com muito sucesso, e durante esse período nós perdemos quarenta navios de grande porte, e um número muito maior de barcos menores, junto com trinta mil de nossos melhores marinheiros e soldados, e o dano sofrido pelo inimigo é reconhecido como sendo maior que o nosso.
Todavia, eles agora estavam equipados com uma frota numerosa, e estavam simplesmente se preparando para desembarcar em nosso território, e sua majestade imperial, depositando grande confiança em seu valor e coragem, me ordenou que eu relatasse esses acontecimentos para você.
“Gostaria que o secretário apresentasse minhas humildes considerações ao imperador, e informá-lo, de que eu, como estrangeiro, achava que não deveria interferir nos assuntos dos partidos, mas me dispunha, a arriscar a minha vida, para defender a sua majestade e o estado contra os invasores.”
[O autor, usando de um estratagema extraordinário, impede uma invasão. – Um alto título honorífico é concedido a ele. Chegam embaixadores por parte do imperador de Blefuscu, e reiteram a paz. Os aposentos da imperatriz pegam fogo acidentalmente; o autor teve papel fundamental no salvamento do resto do palácio.]
O império de Blefuscu é uma ilha situada na parte nordeste de Lilipute, da qual está separada por um canal de oitocentos metros de largura. Eu ainda não o tinha visto, e diante da notícia de uma invasão iminente, evitei aparecer naquele lado da costa, com receio de ser descoberto, por alguns dos navios do inimigo, que nunca tiveram nenhuma informação da minha existência; todas as relações entre os dois impérios haviam sido estritamente proibidas durante a guerra, sob pena de morte, e o embargo irrestrito de todos os navios foi decretado pelo nosso imperador.
Comuniquei à sua majestade sobre o plano de aprisionar toda a frota do inimigo; a qual, como nos asseguravam nossos batedores, estava ancorada no porto, pronta para zarpar ao primeiro sinal de vento favorável. Consultei os mais experientes marujos a respeito da profundidade do canal, o qual havia sido sondado frequentemente, e me disseram, que no meio, na parte mais funda, que tinha setenta glumgluffs de profundidade, o que equivale a a quase dois metros segundo as medidas na Europa, e o resto dele com no máximo cinquenta glumgluffs (1,3 m).
Caminhei em direção à costa nordeste, que dava de frente para a ilha de Blefuscu, onde, deixado atrás de uma colina, peguei meus telescópios, e vi que a frota do inimigo estava ancorada, consistindo de cerca de cinquenta homens de guerra, e um grande número de navios para transporte: Voltei então para minha casa, e dei ordens (mediante autorização) para que me trouxessem uma grande quantidade dos cabos e barras de ferros os mais resistentes. O cabo tinham a mesma grossura de um barbante e as barras eram do tamanho e do comprimento de uma agulha de tricô.
Tripliquei o cabo para torná-lo mais forte, e por alguma razão entrelacei juntas três barras de ferro, e dobrei as extremidades no formato de um gancho. Tendo então fixado cinquenta ganchos a tantos cabos quanto possível, voltei para a costa nordeste, e tirando o meu casaco, os sapatos, e as meias, caminhei em direção ao mar, com minha jaqueta de couro, e meia hora antes da maré alta. Atravessei sofregamente com a pressa possível, e nadei até o centro há uma altura de trinta metros, até sentir o chão. Cheguei à frota de navios em menos de meia hora.
O inimigo ficou tão assustado quando me viu, que eles saltaram de seus navios, e nadaram até a praia, onde não poderia haver menos que trinta mil almas. Peguei então meus apetrechos, e, amarrando um gancho ao furo da proa de cada navio, prendi juntas todas as cordas numa extremidade. Enquanto efetuava esta manobra, o inimigo disparou vários milhares de flechas, muitas das quais atingiram-me as mãos e a face, e apesar de grande habilidade, elas causaram grande transtorno durante as minhas manobras.
Minha maior preocupação foi com meus olhos, os quais eu teria irremediavelmente perdido, se não houvesse pensado num expediente. Eu conservava, dentre outras pequenos acessórios, um par de telescópios num bolso em particular, os quais, como observara anteriormente, haviam escapado dos fiscais do imperador. Peguei-os e os fixei em meu nariz tão forte quanto possível e assim protegido, continuei valorosamente meu trabalho, não obstante as flechas do inimigo, muitas das quais atingiram as lentes dos meus telescópios, não causando nenhum outro dano, além de uma pequeno deslocamento das lentes.
Uma vez fixados todos os ganchos, e, segurando os nós em minhas mãos, comecei a atirar; mas nem um barco se moveu, pois estavam todos bem presos às suas âncoras, de modo que restava ainda a parte mais ousada de minhas investidas. Soltei então a corda, e deixando os ganchos presos aos navios, cortei resolutamente com meu canivete os cabos que prendiam às âncoras, recebendo cerca de duzentos tiros em meu rosto e mãos, peguei então os nós nas extremidades dos cabos, aos quais estavam amarrados os meus ganchos, e com grande facilidade arrastei cinquenta dos maiores navios de guerra.
Os habitantes de Blefuscu, que não tinham a menor ideia do que eu pretendia, a princípio ficaram totalmente confusos. Eles tinham me visto cortar os cabos, e pensavam que o meu plano fosse apenas fazer com que os navios ficassem à deriva e ficassem batendo uns contra os outros: mas quando perceberam toda a frota movendo-se em fila, e vendo-me puxar em uma ponta, eles começaram a gritar de medo e desespero que é quase impossível descrever ou imaginar.
Quando me vi fora de perigo, parei por um momento para retirar as flechas que atingiram-me no rosto e nas mãos, e passei um pouco de unguento que me fora dado quando cheguei, como já contei isso anteriormente. Tirei então as lentes do meu telescópio, e tendo esperado por cerca de uma hora, até que a maré tivesse baixado um pouco, atravessei com dificuldade até o meio do canal com minha carga, tendo chegado a salvo no porto real de Lilipute.
O imperador e toda sua corte estavam na praia, esperando o resultado desta grande aventura. Eles viam os navios avançando num formato de meia lua, mas não conseguiam me distinguir, pois estava com água até o peito. Quando avancei até o meio do canal, eles ficaram mais desesperados ainda, porque eu estava com água até o pescoço.
O imperador concluiu que eu havia me afogado, e que a frota do inimigo estivesse se aproximando de maneira hostil, mas logo se desfizeram de seus temores, pois o canal ficava mais raso a cada passo que eu dava, e em pouco tempo me aproximei a ponto de me fazer ouvir, e segurando a ponta dos cabos, pelos quais a frota estava amarrada, gritei em voz alta, “Longa vida ao mais poderoso imperador de Lilipute!” Este grande príncipe me recebeu ao chegar em terra com todos os encômios possíveis, e me condecorou alí mesmo com um nardac, que era o título honorífico mais alto entre eles.
Sua majestade queria que eu tivesse outra oportunidade de trazer todo o resto dos seus navios inimigos aos seus portos. E tão imensurável era a ambição dos príncipes, que pareceu que ele pensava em nada menos que reduzir todo o império de Blefuscu a uma província, e governá-la, por meio de um vice-rei, ou destruir os exilados da extremidade maior, e obrigar essas pessoas a quebrarem os ovos na extremidade menor, e com isso ele continuaria a ser o único monarca do mundo todo.
Mas eu me encarreguei de dissuadí-lo desse propósito, com muitos argumentos extraídos dos tópicos da política bem como da justiça, e protestei veementemente “que eu jamais seria instrumento de escravização de um povo livre e valoroso.” E, quando o assunto foi debatido durante o conselho, a maioria mais sábia do ministério teve a mesma opinião que a minha.
Esta minha declaração aberta e ousada era tão contrária aos planos e à política de sua majestade imperial, que ele nunca conseguiu me perdoar. Ele mencionou esse fato de uma maneira muito artificial durante o conselho, onde me disseram que estiveram presentes alguns que eram considerados os mais sábios, e que com o seu silêncio compartilhavam de meu parecer, mas os outros, que eram meus inimigos secretos, não puderam deixar de apresentar suas declarações, as quais, por ventos paralelos, respingavam em minha pessoa.
E a partir dessa época começou a haver uma discussão entre a sua majestade e uma junta de ministros, que agiam perversamente em detrimento de minha pessoa, o que se deu em menos de dois meses, e provavelmente teria acabado com minha destruição total. Os grandes serviços aos príncipes são de tão pequeno peso, quando colocados na balança com uma recusa em satisfazer suas paixões.
Cerca de três semanas depois destes acontecimentos, eis que chegou uma importante embaixada de Blefuscu, com humildes propostas de paz, que em pouco tempo foram concluídas, sob condições bastante vantajosas para o nosso imperador, com as quais não vou incomodar o leitor. Havia cerca de seis embaixadores, com uma comitiva de aproximadamente quinhentas pessoas, e a entrada deles foi magnífica, apropriada à grandiosidade de seu imperador, e à importância de seus negócios.
Quando o tratado foi concluído, onde colaborei com diversos serviços devido aos créditos que recebera, ou pelo menos pensava contar na corte, suas excelências, que foram informadas particularmente do quanto lhes tinha sido generoso, me fizeram uma visita formal. Começaram dando os cumprimentos pelo meu valor e generosidade, e me convidaram para visitá-los em nome deles e do imperador, mestre amado deles, e me pediram para que fizesse algumas demonstrações de minha força prodigiosa, das quais eles tinham ouvido tantas maravilhas, e que eu prontamente os atendi, mas não irei incomodar o leitor com esses detalhes.
Depois de haver entretido suas excelências por algum tempo, com incansável satisfação e supresa de sua parte, pedi a eles que me dessem a honra de apresentar meus mais humildes respeitos ao imperador, mestre deles, com reconhecidas virtudes que haviam se espalhado pelo mundo inteiro com admiração, e cuja pessoa real eu decidira atender, antes de retornar ao meu próprio país.
Por conseguinte, na próxima vez que eu tive a honra de ver o imperador, solicitei sua permissão real para visitar o monarca de Blefuscu, o qual teve o prazer de me receber, como pude perceber, de maneira muito fria; mas não consegui saber a razão, até que ouvi o cochicho de uma certa pessoa, “de que Flimnap e Bolgolam haviam apresentado minhas relações com aqueles embaixadores como uma prova de inimizade;” fato esse, posso garantir, que meu coração era completamente inocente. E esta foi a primeira vez que eu comecei a conceber uma ideia imperfeita do que são as cortes e os ministros.
Podemos observar, que estes embaixadores falaram para mim, através de um intérprete, que os idiomas dos dois impérios eram muito diferentes uns dos outros, assim como dois idiomas são diferentes na Europa, e cada nação se orgulhava de sua antiguidade, beleza, e energia do próprio idioma, com um deprezo declarado pelo idioma do país vizinho, todavia, o nosso imperador, aproveitando-se da vantagem que conquistara com a tomada da frota inimiga, ordenou que eles entregassem suas credenciais, e fizessem um discurso, no idioma dos liliputianos.
E devemos reconhecer, que da grande relação de comércio e negócios entre os dois reinos, e a partir da incessante recepção dos exilados que era mútua entre eles, e do costume, em cada império, de enviar um para o outro, jovens da nobreza e a gentilidade mais abastada, de maneira a se educarem com a visão do mundo, e à compreensão dos homens e dos hábitos, havia poucas pessoas de renome, quer mercadores, quer marujos, que viviam nas regiões oceânicas, mas que conseguiam manter conversação em ambas as línguas, conforme descobri algumas semanas mais tardes, quando fui apresentar minhas considerações ao imperador de Blefuscu, o qual, tocado por grandes desditas, por causa da maldade de alguns inimigos meus, resultou para mim numa aventura muito feliz, como irei relatar no momento oportuno.
O leitor deve se lembrar, que quando eu assinei aqueles artigos com os quais reconquistara minha liberdade, haviam alguns que me desagradaram, em razão de serem completamente humilhantes para mim, e ninguém conseguiria forçar-me a submeter a eles exceto em caso de necessidade extrema. Porém, sendo eu um “nardac” da mais alta hierarquia daquele império, tais ofícios se colocavam como inferiores para a minha dignidade, e o imperador (para que lhe façamos justiça), nunca nem sequer os mencionou para mim. Todavia, não se passou muito tempo até que eu tive a chance de prestar à sua majestade, pelo menos era o que eu pensava, um serviço muito importante.
Certa ocasião, à meia-noite, fiquei sobressaltado com os gritos de centenas de pessoas na porta de minha casa; e acordando, fiquei de alguma forma assustado. Ouvi que repetiam incessantemente a palavra Burglum: diversos cortesãos do imperador, abrindo caminho no meio da multidão, imploravam para que eu me dirigisse imediatamente ao palácio, onde os aposentos de sua majestade, a imperatriz, estava em chamas, devido ao descuido de uma dama de honra, que dormiu enquanto lia um romance. Levantei imediatamente, e ordens foram dadas para que saíssem do meu caminho, e isso aconteceu provavelmente numa noite enluarada, mobilizei-me para chegar ao palácio sem pisar em nenhuma pessoa.
Descobri que eles já haviam colocado escadas nas paredes do apartamento, e todas estavam cheias de baldes, mas a água ficava a uma certa distância. Os baldes eram aproximadamente do tamanho de grandes dedais, e os pobrezinhos os faziam chegar até mim tão rápido quanto podiam: mas as chamas eram tão violentas que eles pouco ajudavam. Eu poderia facilmente ter abafado o fogo com o meu casaco, o qual infelizmente havia esquecido por causa da pressa, e saíra de casa apenas com minha jaqueta de couro.
A situação parecia totalmente desesperadora e deplorável, e o magnífico palácio teria sido totalmente reduzido a cinzas, se, por uma presença de espírito, que não me ocorre com frequência, eu não tivesse pensado em um expediente. Na noite anterior, eu havia bebido uma quantidade muito grande de um delicioso vinho conhecido como glimigrim, (os habitantes de Blefuscu o chamam de flunec, mas o nosso é considerado do mesmo tipo), o qual é bastante diurético.
Como oportunidade única no mundo, eu não havia me libertado de qualquer quantidade de urina ainda. O calor que começava a sentir ao me aproximar das chamas, diante do trabalho que tive para satisfazê-los, fez com que o vinho começasse a ser eliminado através da urina, a qual eu esvaziava em grandes volumes, e aplicava tão bem nos lugares apropriados, que em três minutos o fogo foi totalmente apagado, e o resto daquele majestoso bloco de edifícios, que havia custado muitos anos para serem levantados, foi preservado da destruição.
Já era dia, e eu retornei para minha casa sem esperar os parabéns do imperador: porque, embora eu houvesse prestado um serviço muito importante, eu não poderia dizer como sua majestade poderia se ofender pela maneira como havia realizado o feito, pois, em razão das leis mais importantes do reino, é crime sob pena de morte, de gravidade semelhante, urinar nas proximidades do palácio.
Mas eu fiquei bastante satisfeito com uma mensagem de sua majestade, “que ele daria ordens para que o justiciário maior me desculpasse formalmente: o que contudo não pude conseguir, e fui confidencialmente informado, de que a imperatriz, sentindo profunda aversão pelo que eu fizera, mudou-se para o lado mais distante da corte, e decidiu firmemente que aqueles edifícios não deveriam ser reparados para seu uso: e, na presença de seus principais confidentes ela não conseguiu se abster de prometer vingança.”
[Sobre os habitantes de Lilipute; sua educação, leis e costumes; a maneira de educar seus filhos. O modo de vida do autor nesse país. Sua defesa de uma grande mulher.]
Ainda que eu pretenda postergar a descrição deste império para um tratado em particular, nesse meio tempo ficaria contente em atender ao curioso leitor com alguns conceitos gerais. Embora a altura em geral dos nativos fosse um pouco maior que quinze centímetros, havia portanto uma proporção exata em relação aos outros animais, e também com as plantas e árvores: por exemplo, os cavalos e os bois mais altos possuiam entre dez e doze centímetros de altura, os carneiros aproximadamente quatro centímetros, os patos eram quase do tamanho de um pardal, e assim eram as diversas variações para baixo até chegarmos aos menores, os quais à minha vista eram quase invisíveis; mas a natureza adaptou os olhos dos liliputianos a todos os objetos em relação à visão: eles veem com grande exatidão, mas não a grande distância.
E, para dar um exemplo da acuidade visual em relação aos objetos próximos, fiquei imensamente feliz ao observar um cozinheiro depenando uma cotovia, que não era tão grande quanto uma mosca, e uma jovem enfiando um fio de seda invisível numa agulha também invisível. As árvores mais altas possuiam cerca de dois metros de altura: estou falando daquelas do grande parque real, os topos das quais eu podia alcançar com meus punhos cerrados. Os outros vegetais tinham a mesma proporção, mas isto eu vou deixar para a imaginação do leitor.
Agora, vou falar somente um pouquinho sobre a educação deles, que, durante muitos anos, floresceu em todas as suas ramificações: mas o jeito de escrever deles era muito peculiar, sendo nem da esquerda para a direita, como os europeus, nem da direita para a esquerda, como os árabes, nem de cima para baixo, como os chineses, mas inclinada, de um canto do papel ao outro, como fazem as damas da Inglaterra.
Eles sepultavam os seus mortos diretamente de cabeça para baixo, porque acreditavam eles, que no prazo de onze mil luas, eles iriam ressuscitar novamente, em cujo período a terra (que eles acreditam ser plana) irá virar de ponta cabeça, e desse modo, na ressurreição, serão encontrados de pé. Os sábios que vivem lá admitem o absurdo desta doutrina, mas a prática ainda permanece, de acordo com os conhecimentos populares.
Existem algumas leis e costumes neste império que são muito particulares; e se não fosse tão diretamente contrárias às leis e costumes do meu querido país, ficaria tentado a justificá-las um pouco. Deseja-se apenas que elas sejam bem executadas. A primeira que eu vou mencionar, diz respeito aos delatores.
Todos os crimes contra o estado são punidos aqui com a maior severidade; mas, se o acusado provar completamente sua inocência durante o julgamento, o acusador é imediatamente condenado a uma morte ignominiosa, e a pessoa inocentada é quadruplamente recompensada com seus bens ou terras em razão da perda de tempo, por causa dos riscos que ele correu, pela dureza de sua permanência na prisão, e por causa de todas as acusações a que foi submetido durante a sua defesa, ou, se a compensação não for suficiente, a vítima será amplamente suprida pela coroa. O imperador também confere a ele algum prêmio por sua generosidade, e uma proclamação de sua inocência é espalhada por toda a cidade.
Eles consideram a fraude como crime mais hediondo do que o roubo, e portanto, ela era sempre punida com a morte; pois alegam eles, que o cuidado e a vigilância, dentro de um entendimento muito comum, podem preservar os bens de um homem dos ladrões, mas a honestidade não tem defesa contra a astúcia superior, e uma vez que seja necessário a existência de uma relação perpétua entre comprar e vender, e nas negociações a crédito, onde se permite e se é conivente com a fraude, ou não existe uma lei para sua punição, ou o negociante honesto é sempre prejudicado, e o desonesto tira vantagem.
Eu me lembro, uma vez, quando intercedia junto ao imperador em favor de um criminoso que havia enganado seu mestre em relação a uma grande soma em dinheiro, que ele recebeu ordens para pegar e fugiu, e por acaso, dizendo isto a sua majestade, como forma de atenuação do caso, que isso fora apenas uma invasão de confiança, o imperador considerou a minha atitude desrespeitosa em apresentar a maior gravidade do crime como defesa, e na verdade, tive pouco a dizer como resposta, além da réplica comum de que nações diferentes possuem diferentes costumes, pois, confesso, fiquei muito envergonhado.
Embora eu normalmente considerasse a recompensa e o castigo como as duas engrenagens a qual estão subordinados os governos, nunca pude observar esta máxima sendo colocada em prática por qualquer nação exceto em Lilipute. Aquele que consegue trazer prova suficiente, de que tenha sido rigoroso observador das leis de seu país durante setenta e três luas, pode se tornar detentor de certos privilégios, de acordo com seus méritos ou condição de vida, com um valor em espécie proporcional de um fundo apropriado para esse fim: ao mesmo tempo em que conquistava o título de SNILPALL, que significa legítimo, e que é adicionado ao seu nome, mas cujo direito não é passado para seus herdeiros.
E esses povos acham que é um enorme defeito de nossa política, quando eu lhes disse que as nossas leis eram reforçadas com punições, sem qualquer menção de recompensa. É por esse motivo que a imagem da Justiça, em seus tribunais de causa, era formada por seis olhos, dois na frente, dois atrás, e um de cada lado, para significar a circunspecção, com um saco de ouro aberto em sua mão direita, e empunhando uma espada na esquerda, para mostrar que ela está mais disposta a recompensar do que punir.
Na seleção de pessoas para desempenho de todas as funções, eles levam em consideração mais os bens morais do que as grandes habilidades; considerando que o governo é necessário para a humanidade, creem eles que o conceito comum de entendimento humano é ajustado a uma situação ou outra, e que a Providência jamais pretendeu tornar mistério o gerenciamento dos negócios públicos, para ser compreendido somente por algumas pessoas de gênio sublime, dos quais raramente encontramos três numa geração: mas, julgam eles que a verdade, a justiça, a moderação, e sentimentos semelhantes, existam dentro de todas as pessoas, e que a prática dessas virtudes, auxiliada pela experiência e pelas boas intenções, poderia qualificar qualquer homem para o serviço de seu país, exceto se um curso de formação for necessário.
Pois acreditavam eles que a falta de virtudes morais estava tão longe de ser atendida pelos talentos superiores da mente, que os cargos públicos jamais deveriam ser colocados em mãos perigosas como a de pessoas que fossem assim qualificadas, e, pelo menos, os equívocos cometidos pela ignorância, dentro de um disposição virtuosa, jamais poderia ter uma consequência fatal para o bem estar público, como as práticas de um homem, cujas inclinações o induzissem à corrupção, e que tivesse grandes habilidades para administrar, multiplicar e defender suas ilegitimidades.
Da mesma maneira, a falta de fé numa Providência Divina inabilita um homem de ocupar qualquer cargo público, pois, os reis proclamam a si mesmos como sendo substitutos da Providência, os liliputianos acreditavam que nada pode ser mais absurdo do que um príncipe utilizar essas pessoas que negam a autoridade a qual estão subordinados.
Com relação a estas e as leis seguintes, gostaria de que vocês entendessem que falo apenas das instituições originais, e não das corrupções mais escandalosas, dentro das quais estas pessoas estão inseridas, por causa da natureza degenerativa do homem. Pois, com relação a esta prática inglória de conquistar importantes cargos públicos dançando sobre cordas, distintivos de favores e importância pulando varetas e rastejando-se debaixo delas, o leitor vai perceber, que esses costumes foram introduzidos pela primeira vez pelo avô do atual imperador, e adquiriu a dimensão atual pelo aumento gradativo do partido e das facções.
A ingratidão é para eles um crime imperdoável, como soubemos ter sido também em alguns outros países: pela seguinte razão, que todo aquele que retribuir com o mau ao seu benfeitor, deve ser considerado inimigo do resto da humanidade, de quem jamais recebeu qualquer encargo, e portanto, tal homem não merece viver.
Seus conceitos com relação aos deveres entre pais e filhos diferem extremamente do nossos. Pois, considerando que a conjunção de macho e fêmea é fundamentada na grande lei da natureza, de modo a propagação e continuação da espécie, os liliputianos acreditam, que homens e mulheres se juntaram, como outros animais, por motivos de concupiscência, e que a afeição que dedicam a seus filhos tem origem no mesmo princípio da lei natural: para cuja razão, eles jamais permitirão que uma criança permaneça sob o encargo de seu pai para ser criado, ou de sua mãe para ser educado, pois, considerando as misérias da vida humana, isso não é um benefício propriamente dito, nem pretensão dos seus pais, cujos pensamentos, em seus encontros amorosos, foram empregados de maneira diversa.
Devido a estes e a outros raciocínios, a opinião deles é que, os pais são os últimos a serem encarregados com a educação de seus próprios filhos, e portanto, eles possuem escolas infantis públicas em todas as cidades, onde todos os pais, excetos os camponeses e os trabalhadores, são obrigados a enviarem seus filhos de ambos os sexos para serem criados e educados, quando atingirem a idade de vinte luas, em cujo tempo supõe-se que possuam alguns conceitos básicos de docilidade.
Estas escolas são de diversos tipos, adequadas para diferentes qualidades, e para ambos os sexos. Elas possuem determinados professores suficientemente habilitados na preparação de crianças para essa condição de vida, de acordo com a classificação de seus pais, e de suas habilidades, bem como inclinações. Vou falar primeiro a respeito das escolas infantis para meninos, e depois das escolas para meninas.
As escolas infantis masculinas para filhos de nobres e de pessoas de renome, possuem professores sérios e sábios e seus diversos substitutos. As roupas e a alimentação das crianças eram naturais e simples. Eles são educados nos princípios da honra, justiça, modéstia, clemência, religião, e do amor ao seu país, eles sempre eram empregados em alguma atividade, exceto nos momentos de comer e dormir, os quais são muito curtos, e duas horas para diversões que consiste em exercícios físicos.
São vestidos pelos homens até a idade de quatro anos, e então eram obrigados a se vestirem, embora a formação deles tenha sido a das melhores, e as atendentes, que tem idade proporcional à nossa de cinquenta anos, realizam apenas serviços de baixo nível. Nunca lhes era permitido conversar com os criados, e sempre na presença de um professor, ou um de seus substitutos, e com isso evitam essas impressões de vícios e tolices, às quais nossas crianças estão sujeitas.
A seus pais se permite que sejam visitados somente duas vezes por ano, a visita deve durar somente uma hora, às crianças são permitidas que sejam beijadas ao chegar e ao partir, mas um professor, que sempre se faz acompanhar nessas ocasiões, não permite que falem em segredo, ou utilizem expressões carinhosas, ou tragam presentes tais como brinquedos, doces ou similares.
A cobrança de pagamento de cada família para educação e entretenimento da criança em caso de inadimplência do resgate devido, era feita pelos oficiais do imperador. As escolas maternais para filhos de cavalheiros, mercadores, negociantes e artesãos comuns são administradas proporcionalmente de modo parecido, somente aqueles educados para o comércio eram colocados como aprendizes aos onze anos de idade, ao passo que as pessoas nobres continuavam sua educação até os quinze anos, o que equivale aos vinte e um entre nós: mas o confinamento é gradualmente diminuído durante os últimos três anos.
Nos colégios para o sexo feminino, as meninas nobres são educadas da mesma forma que os garotos, exceto que são vestidas por criadas bem arrumadas de seu próprio sexo, mas sempre na presença de uma professora ou uma substituta, até que aprendam a se vestirem sozinhas, o que acontece quando chegam aos cinco anos de idade. E quando se descobre que estes educadores entretém as garotas com histórias tolas ou assustadoras, ou com as tolices praticadas pelas camareiras como ocorre entre nós, elas são açoitadas três vezes em público por toda a cidade, aprisionadas durante um ano, e banidas pelo resto da vida para a região mais desolada do país.
Assim as jovens senhoras tinham igualmente vergonha de serem covardes e tolas como os homens, e desprezavam todos os adornos pessoais, exceto a decência e a higiene: nem percebi qualquer diferença na educação delas feita em razão da diferença de sexo, somente que os exercícios femininos não eram no conjunto tão violentos; e que algumas regras foram dadas a elas em relação à vida doméstica, e um menor limite de aprendizado foi proposto a elas: pois a máxima deles era que entre povos nobres, uma esposa deve sempre ser uma companheira sensível e agradável, mas nem sempre ela poderá ser jovem.
Quando as garotas chegavam aos doze anos de idade, que para eles é a idade de se casar, seus pais ou tutores os levam para casa, com grandes demonstraçoes de gratidão aos professores, e raramente sem lágrimas da atendente e de seus acompanhantes. Nas escolas femininas mais inferiores, as crianças eram instruídas com todos os tipos de trabalhos adequados à sua sexualidade, e as suas diversas modalidades: aqueles que pretendiam ser aprendizes terminavam seus estudos aos sete anos de idade, os outros eram mantidos até os onze.
As famílias modestas que possuem crianças nestes colégios, são obrigadas, além de sua pensão anual, a qual é a mais reduzida possível, a entregar mensalmente ao administrador do colégio uma pequena parcela do que recebem, como sendo um pequeno patrimônio para a criança, e portanto todos os pais são controlados por lei com relação aos gastos.
Pois os liliputianos acreditam que nada pode ser tão injusto para as pessoas, no que concerne à satisfação de seus apetites, do que trazer filhos ao mundo e deixar a responsabilidade de criá-los aos órgãos públicos. Quanto às pessoas nobres, eles concedem a segurança de reservar uma certa quantia para cada criança, adequada à sua condição, e estes fundos são sempre gerenciados por uma boa administração e a mais rigorosa justiça.
Os aldeões e os lavradores mantém seus filhos em casa, sendo a função deles somente lavrar e cultivar a terra, de forma que a educação deles tem pouco valor para o público: mas os velhos e os doentes eram socorridos pelos hospitais, pois a mendicância é um negócio desconhecido neste império.
E neste momento, talvez, possa parecer divertido ao curioso leitor, oferecer algum relato a respeito de minha vida doméstica, e da minha maneira de viver neste país, durante uma permanência de nove meses e treze dias. Sempre inclinado para as artes mecânicas, e sendo igualmente forçado por causa da necessidade, construí para uso próprio uma mesa e uma cadeira confortáveis o bastante, com madeira retirada das imensas árvores do parque real. Duzentas costureiras foram empregadas para fazerem para mim camisas, e lençóis e toalhas para minha cama e para a mesa, todos de qualidade mais forte e rústica que conseguiram, os quais, todavia, tinham que ser dobrados várias vezes, pois o mais grosso deles era um pouco mais fino do que o tecido de algodão.
O tecido de algodão deles normalmente tinha sete centímetros de largura, e um metro para formar uma peça. As costureiras tiraram as minhas medidas comigo deitado no chão, uma ficava de pé junto ao meu pescoço, e uma outra na metade da minha perna, com uma corda forte estendida, e cada uma presa em uma ponta, enquanto uma terceira media o comprimento da corda com uma régua que tinha dois centímetros e meio de comprimento. Depois elas mediram meu polegar direito, e não precisaram de mais nada, pois devido a um cálculo matemático, segundo o qual duas vezes a circunferência do polegar equivale a uma vez a circunferência da minha munheca, e assim fizeram com relação ao pescoço e a cintura, e com a ajuda da minha camisa velha, que estendi no chão para demonstrar a eles, e elas me serviam perfeitamente.
Trezentos alfaiates foram empregados da mesma maneira para me fazerem roupas; mas eles utilizaram uma outra técnica para me tirarem as medidas. Me ajoelhei, e eles colocaram uma escada desde o chão até o meu pescoço, um deles subiu nesta escada, e soltou um prumo do meu pescoço até o chão, o que simplesmente equivalia ao tamanho do meu casaco: mas a minha cintura e meus braços eu mesmo tirei as medidas. Quando minhas roupas estavam prontas, as quais foram feitas em minha casa, pois a maior casa deles não conseguiria contê-las, elas se pareciam como colchas de retalhos feitas pelas senhoras da Inglaterra, com a diferença de que as minhas tinham apenas um cor só.
Trezentos cozinheiros estavam disponíveis para prepararem meus víveres, em pequenas e confortáveis cabanas construídas em torno de minha casa, onde eles viviam com seus familiares, e me preparavam dois pratos cada um. Eu pegava em minhas mãos vinte garçons, e os colocava em cima da mesa: outros cem me serviam embaixo no chão, alguns com pratos de carne, e alguns com tonéis de vinho e outros com licores carregados ao ombro, todos os quais eram trazidos para cima pelos garçons, como eu queria, de uma maneira bastante engenhosa, por meio de algumas cordas, da mesma forma como retirávamos água do poço na Europa.
Uma prato de carnes era apenas um bocado, e um tonel de licor era apenas um gole de tamanho razoável. A carne de carneiro era parecida com a nossa, mas a carne de vaca deles era excelente. Uma vez eu comi um pedaço de lombo tão grande, que eu tive que dar três mordidas nele, mas isto é raro. Meus criados ficavam atônitos ao me verem comer, com ossos e tudo, como fazemos em nosso país com a perna de cotovia. Os gansos e o patos normalmente eu comia num único bocado, e confesso que são mais gostosos que os nossos. De suas aves menores eu poderia pegar vinte ou trinta na ponta da minha faca.
Um dia a sua majestade imperial, sendo informada a respeito da minha forma de vida, desejou que ele mesmo e sua real consorte, assim como os jovens príncipes consanguíneos de ambos os sexos, pudessem ter a felicidade, como era de seu agrado dizer, de jantar comigo. Vieram conforme combinamos, e eu os coloquei em poltronas oficiais, sobre a minha mesa, bem de frente para mim, com seus seguranças ao redor. Flimnap, o tesoureiro-mor, estava presente bem como seu bastão branco, e eu observei que ele frequentemente olhava para mim com aspecto desagradável, que eu fingia não perceber, mas comí mais do que o habitual, em homenagem ao meu querido país, bem como para causar alguma admiração por parte da corte.
Eu tinha algumas razões particulares para acreditar, que a visita de sua majestade deu a Flimnap a oportunidade de me colocar em maus lençóis diante do seu amo. Esse ministro tinha sempre sido meu inimigo secreto, embora ele exteriormente me tivesse sido mais afetivo do que o usual devido à sua natureza antissocial. Apresentou ao imperador a triste situação do seu tesouro; e que era forçado a negociar empréstimos com grandes descontos; e que os título do tesouro não podiam circular abaixo de nove por cento abaixo do equivalente; e que eu havia custado a sua majestade acima de um milhão e meio de SPRUGS, que era a maior moeda de ouro deles, aproximadamente do mesmo tamanho que uma lentejoula, e, resumindo, que seria aconselhável ao imperador desfazer-se de mim na primeira oportunidade favorável.
Sou aqui obrigado a justificar a reputação de uma excelente senhora, que sofreu inocentemente por minha causa. O tesoureiro começou a ter ciúmes de sua esposa, por causa da maldade de algumas línguas ferinas, que lhe informaram que a bondosa mulher havia se tomado de afeição pela minha pessoa, e o escândalo durante algum tempo correu pela corte, que ela uma vez em particular havia penetrado em meus alojamentos. Declaro solenemente que isto foi uma invenção infame, sem nenhum fundamento, exceto que a bondosa mulher tinha maior alegria em me tratar com todas as inocentes formas de demonstração de liberdade e amizade.
Admito que ela frequentemente vinha à minha casa, mas sempre publicamente, e sempre acompanhada na carruagem por três ou mais pessoas, que normalmente eram sua irmã e uma filha ainda jovem, e alguma amizade em particular; mas isso era muito comum a muitas das mulheres da corte. E ouso apelar aos meus criados que estavam por perto, se eles viram em algum momento uma carruagem em minha porta, sem saber que pessoas estavam dentro dela. Nessas ocasiões, quando uma criada me dava a informação, eu tinha o hábito de imediatamente sair à porta, e depois de apresentar os meus respeitos, pegava em minha mão a carruagem e os dois cavalos com muito cuidado (pois, se havia seis cavalos, o postilhão quase sempre soltava quatro), e os colocava em cima da mesa, onde eu havia fixado uma guarnição móvel em formato de círculo, com doze centímetros de altura, para evitar acidentes.
Com frequência quatro carruagens com cavalos eram colocados de uma só vez em cima da minha mesa, cheia de visitantes, enquanto eu me sentava em minha cadeira, inclinando meu rosto em direção a eles, e enquanto me dedicava a um grupo, o cocheiro gentilmente passeava com os outros ao redor da mesa. Passei muitas tardes bastante agradáveis nessas conversações. Mas eu desafio o tesoureiro, ou seus dois delatores (vou dizer o nome deles e que façam melhor uso disso) Clustril e Drunlo, para que provem a visita de qualquer pessoa de maneira particular, com exceção do secretário Reldresal, que foi enviado por ordem expressa de sua majestade imperial, como relatei anteriormente.
Não deveria me deter tanto tempo em razão deste particular, se não tivesse sido a causa onde a reputação de uma grande senhora estivesse intimamente relacionada, para não dizer nada de mim mesmo, embora em tenha tido a honra de ser um NARDAC, título esse que o próprio tesoureiro não possui, pois, tudo o que o mundo sabe, é que ele é apenas um GLUMGLUM, título inferior em uma graduação, como o título de marquês está em relação ao título de duque na Inglaterra, ainda que reconheça que ele tenha maior valor que eu por causa da sua posição.
Estas informações falsas, que depois chegou ao meu conhecimento por acaso e que não é adequado mencionar, fizeram com que o tesoureiro ficasse de cara feia com a sua esposa durante algum tempo, e comigo ainda pior, e embora ele tenha finalmente esclarecido e se reconciliado com ela, eu perdi todo crédito que depositava nele, e vi que meu interesse pelo próprio imperador também diminuía muito rapidamente, o qual era, de fato, por demais influenciado por aquele favorito.
[O autor, sendo informado a respeito de um plano para acusá-lo de alta traição, foge para Blefuscu. Sua recepção nesse país.]
Antes de começar a fazer um relato sobre a minha saída do reino de Lilipute, seria apropriado informar o leitor a respeito de uma intriga particular que durante dois meses fora criada em detrimento de minha pessoa.
Até então, toda a minha vida, eu fora um estranho à vida na corte, segundo a qual eu não tinha qualificações em razão da insignificância de minha condição. Na verdade eu havia me informado o bastante sobre as disposições dos grandes príncipes e ministros, mas jamais poderia esperar resultados tão funestos em relação a eles, em um país tão remoto, governado, como pensava, por regras muitos diferentes daquelas da Europa.
Quando simplesmente estava me preparando para render homenagens ao imperador de Blefuscu, uma pessoa de renome na corte (a quem havia prestado alguns serviços, numa época em que essa pessoa caíra no desagrado de sua majestade imperial), veio até minha casa de modo muito particular em uma noite, e secretamente, sem sequer dar-se a conhecer, pediu que fosse recebida. Os carregadores foram dispensados; coloquei a cadeira, com sua alteza sentada nela, no bolso do meu casaco: e, dando ordens para meu criado de confiança, para que ele entendesse que eu estava indisposto e queria dormir, fechei a porta da minha casa, coloquei a cadeira em cima da mesa, como era de costume, e me sentei próximo a ela. Depois de feitas as saudações habituais, observando a figura preocupada do senhorio, e perguntando o motivo de sua vinda, ele me pediu que eu o ouvisse com paciência num assunto que segundo ele tinha tudo a ver com a minha honra e a minha vida. A sua fala teve o efeito que segue, pois tomei notas de tudo assim que ele partiu:
Você será informado, disse ele, que diversas comissões do conselho foram convocadas nos últimos dias, da maneira mais secreta, por causa de vossa senhoria, e não faz mais que dois dias que sua majestade chegou a uma conclusão definitiva.
Bem sabeis que Skyresh Bolgolam, (Galbet ou o supremo almirante), tem sido vosso mortal inimigo, desde quase a vossa chegada. Desconheço as razões que deram origem a esse sentimento, mas o ódio dele aumentou depois do vosso grande sucesso contra o país de Blefuscu, com o qual sua glória como almirante foi bastante obscurecida. Este senhor, mancomunado com Flimnap, o tesoureiro-mor, cuja inimizade em relação à sua pessoa é notória, por causa dos acontecimentos que envolveram sua esposa, Limotoc, o general, Lalcon, o camareiro, e Balmull, o grande administrador da justiça, redigiram artigos de condenação contra vossa pessoa, por motivo de traição e de outros crimes capitais.
Seu discurso de apresentação me deixou tão impaciente, estando consciente de meus méritos e de minha inocência, que ao tentar interrompê-lo, ele insistiu para que permanecesse em silêncio, e continuou:
Em razão dos favores que você me prestou, procurei informar-me a respeito de todo o processo, e de uma cópia com os artigos, e por meio deles arrisquei minha cabeça a seu serviço.
Artigos de acusação contra QUINBUS FLESTRIN, (o Homem-Montanha).
ARTIGO I.
Que, por meio de um estatuto criado no reino de sua majestade imperial, Calin Deffar Plune, foi decretado que, quem urinar nos arredores do palácio real, será passível de penas e castigos por alta traição; não obstante, o dito Quinbus Flestrin, numa declarada violação à citada lei, com vistas à extinção do incêndio que irrompeu no apartamento da mais querida consorte imperial de sua majestade, deslealmente, traiçoeiramente e diabolicamente, com a descarga de sua urina, derramada sobre o mencionado incêndio no supracitado apartamento, situado e estando dentro dos limites do aludido palácio real, contra o estatuto criado para esta situação, etc., e em detrimento do dever, etc.
ARTIGO II.
Que o mencionado Quinbus Flestrin, tendo trazido a frota imperial de Blefuscu para dentro dos domínios do porto real, e sendo posteriormente ordenado por sua majestade imperial para assenhorear-se de todos os outros navios do aludido império, e para que reduzisse esse império a uma província, para ser governado por um vicerrei a partir daquela data, e para que destruísse e mandasse matar, não apenas os exilados da Extremidade Maior, mas igualmente a todos os povos daquele império que não renunciassem imediatamente à heresia dos que apoiavam os simpatizantes da Extremidade Maior, ele, o mencionado Flestrin, na qualidade de falso traidor em detrimento de sua mais generosa, serena e imperial majestade, solicitou para que fosse declinado do mencionado serviço, pretextando falta de disposição para forçar as consciências, ou destruir as liberdades e vidas de um povo inocente.
ARTIGO III.
Que, embora certos embaixadores chegados da Corte de Blefuscu, em busca de paz junto à corte de sua majestade, ele, o aludido Flestrin, como falso traidor, ajudou, encorajou, animou e divertiu os mencionados embaixadores, embora soubesse ele que não passavam de servidores de um príncipe que nos últimos tempos se tratava de um inimigo declarado de sua majestade imperial, e numa guerra franca contra a sua mencionada majestade.
ARTIGO IV.
Que o mencionado Quinbus Flestrin, contrário ao dever de um súdito leal, prepara-se no momento para fazer uma viagem à corte e ao império de Blefuscu, para o qual tem ele recebido somente licença verbal de sua majestade imperial; e sob os autos da pretensa permissão, pretende ele de modo falso e traiçoeiro empreender semelhante viagem, e portanto ajudar, animar e encorajar o imperador de Blefuscu, um inimigo tardio, numa guerra declarada contra a sua majestade imperial mencionada anteriormente.
Existem ainda alguns outros artigos; mas, estes são os mais importantes, dos quais fiz para vocês, leitores, um resumo.
Nos inúmeros debates que seguiram a esta acusação, devo confessar que sua majestade deu diversas demonstrações de sua generosidade, muitas vezes enaltecendo os serviços que você prestou a ele, e esforçando-se para atenuar os seus crimes. O tesoureiro e o almirante insistiram para que lhe fosse infligida a morte mais cruel e ignominiosa, lançando fogo em sua casa durante a noite, devendo o general aguardá-lo com vinte mil homens, armados com flechas venenosas, para atirar em seu rosto e mãos. Alguns dos teus servidores receberam ordens particulares para derramarem um suco venenoso em suas camisas e lençóis, que haveriam de rasgar em pouco tempo sua própria carne, fazendo-o morrer em excruciante tortura. O general chegou à mesma opinião, de modo que durante muito tempo houve uma grande maioria que pedia sua condenação, mas sua majestade, decidindo, se possível, poupar a sua vida, teve o sufrágio favorável do camareiro.
Diante deste incidente, Reldresal, secretário principal para assuntos privados, que sempre se mostrou ser seu amigo verdadeiro, foi induzido pelo imperador a emitir sua opinião, o que fez de bom grado, e desse modo se justificam os bons conceitos que tendes a respeito de sua pessoa. Ele concordou que seus crimes tinham relevância, mas que ainda havia algum espaço para a misericórdia, a virtude mais louvável para um príncipe, e pelo qual a sua majestade era celebrada tão justamente. Disse ele, que a amizade que havia entre você e ele, era tão amplamente conhecida por todos, que talvez o comitê mais honorável pudesse considerá-lo parcial, entretanto, em obediência às ordens que recebera, demonstraria com liberdade os sentimentos que guardava.
E que sua majestade, em consideração aos serviços que você prestou a ele, e nos termos de sua inclinação misericordiosa, ficaria feliz em poupar a sua vida, e daria ordens para que somente os seus olhos fossem arrancados, sugeriu ele humildemente, julgando ele que este expediente da justiça poderia ser satisfeito de alguma maneira, e o mundo todo aplaudiria a misericórdia do imperador, bem como os justos e generosos procedimentos daqueles que tiveram a honra de serem seus conselheiros. E que a perda de seus olhos não seria impedimento algum para a força do seu corpo, com o qual poderia ele ainda ser útil à sua majestade, e que a cegueira servia para aumentar a sua coragem, ocultando-nos os perigos, e que o medo que você demonstrou por causa dos olhos, foi a maior dificuldade para a tomada da frota inimiga, e isso seria suficiente para que você enxergasse através dos olhos dos ministros, de vez que os grandes príncipes não faziam mais isso.
Esta proposta foi recebida com desaprovação geral de todo o conselho. Bolgolam, o almirante, não conseguia conter seu ânimo, porém, levantando-se com fúria, disse, que não podia acreditar como um secretário ousava pensar em dar sua opinião para a conservação da vida de um traidor, e que os serviços que você prestou foram, com todas as razões do estado, os maiores agravantes dos teus crimes, e que você, que foi capaz de extinguir o fogo com um jato de urina no apartamento de sua majestade, fato esse que ele mencionava com horror, poderia, em outra oportunidade, provocar uma inundação pelos mesmos meios, e afogar todo o palácio, e a mesma força que possibilitara a você vencer a frota inimiga, poderia servir, num primeiro descontentamento, reverter a situação, e que ele tinha bons motivos para pensar que você era de coração, um partidário dos que quebram o ovo pela extremidade maior, e como a traição começa no coração, antes de se transformar em atos públicos, de modo que você foi acusado como traidor por esse motivo, e portanto, insistia ele que você deveria morrer.
O tesoureiro tinha a mesma opinião: demonstrando ele a que extremos a receita de sua majestade fora reduzida, para poder sustentá-lo, e que em breve você ficaria tão grande, que o expediente do secretário em arrancar-lhe os olhos, estava muito aquém de ser um remédio contra este mau, e que isto provavelmente iria crescer tanto, como podemos constatar nas práticas comuns de cegar alguns tipos de aves, fazendo com que elas se alimentem com maior rapidez, e fiquem gordas rapidamente, e que sua santa majestade e o conselho, que são os seus juízes, estavam, em suas próprias consciências, amplamente convencidos da culpa que vos impingiram, o que já era um argumento suficiente para condená-lo à morte, sem as provas formais exigidas pelas austeras letras da lei.
Mas sua majestade imperial, totalmente contrária à pena capital, teve grande felicidade em afirmar, que ainda que o conselho acreditasse que a perda dos seus olhos fosse uma pena muito leve, alguma outra saída poderia haver futuramente. E o seu amigo, o secretário, humildemente desejando ser novamente ouvido, em resposta às objeções do tesoureiro, relativas aos custos imensos impostos a sua majestade por causa da sua manutenção, disse, que a sua excelência, cuja única atribuição era a receita do imperador, poderia facilmente resolver essa situação, diminuindo gradativamente os custos de manutenção, pelos quais, você ficaria fraco e debilitado, em razão de serem insuficientes, e você perderia o apetite, e consequentemente em alguns meses você se degeneraria e se esgotaria, e assim que você morresse cinco ou seis mil dos súditos de sua majestade poderiam, em dois ou três dias, separar a carne dos seus ossos, removê-la com carroças, e sepultá-la em locais distantes, para impedir o aparecimento de doenças, deixando o esqueleto como um monumento de admiração para a posteridade.
Desse modo, devido à grande amizade do secretário, todo o assunto foi resolvido. Foi rigorosamente aceitado, que o plano de matá-lo de fome gradualmente deveria ser mantido como segredo, mas o decreto de arrancar-lhe os olhos foi sepultado nos autos do processo; ninguém discordou, com exceção de Bolgolam, o almirante, que, sendo um protegido da imperatriz, era constantemente estimulado pela sua majestade, a rainha, a pedir a sua morte, tendo ela profundo rancor em relação a vossa pessoa, por conta do método ilegal e inglório usado por vossa pessoa para extinguir o fogo do apartamento dela.
Num prazo de três dias o seu amigo, o secretário, será instado a comparecer em vossa casa, e ler diante de vossa pessoa os autos da acusação, e então mostrar a grande misericórdia e generosidade de sua majestade, o rei, e do conselho, por meio do qual você será condenado à perda dos seus olhos, ato este que sua majestade não duvida que você irá se submeter reconhecida e humildemente, e vinte cirurgiões de sua majestade estarão presentes, de maneira que a operação seja bem realizada, disparando flechas bastante pontiagudas nas bolas dos seus olhos, quando você estiver deitado no chão.
Deixo à tua liberdade as medidas que você deverá tomar, e para evitar suspeitas, devo retornar imediatamente de modo tão secreto como cheguei.
Sua excelência assim o fez, e eu fiquei sozinho, dominado por dúvidas e perplexidades do pensamento.
Era costume, introduzido por este príncipe e pelo seu ministério (muito diferente, como tenho afirmado, da prática dos tempos anteriores), que depois que a corte tivesse decretado alguma execução cruel, ou para agradar o ressentimento do monarca, ou a maldade de um favorito, o imperador sempre fazia um discurso para todo o conselho, expressando a sua grande clemência e ternura, como qualidades conhecidas e confessadas por todo o mundo. Este discurso era imediatamente publicado para todo o reino, não havia nada que não assustasse mais as pessoas do que esses encômios à misericórdia de sua majestade; porque observavam eles, que quanto mais ênfase e destaque fossem dados a estes louvores, tanto mais desumano era o castigo, e mais inocente seria a vítima.
Todavia, com relação à minha pessoa, devo confessar, jamais ter desejado ser um cortesão, tanto por nascimento como por educação, eu tinha um conceito tão ruim a respeito desses assuntos, que não conseguia perceber a clemência e a generosidade desta sentença, mas imaginava-a (talvez erroneamente) tanto mais rigorosa do que gentil. Eu algumas vezes pensava em defender-me perante o tribunal, pois, embora não pudesse negar os fatos alegados nos diversos artigos, todavia eu confiava que pudesse haver algum atenuante. Mas, tendo eu examinado durante a minha vida muitos processos de estado, os quais observei que terminavam sempre segundo as decisões tomadas pelos juízes, ousei não confiar em decisão tão perigosa, em uma conjuntura tão crítica, e em detrimento de inimigos tão poderosos. Certa vez estava fortemente inclinado a resistir, pois, enquanto me achava em liberdade toda a força daquele império dificilmente poderia me dominar, e eu poderia facilmente com pedras reduzir a metrópole em pedaços; mas logo com horror me desfiz desse projeto, lembrando-me do juramento que fizera ao imperador, dos favores que dele recebera, e do título honorífico de NARDAC que ele me conferiu. Nem tivera eu sido informado sobre a gratidão dos cortesãos, para me convencer, de que os rigores atuais de sua majestade me desobrigavam das dívidas passadas.
Finalmente, tomei uma decisão, para a qual talvez eu possa estar sujeito a alguma censura, e não injustamente, pois confesso que precisava preservar os meus olhos, e consequentemente a minha liberdade, devido a minha grande precipitação e falta de experiência, porque, se tivesse eu conhecimento a respeito da natureza dos príncipes e dos ministros, que eu observara desde muitas outras cortes, e seus métodos de tratarem criminosos, menos perigosos que eu, espontânea e prontamente me submeteria a castigo tão suave.
Mas, instado pela precipitação da mocidade, e tendo a permissão de sua majestade imperial para render minhas homenagens ao imperador de Blefuscu, eu aproveitei esta oportunidade, antes que se passassem os três dias, para enviar uma carta ao meu amigo, o secretário, informando-o de minha decisão de partir naquela manhã para Blefuscu, de acordo com a licença que eu havia recebido, e sem esperar por uma resposta, fui para aquele lado da ilha onde ficava a nossa frota. Apossei-me de um grande navio de guerra, amarrei um cabo à proa, e levantando as âncoras, despi-me, coloquei minhas roupas (junto com a manta que trazia nos braços) dentro do barco, que arrastei, e ora andando, ora nadando, cheguei ao porto real de Blefuscu, onde as pessoas de há muito me esperavam: eles me forneceram dois guias para que me dirigissem para a capital da cidade, que tem o mesmo nome.
Segurei-os nas mãos, até que me aproximei a duzentos metros do portão, e disse a eles para que avisassem sobre a minha chegada a um dos secretários, e o informassem, eu lá aguardei as ordens de sua majestade. Cerca de uma hora depois tive uma resposta, de que a sua majestade, acompanhado da família real, e dos grandes oficiais da corte, estava saindo para me receber. Avancei cem metros. O imperador e sua comitiva desmontaram de seus cavalos, a imperatriz e as damas de companhias desceram de suas carruagens, e eu não percebi se eles estavam assustados ou preocupados. Deitei-me no chão para beijar as mãos de sua majestade e da imperatriz.
Disse à sua majestade, que viera conforme prometera, e com permissão do imperador, meu amo, para ter a honra de ver um monarca tão poderoso, e oferecer a ele algum serviço ao meu alcance, coerente com o dever que devia ao príncipe; sem mencionar nenhuma palavra sobre o meu infortúnio, porque não tivera até então, nenhuma informação regular a respeito, e poderia me considerar totalmente alheio a qualquer plano, nem poderia eu acreditar sensatamente que o imperador pudesse descobrir o segredo, enquanto estivesse fora de seu poder, fato este, todavia, que mostrou estar eu enganado.
Não vou incomodar o leitor com o relato particular da minha recepção nesta corte, a qual foi adequada à generosidade de um príncipe tão generoso, nem com as dificuldades que passei com falta de uma casa ou de uma cama, sendo forçado a deitar no chão, embrulhado na minha manta.
[O autor, por uma questão de sorte, encontra uma maneira para fugir de Blefuscu, e, depois de algumas dificuldades, retorna são e salvo para o seu país de origem.]
Três dias depois de minha chegada, passeando eu por curiosidade pela costa nordeste da ilha, observei, a cerca de meia légua de distância do mar, algo que parecia um barco virado. Tirei os sapatos e as meias, e caminhando duzentos ou trezentos metros, percebi que o objeto chegava mais perto por força da maré, e então percebi que era realmente um barco, o que supus poderia ter-se soltado de um navio por causa da tempestade.
De modo que retornei imediatamente em direção à cidade, e solicitei à sua majestade que me emprestasse vinte dos navios mais altos que haviam sobrado depois da perda da sua frota, e três mil marujos, sob o comando do seu vice-almirante.
A frota partiu, enquanto eu retornava pelo caminho mais curto pela costa, onde havia descoberto o barco pela primeira vez. Percebi que a maré o havia trazido ainda para mais perto. Os marujos estavam todos usando cordas, as quais eu anteriormente havia trançado com força suficiente. Quando os navios surgiram, tirei a minha roupa, e caminhei até que me vi a cem metros de distância do barco, depois disso fui forçado a nadar até alcançá-lo. Os marujos lançaram uma ponta da corda para mim, a qual prendi a um buraco na parte da frente do barco, e a outra extremidade num navio de guerra; mas achei que o meu trabalho teve pouco resultado, porque, como era mais fundo que a minha altura, eu não conseguia trabalhar. Diante dessa situação fui obrigado a nadar de volta, e empurrar o barco para a frente, tanto quanto me foi possível, com uma das mãos, se bem que a maré me favorecia, e avancei a distância que pude manter minha boca fora da água e sentir o chão.
Descansei dois ou três minutos, e empurrei novamente o barco e fui indo até que o mar ficasse abaixo das minhas axilas, e agora, que a parte mais difícil já tinha terminado, peguei os outros cabos que estavam guardados em um dos navios, e os prendi primeiro ao barco, e depois a nove dos navios que me aguardavam; o vento me era favorável, os marujos fizeram o reboque, e eu empurrei até que chegamos a quarenta metros perto da praia, e esperando até que a maré baixasse, cheguei seco perto do barco, e com a ajuda de dois mil homens, munidos de cordas e máquinas, consegui virá-lo na posição correta, e descobri que ele estava apenas um pouco danificado.
Não vou incomodar o leitor com as dificuldades que passei, me utilizando apenas de alguns remos, que me custaram dez dias para fabricar, para levar o meu barco para o porto real de Blefuscu, onde um imenso acúmulo de pessoas presenciou a minha chegada, maravilhados com a visão de um navio tão gigantesco.
Disse ao imperador “que a minha boa sorte havia colocado aquele barco no meu caminho, para me levar para algum lugar de onde eu poderia retornar para o meu país natal, e pedi ordens à sua majestade que me fornecesse alguns materiais para consertá-lo, bem como sua permissão para partir;” o que, depois de algumas exprobrações, ele teve o prazer de me conceder.
Eu estava muito surpreso, durante todo esse tempo, por não ter recebido notícias de qualquer tipo relativas a mim por parte do nosso imperador na corte de Blefuscu. Mas posteriormente me foi dado entender, que a sua majestade imperial, sem nunca ter imaginado que tivera ciência de seus planos, acreditava que eu havia partido para Blefuscu com o intuito de cumprir a minha promessa, conforme a permissão por ele concedida, que era bastante conhecida em nossa corte, e retornaria em alguns dias, quando a cerimônia estivesse terminada.
Mas ele estava muito preocupado com a minha ausência, e depois de consultar com o tesoureiro, e o pessoal restante daquela conspiração secreta, uma pessoa da nobreza foi despachada com a cópia dos artigos onde me acusavam. Este enviado tinha instruções para representar ao monarca de Blefuscu, “a grande misericórdia do seu amo, que se contentava em me punir nada menos do que com a perda dos meus olhos; que eu havia fugido da justiça, e que se eu não retornasse num prazo de duas horas, eu seria destituído do meu título de NARDAC, e declarado traidor.”
O enviado depois declarou, “que de maneira a manter a paz e a amizade entre os dois impérios, seu amo confiava que seu irmão de Blefuscu daria ordens para que eu fosse enviado de volta a Lilipute, com mãos e pés amarrados, para ser punido como traidor.”
O imperador de Blefuscu, tendo solicitado três dias para a deliberação, enviou uma resposta bastante cortês e apresentou as suas desculpas. Disse “que para me enviar amarrado, seu irmão sabia que isso era impossível, e que, embora eu o houvesse destituído de sua frota, ele se sentia devedor de muitas obrigações a minha pessoa pelos muitos serviços que eu prestara a ele com relação à manutenção da paz.
Entretanto, que as duas suas majestades poderiam ficar sossegadas, pois eu havia encontrado um enorme navio na costa, capaz de me levar para alto mar, e que ele dera ordens para que fosse reparado, sob minha ajuda e orientação, e esperava ele que dentro de algumas semanas ambos os impérios estivessem livres de um estorvo tão insuportável.
Munido desta resposta, o enviado retornou a Lilipute, e o monarca de Blefuscu me relatou tudo o que havia ocorrido, oferecendo-me ao mesmo tempo (mas sob o mais absoluto segredo) a proteção de sua graça, caso me dispusesse a continuar sob seus serviços, situação essa, todavia, que acreditei ser sincera da parte dele, embora tivesse resolvido nunca mais confiar em príncipes e ministros, onde me fosse possível evitar, e, portanto, ciente de todos os devidos reconhecimentos de suas intenções favoráveis, pedi humildemente que me desculpasse.
Disse-lhe, “que uma vez que a sorte, fosse ela boa ou má, houvesse colocado um barco em meu caminho, eu estava decidido a me aventurar no oceano, antes que se instalasse uma situação de diferenças entre os dois poderosos monarcas.” O imperador não se mostrou contrariado, e percebi, ocasionalmente, que ele ficou muito feliz com a minha decisão, bem como a maior parte de seu ministério.
Estas considerções me fizeram apressar a minha partida antes do pretendido, e a corte, impaciente para que eu me fosse dali, contribuiu prontamente. Quinhentos trabalhadores foram empregados para fabricarem duas velas para o meu barco, seguindo minhas instruções, acolchoando treze vezes o tecido mais forte fabricado por eles. Desdobrei-me na tarefa de fazer cordas e cabos, trançando dez, vinte ou trinta vezes os mais grossos e os mais fortes que possuíam.
Uma grande pedra que encontrei por acaso, depois de muito procurar, pelo litoral, me serviu de âncora. A gordura de trezentas vacas me foram dadas para untar o barco e para outros usos.
Foi um trabalho muito duro o corte de algumas da maiores árvores, para usar como lemos e mastros, onde, todavia, fui muito auxiliado pelos carpinteiros-navais de sua majestade, que me ajudaram a alisá-los, depois que havia terminado o trabalho bruto.
Decorrido cerca de um mês, quando tudo estava preparado, fui até sua majestade para receber suas ordens, e fazer minhas despedidas. O imperador e a família real saíram do palácio; deitei-me de bruços para beijar a sua mão, a qual ele me estendeu com muita graça: e assim fizeram também a rainha e os jovens príncipes consanguíneos. Sua majestade me presenteou com cinquenta bolsas contendo duzentos “spruggs” cada uma, junto com um retrato dele em tamanho natural, o qual eu imediatamente coloquei em uma de minhas luvas, para que não se estragassem.
As cerimônias da minha partida foram inúmeras para incomodar o leitor neste momento. Provi o barco com cem carcassas de boi, e trezentos carneiros, com pães e bebidas em proporções, e tanta carne preparada quanto quatrocentos cozinheiros podiam oferecer.
Levei comigo seis vacas e dois touros vivos, e tantas ovelhas e carneiros, pretendendo levá-los para o meu próprio país, e disseminar a espécie.
E para sua alimentação a bordo, preparei uma considerável quantidade de feno, e de um saco de milho. Eu ficaria feliz em levar uma dúzia de nativos, mas isso era uma coisa que o imperador não me permitiria de modo algum, e, além de uma revista bem feita em meus bolsos, sua majestade me fez dar palavra de honra “que não levaria nenhum dos súditos, mesmo com consentimento e vontade deles.”
Tendo pois preparado tudo quanto pude, zarpei no dia 24 de setembro de 1701, às seis da manhã, e quando me achava a cerca de quatro léguas em direção ao norte, estando o vento na direção sudoeste, às seis da tarde avistei uma pequena ilha, cerca de meia légua a nordeste.
Segui em frente, e lancei âncora na costa da ilha ao abrigo do vento, que parecia ser desabitada. Bebi então um pouco de refresco, e fui descansar. Dormi bem, creio que por volta de seis horas, pois percebi que o dia clareou duas horas depois que havia acordado.
Era uma noite clara. Tomei meu café da manhã antes que o sol aparecesse, e levantando a âncora, o vento era favorável. Segui a mesma direção que empreendera no dia anterior, e fui orientado pela minha bússola de bolso. O meu plano era, se possível, chegar a uma dessas ilhas, a qual eu tinha razões para acreditar que ficava à nordeste da terra de Van Diemen.
Não descobri nada naquele dia, mas no dia seguinte, por volta das três horas da tarde, quando segundo meus cálculos eu estava a vinte e quatro léguas de Blefuscu, avistei um veleiro que se dirigia para o sudoeste; a minha direção correta era para o oeste.
Enviei minhas saudações mas não obtive resposta; verifiquei todavia que o veleiro ganhava distância, pois o vento perdia velocidade. Icei toda vela que eu pude, e meia hora depois ele tinha me avistado, estendeu sua bandeira, e disparou uma bala de canhão. Não é fácil expressar a alegria que senti com a inusitada esperança de ver mais uma vez meu amado país, e os queridos amigos que lá deixei.
O navio afrouxou as velas, e me deparei com ele entre cinco e seis horas da tarde, 26 de setembro; meu coração saltou dentro de mim quando vi as cores da Inglaterra. Coloquei minhas vacas e carneiros nos bolsos do meu casaco, e subi a bordo com minha pequena carga de víveres. Era um navio mercante inglês, retornando do Japão pelos mares do norte e do sul; o capitão, Sr. John Biddel, de Deptford, era um homem educado e excelente marinheiro.
Estávamos agora na latitude de 30 graus ao sul, havia cerca de cinquenta homens no navio, quando encontrei um velho conhecido meu, chamado Peter Williams, que passou uma boa imagem da minha pessoa para o capitão.
Este cavalheiro me tratou com gentileza, e queria saber de onde eu vinha, e para onde me dirigia, o que fiz em poucas palavras, mas ele acreditou que eu estava delirando, e que os perigos que eu havia passado haviam perturbado a minha cabeça, retirei então as vacas e os carneiros do meu bolso, os quais, depois de grande admiração de sua parte, o convenceram claramente verdade que falava.
Mostrei então a ele o ouro que o imperador de Blefuscu me oferecera, bem como o retrato de sua majestade em tamanho natural, e algumas outras raridades daquele país. Dei a ele duas bolsas com duzentos “spruggs” e prometi que, chegando à Inglaterra, lhe presentearia com uma vaca e um ovelha grande prenhe.
Não incomodarei o leitor com detalhes desta viagem, que foi muito favorável em sua maior parte. Chegamos às Dunas em 13 de abril de 1702. Tive apenas um infortúnio: os ratos do navio levaram embora uma de minhas ovelhas; encontrei os ossos dela num buraco, totalmente sem carne.
O resto do meu gado desembarquei em segurança e soltei-os para pastar num campo de boliche em Greenwich, onde a boa qualidade do gramado lhes proporcionou comida farta, embora sempre temesse o contrário: nem poderia eu tê-los preservado em tão longa viagem, se o capitão não tivesse me oferecido alguns dos seus biscoitos, os quais, ralados até ficarem pó, e misturados com água, era a comida constante deles.
O pouco tempo que fiquei na Inglaterra, amealhei recursos consideráveis exibindo os animais para muitas pessoas nobres e também para os outros: e antes de iniciar minha segunda viagem, eu os vendi por seiscentas libras. Desde que retornara pela última vez, achei que os animais haviam crescido consideravelmente, especialmente as ovelhas, as quais espero trarão muitas vantagens para a fabricação de lã, devido à finura de suas tosas.
Fiquei apenas dois meses com minha esposa e minha família, por causa do meu insaciável desejo de ver terras estrangeiras, que não me permitiam que eu permanecesse mais tempo. Deixei mil e quinhentas libras com minha esposa, e a alojei numa bela casa em Redriff.
O resto dos valores levei comigo, parte em dinheiro, parte em produtos, com o intuito de aumentar os meus lucros. Meu tio mais velho John havia me herdado uma propriedade perto de Epping, que rendia cerca de trinta libras por ano; e eu oferecera por aluguel o Touro Negro de Fetter-Lane, que me proporcionava o mesmo rendimento; de modo que não havia risco de deixar a minha família sob os cuidados da paróquia. Meu filho Johnny, que recebeu esse nome por causa do seu tio, estudava na escola de gramática e era ainda uma criança.
Minha filha Betty (que hoje está bem casada e com filhos) ficava tricotando o dia todo. Pedi permissão à minha esposa, ao meu filho e à minha filha, com lágrimas de ambos os lados, e embarquei a bordo do Aventura, um navio mercante de trezentas toneladas, com destino a Surat, comandado pelo capitão John Nicholas de Liverpool. Mas o relato desta minha viagem será contada na Segunda Parte de minhas Viagens.
“[Uma grande tempestade é descrita; um barco comprido é enviado para buscar água; o autor vai com ele e descobre o país. Ele é deixado na praia, é aprisionado por um dos nativos, e levado para uma casa de um lavrador. Sua recepção, bem como vários acidentes que aconteceram lá. Descrição dos habitantes.]”
Tendo sido condenado, por causa de minha natureza e sorte, a uma vida ativa e sem descanso, dois meses depois de meu retorno, eu deixei novamente meu país de origem, e embarquei para Dunas, no dia 20 de junho de 1702, a bordo do navio Aventura, comandado pelo Capitão John Nicholas, natural da Cornualha, com destino a Surat. Tivemos um vento altamente favorável, até que chegamos ao Cabo da Boa Esperança, onde desembarcamos para buscar água, mas tendo descoberto um vazamento, desembarcamos nossas bagagens e passamos alí o inverno, porque o capitão, tendo ficou doente por causa da malária, e não pudemos deixar o Cabo até o fim do mês de março.
Partimos então e fizemos uma boa viagem até atravessarmos o Estreito de Madagascar; mas tendo chegado na direção norte dessa ilha, e a cerca de cinco graus de latitude sul, os ventos, que nesses mares costumam soprar de modo constante entre o norte e o oeste, do começo de dezembro até o início de maio, no dia 19 de abril o vento começou a soprar com violência ainda maior, e mais em direção a oeste que de costume, continuando assim durante vinte dias ininterruptos: durante esse período, fomos arrastados para oeste das Ilhas Molucas; e a cerca de três graus em direção ao norte da linha (do equador), como descobriu o nosso capitão por uma observação feita no dia 2 de maio, em cujo período o vento parou, e tivemos uma calmaria absoluta, fato esse que me trouxe muita alegria. Ele, porém, sendo um homem bastante experiente em navegação por aqueles mares, ordenou para que nos preparássemos para uma tempestade, que realmente aconteceu no dia seguinte: pois o vento sul, chamado de monção meridional, começou a se formar.
Acreditando que uma borrasca era iminente, içamos nossa cevadeira[1], e pusemo-nos de pé para ferrar a vela de estai[2], porém, fazendo mau tempo, verificamos que os canhões estavam todos amarrados e ferramos a mezena[3][4]. O navio estava em pleno alto mar, e então achamos que o melhor seria seguir de vento em popa, do que ficar tentando e furar o casco. Fixamos a mezena e colocamos calços, e esticamos a vela de estia, o leme estava tão pesado quanto o vento. O barco resistia com bravura. Amarramos a mezena com corda, mas a vela se rasgou, e arriamos a verga, colocamos a vela dentro do barco, e desatamos todos as amarras que estavam presas à ela. Era uma tempestade terrível e o mar se agitava estranho e ameaçador.
Arrastamos as correias do chicote, e ajudamos o timoneiro[5]. Não conseguimos arriar o mastaréu[6], mas deixamos tudo como estava, porque o barco disparava em alta velocidade pelo mar, e sabíamos que o mastaréu quando içado, o navio se comportava melhor, e abria caminho pelo mar com maior facilidade, tendo constatado que no mar os espaços eram imensos. Quando a tempestade acabou, içamos a vela de estia e a vela principal, que davam estabilidade ao barco. Depois içamos a mezena, a vela de joanete[7] principal e a vela da gávea[8].
A nossa direção era leste-nordeste, e o vento estava a sudoeste. Amarramos a estibordo e soltamos os cabos e braçadeiras do tempo, calçamos os braços do sotavento[9], e puxamos com força com as bolas do tempo, e apertando firmemente, e amarramos com cordas, e apertamos bastante a bolina da mezena em direção ao vento, e mantivemos o barco a todo pano e tão próximo quanto possível do vento.
Durante este temporal, o qual foi seguido por fortes ventos a oeste-sudoeste, éramos levados, segundo meus registros, para cerca de quinhentas léguas a oeste, de modo que o marujo mais antigo a bordo não poderia dizer em que parte do mundo nos encontrávamos. Nossas provisões eram suficientes, nosso barco era seguro, e a nossa tripulação estava bem de saúde, porém sofríamos com a mais terrível escassez de água. Achamos melhor manter o mesmo curso, ao invés de virar mais em direção ao norte, o que poderia ter nos trazido para o lado noroeste do Grande Tártaro e para os Mares Gelados.
No dia 16 de junho de 1703, um garoto que estava no mastaréu avistou terra. No dia 17, avistamos claramente uma grande ilha, ou continente (pois ainda não tínhamos certeza) em cujo flanco sul da ilha havia uma pequena península de terra avançando para o mar, e uma enseada demasiadamente baixa para aportar um navio com mais de cem toneladas. Lançamos âncora a uma légua dessa enseada, e nosso capitão enviou uma dúzia de seus homens bem armados em uma chalupa[10], com recipientes para trazer água, caso pudessem encontrar.
Pedi sua autorização para acompanhá-los, e pudesse ver o país, e fazer as descobertas que fosse possível. Quando desembarcamos, não vimos nenhum rio ou qualquer fonte, nem qualquer sinal de habitantes. Nossos homens, portanto, caminharam pela praia para descobrir água fresca perto do mar, e eu caminhei sozinho cerca de uma milha para o outro lado, onde observei que a região era totalmente árida e rochosa.
Comecei então a ficar cansado, e não encontrando nada para entreter a minha curiosidade, retornei suavemente em direção à enseada, e o mar todo diante de minha vista, quando vi que nossos homens entravam no veleiro, e remavam desesperadamente em direção ao barco. Ia gritar para eles, embora de nada adiantasse, quando observei uma criatura imensa caminhando em perseguição a eles no mar, tão rápido quanto podia: ele estava a uma profundidade não maior que os seus joelhos, e andava a passos largos: mas nossos homens estavam a meia légua de distância dele, e como o mar, naquela região, era repleto de rochas pontiagudas, o monstro não conseguiu virar o barco.
Isto me contaram depois, pois eu não ousara ficar para assistir o desenrolar dessa aventura, mas corrí o mais rápido que pude o caminho que antes havia tomado e depois subi um escarpado, que me oferecia uma perspectiva da região. Era uma região totalmente cultivada, mas o que mais me surpreendeu, foi a altura da relva, que naqueles terrenos pareciam servir de feno, e que atingiam seis metros de altura.
Caí numa estrada, pois assim me pareceu, embora fosse utilizada pelos habitantes somente como trilha que atravessa um campo de cevada. Caminhei durante algum tempo, mas pouco pude observar de ambos os lados, pois a colheita era próxima, e o milho chegava a atingir pelo menos doze metros de altura. Caminhei durante uma hora até chegar ao ponto extremo deste campo, que era protegido por uma cerca viva de pelo menos trinta e seis metros de altura, e as árvores eram tão imponentes que não consegui calcular a altura delas.
Havia uma subida para passar de um campo para outro. Tinha quatro degraus, e uma pedra que devia ser escalada quando você chegasse no ponto mais alto. Era impossível para mim escalar aqueles degraus, porque cada um deles tinha quase dois metros de altura, e a pedra no alto tinha seis metros de altura. Tentei encontrar alguma abertura no espinho, quando descobri um dos habitantes em um campo vizinho, avançando em direção à subida, do mesmo tamanho daquele que eu encontrara no mar em perseguição ao nosso barco. Ele parecia tão alto quanto um campanário de igreja, e cada passo dele era equivalente a distância de nove metros, segundo pude calcular.
Fui tomado por grande terror e assombro, e corri para me esconder no milharal, quando me deparei com ele no topo do degrau, olhando para o campo próximo à direita, e o ouvi chamar com uma voz muitas vezes mais alta do que uma trombeta falante: mas o barulho no ar era tão alto, que a princípio eu acreditei se tratasse de um trovão. Diante disso, sete monstros, parecidos com ele, partiram em direção a ele com foices em suas mãos, cada foice tinha a largura de seis gadanhas[11].
Estas pessoas não se vestiam tão bem como as primeiras, pois tinham a aparência de criados ou trabalhadores braçais; pois, depois de pronunciadas algumas palavras, foram colher milho no campo onde eu estava. Procurei manter deles a maior distância que conseguí, mas fui forçado a me mover com extrema dificuldade, pois os talos de milho tinham uma distância não maior que trinta centímetros, de modo que eu mal conseguia mexer meu corpo entre eles. Todavia, fiz movimento de seguir em frente, até que cheguei a uma parte do campo onde o milho fora deitado por causa da chuva e do vento.
Nesse ponto, foi impossível para mim continuar avançando, porque os talos de milho estavam tão entrelaçados, que mal podia rastejar, e as barbas das espigas derrubadas eram tão fortes e pontudas, que penetravam a minha carne através da roupa. Ao mesmo tempo, ouvia os colheitadores pouco menos de cem metros atrás de mim. Completamente desanimado dos esforços empreendidos, e totalmente tomado pela dor e pelo desespero, deitei-me entre dois sulcos, e sinceramente desejava que ali terminasse meus dias. Lamentei minha desolada viúva e meus filhos órfãos.
Deplorei a minha própria loucura e teimosia, ao empreender minha segunda viagem, contra os avisos de todos os meus amigos e parentes. Nesta terrível convulsão de pensamentos, não pude deixar de pensar em Lilipute, cujos habitantes haviam me considerado o maior prodígio que jamais aparecera no mundo, onde eu podia arrastar uma frota imperial apenas com uma mão, e de realizar outras ações mais, que ficarão registradas para sempre nas crônicas daquele império, embora a posteridade dificilmente irá acreditar nelas, ainda que confirmada por milhões.
Refletí que sofrimento seria provar para mim, parecer tão irrelevante para esta nação, como seria um único Liliputiano entre nós. Mas considerava isto o menor dos meus infortúnios, pois, as criaturas humanas são consideradas mais selvagens e cruéis em proporção ao seu tamanho, e o que poderia esperar eu além de ser um petisco na boca do primeiro desses enormes bárbaros, que conseguisse me capturar?
Indubitavelmente os filósofos tem razão, quando nos dizem que nada é grande ou pequeno exceto quando comparado. O destino deve ter-se regozijado, ao permitir que os habitantes de Lilipute encontrassem alguma nação, onde as pessoas fossem menores em relação a eles, como eles eram em relação a mim. Mas quem sabe se essa raça prodigiosa de mortais pudesse igualmente ser superada em alguma parte distante do mundo, cuja descoberta não fizemos ainda.
Assustado e confuso como estava, não conseguia deixar de mergulhar nessas reflexões, quando um dos colheitadores, aproximando-se a nove metros do sulco onde estava deitado, me fez compreender que no seu próximo passo eu seria esmagado até a morte sob seus pés, ou dividido em dois pela sua foice. E portanto, quando ele ia dar o segundo passo, eu gritei tão alto quanto o terror de que estava possuído: e foi então que a criatura deu um pequeno passo, e olhando ao redor e por debaixo dele durante algum tempo, e por fim me avistou deitado no solo.
Ficou me observando durante algum tempo, com a cautela de quem se esforça para deter um animal pequeno e perigoso de modo que este não consiga arranhá-lo ou mordê-lo, como fizera eu mesmo com uma doninha quando estava na Inglaterra. Lentamente aventurou-se a me pegar por trás, pela cintura, entre seu indicador e o polegar, e me levantou a quase três metros de seus olhos, para que pudesse examinar a minha figura mais detidamente.
Adivinhei a sua intenção, e minha boa sorte me ofereceu tanta presença de espírito, que eu resolvi oferecer a menor resistência pelo menos enquanto ele me segurasse no ar a dezoito metros de altura do chão, embora ele dolorosamente apertava os meus flancos, com medo que eu escapasse por entre seus dedos. Tudo que arrisquei foi levantar os meus olhos em direção ao sol, e juntar minhas mãos em posição de súplica, e dizer algumas palavras em um tom de humilde melancolia, adequada à condição em que me encontrava: pois a todo momento eu receava que ele pudesse me esmagar contra o solo, como geralmente fazemos com qualquer animal detestável, e que queremos destruir. Mas assim não quis a minha boa estrela, pois me pareceu que ele se encantara com a minha voz e com os meus movimentos, e começou a me olhar com curiosidade, ficando bastante maravilhado em me ouvir pronunciar palavras articuladas, embora não pudesse entendê-las.
Enquanto isso eu não conseguia deixar de gemer e de chorar, e girando minha cabeça para os lados, fiz com que ele percebesse, tanto quanto podia, a crueldade com que me machucava devido a pressão do seu polegar e do indicador. Ele pareceu entender a minha intenção, pois, levantando a dobra do seu casaco, ele me colocou suavemente em cima dela, e imediatamente correu levando-me consigo para o seu amo, que era um lavrador importante, e a mesma pessoa que havia encontrado pela primeira vez no campo.
O lavrador (segundo supus por causa do jeito deles de falar), tendo recebido algumas informações a meu respeito de tudo que sabia seu servidor, pegou um pequeno pedaço de palha, do tamanho aproximado de uma bengala, e com ela ergueu as abas do meu casaco, que parece que ele pensava que era alguma espécie de revestimento que a natureza havia me proporcionado. Soprou meus cabelos para o lado para examinar melhor o meu rosto.
Chamou os lavradores que estavam perto dele, e perguntou a eles, como soube mais tarde, se eles tinham visto nos campos algumas criaturinhas que se parecessem comigo. Depois ele me colocou suavemente no chão, de quatro, mas eu me levantei rapidamente, e caminhei lentamente para trás e para frente, para permitir que aquelas pessoas percebessem que eu não tinha nenhuma intenção de fugir. Todas elas se sentaram em círculo em torno de mim, para melhor observar meus movimentos.
Tirei o chapéu e me inclinei em direção ao lavrador. Ajoelhei-me e alcei minhas mãos e olhos, e proferi várias palavras tão alto quanto podia: Tirei uma bolsa de ouro da minha algibeira, e humildemente apresentei a eles. Ela a pegou na palma de sua mão, depois aproximou-a perto de seus olhos para ver o que era, e depois revirou-a várias vezes com a ponta de um alfinete (que ele retirou de sua manga) mas não conseguiu fazer nada com ele. Nisto, fiz-lhe um sinal para que ele colocasse sua mão no chão.
Peguei, então, a bolsa, e, abrindo-a, derramei todo o ouro na palma de sua mão. Tinha seis moedas espanholas de quatro pistolas cada uma, além de vinte ou trinta moedas menores. Vi quando ele molhou a ponta do seu dedinho com a língua, e pegou uma das moedas maiores, e depois outra, mas ele parecia desconhecer totalmente do que se tratava. Ele me fez sinal para colocá-las novamente dentro da minha bolsa, e a bolsa novamente dentro do meu bolso, que, depois de oferecê-la várias vezes a ele, achei que era o melhor a fazer.
O lavrador, nesse momento, convenceu-se de que eu deveria ser uma criatura racional. Ele falava frequentemente comigo, mas o som de suas palavras atravessavam os meus ouvidos como o som de um moinho, embora suas palavras fossem bem articuladas. Respondia tão alto quanto podia em vários idiomas, e ele muitas vezes colocava seus ouvidos a dois metros de mim: mas não adiantava nada, pois éramos ambos totalmente ininteligíveis uns ao outros.
Ele, então, mandou seus servidores para o trabalho, e tirando seu lenço do seu bolso, dobrou-o e estendeu-o em sua mão esquerda, que depositara no chão com a palma voltada para cima, e me fazendo sinal para que subisse nele, o que pude fazer com facilidade, pois sua mão não tinha pouco mais de trinta centímetros de espessura, com o restante do lenço ele envolveu-me até a cabeça para maior segurança, e desta maneira ele me levou para dentro de sua casa.
Lá, ele chamou a sua esposa, e me mostrou a ela, mas ela gritou e se afastou, como fazem as mulheres na Inglaterra quando veem um sapo ou uma aranha. Entretanto, depois de certo tempo, examinando o meu comportamento, e que eu obedecia aos sinais que o seu marido fazia, ela logo reconsiderou, e pouco a pouco ficou extremamente carinhosa comigo.
Estava perto do meio dia, e um criado trouxe o jantar. Tratava-se apenas de um prato de comida considerável (adequado para a evidente condição de um lavrador), que tinha mais de sete metros de diâmetro. As companhias eram, o lavrador e sua esposa, três filhos, e uma velhinha que era a avó. Quando se sentaram, o lavrador me colocou a uma certa distância dele sobre a mesa, que tinha nove metros de altura a partir do chão. Eu estava terrivelmente assustado, e me mantive tão afastado quanto possível da extremidade, com medo de cair.
A esposa cortou um pedaço de carne, depois esmigalhou um pouco de pão numa tábua de cortar pão, e a colocou diante de mim. Fiz-lhe uma reverência muito humilde, retirei a minha faca e o meu garfo, e comecei a comer, o que deu a eles extrema satisfação. A dona da casa mandou a criada buscar um pequeno cálice, com capacidade para nove litros, e encheu-o com bebida; eu peguei o recipiente com muita dificuldade com as duas mãos, e de maneira mais respeitosa bebi à saúde dela, expressando as palavras tão alto quanto podia em inglês, o que fez com que os presentes dessem tanta gargalhada, que quase fiquei surdo com o barulho.
Este licor tinha um pouco do sabor de cidra, e não era desagradável. Então, o amo fez-me um sinal para que viesse perto da sua tábua de pão, mas a medida que eu caminhava sobre a mesa, estando surpreso o tempo todo, como o leitor indulgente irá facilmente perceber e perdoar, eu, de repente, tropecei numa casca de pão, e caí de cara no chão, mas não me ferí. Levantei-me rapidamente e observando que aquelas pessoas boas ficaram preocupadas, peguei meu chapéu (o qual eu segurava debaixo dos meus braços por educação) e agitando-o acima de minha cabeça, soltei três vivas para mostrar que eu não havia me machucado por causa da queda.
Mas, avançando em direção ao meu amo (como daqui em diante passarei a chamá-lo), seu filho mais jovem, que estava sentado perto dele, um pequeno arqueiro, com cerca de dez anos, pegou-me pelas pernas, e me manteve tão alto no ar, que eu tremia todo: mas seu pai tomou-me dele, e ao mesmo tempo lhe aplicou tamanho tapa no ouvido esquerdo, que teria derrubado ao chão uma tropa de cavalaria europeia, ordenando-lhe que se retirasse da mesa.
Mas receoso que o garoto ficasse zangado comigo, e me lembrando perfeitamente como são naturalmente maldosos os garotos entre nós em relação a papagaios, coelhos, filhotes de gatos e cães de estimação, me ajoelhei, e apontando para o garoto, fiz com que meu amo entendesse, tão bem quanto pude, que eu desejava que seu filho fosse perdoado. O pai concordou, e o garoto retomou novamente o seu lugar, e nesse momento me dirigi a ele, e beijei a sua mão, que meu amo pegou, e fez com que o garoto tocasse nela suavemente.
No meio do jantar, o gato favorito da minha ama saltou para o colo dela. Ouvi um barulho atrás de mim semelhante ao de uma dúzia de fabricantes de meias trabalhando; e virando a minha cabeça, percebi que vinha do ronronar daquele animal, que parecia ser três vezes maior do que um boi, pelo que pude avaliar ao examinar-lhe a cabeça e uma de suas patas, enquanto a sua ama o alimentava e o acariciava. A ferocidade da fisionomia desta criatura me desconcertou completamente; embora eu me mantivesse na extremidade mais distante da mesa, mais de quinze metros de distância, e embora a minha ama o segurasse com firmeza, com medo que ele pudesse saltar, e prender-me em suas garras.
Mas por sorte não aconteceu nada, porque o gato nem sequer notou a minha presença quando o meu amo me colocou à distância de três metros dele. Como sempre me disseram, e eu descobri ser verdadeiro pelas experiências em minhas viagens, que fugir ou mostrar medo diante de um animal feroz, é a maneira segura de fazer com que ele o persiga ou o ataque, de modo que decidi ostrar nenhum gesto de preocupação, nesta situação de perigo.
Caminhei com desenvoltura cinco ou seis vezes diante da própria cabeça do gato, e me aproximei a meio metro dele, e com isso ele se afastou, como se estivesse mais assustado comigo: Tive menos preocupação com relação aos cães, quando três ou quatro entraram na sala, como é comum nas casas dos lavradores, um dos quais era um mastim, equivalente em tamanho a quatro elefantes, e o outro um cachorro galgo, um pouco mais alto do que o mastim, mas não tão grande.
Quando o jantar estava quase pronto, a babá entrou com uma criança de um ano em seus braços, que me percebeu imediatamente, e começou a berrar de tal modo que se poderia escutar da ponte de Londres até o Chelsea, depois da oratória habitual das crianças, para me usar como brinquedo. A mãe, cheia de amorosa indulgência, me levantou e me colocou nas mãos da criança, que logo me pegou pela cintura, e colocou a minha cabeça dentro de sua boca, onde eu gritei tão alto que o diabrete se assustou, e me derrubou, e eu teria realmente quebrado o meu pescoço se a mãe na tivesse me amparado com o avental.
A babá, para acalmar o bebê, deu-lhe um chocalho, que era uma espécie de recipiente furado cheio de pedras grandes, e amarrado por um cabo à cintura do garoto: mas nada disso adiantou, de modo que ela foi obrigada a recorrer ao último recurso que era dar-lhe de mamar. Devo confessar que nada me causou tanto nojo do que ver o seu peito enorme, o qual não tenho nada para comparar, de maneira a oferecer ao curioso leitor uma ideia do seu tamanho, formato e cor.
Ele tinha quase dois metros de grossura, e não poderia ter menos que cinco metros de circunferência. O bico do peito era a metade do tamanho da minha cabeça, e a tez tanto do bico como da teta, era tão variada com manchas, espinhas e sardas, que nada poderia ser tão nojento: como eu tinha uma visão próxima dela, ela estava sentada, mais confortavelmente possível para dar de mamar, e eu de pé em cima da mesa. Isso me fez refletir sobre a pele belíssima de nossas damas inglesas, que se parecem tão lindas para nós, apenas porque são do nosso tamanho, e seus defeitos não podem ser vistos exceto com o auxílio de uma lupa; onde descobrimos através de experimentos que as peles mais lisas e mais brancas se parecem irregulares, grosseiras e de cor feia.
Lembro-me quando estava em Lilipute, o aspecto daquelas pessoas pequeninas me parecia o mais belo do mundo, e falando sobre este assunto com uma pessoa esclarecida daquele lugar, que foi um amigo íntimo meu, ele disse que o meu rosto parecia muito mais belo e liso quando ele me olhava do chão, do que diante de uma perspectiva mais aproximada, quando eu o pegava em minha mão, e o aproximava de mim, o que ele me confessou ter sido à primeira vista um grande choque.
Ele disse “que conseguia ver grandes buracos em minha pele, que os fios da minha barba eram dez vezes mais fortes do que as cerdas de um javalí, e o meu aspecto que apresentava diversas cores era extremamente desagradável.” embora deva pedir permissão para falar a respeito de mim mesmo, que sou tão bonito como a maioria do sexo masculino que vive em meu país, e um pouco bronzeado por causa de todas as minhas viagens. Por outro lado, falando sobre as damas na corte daquele imperador, ele costumava me dizer, “que uma tinha sardas, a outra uma boca muito larga, e uma terceira um nariz grande demais;” nada do disso eu conseguia perceber.
Confesso que estas reflexões foram óbvias demais, as quais, todavia, não poderia deixar de apresentar, exceto se o leitor pudesse pensar que aquelas enormes criaturas eram na verdade deformadas: pois justiça seja feita a elas quando digo que são uma raça de pessoas graciosas, e particularmente os detalhes do rosto do meu amo, embora fosse apenas um lavrador, quando eu o examinei da altura de dezoito metros, me pareceu muito bem proporcionado.
Quando o jantar ficou pronto, meu amo saiu em direção aos outros trabalhadores, e, segundo pude perceber pela voz e pelos seus gestos, ele deu à sua esposa a severa incumbência de cuidar de mim. Eu estava muito cansado, e com vontade de dormir, o que a minha ama percebeu, e me colocou em sua cama, e me cobriu com um lenço branco e limpo, porém mais largo e grosseiro do que a vela principal de um navio de guerra.
Dormi por volta de duas horas, e sonhei que estava em casa com minha esposa e meus filhos, fato esse que aumentou a minha aflição quando acordei, e me vi só, num quarto enorme, que tinha entre sessenta e noventa metros de largura, e sessenta de altura, deitado numa cama com vinte metros de largura. A minha ama saíra para cuidar das tarefas domésticas, e havia me trancado por dentro.
A cama tinha oito metros de altura a partir do chão. Algumas necessidades naturais exigiam que eu descesse; não ousei supor que devesse chamar, e se tivesse, teria sido em vão, com uma voz como a minha, a uma distância tão grande do quarto onde estava até a cozinha onde a família ficava. Estando nessa situação, dois ratos treparam nas cortinas e corriam farejando por todos os lados em cima da cama. Um deles se aproximou do meu rosto, o que me fez levantar assustado, e saquei do meu cutelo para me defender.
Estes animais horríveis tiveram a ousadia de me atacar de ambos os lados, e um deles colocou suas patas dianteiras no meu pescoço, mas eu tive a sorte de furar a sua barriga de um deles antes que ele pudesse me causar qualquer dano. Ele caiu aos meus pés, e o outro, vendo o destino do seu companheiro, fugiu, mas não sem um sério ferimento nas costas, que lhe apliquei quando ele fugiu, e fez com que o sangue escorresse dele.
Depois dessa façanha, caminhei suavemente de um lado e do outro na cama, para recuperar o meu fôlego e o meu bom humor. Estas criaturas tinham o tamanho de um cão mastim grande, mas infinitamente mais ágeis e ferozes, de modo que se eu tivesse tirado o meu cinto antes de ir dormir, sem dúvida eu teria sido reduzido a pedaços e devorado. Eu medi o rabo do rato morto, o qual ainda estava sangrando, e observei que ele ainda vivia, mas com um grande ferimento em torno do pescoço. Matei-o imediatamente.
Logo depois que a minha ama entrou no quarto, e me vendo todo ensanguentado, correu e me pegou na mão. Apontei para o rato que havia matado, sorrindo, e fazendo outros sinais para mostrar a ela que eu não havia me ferido, o que a deixou extremamente feliz, chamando a camareira para que pegasse o rato morto com uma pinça, e o atirasse pela janela. Depois ela me colocou em cima da mesa, onde mostrei a ela o meu cutelo todo cheio de sangue, e limpando-o na aba do meu casaco, o devolvi à bainha.
Eu estava pressionado a fazer mais uma coisa que outra pessoa não poderia fazer por mim, e portanto, esforçava-me para fazer com que minha ama entendesse, que eu desejava ser colocado no chão, o que ela obedeceu, não permitindo a minha timidez que continuasse a me expressar, a não ser apontando para a porta, e me inclinando várias vezes. A boa mulher, com muita dificuldade, percebeu finalmente minhas intenções, e me pegando novamente em sua mão, caminhou em direção ao jardim, onde me soltou. Caminhei em direção a um lado cerca de cem metros, e acenando para ela não olhar ou não me seguir, e me ocultei entre duas folhas de azedas e aí descarreguei as necessidades da natureza.
Espero que o gentil leitor me desculpe por mencionar estes e outros detalhes, os quais, contudo, possam parecer insignificantes às pessoas vulgares e de baixo nível, contudo, certamente serão úteis para um filósofo expandir seus pensamentos e imaginação, e usá-las em benefício da vida pública e também privada, o qual foi meu único propósito ao apresentar estes e outros relatos de minhas viagens ao redor do mundo, sendo nesse particular um profundo estudioso da verdade, sem acrescentar nenhum adorno de erudição ou de estilo.
Porém, todo o cenário desta viagem criou uma impressão tão forte em meu íntimo, e está tão profundamente arraigada em minha memória, que, ao passá-la para o papel, não omiti nenhuma circunstância material: todavia, diante de uma rigorosa revisão, eu deixarei de relatar diversos acontecimentos de somenos importância que haviam na cópia original, com medo de ser censurado como tedioso e de coisa sem interesse, de que frequentemente são acusados os viajantes, talvez não indevidamente.
[Descrição da filha do lavrador. O autor é levado à uma feira da cidade, e depois vai para a metrópole. Detalhes de sua viagem.]
Minha ama tinha uma filha de nove anos de idade, uma criança muito prendada para a sua idade, gostava de tricotar, e era muito habilidosa para vestir a sua boneca. Sua mãe e ela combinaram para que eu ficasse no berço da boneca durante a noite: o berço foi colocado dentro de uma pequena gaveta de um armário, e a gaveta colocada em cima de uma prateleira suspensa por receio de ratos. Esta foi a minha cama durante todo o período que fiquei com aquelas pessoas, embora pouco a pouco ela tenha se tornado mais apropriada; pouco a pouco comecei a aprender o idioma deles e consegui que eles entendessem minhas necessidades. Esta garotinha era tão hábil, que tendo tirado minhas roupas diante dela por uma ou duas vezes, já lhe foi possível me vestir e me despir, embora nunca lhe tivesse dado esse trabalho quando ela me permitia que eu mesmo fizesse isso.
Ela fez para mim sete camisas, além de outras roupas brancas, de um tecido fino que ela conseguiu, o qual na verdade era mais grosseiro do que pano de saco, e ela as lavava constantemente para mim com suas próprias mãos. Ela era também a minha professora, que me ensinou o idioma: quando eu mostrava com o dedo alguma coisa, ela me dizia o nome do objeto em sua própria língua, de modo que em poucos dias eu conseguia falar o nome de qualquer coisa que tivesse em mente. Ela era de muito boa índole, e não tinha mais que doze metros de altura, sendo pequena para sua idade. Ela deu-me o nome de GRILDRIG, que foi aceito pela família, e depois por todo o reino. A palavra tem origem naquilo que os latinos chamam de NANUNCULUS, os italianos de HOMUNCELETINO, e os ingleses MANNIKIN.
A ela devo a minha sobrevivência naquele país: nós nunca nos separávamos quando eu estava lá, eu a chamava de minha GLUMDALCLITCH, ou querida babá, e eu seria considerado um grande ingrato, caso esquecesse de mencionar o honroso cuidado e afeto que dedicou a mim, e que do fundo do coração eu esteja em condições de retribuir a ela como merece, ao invés de ser o inocente, porém infeliz instrumento de sua desdita, como tenho muitos motivos para temer.
Começou então a correr a notícia pela vizinhança, de que meu amo tinha encontrado um animal esquisito no campo, quase do tamanho de um SPLACNUCK, porém exatamente com as características de uma criatura humana em todos os aspectos: que ele também o imitava em todas as suas ações, parecia falar num estranho idioma que lhe era próprio, que tinha aprendido diversas palavras do idioma deles, ficava de pé sobre duas pernas, era domesticado e gentil, obedecia quando era chamado, fazia tudo que lhe era permitido, tinha os membros mais lindos do mundo, e um rosto mais belo que a filha de um nobre de três anos de idade. Um outro fazendeiro, que vivia nas imediações, e era amigo particular do meu amo, veio fazer uma visita com o propósito de investigar se a história era verdadeira.
Imediatamente eu fui produzido e colocado em cima da mesa, onde eu andava como me mandavam, sacava meu cutelo, guardava-o novamente, fazia reverência para o convidado do meu amo, perguntava no idioma dele como ele estava de saúde, e dizia-lhe que ELE ERA BENVINDO, bem do jeito que a minha pequena babá havia me ensinado. Este senhor, que era velho e tinha a vista curta, colocou os seus óculos para me examinar melhor, fato esse que eu não consegui deixar de rir gostosamente, porque os seus olhos pareciam como a lua cheia brilhando dentro de um quarto com duas janelas. Aquelas pessoas, tendo descoberto o motivo da minha alegria, começaram a rir comigo, o que fez com que o tolo velhinho ficasse furioso e perturbado.
Ele tinha a aparência de um grande avarento, e, para minha desgraça, merecida por causa dele, em razão de uma maldito conselho que ele deu ao meu amo, para que me exibisse nos dias de feira da cidade vizinha, a qual distava meia hora a cavalo, e a cerca de vinte e duas milhas de nossa casa. Eu achei que havia alguma coisa errada quando observei o meu amo e o seu amigo sussurrando juntos, algumas vezes apontando para mim, e meus temores aumentavam porque eu ouvia por acaso e entendia algumas coisas que diziam. Mas na manhã seguinte Glumdalclitch, minha pequena babá, contou tudo para mim, sobre o que astuciosamente ouvira de sua mãe.
A pobrezinha me deitou em seu peito, e começou a chorar de vergonha e tristeza. Ela sentia que alguma coisa ruim iria acontecer comigo por parte das pessoas rudes e vulgares, que poderiam me apertar até morrer, ou quebrar um dos meus membros ao pegar-me com suas mãos. Ela também tinha observado como eu era modesto por natureza, como eu era recatado em relação a minha honra, e que indignidade eu poderia pensar, em ser exposto por dinheiro num espetáculo público, para as pessoas mais vulgares. Ela disse que o pai e a mãe dela tinham prometido que Grildrig seria dela, mas agora ela descobriu que eles fizeram isso para enganá-la como aconteceu no ano anterior, quando eles fingiram lhe dar um cordeiro, e assim que ele engordou, foi vendido para um açougueiro.
Quanto a mim, na verdade posso afirmar, que eu estava menos preocupado do que a babá. Eu tinha uma grande esperança, que nunca me deixou, de um dia poder reaver a minha liberdade: e com relação à ignomínia de ser levado como um monstro, eu me considerava um perfeito estranho naquele país, e que tal infortúnio jamais poderia ser atribuído a mim como censura, se algum dia eu voltasse para a Inglaterra, uma vez que o próprio rei da Grã-Bretanha, na minha situação, passaria pela mesma angústia.
Meu amo, conforme o conselho de seu amigo, me levou dentro de uma caixa na feira próxima da cidade vizinha, e levou consigo a filhinha, minha babá, em um assento atrás dele. A caixa era fechada por todos os lados, com uma pequena porta para eu entrar e sair, e alguns buraquinhos que permitiam a entrada do ar. A garota era tão cuidadosa a ponto de colocar o estofado da cama da sua boneca dentro da caixa, para que eu me deitasse sobre ele. Todavia, eu era terrivelmente chacoalhado e sacudido nesta viagem, embora a viagem fosse apenas de meia hora: pois o cavalo andava cerca de doze metros a cada passada e trotava tão alto, que a agitação era equivalente à subida e descida de um navio durante uma grande tempestade, mas com uma frequência muito maior.
A nossa viagem foi um pouco mais longa que de Londres a Saint Alban’s. Meu amo apeou do cavalo numa estalajem que ele costumava frequentar, e depois de consultar durante algum tempo com o estalajadeiro, e fazendo alguns preparativos necessários, ele contratou o GRULTRUD, ou o pregoeiro, para espalhar a notícia pela cidade de uma criatura estranha que seria vista ao sinal da Águia Verde, e que era menor que um SPLACNUCK (um animal daquele país que tinha um formato muito pequeno, e que media menos de dois metros de altura), e em todas as partes do corpo se parecia com uma criatura humana, e poderia falar várias palavras, e que era capaz de executar centenas de truques divertidos.
Eu fui colocado sobre uma mesa na maior sala da estalagem, que deveria ter mais de noventa metros quadrados. Minha pequena babá ficava sobre um banquinho ao lado da mesa, para cuidar de mim, e me orientar sobre o que eu deveria fazer. Meu amo, para evitar a multidão, iria me permitir que somente trinta pessoas de cada vez pudessem me ver. Eu passeava pela mesa como a garota me mandava; ela me fazia perguntas, até quanto permitia o meu entendimento do idioma, e as respondia tão alto quanto pude. Me virei várias vezes para os circunstantes, e fazia minhas humildes reverências, dizia: SEJAM BENVINDOS, e repetia algumas outras frases que haviam me ensinado.
Peguei um dedal cheio de licor, que Glumdalclitch tinha me dado como xícara, e bebia à saúde deles, sacava o meu cutelo e o movimentava no ar à maneira dos esgrimistas na Inglaterra. A minha babá me dava um pedaço de palha, a qual eu manejava com se fosse uma lança, tendo aprendido essa arte quando ainda era adolescente. Naquele dia eu fui exibido em doze apresentações aos circunstantes, e como sempre era obrigado a repetir novamente as mesma peraltices, até que ficasse quase morto de cansaço e aborrecimento; pois aqueles que me viam faziam relatos tão espetaculosos, que as pessoas chegavam a forçar as portas para entrarem. Meu amo, em razão de seu próprio interesse, não permitia que ninguém me tocasse com exceção da minha babá, e para evitar perigo, bancos eram poscionados ao redor da mesa a distância tal que me colocasse fora do alcance de todas as pessoas.
Todavia, um estudante azarento mirou uma avelã diretamente na minha cabeça, que por muito pouco não me acertou, caso contrário teria vindo com tanta violência, que sem dúvida teria reduzido meu cérebro a fragmentos, pois a avelã era tão grande quanto uma pequena abóbora, mas eu tive a satisfação de ver o pequeno maroto apanhar e ser retirado da sala.
Meu amo mandou anunciar que ele haveria de me mostrar novamente na feira seguinte, e durante esse tempo ele preparou um veículo confortável para mim, no que ele tinha razão de fazer, porque eu estava tão cansado da minha primeira viagem, e por divertir as pessoas durante oito horas consecutivas, que eu mal conseguia ficar de pé sobre minhas pernas, ou pronunciar uma palavra. Três dias haviam decorrido até que eu recuperasse as minhas forças, e que nem em casa eu conseguia descansar, pois todos os fidalgos da vizinhança a uma distância de cem milhas, tendo ouvido falar da minha fama, vinham me ver na casa do meu amo.
Não poderia haver menos de trinta pessoas com suas esposas e filhos (porque o país era muito populoso) e meu amo exigia o valor de uma casa lotada sempre que me exibia em casa, ainda que a exibição fosse para uma única família, de modo que durante algum tempo eu tive pouco descanso durante todos os dias da semana (exceto quarta-feira, que é o dia de descanso deles) ainda que não fosse levado para a cidade.
Meu amo, descobrindo como eu poderia ser rentável, decidiu me levar para as cidades mais importantes do reino. Decidindo, portanto, se abastecer de tudo que fosse necessário para uma longa viagem, e depois de ter resolvido todos os seus assuntos domésticos, despediu-se da mulher, e no dia 17 de agosto de 1703, cerca de dois meses depois de minha chegada, partimos em direção à capital, situada no centro daquele império, e cerca de três mil milhas de distância de nossa casa. Meu amo fez com que sua filha Glumdalclitch fosse na sua garupa.
Ela me carregou no seu colo, dentro de uma caixa amarrada na cintura. A garota amarrara por todos os lados com os panos mais macios que ela conseguiu, bem acolchoado por baixo, forrou-a com a caminha da sua boneca, me forneceu lençóis e outras coisas necessárias, e fez tudo da forma mais confortável que pode. Não tínhamos outra companhia exceto um garoto da casa, que vinha com as bagagens atrás de nós.
O plano do meu amo era mostrar-me em todas as cidades pelo caminho, percorrer a estrada durante cinquenta ou cem milhas, e em qualquer aldeia, ou casa de pessoas de qualidade, onde ele pudesse encontrar um cliente. Fizemos jornadas pequenas, com percurso de sete ou oito milhas de distância por dia, porque, Glumdalclitch, querendo me poupar, se queixava de que estava cansada de andar a cavalo. Ela frequentemente me tirava da caixa, como eu mesmo lhe pedia, para tomar ar, e me mostrava o país, mas sempre me segurava amarrado forte por um barbante para orientação. Passamos por cima de cinco ou seis rios, muitas vezes maiores que o Nilo ou o Ganges: e era difícil não encontrar um riacho que fosse tão pequeno quanto o Tâmisa sob a ponte de Londres. Estávamos já a dez semanas de viagem, e eu fora exibido em dezoito cidades grandes, além de muitas aldeias, e famílias particulares.
No dia 26 de outubro chegamos à capital, chamada de LORBRULGRUD no idioma deles, ou de Orgulho do Universo. Meu amo alugou um alojamento na rua principal da cidade, não longe do palácio real, distribuiu cartazes da forma usual, contendo a descrição exata da minha pessoa e das minhas habilidades.
Alugou uma sala enorme entre noventa e cento e vinte metros de largura. Providenciou uma mesa com dezoito metros de diâmetro, sobre a qual eu iria fazer as minhas apresentações, e a cercou a noventa centímetros da extremidade, para evitar que caísse. Era exibido dez vezes por dia, para espanto e assombro de todas as pessoas.
Eu não conseguia falar a língua relativamente bem, e entendia perfeitamente todas as palavras, que eram faladas para mim. Além disso, eu havia aprendido o alfabeto deles, e conseguia me esforçar para explicar uma frase aqui e ali, pois Glumdalclitch tinha sido minha professora enquanto eu estava em casa, e nas horas de lazer de nossa viagem. Ela levava consigo um pequeno livro em seu bolso, não muito maior que o Atlas de Sansão, que era um tratado comum para uso de garotas, fazendo um breve relato a respeito da religião: fora isso era me ensinou o alfabeto, e interpretação das palavras.
[O autor é enviado para a corte. A rainha o adquire de seu amo, o lavrador, e o apresenta ao rei. O autor discute com os grandes sábios de sua majestade. Um apartamento na corte é preparado para o autor. A rainha o tem em alta estima. Ele defende a honra de seu país. Suas desavenças com o anão da rainha.]
Os frequentes trabalhos que empreendia durante todos os dias, durante algumas semanas, resultaram numa considerável modificação da minha saúde: quanto mais meu amo ganhava comigo, mais insaciável se tornava. Perdera completamente meu apetite, e estava quase reduzido a um esqueleto. O lavrador percebeu isso, e concluindo que eu morreria em breve, decidiu tirar o melhor proveito de mim o quanto podia. Enquanto assim raciocinava e se decidia, um SARDRAL, ou oficial-cavalheiro, veio por parte da corte, exigindo que o meu amo imediatamente me levasse para lá para diversão da rainha e de suas damas. Algumas delas já tinham me visto, e relatavam coisas estranhas a respeito de minha beleza, comportamento e bom senso.
Sua majestade, e aqueles que a serviam, estavam além da conta encantados com o meu comportamento. Caí de joelhos, e pedi a honra de beijar os pés imperiais, mas a graciosa princesa estendeu seu dedo mínimo em minha direção, depois que fui colocado em cima da mesa, tendo-o envolvido com meus braços, e colocando a ponta dele nos meus lábios com o máximo respeito. Ela me fez algumas perguntas gerais a respeito do meu país e de minhas viagens, as quais eu respondi com deferência, e com poucas palavras dentro de minhas possibilidades. Ela perguntou, “se eu estaria disposto a viver na corte?”. Eu me inclinei na borda da mesa, e humildemente respondí “que era escravo do meu amo: mas, caso me fosse possível, eu ficaria orgulhoso em dedicar a minha vida aos serviços de sua majestade.”
Ela então perguntou ao meu amo, “se ele estava disposto a me vender por um bom preço?” Ele, que achou que eu não viveria um mês, estava disposto a se desfazer de mim, e exigiu mil peças de ouro, que lhe foram pagas no local, sendo cada uma cerca do tamanho de oitocentos moidores[1], porém estabelecendo a proporção de todas as coisas entre aquele país e a Europa, e o elevado preço do ouro entre eles, o valor não chegava a uma soma tão importante quanto o valor de mil guinéus[2] na Inglaterra. Disse então à rainha, “uma vez que eu era a criatura mais humilde e vassalo de sua majestade, eu deveria pedir o favor, para que Glumdalclitch — que sempre me havia tratado com tanto cuidado e gentileza, e entendia que ela o fazia tão bem, — fosse admitida aos seus serviços, e continuasse a ser minha babá e minha professora.”
Sua majestade concordou com o meu pedido, e facilmente conseguiu a permissão do lavrador, que ficou muito contente em ter a sua filha preferida na corte, e a garotinha mesmo não conseguia esconder a sua alegria. Meu antigo amo se retirou, me desejando boa sorte, e dizendo que me deixava em um bom serviço, ao qual respondi não com palavras, mas fazendo uma ligeira reverência.
A rainha percebeu a minha frieza, e quando o lavrador havia deixado o apartamento, ela me perguntou o motivo. Ousei dizer à majestade, “que eu não devia nenhuma obrigação ao meu ex-amo, além o de não haver esmagado os miolos de uma pobre e inofensiva criatura como eu, encontrada por acaso nos seus campos: e cujas obrigações foram amplamente recompensadas, com os proventos que havia recebido ao me exibir para metade do reino, além do valor que recebera pela minha venda.
Que a vida que eu levara desde então era laboriosa o bastante para matar um animal que tivesse dez vezes a minha força. Que a minha saúde estava muito prejudicada, pela escravidão contínua em divertir as pessoas todas as horas do dia, e que, se o meu amo não acreditasse que a minha vida estivesse em perigo, a sua majestade não conseguiria me adquirir por um preço tão baixo.
Mas como agora não havia nenhum receio de ser mal tratado, sob a proteção de uma princesa tão boa e tão generosa, ornamento da natureza, a predileta do mundo, a maior alegria dos seus súditos, e a fênix da criação, de modo que eu esperava que as preocupações com o meu antigo amo não teriam mais fundamento, pois já percebia que o meu espírito se reanimava, pela presença de sua mais augusta presença.
Este foi um resumo do meu discurso, feito com enormes incorreções e alguma hesitação. A última parte em particular fora pronunciada no estilo peculiar à aquele povo, de quem aprendi algumas frases de Glumdalclitch, quando ela estava me levando para a corte.
A rainha, sendo eminentemente tolerante com minha deficiência ao me expressar, ficou, contudo, supresa com a minha inteligência e o bom senso de um animal tão pequenino. Ela pegou-me em suas próprias mãos, e me levou diante do rei, que então havia se retirado para o seu gabinete. Sua majestade, um príncipe de muita importância e de fisionomia austera, não tendo observado minhas formas à primeira vista, perguntou à rainha de maneira fria “desde quando ela se tornara apaixonada por um SPLACNUCK?” pois era assim que parecia que eu fosse para ele, assim que encostei o meu peito na mão direita de sua majestade.
Mas esta princesa, que tinha um trato infinito de sabedoria e bom humor, me colocou suavemente de pé sobre uma escrivaninha, e ordenou para que eu fizesse para a sua majestade um relato de minha pessoa, o que fiz em poucas palavras: e Glumdalclitch, que esperava à porta do gabinete, e que não podia suportar ficar longe de mim, entrou, e confirmou tudo que tinha acontecido desde que cheguei à casa do pai dela.
O rei, embora fosse uma pessoa tão erudita quanto qualquer um de seus domínios, tinha sido educado no campo da filosofia, e particularmente da matemática, todavia, quando ele observou melhor as minhas formas, e viu que eu caminhava ereto, antes que eu começasse a falar, imaginou que eu fosse uma peça de relojoaria (que aliás naquele país chegou a uma perfeição muito grande) criada por algum artista engenhoso. Mas quando ele ouviu a minha voz, e percebeu que o que eu transmitia era regular e racional, ele não conseguiu esconder o seu assombro.
Ele não ficou de nenhum jeito satisfeito com o relato que eu fizera a ele sobre a maneira como eu chegara a este reino, mas achava que fosse uma história combinada entre Glumdalclitch e o pai dela, que haviam me ensinado uma porção de palavras para me fazerem vender por um preço melhor. Diante dessas insinuações, ele fez várias outras perguntas para mim, e ainda recebia respostas racionais: não mais incorretas do que um sotaque estrangeiro, e um imperfeito conhecimento da linguagem, com algumas frases rústicas que eu tinha aprendido na casa do lavrador, e que não se adequava ao estilo educado usado na corte.
Sua majestade mandou chamar três grandes sábios, que estavam então em sua tarefa semanal, de acordo com o costume daquele país. Estes cavalheiros, depois de terem examinado a minha figura com a maior delicadeza, tiveram diferentes concepções a meu respeito. Todos concordaram que eu não poderia ser produzido de acordo com as leis regulares da natureza, porque eu não fora moldado com a capacidade de preservar a minha vida, ou por causa da agilidade, ou subindo em árvores, ou cavando buracos na terra.
Eles observaram através dos meus dentes, que foram examinados com grande exatidão, que eu era um animal carnívoro, todavia a maioria dos quadrúpedes eram superiores a mim, e os ratos do campo, assim como outros, que eram velozes demais, não conseguiam imaginar como eu poderia me manter, exceto se eu me alimentasse de caracóis e de outros insetos, os quais eles propunham, por meio de inúmeros argumentos eruditos, para demonstrar que eu não conseguiria fazê-lo.
Um desses virtuosos parecia acreditar que eu pudesse ser um embrião ou fruto de um aborto. Mas esta opinião foi rejeitada pelos outros dois, que observou que os meus membros eram perfeitos e bem acabados; e que eu tinha vivido muitos anos, como se poderia evidenciar pela minha barba, cujos pelos foram completamente descobertos usando uma lupa. Eles não acreditavam que eu fosse um anão, porque a minha pequenez estava aquém de todos os graus de comparação; pois o anão favorito da rainha, o menor que fora descoberto naquele império, tinha mais de nove metros de altura. Depois de muito discutirem, concluíram por unanimidade, que eu era apenas um RELPLUM SCALCATH, que literalmente pode ser interpretado como um LUSUS NATURAE, uma terminologia perfeitamente agradável à moderna filosofia da Europa, cujos professores, desdenhando o antigo subterfúgio das causas ocultas, por meio dos quais os seguidores de Aristóteles empenhavam-se inutilmente para disfarçar a sua ignorância, inventaram esta maravilhosa solução para todas as dificuldades, para o inefável avanço do conhecimento humano.
Depois desta conclusão decisiva, insisti para dizer algumas palavras. Dirigi-me ao rei, e assegurei a sua majestade “que eu era originário de um país superpovoado com vários milhões de seres de ambos os sexos, e que eram da minha altura; onde os animais, árvores e casas, eram todos proporcionais, e onde, por dedução, eu poderia ser capaz de me defender, e de encontrar subsistência, como poderia fazer aqui qualquer um dos súditos de sua majestade, o que eu entendia como uma resposta completa para os argumentos daqueles cavalheiros.”
Diante disto eles responderam apenas com um sorriso de satisfação, dizendo, “que o lavrador tinha me ensinado muito bem a lição.” O rei, que era mais esclarecido, despediu os seus sábios, e mandou buscar o lavrador, que por sorte ainda não havia saído da cidade. Tendo-o portanto examinado particularmente em primeiro lugar, e depois comparando-o comigo e com a jovem garota, sua majestade começou a pensar que o que disséramos poderia talvez ser verdade.
Pediu à rainha que desse ordem para que um cuidado especial me fosse dedicado, e era de opinião que Glumdalclitch deveria ainda continuar em sua missão de cuidar de mim, porque observara ele que tínhamos uma grande afeição um pelo outro. Um apartamento confortável foi providenciado para ela na corte: ela tinha uma espécie de tutora nomeada para cuidar da sua educação, uma criada para vestí-la, e dois outros servidores para trabalhos menores; mas o cuidado comigo ficaria inteiramente a cargo dela.
A rainha mandou que o seu próprio carpinteiro fizesse para ela uma caixa, que pudesse me servir de quarto, de acordo com o modelo que Glumdalclitch e eu havíamos combinado. Este homem era um artista extremamente habilidoso, e de acordo com minhas orientações, num período de três semanas, ele terminava para mim um quarto de madeira com quase cinco metros quadrados, e mais de três metros e meio de altura, com janela de correr, porta, e dois banheiros, como um quarto em Londres.
A placa, que servia de telhado, podia ser levantada e baixada por meio de duas engrenagens, para colocar uma cama pronta preparada pelo tapeceiro de sua majestade, a qual Glumdalclitch tirava todos os dias para arejar, fazendo isso com suas próprias mãos, e baixando-a durante a noite, e fechando o teto acima de mim.
Um excelente artífice, que se notabilizara por pequenas curiosidades, encarregou-se de me fazer duas cadeiras, com encostos e estruturas feitos de uma substância não diferente do marfim, e duas mesas, e um armário para guardar as minhas coisas. O ambiente era estofado por todos os lados, bem como o assoalho e o teto, para evitar qualquer acidente com o descuido daqueles que me transportavam, para amortecer a força dos sacolejos, quando eu entrava na carruagem.
Pedi uma fechadura para a minha porta, para impedir que ratos e camundongos entrassem. O ferreiro, depois de várias tentativas, fez a menor de todas já vista por eles, porque eu conheci uma maior no portão da casa de um cavalheiro, na Inglaterra. Procurei guardar a chave no meu próprio bolso, com medo que Glumdalclitch pudesse perdê-la.
A rainha mandou também que as sedas mais finas fossem trazidas, para que me fizessem roupas, não mais finas que um lençol inglês, e muito pesadas até que eu me acostumei com elas. Elas estavam em moda no reino, em parte se pareciam com as persas, e em parte com as chinesas, sendo essee um hábito muito sério e apropriado.
A rainha gostava tanto da minha companhia, que ela não podia jantar sem mim. Eu tinha uma mesa colocada onde a sua majestade comia, perto do seu cotovelo esquerdo, e uma cadeira para me sentar. Glumdalclitch ficava em um banquinho no chão perto da minha mesa, para me ajudar e tomar conta de mim. Eu possuía um conjunto completo de travessas e pratos e outras coisas necessárias, que em comparação com aquelas da rainha, não eram muito maiores do que aquelas que havia visto em Londres numa loja de brinquedos de móveis para casa de bonecas: estes a minha pequena babá guardava em seu bolso dentro de uma caixa de prata, e me dava nas refeições quando eu precisava delas, sempre lavando-as ela mesma. Nenhuma pessoa jantava com a rainha, exceto as duas princesas reais, a mais velha de dezesseis anos, e a mais jovem naquela época com treze anos e um mês.
A sua majestade costumava servir um pouco de comida em um dos meus pratos, a qual eu comia sozinho, e a diversão dela era me ver comendo os pedacinhos: porque a rainha (que tinha na verdade um estômago fraco) comia, num só bocado, o equivalente ao que doze lavradores ingleses poderiam comer numa refeição, o que para mim durante algum tempo era uma visão repugnante. Ela triturava a asa de uma calhandra[3], com ossos e tudo, entre seus dentes, embora fosse nove vezes maior do que um peru adulto, e colocava um pedaço de pão na boca que era tão grande quanto dois pães de doze centavos. Ela bebia numa xícara de ouro, que era maior que um barril, em um só gole. As facas que ela usava eram duas vezes maior que uma foice, colocada adequadamente para uso. As colheres, os garfos, e outros utensílios, eram todos da mesma proporção. Eu me lembro quando Glumdalclitch me carregava, por curiosidade, para ver algumas mesas da corte, onde dez ou doze daquelas facas enormes eram levantadas juntas. Acho que nunca até aquele momento havia tido uma visão tão assustadora.
Era costume, que toda quarta-feira (que eu tinha observado que era o dia de descanso para eles) o rei e a rainha, com sua descendência de ambos os sexos, jantavam juntos no apartamento de sua majestade, de quem agora me tornara grande favorito; e nesses momentos, minha cadeira e minha mesa eram colocados do seu lado esquerdo, de frente para um dos saleiros. Este príncipe tinha prazer em conversar comigo, me perguntar sobre os modos, religião, direito, governo, e educação da Europa, e eu fazia a ele o melhor relato de que era capaz a esse respeito. Sua percepção era tão clara, e seu discernimento tão exato, que ele fazia reflexões e observações muito sábias sobre tudo que eu dizia.
Mas confesso que, depois de tinha falado um pouco além do habitual a respeito do meu amado país, do nosso comércio e das guerras em mar e em terra, dos cismas de nossa religião, e da política do estado, os preconceitos de sua educação vieram-lhe à tona, que ele não conseguiu deixar de me pegar em sua mão direita, e me acariciou gentilmente com a outra, e depois de um ataque de riso, me perguntou, “se eu era do partido político whig[4] ou conservador como um tory?[5]” Depois, virando-se para o primeiro ministro, que lhe dava assistência atrás dele com um bastão branco, quase tão alto quanto o mastro principal do Soberano Real, ele observou “como eram abjetas as grandezas humanas, pois podiam ser imitadas até por insetos minúsculos como eu, e no entanto”, disse ele,
“Apostaria que estas criaturas tem seus títulos e distinções de honra, edificam seus ninhos e tocas, as quais eles chamam de casas e cidades, se preocupam com roupas e adereços, amam, lutam, discutem, enganam e traem!” E assim — continuou ele dizendo, ao passo que eu perdia e readquiria a cor diversas vezes, — com indignação, em ver a nobreza de nosso país, senhora das artes e das armas, flagelo da França, árbitro da Europa, sede da virtude, da piedade, da honra, e da verdade, orgulho e inveja do mundo, ser tratada de forma tão desdenhosa.”
Mas eu não estava em situação de ressentir-me das ofensas, então, depois de pensar maduramente eu comecei a duvidar se eu havia sido ofendido ou não. Porque, depois de ter-me habituado com a visão e o diálogo deste povo, eu observava cada objeto sobre o qual eu lançava meus olhos como sendo de tamanho proporcional, o horror que eu sentia à princípio pelo tamanho e aspecto que tinham estava tão desgastado, que se eu tivesse visto uma comitiva de lordes e damas ingleses com seus trajes requintados e de festa, representando seus diversos papéis na maneira mais refinada de se exibir, de reverenciar e de tagarelar, para dizer a verdade, eu ficaria fortemente tentado a rir como muitos deles, como o rei e seus próceres faziam comigo. Na verdade, nem eu mesmo conseguia deixar de rir de mim mesmo, quando a rainha costumava me colocar em sua mão diante de um espelho, e pelo qual ambas as nossas imagens apareciam diante de mim em tamanho totalmente natural, e não poderia haver nada mais ridículo do que a comparação, de modo que eu comecei a me imaginar reduzido em muitas vezes o meu tamanho habitual.
Nada me irritava e me mortificava tanto como o anão da rainha, que sendo de estatura mais baixa que se vira naquele país (porque na verdade ele tinha pouco mais que nove metros de altura), ficou tão insolente ao ver uma criatura tão menor que ele, que ele sempre fingia vangloriar-se e parecer maior quando passava por mim na ante-câmara da rainha, enquanto eu ficava em cima da mesa conversando com os lordes e as damas da corte, e ele raramente deixava de soltar uma ou duas palavras sobre o meu tamanho, contra o qual eu só poderia me vingar chamando-o de irmão, desafiando-o a lutar, e outras bravatas muito comuns nas bocas dos pajens da corte. Um dia, no jantar, esse pequeno filhote de raposa estava tão aborrecido com alguma coisa que eu lhe dissera, que, subindo nos degraus da cadeira de sua majestade, ele me pegou pela cintura, quando eu estava sentado, sem pensar em qualquer maldade, e me derrubou dentro de uma enorme vasilha de prata com creme, e depois fugiu o mais rápido que pode.
Caí de ponta-cabeça, e, caso eu não fosse um bom nadador, teria sido muito difícil para mim, pois Glumdalclitch naquele momento estava por acaso na outra extremidade do local, e a rainha ficou tão assustada, que lhe faltou tranquilidade para me ajudar. Mas a minha pequena babá veio em meu socorro, e me tirou dali, depois de eu ter engolido mais de vinte e cinco por cento do creme. Fui colocado na cama: todavia, não tive nenhum outro prejuízo além da perda de algumas roupas, que foram totalmente estragadas. O anão levou uma boa surra, e como punição posterior, foi obrigado a beber a tijela de creme no qual eu havia sido atirado: nem conseguiu ele recuperar a graça da rainha, pois logo depois ela o presenteou a uma dama da nobreza, de modo que nunca mais o vi, para minha grande satisfação, pois eu não poderia prever a que extremos tão perverso diabrete teria levado este ressentimento.
Antes ele já tinha me aprontado uma arapuca, que fez a rainha rir, embora ao mesmo tempo ela sentisse muita vergonha, e o teria demitido imediatamete, se eu não tivesse sido tão generoso ao interceder. Sua majestade havia se servido de um osso de tutano no prato dela, e depois de retirar o tutano batendo no osso, o colocou novamente de pé no prato, como estava antes, o anão, aproveitando esta oportunidade, quando Glumdalclitch tinha ido ao aparador, subiu no banco que ela ficava para cuidar de mim nas refeições, me pegou com as duas mãos, e chacoalhando minhas duas pernas, me encaixou dentro do osso de tutano acima de minha cintura, onde eu fiquei colado durante algum tempo, fazendo uma figura muito ridícula. Acredito que faltou pouco para que qualquer um soubesse o que ia acontecer comigo, pois eu acreditava que eu não teria coragem de chorar. Porém, como os príncipes raramente comem suas refeições quentes, minhas pernas não foram escaldadas, apenas as minhas meias e o meu traseiro ficaram uma lástima. O anão, a meu pedido, não recebou outra punição além de uma bem merecida sova.
Eu era frequentemente animado pela rainha por causa do medo, e ela costumava me perguntar se as pessoas do meu país eram grandes covardes como eu mesmo? A situação era esta: o reino era muito infestado por moscas no verão, e estes insetos odiosos, cada um deles tão grande quanto uma calhandra dessas que existem em Dunstable, raramente me davam qualquer descanso quando eu me sentava para jantar, porque elas zuniam e faziam ruído continuamente em meus ouvidos. Algumas vezes elas pousavam em minha comida, e botavam seu repugnante excremento ou suas ovas para trás, os quais para mim eram bastante visíveis, embora não para os nativos daquele país, cujos olhos enormes não eram tão agudos como os meus, na visualização de objetos menores.
Algumas vezes eles pousavam no meu nariz, ou na minha testa, onde me picavam rapidamente, cheirando muito ofensivamente, e eu conseguia rastrear facilmente aquela matéria viscosa, que os nossos naturalistas nos ensinavam, que permitia a essas criaturas caminhar com seus pés para cima, no teto. Eu tinha muito trabalho para me defender contra estes detestáveis animais, e não conseguia deixar de estremecer quando eles vinham em minha cara. Era hábito comum para o anão, pegar alguns desses insetos na mão, como os garotos em idade escolar fazem em nosso país, soltando-os debaixo do meu nariz, com o objetivo de me assustar, e divertir a rainha. Meu único recurso era picá-los em pedacinhos com a minha faca, a medida que eles voavam no ar, e esta minha destreza era muito admirada.
Lembro-me em uma manhã, quando Glumdalclitch havia me colocado numa caixa com janela, como ela costumava fazer naqueles belos dias para que eu tomasse ar (pois eu ousava não arriscar pendurar a caixa com prego para fora da janela, como fazemos com as gaiolas na Inglaterra), depois que eu tinha levantado uma de minhas janelas de correr, e sentado na minha mesa para comer um pedaço de bolo como café da manhã, mais de vinte marimbondos, atraídos pelo cheiro, vieram voando ao local, zunindo mais alto que zangões com muitas gaitas de fole. Alguns deles pegaram o meu bolo, e o levaram aos pedaços, outros voavam em torno de minha cabeça e do rosto, me confundindo com o ruído, e me enlouquecendo com suas picadas. Todavia, eu tive a coragem de me levantar e sacar o meu cutelo, e atacá-los no ar.
Matei quatro deles, mas o resto fugiu, e eu atualmente fecho a minha janela. Esses insetos eram tão grandes como perdizes: eu retirava os ferrões deles, que tinham quase quatro centímetros de comprimento, tão afiados quanto agulhas. Cuidadosamente os guardei todos eles, e tendo-os mostrado, com algumas outras curiosidades, em diversas partes da Europa, quando de meu retorno a Inglaterra, eu presenteei três deles à Universidade de Gresham e guardei o quarto para mim.
[Descrição do país. Uma proposta para correção dos mapas modernos. O palácio do rei; alguns relatos sobre a metrópole. O modo de viajar do autor. Descrição do templo principal.]
Pretendo agora oferecer ao leitor uma breve descrição deste país, e de todos os lugares que conheci, trajeto esse que não passou de duas mil milhas em torno de Lorbrulgrud, a metrópole. Pois que a rainha, a quem sempre estive a serviço, nunca foi além quando ela acompanhava o rei em suas viagens, e alí permaneci até que sua majestade retornasse de suas visitas às fronteiras. A extensão total dos domínios do príncipe alcançava cerca de seis mil milhas de comprimento, e de três a cinco mil milhas de largura: de onde posso apenas concluir, que os nossos geógrafos da Europa incorrem em grande erro, ao supor nada além do mar entre o Japão e a Califórnia; pois essa também era a minha opinião, que deve haver um equilíbrio da terra para contrabalançar o grande continente da Tartária, e portanto, eles devem corrigir seus mapas e cartas geográficas, acrescentando esta vasta imensidão de terra às regiões do nordeste da América, e para isso estou disposto a oferecer-lhes minha ajuda.
O reino é uma península, limitado a noroeste por uma cadeia de montanhas de trinta milhas de altura, as quais são totalmente intransponíveis, por causa dos vulcões nos topos: nem os mais sábios imaginam que tipo de mortais habitam além daquelas montanhas, ou se ao menos elas são habitadas. Nos outros três lados, ele é cercado pelo oceano. Não há um único porto marítimo em todo o reino: e aquelas regiões litorâneas onde os rios desaguam, são tão repletos de rochas pontiagudas, e o mar geralmente é tão agitado, que ninguém se arrisca com o menor dos seus barcos; de modo que, estes povos estão totalmente excluídos de qualquer tipo de comércio com o resto do mundo.
Mas os rios imensos estão tão cheios de navios, e existe uma imensidão tão grande de excelentes peixes, pois eles raramente retiram alguma coisa do mar, porque os peixes do mar são do mesmo tamanho que os da Europa, e consequentemente não vale a pena pescar, de onde resulta que a natureza, na produção de plantas e animais de tão extraordinário tamanho, está totalmente confinada a este continente, cujas razões deixo aos filósofos para tirarem suas conclusões. Entretanto, de vez em quando eles pegam uma baleia que por acaso entrou em colisão com as rochas, a qual as pessoas comuns comem com prazer. Estas baleias que conheci são tão grandes, que dificilmente um homem poderia carregar em seus ombros, e algumas vezes, por curiosidade, elas são levadas em cestos para Lorbrulgrud; eu vi uma delas num prato na mesa do rei, que seria considerada uma raridade, mas não notei se ele gostou, pois eu acho, que, na verdade, o seu tamanho muito grande não o agradou, embora eu tenha visto algumas maiores na Groenlândia.
O país é bem habitado, pois ele abrange cinquenta e uma cidades, quase cem cidades muradas, e uma grande quantidade de aldeias. Para satisfazer meu curioso leitor, creio ser suficiente descrever Lorbrulgrud. A cidade é dividida em duas partes iguais, uma de cada lado do rio que a atravessa. Ela tem mais de oitenta mil casas, e cerca de seiscentos mil habitantes. Ela tem o comprimento de três GLOMGLUNGS (o que equivale a aproximadamente cinquenta e quatro milhas inglesas), e dois e meio de largura, como eu mesmo medi no mapa real feito por ordem do rei, e que fora colocado no chão de propósito para mim, e que media trinta metros de extensão: eu caminhei sobre o diâmetro e a circunferência diversas vezes a pé, e fazendo o cálculo por meio de uma escala, o medí com bastante exatidão.
O palácio do rei não é um edifício regular, mas um conjunto de edificações, aproximadamente com sete milhas de diâmetro: as salas principais geralmente tinham setenta e três metros de altura, sendo a largura e o comprimento proporcionais. Uma carruagem foi cedida para Glumdalclitch e para mim, na qual a sua tutora frequentemente saía para ir à cidade, ou para fazer compras, eu estava sempre em festa, transportado dentro de minha caixa; embora a garota, atendendo a meu pedido, sempre me levasse para sair, e me segurava em sua mão, para que eu visse as casas e as pessoas mais convenientemente, a medida que passeávamos pelas ruas. Calculei que a nossa carruagem era como uma nave de Westminster-hall, mas não totalmente tão alta: entretanto, não posso ser muito preciso.
Um dia a tutora ordenou ao nosso cocheiro para parar em várias lojas de comércio, onde os mendigos, que esperavam uma oportunidade, se amontoaram ao lado da carrugem, e me ofereceram o mais horrível espetáculo que os olhos de um europeu já contemplaram. Havia uma mulher com câncer no seio, inchado até chegar a um tamanho assustador, repleto de buracos, em dois ou três dos quais eu poderia facilmente me arrastar, e cobriam o meu corpo inteiro. Havia um homem com um tumor no pescoço, maior que cinco pacotes de algodão, e um outro, com um par de muletas, cada uma tinha seis metros de altura. Mas a visão mais horrorosa de todas, era o piolho rastejando em suas roupas. Eu podia ver perfeitamente os membros deste piolho a olho nu, com muito mais clareza do que aqueles de um piolho europeu com um microscópio, e seus focinhos com os quais eles rosnavam que nem porco. Eles foram os primeiros que eu já vi, e teria tido curiosidade o bastante para dissecar um deles, caso dispusesse dos instrumentos apropriados, os quais eu infelizmente havia deixado para trás no navio, embora, na verdade, a visão era tão repugnante, que me revirou completamente o estômago.
Além da caixa grande na qual eu geralmente era transportado, a rainha ordenou que uma menor fosse fabricada para mim, maior que três metros e meio quadrados, e três de altura, para comodidade nas viagens, porque a outra era um pouco grande demais para o colo da Glumdalclitch, incômoda na carruagem; ela fora confeccionada pelo mesmo artista, a quem orientei em todo o projeto. Este gabinete para viagens era um perfeito quadrado, com uma janela no meio dos três lados do quadrado, e cada janela tinha grades com arames de aço do lado de fora, para evitar acidentes nas viagens longas. No quarto lado, o qual não tinha janela, dois fortes prendedores foram fixados, através do qual a pessoa que me transportava, quando eu tinha vontade de andar a cavalo, colocava um cinto de couro, e prendia com fivela na sua cintura.
Esta tarefa, quase sempre, era de algum trabalhador leal, no qual eu poderia confiar, caso eu acompanhasse o rei e a rainha em suas viagens, ou estivesse disposto a ver os jardins, ou fazer uma visita a uma grande senhora ou a um ministro do estado na corte, quando Glumdalclitch por acaso não estivesse disponível, pois eu logo comecei a ser conhecido e estimado pelos maiores oficiais, e suponho, mais por causa dos favores de sua majestade, do que por qualquer mérito meu. Nas viagens, quando eu estava cansado da carruagem, um criado a cavalo prendia com fivela a minha caixa, e a colocava sobre uma almofada diante dele, e lá eu tinha a melhor perspectiva do país nos três lados, das minhas três janelas. Eu tinha, neste gabinete, uma cama de campanha e uma rede, pendurada no teto, duas cadeiras e uma mesa, muito bem parafusadas no chão, para evitar que fossem sacudidas com a agitação do cavalo ou da carruagem. E como estava há muito tempo acostumado às viagens marítimas, esses movimentos, embora algumas vezes muito violentos, não me incomodavam muito.
Quando eu desejava ver a cidade, era sempre levado dentro do meu gabinete de viagem; o qual Glumdalclitch segurava em seu colo como uma espécie de liteira aberta, segundo a moda do país, suportado por quatro homens, e auxiliado por outros dois na carruagem da rainha. As pessoas, que frequentemente tinham ouvido falar de mim, ficaram muito curiosas em se amontoar em torno da liteira, e a garota era delicada o bastante para fazer com que os carregadores parassem, e me pegava na mão, para que eu pudesse ser visto mais comodamente.
Eu tinha muita vontade de conhecer o templo principal, e particularmente a sua torre, que é reconhecidamente a mais alta do reino. Um dia combinei com minha babá que me levou até lá, mas na verdade devo dizer que voltei desapontado, porque a altura não passava dos novecentos e catorze metros, contando desde o solo até o topo do pináculo mais alto; o que, dada a diferença de tamanho entre aquelas pessoas e nós da Europa, não é motivo para grande assombro, nem chega proporcionalmente (se estou bem lembrado) à torre do campanário de Salisbury. Mas, para não desprestigiar a nação, à qual, durante a minha vida, me reconhecerei agradecido pelo resto da vida, temos que admitir, que o que falta em altura a esta famosa torre, sobra em beleza e solidez: pois as paredes tem mais de trinta metros de largura, e foram feitas de pedra talhada, cada uma medindo um quadrado com mais de doze metros de largura, e enfeitada por todos os lados com estátuas de deuses e imperadores, esculpidas em mármore, maior que o tamanho natural, e posicionadas em diversos nichos.
Eu medi um dedinho que havia caído de uma dessas estátuas, e que permanecia despercebido entre alguns entulhos, e descobri que ele media exatamente vinte e seis centímetros de comprimento. Glumdalclitch o embrulhou em seu lenço, e o levou para casa em seu bolso, para guardá-lo junto com outras bugigangas que a garota gostava, como fazem as crianças de sua idade.
A cozinha do rei era de fato um belo edíficio, com uma abóbada no topo, e aproximadamente cento e oitenta e dois metros de altura. O grande forno não era tão grande, cerca de dez passos maior, que a cúpola da Catedral de São Paulo em Londres: porque eu a medi com esse propósito depois que retornei. Mas se eu tivesse que descrever a grelha da cozinha, as enormes panelas e chaleiras, aqueles pedaços grandes de carne dando volta nos espetos, além de muitos outros detalhes, talvez dificilmente iriam acreditar em mim; ou ao menos uma crítica severa seriam capaz de pensar que eu aumentei um pouco, como se presume que fazem frequentemente os viajantes. Para evitar esta censura, receio ter incorrido muito no outro extremo; e caso este tratado seja um dia traduzido para o idioma de Brobdingnag (que é o nome daquele reino), e transmitido para lá, o rei e o seu povo teriam razão em se queixar de eu ter cometido uma ofensa para com eles, com uma representação falsa e tão diminuta.
Sua majestade raramente guarda mais que seiscentos cavalos em seus estábulos: geralmente eles tem de dezesseis a dezoito metros de altura. Mas quando ele viaja para o exterior nos dias de festa, ele é esperado, como honra de estado, por uma guarda miliciana de quinhentos cavalos, os quais, de fato, considerei a vista mais espetacular que jamais poderia ser contemplada, até que vi parte do seu exército em batalha, do qual falarei em outra ocasião.
[Várias aventuras que aconteceram ao autor. A execução de um criminoso. O autor mostra suas habilidades em navegação.]
Eu deveria ter tido uma vida muito feliz naquele país, caso o fato de ser pequeno não tivesse me exposto a vários acidentes ridículos e perturbadores; alguns dos quais ousarei relatar. Glumdalclitch frequentemente me levava para os jardins da corte numa caixa menor, e algumas vezes me deixava sair de dentro dela, e me segurava pela mão, ou me colocava no chão para caminhar. Me lembro, antes do anão ser despedido pela rainha, que ele nos seguiu um dia até aqueles jardins, e a minha babá, tendo me colocado no chão, ele e eu estávamos próximos um do outro, perto de algumas macieiras anãs, e eu, no intuito de mostrar minha inteligência, com uma tola alusão entre ele e as árvores, cujas denominações se assemelham no idioma deles como no nosso.
Nisto, o maldoso trapaceiro, vendo a sua oportunidade, quando eu estava passando por debaixo de uma delas, chacoalhou diretamente sobre minha cabeça, fazendo com que doze maçãs, cada uma delas tão grande quanto um barril desses que temos em Bristol, caíssem sobre minhas orelhas, uma delas me acertou nas costas quando eu por acaso estava abaixado, e me atingiu bem na cara, mas eu não me machuquei, e o anão foi perdoado a pedido meu, porque eu havia feito a provocação.
Outro dia, Glumdalclitch me colocara sobre um gramado macio para me divertir, enquanto ela passeava com sua tutora a alguma distância. Nesse momento, caiu subitamente uma violenta chuva de granizo, onde eu, devido à força do temporal, imediatamente fui atirado ao chão: e quando estava no chão, as pedras de granizo caíam com tremendo impacto por todo o meu corpo, como se fosse golpeado por bolas de tênis; entretanto, eu conseguí me arrastar gatinhando, e me protegí, deitando de bruços, no costa do sotavento de um canteiro com limão-tomilho, mas fiquei tão inteiramente machucado dos pés à cabeça, que eu não conseguí sair pra fora durante dez dias.
E nem é isso que mais me causou assombro, porque a natureza, nesse país, observadas as mesmas proporções em todas as situações, uma pedra de granizo é quase mil e oitocentas vezes maior que na Europa, e isso eu posso afirmar por experiência, tendo sido tão curioso em pesar e medí-las.
Mas um acidente mais perigoso aconteceu comigo no mesmo jardim, quando a minha pequena babá, acreditando que ela havia me colocado num lugar seguro (o que sempre a incentivei a fazer isso, para que eu pudesse desfrutar de meus próprios pensamentos), e tendo esquecido a minha caixa em casa, para evitar o trabalho de carregá-la, foi para uma outra parte do jardim com a sua tutora e algumas damas de sua amizade.
Enquanto ela estava ausente, e longe o bastante para ser ouvida, um cachorro branco da raça spaniel que pertencia a um dos jardineiros chefes, tendo penetrado acidentalmente no jardim, chegou sem querer perto do lugar em que me encontrava: o cão, seguido pelo faro, veio direto e me pegou na boca, correu em direção ao seu amo abanando a cauda, e suavemente me colocou no chão.
Por sorte ele fora tão bem treinado, que eu fui carregado entre seus dentes sem o menor arranhão, ou mesmo sem rasgar minhas roupas. Mas o pobre jardineiro, que me conhecia bem, e era muito gentil para comigo, ficou muito assustado: ele gentilmente me pegou com as duas mãos, e me perguntou como eu estava? Mas eu estava tão amedrontado e sem fôlego, que eu não conseguí dizer nem uma palavra.
Em alguns minutos eu voltei a mim, e ele me levou em segurança para a minha pequena babá, que, nesse momento, havia retornado ao lugar onde ela me deixara, e estava desesperada por causa do meu desaparecimento, e a falta de respostas quando ela chamava. Ela repreendeu severamente o jardineiro por causa do seu cachorro. Mas o assunto foi abafado, e a corte nunca veio a saber do fato, pois a garota tinha medo que a rainha ficasse brava; e em verdade, com relação a mim mesmo, achei que não seria bom para a minha reputação, que tal história se alastrasse.
Este acidente determinou absolutamente que Glumdalclitch nunca confiasse em me deixar fora do alcance de sua visão nas próximas vezes que saímos. Durante muito tempo fiquei com receio desta decisão, e portanto, escondí dela algumas aventuras infelizes, que me aconteceram naqueles momentos que eu ficara sozinho. Uma vez, um gatinho, que rondava pelo jardim, inclinou-se para cima de mim, e se eu não tivesse decididamente sacado o meu cutelo, e corrido para debaixo de um espesso monte de ripas, ele certamente teria me levado para longe com suas patas.
Numa outra ocasião, caminhando para o topo de um pequeno montículo, caí até o pescoço num buraco, que o animal havia retirado a terra, e tive de inventar uma mentira, que não vale a pena lembrar, como desculpa por ter danificado as minhas roupas. Eu também quebrei a minha canela da perna direita na casca de um caracol, que tropecei por acaso, enquanto andava sozinho e pensava na minha pobre Inglaterra.
Não sei o que era maior se o meu prazer ou o meu terror em observar, naqueles passeios solitários, que os pássaros menores pareciam não ter nenhum medo de mim, mas saltitavam perto de mim a uma distância de um metro, procurando vermes e outros alimentos, com tanta indiferença e segurança como se não houvesse nenhuma criatura perto deles. Lembro-me quando um tordo teve a confiança de arrancar de minha mão, com seu bico, um pedaço de bolo que Glumdalclitch tinha me dado para meu café da manhã.
Quando eu tentava pegar um destes pássaros, eles atrevidamente se voltavam contra mim, tentando bicar meus dedos, o que eu não ousava colocar-me dentro do alcance deles, e então eles saltavam de volta despreocupados, caçando vermes ou caracóis, como faziam antes. Mas um dia, peguei um grosso cacetete e atirei, com todas as minhas forças e em cheio, em um pintarroxo, que o derrubei, e pegando-o pelo pescoço com minhas duas mãos, corrí com ele triunfante em direção à minha babá.
Contudo, o pássaro, que estava apenas atordoado, recuperou-se e me deu tantos tapas na orelha com suas asas, nos dois lados da minha cabeça e no corpo, embora eu tentasse mantê-lo a um braço de distância, e ficasse fora do alcance de suas garras, que eu por vinte vezes pensei em deixá-lo fugir. Mas logo um dos nossos criados veio em meu auxílio, e torceu o pescoço do pássaro, e nós o comemos no jantar do dia seguinte por ordem da rainha. Este pintarroxo, pelo que posso me lembrar, parecia um pouco maior que um cisne inglês.
As damas de honra convidavam sempre Glumdalclitch para visitá-las em seus apartamentos, e queriam que ela me levassse junto, com o propósito de se divertirem em me ver e tocar. Normalmente elas me deixavam nu da cabeça aos pés, e me deitavam horizontalmente em seus peitos; o que me desagradava muito porque, para dizer a verdade, um cheiro muito forte saía de suas peles, o qual não vou mencionar, nem pretendo, em detrimento daquelas formidáveis senhoras, por quem tenho todo respeito; mas eu compreendo que o meu sentido era mais aguçado devido ao meu pequeno tamanho, e que aquelas ilustres pessoas não eram desagradáveis para seus amantes, ou uns para os outros, do que são conosco as pessoas com as mesmas características na Inglaterra.
E afinal de contas, eu achava o cheiro natural delas mais suportável, do que quando elas usavam perfumes, e por causa disso desmaiei imediatamente. Lembro-me ainda hoje, que uma amiga íntima de Lilipute, tomou a liberdade em um dia quente, depois de um dia de bastante treinamento físico, de se queixar de um desagradável odor que saía de mim, embora estivesse tão mal cheiroso daquele jeito, assim como todas as partes sexuais: mas eu suponho que sua capacidade de sentir cheiro era tão boa em relação a mim, como a minha em relação à aquele povo. E nesse aspecto, en não posso deixar de fazer justiça à rainha, minha ama, e Glumdalclitch, minha babá, cujas pessoas eram tão agradáveis como qualquer uma das damas da Inglaterra.
O que me causou maior desconforto entre aquelas damas de honra (quando a minha babá me levou para visitá-las) foi, vê-las me usarem sem qualquer formalidade, como uma criatura que não tivesse nenhuma consequência: pois elas ficavam totalmente sem roupa, e vestiam suas blusas na minha presença, enquanto permanecia no toucador delas, de frente para seus corpos nus, o que devo considerar era uma visão longe de ser tentadora, ou de me causar qualquer outra emoção, além de horror e repugnância: a pele delas parecia ser tão áspera e irregular, com uma gama de cores tão diversificada, quando eu as via de perto, com uma verruga aqui e ali tão grande quanto um boné, e cabelos saindo delas tão grossos quanto barbantes, para não dizer mais nada sobre o resto de suas pessoas.
Nem tinham eles escrúpulo, quando eu estava por perto, em despejar tudo que haviam bebido, na quantidade de um ou dois tonéis, em um recipiente que cabia mais de três tonéis. A mais linda daquelas damas de honra, uma garota de dezesseis anos, agradável e divertida, algumas vezes me punha sentado em um de seus mamilos, com muitos outros objetos, que o leitor irá me desculpar por não entrar nesses detalhes. Mas isso me desagradava tanto, que eu insisti a Glumdalclitch para inventar alguma desculpa para não ver aquela garota nunca mais.
Um dia, um jovem cavalheiro, que era sobrinho da tutora da minha babá, veio e insistiu para que as duas assistissem a uma execução. Tratava-se de um homem, que havia assassinado um dos amigos íntimos daquele cavalheiro. Glumdalclitch aproveitou a companhia, muito embora contra sua própria índole, pois ela tinha naturalmente um bom coração: e, quanto a mim, embora detestasse esse tipo de espetáculos, a minha curiosidade me tentava ver algo que eu achasse que fosse extraordinário. O malfeitor foi colocado num patíbulo levantado para aquele fim, e sua cabeça foi cortada num só golpe, com uma espada de doze metros de comprimento.
As veias e artérias jorravam em uma quantidade de sangue tão assustadora, e tão alto para cima, que o grande Fontanário de Versalhes[1] não lhe podia ser comparado pelo tempo que ele durou: e a cabeça, quando ela caiu sobre o piso do patíbulo, deu um salto tão alto e me assustou, embora estivesse no mínimo a quase meia milha inglesa de distância.
A rainha, que sempre me ouvia falar de minhas aventura marítimas, e fazia uso de todos os recursos para me divertir quando eu estava triste, me perguntava se eu sabia como manejar uma vela ou um remo, e se um pouco de exercício com remos não seria apropriado para a minha saúde? Respondi, que conhecia muito bem todos os dois: pois embora minha função correta fosse atuar como cirurgião ou médico no navio, sempre e durante algum tempo eu fui forçado a trabalhar como marinheiro comum. Mas eu não conseguia entender como isso poderia ter sido feito nesse país, onde a menor balsa era equivalente a um navio de guerra de primeira linha dos nossos, e um barco com o tamanho que eu pudesse dominar jamais poderia percorrer qualquer um de seus rios.
Sua majestade, a rainha, disse, que se eu desenhasse o modelo de um barco, o seu carpinteiro poderia fabricá-lo, e ela arranjaria um lugar para eu navegar. O cara era um habilidoso marceneiro, e seguindo minhas instruções, em dez dias, ele terminou um barco de passeio com todos os acessórios, amplo o bastante para conter oito europeus.
Quando foi terminado, a rainha ficou tão feliz, que ela correu para mostrar ao rei, o qual mandou que fosse colocado numa cisterna cheia de água, portando eu dentro dele, à titulo de experimentação, onde eu não conseguia manejar minhas duas catraias, ou pequenos remos, por falta de espaço. Mas a rainha tinha antes pensado num outro projeto. Ela mandou que o carpinteiro fizesse uma cuba de madeira com mais de noventa metros de comprimento, quinze de largura, e quase dois metros e meio de profundidade, o qual, era revestido de piche, para evitar vazamentos, e foi colocado no chão, ao longo da parede, numa sala externa do palácio.
Possuía uma torneira no fundo para saída da água, quando começasse a juntar bolor, e dois servidores podiam rapidamente enchê-la em meia hora. Nela eu costumava remar para minha própria diversão, bem como diversão da rainha e de suas damas, que se achavam entretidas com minha habilidade e minha agilidade. Algumas vezes eu levantava a vela, e assim eu ficava somente dirigindo, enquanto as damas criavam tempestades com seus leques, e quando elas ficavam cansadas, algumas de suas acompanhantes sopravam a vela para que o barco velejasse para a frente, enquanto eu mostrava minha arte dirigindo ora a estibordo[2], ora a bombordo[3], como preferisse. Quando me cansava, Glumdalclitch sempre me levava de volta o meu barco para o seu gabinete, e me pendurava num prego para secar.
Neste exercício eu sofri um acidente certa vez, o qual poderia ter me custado a vida, pois depois de uma das damas de companhia ter colocado o meu barco no cocho, a tutora que acompanhava Glumdalclitch me levantou muito oficiosamente, para me posicionar dentro do barco: mas infelizmente eu escorreguei por entre seus dedos, e teria sem dúvida caído de uma altura de doze metros do chão, se, pela maior sorte do mundo, eu não tivesse sido aparado por um alfinete grudado no corpete de uma bondosa dama, a cabeça do alfinete passou entre a minha camisa e o cós do meu traseiro, e assim eu fiquei preso pendurado no ar, até que Glumdalclitch correu para me acudir.
Numa outra ocasião, uma das empregadas, cuja função era encher a minha cuba a cada três dias com água fresca, foi tão descuidada a ponto de permitir que uma rã (sem perceber) saltasse de dentro do balde. A rã ficou escondida até que eu fosse colocado dentro do meu barco, mas depois, encontrando um lugar de descanso, subiu até lá, e fez com que ele ficasse muito inclinado de um lado, e aí eu fui obrigado a equilibrá-lo usando o meu peso do outro lado, para impedir que ele virasse.
Quando a rã entrou, ela saltou de uma só vez metade do comprimento do barco, e depois sobre a minha cabeça, para a frente e para trás, sujando a minha cara e minha roupa com seu repugnante lodo. O tamanho gigantesco de suas feições faziam-na parecer o animal mais deformado que se pode imaginar. No entanto, pedi a Glumdalclitch para que me deixasse me virar sozinho com ela. Golpeei-a durante algum tempo com um dos meus remos, forçando-a finalmente a saltar para fora do barco.
Mas o maior perigo que passei naquele reino, foi quando um macaco, que pertencia a um dos funcionários que trabalhavam na cozinha. Glumdalclitch havia me trancado em seu gabinete, enquanto ela saiu para tratar de algum negócio, ou fazer uma visita. Como o tempo estava muito quente, a janela do gabinete foi deixada aberta, bem como as janelas e a porta da minha caixa maior, na qual normalmente eu ficava, porque era mais larga e mais confortável.
Assim que me sentei tranquilamente em minha mesa, ouvi que alguma coisa saltava próximo à janela do gabinete, e ficava pulando de um lado para outro: embora eu tivesse me assustado, me atrevi a dar uma olhada, mas sem sair do meu banco, e então vislumbrei este divertido animal dando cambalhotas e pulando pra cima e pra baixo, até que finalmente chegou perto de minha caixa, a qual ele pareceu ver com grande alegria e curiosidade, soltando gritos na porta e em todas as janelas.
Retirei-me para o canto mais afastado da minha sala, ou caixa, mas o macaco olhando para todos os lados, me assustou de tal modo, que me faltou presença de espírito para me esconder debaixo da cama, como eu certamente teria feito. Depois de algum tempo soltando gritos, brincando e fazendo caretas, ele finalmente me espiou, e esticando uma de sua patas para dentro da porta, como faz um gato quando brinca com um camundongo, embora eu mudasse de lugar para evitá-lo, ele finalmente prendeu a dobra do meu casaco (que sendo feito de seda daquele país, era muito grossa e resistente), e me arrastou para fora.
Ele me pegou com sua pata dianteira direita e me segurou como uma babá faz com uma criança quando ela lhe dá de mamar, do mesmo modo como tinha presenciado algumas criaturas fazerem com um gatinho na Europa, e quando oferecí resistência ele me chacoalhou tão forte, que eu achei mais sensato me submeter.
Tenho fortes razões para acreditar que ele me pegou como se eu fosse uma das crias de sua espécie, porque ele costumava tocar gentilmente o meu rosto com sua outra pata. Estava ele se divertindo quando foi interrompido por um ruído na porta do gabinete, como se alguém a estivesse abrindo: então ele rapidamente saltou em direção à janela por onde havia entrado, e então seguindo por trilhas e sarjetas, caminhando sobre três patas, e me segurando com a quarta, até que ele subiu um telhado que estava próximo de nós.
Ouvi quando Glumdalclitch soltou um grito estridente no momento que ele estava me levando. A coitadinha estava praticamente distraída: aquela parte do palácio era só confusão, os servidores corriam pelas escadas, o macaco foi visto por centenas de pessoas da corte, sentado no alto de um edifício, me segurando como um garoto em uma das patas dianteiras, e me alimentando com a outra, empanturrando a minha boca com alguns alimentos que ele tinha retirado da sacola de um dos indivíduos do seu bando, e me dando palmadinhas quando eu não queria comer; o que fazia com que muitos da plebe que estavam em baixo não pudessem deixar de rir, nem, acredito eu, devam eles serem censurados por isso, sem motivo, a situação era ridícula o bastante para todo mundo menos para mim. Algumas pessoas atiravam pedras, esperando fazer com que o macaco descesse, mas isso foi terminantemente proibido ou caso contrário, muito provavelmente, meus miolos seriam atingidos.
Escadas foram dispostas, e montadas por vários homens, e tendo observado o macaco, e achando-se quase alcançado, incapaz de correr muito com suas três patas, me soltou na calha de uma telha, e fugiu. Alí fiquei sentado durante algum tempo, a quinhentos metros do chão, esperando que a qualquer momento fosse atirado para baixo pelo vento, ou caído por entontecimento, e vir rolando pelas canaletas até o beiral, mas um bom sujeito, um dos cavaleiros da minha babá, subiu, e me colocou dentro de um de seus bolsos traseiros, e me desceu com segurança.
Eu havia quase me afogado com aquela coisa nojenta que o macaco havia enfiado na minha garganta: mas a minha querida e pequena babá a arrancou da minha boca com uma pequena agulha, e então eu comecei vomitar, o que me causou grande alívio. Mas eu estava tão fraco e machucado de lado com os chacoalhões feitos pelo odioso animal, que eu fui obrigado a ficar de cama durante quinze dias. O rei, a rainha e toda a corte, mandavam todos os dias perguntar sobre a minha saúde; e sua majestade me fez várias visitas durante o período de convalescença. O macaco foi morto, e uma ordem foi publicada, para que animal algum fosse permitido em torno do palácio.
Quando estive diante do rei depois que me recuperei, para retribuir-lhe os agradecimentos pelos seus favores, ele ficou muito feliz em se juntar a mim nesta aventura. Ele me perguntou, “quais foram meus pensamentos e preocupações, enquanto eu era refém das patas do macaco; se eu havia gostado do alimento que ele me oferecera, seu modo de alimentar, e se o ar fresco sobre o telhado teriam afetado meu estômago. Ele queria saber, o que eu teria feito numa situação como esta em meu próprio país.” Eu disse à sua majestade, “que na Europa nós não tínhamos macacos, exceto se eram trazidos como curiosidades de outros países, e tão pequenos, que eu poderia lidar com uma dúzia deles juntos, caso eles quisessem me atacar.”
“E com relação à aquele monstruoso animal com o qual havia me envolvido ultimamente (ele era de fato tão grande quanto um elefante), caso os meus temores tivessem me permitido em pensar em algo como usar o meu cutelo,” (olhando orgulhosamente e gesticulando como se segurasse um punhal enquanto falava) “quando ele colocou sua pata dentro da caixa onde estava, talvez eu devesse tê-lo machucado tanto, a ponto de expulsá-lo mais rapidamente do que quando havia colocado a pata dentro.” E isso eu dizia num tom firme, como uma pessoa que estivesse com ciúmes, receoso de que sua coragem fosse colocada em prova.
Contudo, as minhas palavras não tiveram nenhum efeito, exceto um riso ensurdecedor, que com todo o respeito que devia à sua majestade e a todos aqueles que estavam por perto, não consegui fazê-los conter o riso. Isto me fez refletir, como é inútil a tentativa para um homem tentar ser respeitado em meio aqueles que estão fora do seu meio de igualdade ou de comparação com ele. No entanto, pude observar muito frequentemente a virtude do meu comportamento na Inglaterra quando de meu retorno; onde um pequeno malandro desprezível, sem qualquer título de nascimento, pessoal, de talento ou de bom senso, presumivelmente será olhado com alguma importância, e se colocará em pé de igualdade com as maiores pessoas do reino.
E todos os dias eu oferecia à corte alguma história engraçada: e Glumdalclitch, embora ela me amasse com excessos, era esperta o bastante para informar a rainha, sempre que eu cometia alguma travessura que ela acreditava que fosse divertida para a sua majestade. A garota, que estava um pouco entediada, foi levada pela sua tutora para tomar ar a quase uma hora distância, ou a trinta milhas da cidade. Elas desceram da carruagem perto de uma pequena trilha no campo, e Glumdalclitch desatrelou a minha caixa de viagem, para que eu saísse e fizesse um passeio.
No caminho encontramos um monte com esterco de vaca, e eu sentindo a necessidade de colocar a prova a minha agilidade, tentei saltar sobre ele. Tomei distância, mas infelizmente o meu salto foi curto e caí bem de joelhos. Caminhei com alguma dificuldade, e um dos cavaleiros me limpou o melhor que pode com seu lenço, mas eu estava todo enlameado, e a minha babá me prendeu dentro da caixa, até retornarmos para casa; onde a rainha foi imediatamente informada do acontecido, e os cavaleiros espalharam a notícia para toda a corte: de modo que durante alguns dias toda a alegria foi por minha causa.
[Várias ideias do autor para agradar ao rei e à rainha. Ele mostra sua habilidade para a música. O rei quer saber mais sobre o estado da Europa, e o autor faz um relato para ele. As observações do rei a esse respeito.]
Eu costumava participar, uma ou duas vezes por semana, do café da manhã com o rei, e por diversas vezes o encontrei na barbearia, o que a princípio era horrível de se ver, pois a navalha era duas vezes mais comprida que uma foice. Sua majestade, conforme o costume do país, se barbeava somente duas vezes por semana. Uma vez, convenci o barbeiro a dar para mim um pouco da água ou da espuma do sabão, de onde retirei quarenta ou cinquenta cerdas de cabelo do rei.
Peguei então um pedaço de madeira fina, e a cortei como a parte de trás de um pente, fazendo vários buracos nela igualmente distanciadas com uma pequena agulha que eu consegui com a Glumdalclitch. Fixei as cerdas mecanicamente, raspei e as desbastei nas pontas com minha faca, tendo fabricado um pente razoável, o qual se tornou um objeto útil, porque o meu estava com os dentes todos quebrados, e estava praticamente sem condições de uso: nem conhecia eu qualquer artista daquele país tão bom e preciso, que pudesse me confeccionar outro igual.
E isso fez me lembrar de uma diversão, onde passei muitas horas de lazer. Pedi a uma das criadas da rainha para que guardasse para mim alguns cabelos da sua majestade, e que depois de algum tempo já os tinha em grande quantidade; e ao consultar o fabricante de gabinetes, que era meu amigo, e que havia recebido ordens gerais para fazer alguns serviços para mim, pedi a ele que me fabricasse duas estruturas de cadeiras, não maiores do que aquelas que eu tinha em minha caixa, fizesse alguns buracos com um furador em torno das partes onde eu desenhei os encostos e os assentos, e através deste buracos trancei os cabelos mais fortes que pude encontrar, assim como as cadeiras feitas de bambu que temos na Inglaterra.
Quando ficaram prontas, eu as presenteei à sua majestade, a rainha, que as colocou em seu gabinete, e costumava mostrá-las como curiosidade, como de fato eram uma maravilha para todos aqueles que as viam. A rainha me pediu para sentar em uma dessas cadeiras, mas me recusei terminantemente a obedecê-la, protestando que preferia morrer mil vezes do que colocar uma parte indigna do meu corpo sobre aqueles preciosos cabelos, que antes adornavam a cabeça de sua majestade.
Com alguns dos cabelos (sendo eu um eterno gênio da mecânica) fiz também uma elegante bolsinha, com mais de um metro e meio de comprimento, com o nome de sua majestade escrito com letras douradas, e que eu dei de presente a Glumdalclitch, com o consentimento da rainha. Para dizer a verdade, ela era mais para ser mostrada do que para ser usada, não podendo suportar nem mesmo o peso das moedas maiores, e portanto, ela não guardava nada nela, mas somente pequenos brinquedos que as garotas adoram.
O rei, que adorava música, oferecia frequentes concertos na corte, nos quais eu algumas vezes era levado, e colocado dentro da minha caixa em cima da mesa para ouví-las: mas o barulho era tão alto que eu dificilmente conseguia diferenciar os sons. Tenho a certeza de que todos os tambores e trombetas do exército real, rufando e soando juntos perto de seus ouvidos, não conseguiriam se igualar a esse ruído. O meu hábito era manter a minha caixa toda afastada quanto possível do lugar onde os músicos se sentavam, depois fechava as portas e janelas, baixava as cortinas das janelas, somente assim conseguia achar a música menos desagradável.
Quando era jovem, eu havia aprendido a tocar um pouco de espineta[1]. Glumdalclitch tinha uma em seu quarto, e um professor vinha duas vezes por semana para lhe ensinar: eu chamo esse instrumento de espineta, porque ele de certa forma se parece com aquele instrumento, e era tocado da mesma maneira. Uma ideia veio na minha cabeça, que eu deveria entreter o rei e a rainha com uma melodia inglesa tocada nesse instrumento.
Mas isso me pareceu extremamente difícil, porque a espineta tinha quase dois metros de comprimento, cada tecla tinha quase trinta centímetros de largura, de modo que com meus braços estendidos eu não conseguia alcançar mais do que cinco teclas, e para pressioná-las era necessário um golpe muito forte com minhas mãos, o que seria um trabalho muito grande para pouco resultado.
O método que eu inventei foi este: preparei dois bastões redondos, quase do tamanho de um pedaço de pau comum, eles eram mais grossos numa extremidade do que na outra, e revesti as extremidades mais grossas com a pele de um rato, de modo que batendo levemente neles eu não danificasse a superfície das teclas nem houvesse interrupção dos sons.
Um banco foi colocado diante da espineta, um metro e vinte centímetros abaixo das teclas, e eu fui colocado de pé sobre o banco. Eu corria lateralmente a ele, para lá e para cá, tão rápido quanto podia, tocando as teclas apropriadas com meus dois bastões, e consegui tocar uma jiga inglesa[2][3], para grande satisfação de ambas as majestades, mas esse fora o exercício mais violento que eu já fizera, e além disso eu não conseguia tocar mais que dezesseis teclas, nem consequentemente, conseguia tocar sons baixo e agudo ao mesmo tempo, como fazem outros artistas, sendo isso um grande desprestígio para o meu desempenho.
O rei, que como eu tinha observado, era um príncipe de excelente entendimento, frequentemente mandava que eu fosse trazido em minha caixa, e colocado em cima da mesa do seu gabinete: ele então ordenava que eu trouxesse uma das minhas cadeiras para fora da caixa, e me sentasse a trezentos metros de distância do topo do gabinete, o que me trazia quase ao nível do seu rosto.
Desta maneira eu conversava durante horas com ele. Um dia, tomei a liberdade de dizer à sua majestade, “que o desprezo que ele tinha em relação a Europa e ao resto do mundo, não pareciam compatíveis com as excelentes qualidades de pensamento que o distinguiam, que a razão não cresce com o tamanho do corpo, pelo contrário, nós observamos em nosso país, que as pessoas mais altas geralmente são as menos criativas; e que entre outros animais, as abelhas e as formigas tinham a reputação de serem mais ativas, hábeis e sagazes, do que muitos dos tipos de maior porte, e que por menos importância que ele tenha dado à minha pessoa, eu esperava poder viver e oferecer à sua majestade grandes serviços”.
O rei me ouviu com atenção, e começou a ter uma opinião muito melhor sobre mim do que tivera antes. Ele me pediu “que eu fizesse para ele um relato tão exato quanto possível a respeito do governo da Inglaterra, porque os príncipes normalmente são muito orgulhosos de seus costumes (pois assim pensava ele sobre outros monarcas, segundo meus diálogos anteriores), ele ficaria muito feliz em ouvir qualquer coisa que pudesse merecer uma imitação”.
Imagine, gentil leitor, quantas vezes desejei eu ter a oratória de Demóstenes ou de Cícero, que me possibilitasse louvar minha querida terra natal em um estilo a altura do seu mérito e da sua felicidade.
Comecei meu discurso informando sua majestade, que nossos domínios eram constituídos por duas ilhas, as quais eram compostas por três reinos poderosos, sob o domínio de um único soberano, além de nossas plantações na América. Durante muito tempo dediquei-me à fertilidade do solo, e a verificação da temperatura do nosso clima. Falei depois amplamente sobre a constituição do parlamento inglês, constituído parcialmente por um quadro de pessoas ilustres chamado de “Casa dos Pares”, pessoas do sangue mais nobre, e com os maiores patrimônios e os mais antigos. Relatei que cuidados extremos eram tomados com a educação das artes e das armas, de modo a qualificá-los como conselheiros tanto do rei como do reino, para ter participação na legislatura, para serem membros da mais alta corte do judiciário, do qual não poderia haver apelação, e para serem campeões sempre dispostos a defender o príncipe e o país, com seu valor, conduta e fidelidade.
E que estes eram os adornos e baluartes do reino, dignos seguidores dos seus ancestrais mais renomados, cuja honra tinha sido a recompensa por sua virtude, e do qual a posteridade nunca se soube ter-se corrompido. A estes se juntavam várias pessoas santas, como parte dessa assembleia, sob o título de bispos, cuja missão particular era cuidar da religião, e daqueles encarregados da educação das pessoas que viviam lá.
Estes eram procurados e encontrados por toda a nação, pelo príncipe e pelos seus mais sábios conselheiros, dentre aqueles que pertenciam ao sacerdócio, como eram mui merecidamente distinguidos pela santidade de suas vidas, e o profundo conhecimento de sua erudição, os quais eram de fato os pais espirituais do clero e do povo.
Que a outra parte do parlamento era constituída por uma assembleia chamada de “Casa dos Comuns”, cujos membros eram todos cavalheiros distintos, escolhidos livremente e eleitos pelo próprio povo, por suas conhecidas habilidades e amor pelo seu país, representando a sabedoria de toda a nação. E que estes dois corpos faziam parte da mais augusta assembleia da Europa, a qual, em comunhão com o príncipe, toda a legislação era consignada.
Desci então até as cortes de justiça, por meio da qual os juízes, esses veneráveis sábios e intérpretes da lei, reinavam, para determinar os discutidos direitos e propriedades dos homens, bem como para punição do vício e proteção do inocente. Eu mencionei a sensata administração do nosso tesouro, o valor e as conquistas de nossas forças, por mar e por terra.
Calculei o número do nosso povo, reconhecendo quantos milhões deveria haver de cada seita religiosa, ou do partido político em nosso país. Não omiti nem sequer os nossos esportes e passatempos, ou qualquer outro detalhe que eu achei que poderia contribuir para a honra do meu país. E terminei tudo com um breve relato histórico de assuntos e acontecimentos da Inglaterra durante os cem últimos anos.
Esta conversação não terminou com menos de cinco audiências, cada uma com várias horas, e o rei ouviu tudo com grande atenção, frequentemente tomando notas de tudo que eu falava, bem como dos lembretes para todas as perguntas que ele pretendia me fazer.
“Quando eu havia concluído estes longos discursos, sua majestade, o rei, numa sexta audiência, consultando suas anotações, apresentou muitas dúvidas, consultas e objeções sobre cada artigo. Ele perguntou, “Que métodos eram usados para cultivar as mentes e os corpos dos nossos jovens da nobreza, e a que tipo de atividade eles normalmente se dedicavam em seus primeiros períodos apropriados para a educação em suas vidas?”
“Que medidas eram tomadas para integrar aquela assembleia, quando uma família nobre se extinguia? Que qualificações eram necessárias para aqueles que eram educados para se tornarem os novos senhores: e se o humor do príncipe, uma quantia em dinheiro a uma dama da corte ou a um primeiro ministro, ou o plano de reforçar um partido em oposição ao interesse público, alguma vez, fora a razão para esses progressos?”
“Qual o grau de conhecimento que estes senhores possuíam com relação às leis do país, e como eles conseguiam com isso decidir os direitos do seus compatriotas como último recurso? Se eles eram sempre isentos da avareza, parcialidade, ou necessidade, onde o suborno, ou algum outro método sinistro, não pudesse ter lugar entre eles?”
“Se aqueles senhores santos de quem falei eram promovidos a esses postos em razão do conhecimento que possuíam em matérias religiosas, e por causa do modo santo que levavam suas vidas, e não haviam sido cúmplices de sua época, quando ocupavam essa função como sacerdotes; ou sido capelões servis e corruptos de algum nobre, cujas opiniões continuaram a seguir servilmente, depois que foram admitidos nessa assembleia?”
“Depois ele quis saber, “Que mecanismos eram empregados para eleger aqueles a quem eu chamava de Membros da Casa dos Comuns: se um estrangeiro, com uma bolsa recheada, não poderia influenciar os eleitores vulgares a votar neles em prejuízo de seu próprio líder, ou do cavalheiro mais importante da vizinhança? Como é que pode, que as pessoas fossem tão violentamente inclinadas a entrar nessa assembleia, que eu acreditava ser muito difícil e caro, frequentemente, com a falência de suas famílias, sem receber qualquer salário ou pensão? pois isto exigia um esforço de virtude e de espírito público tão exaltado, que sua majestade parecia duvidar que isso não pudesse ser sempre sincero.”
E ele queria saber, “se tais zelosos cavalheiros poderiam ter algumas perspectivas de serem reembolsados pelas acusações e problemas a que se submetiam ao se sacrificar pelo bem público sob os desmandos de um príncipe fraco e vicioso, mancomunado com um ministério corrupto?” Ele multiplicava suas perguntas, e me questionou inteiramente para cada aspecto dessa questão, propondo inúmeras investigações e objeções, as quais não acho prudente ou conveniente repetir.
Sobre o que eu disse com relação às cortes de justiça, sua majestade quis ser atendido em diversos aspectos: e nesse assunto eu estava melhor capacitado a responder, tendo sido anteriormente quase levado à ruína devido a um longo processo de chancelaria, do qual tive que pagar as custas. Ele perguntou, “Qual o tempo que normalmente era gasto na determinação daquilo que era certo ou errado, e qual o valor das despesas? Se os advogados e oradores tinham a liberdade de defender causas reconhecidamente injustas, vexatórias ou opressivas?”
“Qual partido, religioso ou político, observou-se como sendo de algum peso na escala da justiça? Se os oradores de defesa eram pessoas acusadas no reconhecimento geral da igualdade, ou somente nos costumes das províncias, nacionais e outros locais? Se eles ou seus juízes tinham algum papel na redação daquelas leis, às quais se atribui a liberdade de interpretar e de explicar com bem entendem?”
“Se eles foram, em diferentes épocas, a favor ou contra a mesma causa, e se fatos anteriores eram mencionados para provarem opiniões contrárias? Se esse grupo era rico ou pobre? Se eles receberam alguma recompensa pecuniária para pleitear ou apresentar suas opiniões? E particularmente, se eles eram admitidos como membros no senado do povo?”
Passou em seguida a considerar a administração do nosso tesouro; e disse, “que pensava que minha memória havia falhado, porque eu calculava os nossos impostos em cerca de cinco ou seis milhões por ano, e quando fiz menção aos gastos, ele descobriu que algumas vezes esse valor excedia para mais que o dobro, pois as anotações que ele havia feito eram muito particularmente sobre este aspecto, porque ele esperava, segundo me disse, que o conhecimento de nossa conduta lhe teria sido útil, e que ele não poderia ter-se enganado em seus cálculos”.
“Porém, se tudo que havia lhe dito era verdade, ele ainda estava supreso como um reino poderia gastar mais que o seu estado, como se fosse uma pessoa particular.” Ele me perguntou, “quem eram nossos credores, e onde encontrávamos dinheiro para pagá-los?” Ele ficou espantado quando me ouviu falar das guerras caras e onerosas, “que certamente se tratava de um povo briguento, ou vivíamos perto de vizinhos muito perversos, e que os nossos generais deviam ser mais ricos que nossos reis.”
Ele perguntou, “que negócios tínhamos além de nossas próprias ilhas, que não fosse a renda obtida com o comércio, tratados ou a defesa de nossas costas com a nossa frota?” Além de tudo isso, ele ficou surpreso quando me ouviu falar de um exército mercenário permanente, durante os períodos de paz, e entre um povo livre. Ele disse, “que se fôssemos governados com nosso próprio consentimento, na pessoa de nossos representantes, ele não poderia imaginar a quem temeríamos, ou contra quem havíamos de lutar, e queria ouvir a minha opinião, se a casa de um homem em particular não poderia ser por ele melhor defendida, ou por seus filhos, e família, do que por uma dúzia de aproveitadores, apanhados por acaso nas ruas, a baixos salários, e que poderiam receber cem vezes mais degolando cabeças?”
Ele riu de minha “estranha forma de calcular”, como tinha satisfação em chamar isso, “ao admitir os números de nosso povo por meio de um cálculo das inúmeras seitas que havia entre nós, tanto religiosas como políticas.” Ele disse, “que não compreendia os motivos porque aqueles que mantém opiniões prejudiciais ao público, são obrigados a mudar, ou não deveriam ser obrigados a ocultar isso. E assim como seria tirania de qualquer governo exigir os primeiros, da mesma forma seria fraqueza não coagir os segundos: pois a um homem poderia lhe ser permitido guardar venenos em seu armário, mas proibido de vendê-los por cordialidade.”
Ele observou “que entre as diversões da alta nobreza e da baixa nobreza, eu havia mencionado os jogos: ele queria saber com que idade este entretenimento era geralmente praticado, e quando isso foi estabelecido; quanto do tempo deles era empregado, e se isso alguma vez passara dos limites a ponto de afetar as suas vidas; se pessoas mesquinhas e viciosas, em virtude de suas habilidades nessa arte, não poderiam acumular riquezas imensas, e algumas vezes criar a dependência dentro da própria nobreza, bem como habituá-los às más companhias, afastá-los inteiramente da melhoria de suas vontades, e forçá-los, em razão das perdas adquiridas, a aprender e praticar essa malfazeja habilidade em relação a outros?”
Ele ficara totalmente espantado com o relato histórico que fiz das coisas que nos aconteceram durante o último século, e afirmou solenemente que “tudo isso era apenas um acervo de conspirações, rebeliões, assassinatos, massacres, revoluções, exílios, e dos mais horríveis efeitos que a avareza, o partidarismo, a hipocrisia, a perfídia, a crueldade, a violência, a loucura, o ódio, a inveja, a luxúria, a maldade, e a ambição poderiam produzir.”
Sua majestade, num outro encontro particular, fez o maior esforço para recapitular a essência de tudo quanto lhe apresentara; comparou as perguntas que fez com as respostas que eu havia dado, e depois, pegando-me em suas mãos, e batendo suavemente em minhas costas, proferiu as seguintes palavras, as quais jamais esquecerei, nem a maneira como as pronunciou: que foram:
“Meu pequeno Grildrig, você fez o mais admirável panegírico[4] do seu país, você mostrou claramente que a ignorância, a ociosidade e o vício, são os ingredientes próprios para a qualificação de um legislador, e que as leis são melhores explicadas, interpretadas, e aplicadas, por aqueles cujo interesse e habilidades residem na perversão, confusão e fuga de suas atribuições”.
Eu observo entre os seus, alguns aspectos de uma instituição, a qual, em seus fundamentos, poderia ter sido tolerável, porém esses aspectos se diluiram, e o restante ficou manchado e obscurecido por causa da corrupção.
Não me parece, de tudo que você me apresentou, que nem uma qualidade é necessária para a conquista de qualquer posição entre os teus, menos ainda, que os homens sejam nobres por causa de suas virtudes, e que os sacerdotes se destaquem por causa de sua piedade ou do conhecimento; soldados pela sua conduta ou valor; juízes, pela sua integridade; senadores, pelo amor que devotem ao país, ou os conselheiros por causa de sua sabedoria.
“Quanto a você”, continuou o rei, “que passou a maior parte de sua vida viajando, estou inclinado a ter esperanças de que você possa até agora ter se livrado dos muitos vícios do seu país. Mas diante de todos os fatos que coletei de nossa relação, e das respostas que com muito esforço consegui torcer e arrancar de tuas afirmações, posso apenas concluir que a maioria dos teus compatriotas é a mais perniciosa raça de pequenos insetos odiosos que a natureza já permitiu rastejar sobre a superfície da terra.”
Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, Companhia Editora Nacional, 11ª Edição, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira.
↑Espineta: Antigo instrumento de cordas, com teclas, anterior ao cravo.
↑“'Jiga”': antiga dança italiana em compasso de 3 por 8 ou 6 por 8 e até 12 por 8, constituída por duas fases, cada uma das quais era repetida, e de ordinário era o último tempo de uma suíte.
↑“'Suíte”': Série de composições instrumentais em forma de dança (ou de canção), de construção binária, as quais se sucedem em ordem lógica de movimentos diversos, ligados entre si por estreito parentesco tonal.
↑“'Panegírico”': discurso em louvor de alguém, elogio, laudatório.
[O amor do autor pelo seu país. Ele faz uma proposta oferecendo muitas vantagens ao rei, mas é rejeitada. O grande desconhecimento do rei com relação à política. A cultura imperfeita e limitada daquele país. As leis, as causas militares, os partidos daquela nação.]
Nada, com exceção de um amor extremo pela verdade, poderia ter-me dissuadido de ocultar esta parte da minha história. Foi em vão a descoberta de meus ressentimentos, os quais sempre acabavam se tornando ridículos, e eu era forçado a me armar de paciência, quando meu nobre e amado país era tão injuriosamente tratado.
Eu lamento tão profundamente assim como possivelmente lamentariam qualquer um dos meus leitores, que tal situação tivesse acontecido: mas este príncipe me pareceu tão curioso e inquiridor a respeito de cada detalhe, que se não fosse por causa da gratidão ou da minha boa educação, recusar-me-ia a oferecer a ele qualquer explicação que me fosse possível.
Sendo assim, devo permitir colocar em minha própria defesa, que eu habilmente evitei muitas de suas perguntas, dando a cada particular uma visão mais favorável, muito mais do que talvez o rigor da verdade me permitisse. Pois sempre tratei o meu país com uma louvável parcialidade, que, Dionísio de Halicarnasso, com tanta justiça, recomenda a um historiador: Ocultei as fragilidades e deformidades de minha mãe pátria, e coloquei suas virtudes e belezas sob as luzes mais promissoras. Este foi meu esforço sincero naqueles diálogos que tive com o monarca, ainda que infelizmente tenha sido mal sucedido.
Porém, grande tolerância devemos ter com um rei, que vive totalmente apartado do resto do mundo, e deve, portanto, não estar totalmente familiarizado com as maneiras e costumes que deve prevalecer em outras nações: sendo que a falta desse conhecimento poderá causar muitos danos, e uma certa estreiteza de pensamento, do qual nós, e os países mais educados da Europa estamos totalmente isentos.
E, na verdade, seria inaceitável, que os conhecimentos de virtude e vício de um príncipe tão distante, pudessem ser oferecidos como modelo para toda humanidade.
Para confirmar o que acabo de dizer, e mais para mostrar os efeitos danosos de uma educação limitada, vou aqui transcrever um episódio, que poucos irão acreditar. Alimentando esperanças de ser favorecido com as atenções de sua majestade, contei a ele sobre “uma invenção, descoberta há trezentos ou quatrocentos anos atrás, para a produção de um certo tipo de pó, que quando acumulado, com a queda da menor fagulha de fogo, acendia tudo repentinamente, ainda que fosse tão alto quanto uma montanha, fazendo tudo voar para o alto, produzindo barulho e agitação maior que um trovão.
Que uma quantidade apropriada desse pó socado dentro de um tubo oco de bronze ou de ferro, proporcional ao seu tamanho, lançava uma bola de ferro ou de chumbo, com tal violência e velocidade, como nada poderia conter essa energia.
Que as maiores balas disparadas desse modo, destruiriam imediatamente não apenas fileiras inteiras de um exército, mas poderiam demolir muralhas gigantescas, naufragar navios com mil homens em cada um deles, e quando amarrados por meio de uma corrente, podia cortar mastros e cordames, dividir ao meio centenas de corpos, deixando somente destroços. Que nós muitas vezes colocávamos este pó em enormes bolas de ferro ocas, e disparávamos por meio de um dispositivo contra alguma cidade que estivéssemos assediando, as quais rasgavam as estradas, transformavam casas em destroços, explodiam e jogavam estilhaços para todos os lados, fragmentando os miolos de todos que se aproximassem.
Que eu conhecia muito bem os ingredientes, os quais eram baratos e comuns, eu conhecia a maneira de fabricá-los, e poderia orientar os seus trabalhadores a produzir estes tubos, com um tamanho proporcional a todas as outras coisas que haviam no reino de sua majestade, e que os maiores não precisavam ter mais que trinta metros de comprimento, e vinte ou trinta desses tubos, carregados com quantidades apropriadas de pó e de balas, poderiam demolir as muralhas da cidade mais forte de seus domínios em algumas horas, ou destruiriam metrópoles inteiras, se alguma vez houvesse pretensão de disputar seus comandos absolutos.
“Foi isto que humildemente ofereci à sua majestade, como pequeno tributo de reconhecimento, em gratidão por tantos deferimentos que recebera da parte dele, de seu favor e da sua proteção reais.”
O rei ficou horrorizado com a descrição que eu havia feito daqueles terríveis dispositivos e da proposta que eu lhe apresentara. “Ele ficou surpreso, em como um inseto tão impotente e rastejante como eu” (estas foram suas palavras) “poderia alimentar ideias tão desumanas, e de uma forma tão habitual, a ponto de ficar imóvel diante das cenas de sangue e desolação que eu havia pintado como efeitos comuns daquelas máquinas de destruição, as quais”, disse ele, — “teriam sido engendradas por algum gênio do mal ou inimigo da humanidade.”
“No que diz respeito a ele, protestou, embora poucas coisas lhe houvessem dado tanta satisfação como as novas descobertas da arte ou da natureza, mesmo assim ele preferia perder metade do seu reino, do que ser corresponsável por segredos dessa espécie, tendo me ordenado, enquanto achasse que a vida valia a pena, a nunca mais falar a esse respeito.”
Um estranho efeito de seus estreitos princípios e pontos de vista! que um príncipe, possuidor de tantas qualidades, que promove a adoração, o amor, e a estima, de grande influência, sabedoria profunda, e com ampla cultura, dotado de admiráveis talentos, e praticamente adorado pelos seus súditos, deixasse escapar, por causa de um escrúpulo legal e desnecessário, do qual na Europa não temos a menor ideia, uma oportunidade colocada em suas mãos que poderia torná-lo mestre absoluto da vida, da liberdade, e da sorte do seu povo!
Nem digo isto, com a menor intenção de depreciar as inúmeras virtudes daquele excelente monarca, cujo caráter, tenho a sensação que com este relato, será diminuído na opinião de alguns leitores inglêses: creio, porém, que esta deficiência que eles possuem, seja decorrente do desconhecimento deles, por não terem até agora transformado a política em uma ciência, como fizeram na Europa as inteligências mais perspicazes.
Pois, eu me lembro muito bem, num discurso que tive um dia com o rei, quando eu dissera por acaso, “que havia vários milhares de livros em nosso país escritos a respeito da arte de governar,” e isso deu a ele (exatamente o oposto de minhas intenções) um conceito bastante ruim sobre a nossa forma de entender as coisas.
Ele declarou que tanto abominava como desprezava todos os mistérios, requintes e intrigas, tanto em relação a um príncipe ou a um ministro. Ele não conseguia entender o que eu queria dizer com segredos de estado, exceto quando se tratasse do caso de um inimigo ou de alguma nação rival. Ele restringia o conhecimento de governabilidade dentro de limites muito estreitos, ao sentido comum e à razão, à justiça e à indulgência, à rápida determinação das causas civis e criminosas, em comparação com alguns tópicos evidentes, que não vale a pena considerar.
E fez questão de declarar, “que aquele que produzia duas espigas de milho, duas lâminas de grama, plantados num espaço de terra onde apenas um havia sido plantado antes, seria mais merecedor da humanidade, do que toda as raças de políticos juntas.”
A cultura desse povo era muito deficiente, consistindo unicamente de moral, história, poesia, e matemática, onde nos leva a crer que são excelentes. Mas esta última matéria é totalmente aplicada somente naquilo que pode ser útil na vida, na melhoria da agricultura e de todas as artes mecânicas, de modo que em nosso país isso seria pouco apreciado. E com relação às ideias, individualidades, abstrações, e assuntos transcendentais, eu não poderia jamais introduzir em suas mentes a mais elementar concepção.
Nenhuma lei daquele país podia exceder em palavras o número de letras do alfabeto deles, constituído de vinte e duas letras. Mas, na verdade, poucos deles alcançavam esta extensão. Elas eram expressas nos termos mais claros e mais simples, para aquelas pessoas que não eram perspicazes o bastante para entender mais que uma interpretação, e fazer um comentário sobre qualquer lei era considerado crime capital.
Com relação à decisão das causas civis, e os procedimentos contra os criminosos, os precedentes são tão irrisórios, que eles tem poucos motivos para se vangloriarem de qualquer habilidade extra com relação a qualquer uma delas.
Eles conhecem a arte da impressão, assim como os chineses, deste tempos imemoriais: mas suas bibliotecas não são muito grandes; pois a do rei, que é reconhecidamente a maior, não passa de mil volumes, colocados em uma galeria de trezentos e sessenta e cinco metros de comprimento, onde tinha a liberdade de emprestar qualquer livro que me agradasse.
O carpinteiro da rainha havia construído em um dos cômodos de Glumdalclitch, uma espécie de dispositivo de madeira com quase oito metros de altura, no formato de uma escada em pé, tendo cada degrau quinze metros de comprimento. Tratava-se na verdade de um par de escadas, a extremidade mais baixa colocada a três metros de distância da parede do cômodo.
O livro que eu pensava em ler, fora colocado inclinado contra a parede: eu primeiro subia no degrau superior da escada, e virando o meu rosto para o livro, começava no topo da página, e assim caminhava para a direita e para a esquerda uns oito ou dez passos, seguindo o comprimento das linhas, até que chegava um pouco abaixo da altura dos meus olhos, e depois descia gradativamente até chegar ao final: depois disso eu subia novamente, e começava a outra página da mesma maneira, e depois virava a página, a qual eu podia fazer facilmente com minhas duas mãos, porque ela era tão grossa e dura como um papel cartonado, e os fólios mais largos tinham pouco menos de dois metros de comprimento.
O estilo deles era claro, viril e suave, mas não florido, porque eles evitavam nada mais do que o uso desnecessário de palavras, ou o uso de múltiplas expressões. Compulsei muitos dos seus livros, especialmente os de história e moral. Dentre os outros, me diverti bastante com um velho e antigo tratado, que sempre ficava no quarto da Glumdalclitch, e que pertencia à sua tutora, uma senhora idosa e séria, que apreciava os livros que tratavam da moral e da fé. O livro falava das fraquezas do ser humano, e era pouco apreciado, exceto entre as mulheres e o vulgo. Todavia, eu estava curioso em ver o que um autor daquele país poderia dizer sobre tal assunto.
Este escritor passava por todos os tópicos usuais dos moralistas europeus, mostrando “como o homem era um animal diminuto, desprezível, e indefeso por sua própria natureza, como era ele incapaz de se defender das inclemências do ar, ou da fúria dos animais selvagens: como era ele superado por uma criatura na força, por uma outra na velocidade, por um terceiro em previdência, e por um quarto em engenhosidade.”
Acrescentou ele, “que a natureza havia se degenerado nesses últimos períodos de declínio da mundo, e agora só conseguia produzir pequenas criaturas prematuras, em comparação com aquelas dos tempos antigos.”
Ele disse “que era bastante razoável pensar, não apenas que a espécie humana originalmente fosse muito maior, mas também que deviam ter existido gigantes nos tempos remotos;” fatos esses comprovados pela história e pela tradição, com também confirmados através de enormes ossos e crânios, descobertos casualmente em diversas partes do reino, superando de longe as raças reduzidas habituais dos nossos dias.”
Argumentou ele, “que as mesmas leis da natureza exigiam que nós deveríamos ter sido feitos a princípio de um tamanho maior e mais robusto, não tão sujeitos a sermos destruídos por qualquer pequeno acidente, como a queda da telha de uma casa, ou por uma pedra atirada pelas mãos de um garoto, ou por afogamento num pequeno riacho.” Partindo desta forma de raciocínio, o autor se utilizava de várias aplicações sobre a moral, úteis para a condução da vida, mas desnecessárias aqui repetí-las.
Da minha parte propriamente dita, eu não podia deixar de refletir em como era universalmente conhecido, este talento de fazer discursos sobre a moral, ou de fato mais uma questão de mostrar descontentamento e de queixa, extraídas das discussões que criamos com a natureza. E eu acredito, observando atentamente, que essas querelas poderiam ser consideradas infundadas em nosso país como eram para aquele povo.
Com relação a seus assuntos militares, eles se vangloriavam que o exército do rei era constituído por cento e setenta e seis mil infantes, e trinta e dois mil cavaleiros: se é que se pode chamar de exército, uma tropa formada por comerciantes de diversas cidades, e agricultores dos campos, cujos comandantes são apenas a nobreza e as pessoas mais importantes, que não recebem pagamento nem recompensa.
Eles são de fato muito perfeitos em seus exercícios, e são bastante disciplinados, não vendo eu porém grande mérito nisso, pois como poderia ser diferente, onde todo agricultor está sob o comando do seu próprio senhor, e todo cidadão obedece os homens mais importantes de sua cidade, escolhidos por votação, do mesmo modo que em Veneza?
Vi diversas vezes a milícia de Lorbrulgrud saindo para exercitarem em um campo enorme perto da cidade de vinte milhas quadradas. Eles eram ao todo não mais que vinte e cinco mil infantes, e seis mil cavaleiros; mas era impossível para eu calcular o número deles, considerando o espaço do chão que ocupavam. Um cavaleiro, montado sobre um corcel enorme, chegava a quase trinta metros de altura. Eu vi todo o corpo de cavalaria, sacarem suas espadas de uma só vez, e brandí-las no ar.
A imaginação não é capaz de engendrar algo tão gigantesco, tão supreendente e tão assombroso! Parecia que dez mil clarões de um relâmpago estouravam de uma vez só por todos os cantos do céu.
Eu estava curioso para saber como este príncipe, a cujos domínios não existe acesso de nenhum outro país, havia pensado em exércitos, ou em ensinar seu povo a prática da disciplina militar. Mas logo fui informado, tanto por meio de conversação como lendo a história deles, pois, no decorrer de muitos anos, eles tiveram de se preocupar com a mesma doença a que está sujeita a raça humana, a nobreza frequentemente lutava pelo poder, o povo por liberdade, e o rei pelo domínio absoluto.
Todos os quais, ainda que felizmente temperados pelas leis daquele reino, tem sido algumas vezes violados por cada um dos três partidos, e provocado mais de uma vez guerras civis; a última das quais felizmente foi concluída pelo avô do príncipe atual, com uma composição geral, e a milícia, então estabelecida em comum acordo, tendo-se mantida dentro do mais estrito dever.
[O rei e a rainha fazem um passeio para as fronteiras. O autor os acompanha. A maneira como ele deixa o país é relatada com detalhes. Ele volta para a Inglaterra.]
Sempre tive um forte pressentimento de que algum dia conseguiria recuperar a minha liberdade, embora fosse impossível imaginar quais seriam os meios, ou de formular qualquer projeto com a menor esperança de sucesso. O navio no qual eu embarcara, era o primeiro que se soubesse ter chegado até a costa daquele país, e o rei dera ordens severas, que se outro aparecesse novamente, ele fosse arrastado para a costa, e toda sua tripulação e passageiros trazidos de carroça para Lorbrulgrud.
Ele estava bastante empenhado em encontrar para mim uma mulher do meu próprio tamanho, com quem eu pudesse multiplicar a espécie: mas eu acho que eu preferiria ter morrido a ter sofrido a infâmia de deixar uma posteridade que fosse mantida em gaiolas, como canários domesticados, e talvez, em alguma época, vendidos pelo reino, a pessoas de elevada estirpe como se fossem curiosidades.
Eu fui de fato tratado com muita cordialidade: eu era o favorito do grande rei e da rainha, e um encanto de toda a corte, mas era uma situação tão inconveniente que não era adequada à dignidade da minha natureza humana. Jamais poderia esquecer os compromissos domésticos que deixara para trás.
Eu queria estar entre pessoas, com quem pudesse conversar sobre assuntos de nosso interesse, caminhar pelas ruas e campos sem ficar com medo de ser pisado até a morte como um sapo ou como um cachorrinho de estimação. Porém a minha libertação chegou antes do que eu esperava, e de uma maneira não muito comum, e toda história e os pormenores eu vou relatar com todas as cores.
Fazia já dois anos que eu estava nesse país, e por volta do início do terceiro ano, Glumdalclitch e eu acompanhávamos o rei e a rainha, num passeio na costa sul daquele reino. Eu estava sendo transportado, como sempre, em minha caixa de viagem, que como eu descrevi, era um gabinete bastante confortável, com quase quatro metros de largura.
Eu havia solicitado que a rede de dormir fosse consertada, com cordas de seda das quatro extremidades até o topo, para amortecer as sacudidelas, quando um criado me levasse de frente sobre o dorso do cavalo, como eu gostava algumas vezes, enquanto estávamos a caminho.
No teto do meu gabinete, não diretamente no meio da rede, eu pedi para que o carpinteiro fizesse um buraco de trinta centímetros quadrados, para entrada de ar nos dias quentes, enquanto dormia; e esse buraco era fechado quando eu queria, com uma tampa que ia para a frente e para trás por meio de uma canaleta.
Quando chegávamos ao fim de nossa jornada, o rei achou melhor passar alguns dias no palácio que ele possuía perto de Flanflasnic, uma cidade a quase trinta quilômetros do litoral. Glumdalclitch e eu estávamos muito cansados: eu tinha pego um resfriado, mas a coitada estava tão doente a ponto de ficar trancada em seu quarto.
Eu estava louco de vontade de ver o oceano, o qual poderia ser o único cenário da minha fuga, se isso um dia fosse acontecer. Fingia estar mais doente do que realmente estava, e solicitei permissão para tomar ar fresco do mar, em companhia de um escudeiro, de quem eu gostava muito, e que algumas vezes tomava conta de mim.
Jamais me esquecerei como Glumdalclitch permitiu com má vontade, nem da severa ordem que dera ao escudeiro para ter cuidado comigo, ao mesmo tempo que se desfazia em lágrimas, como se ela tivesse algum pressentimento do que estava para acontecer.
O garoto me tirou de dentro da caixa, a cerca de meia hora de caminhada do palácio, até as rochas que ficavam no litoral. Ordenei a ele que me colocasse no chão, e levantando uma de minhas janelas, lancei um olhar triste e melancólico em direção ao mar.
Eu não me achava bem de todo, e eu disse ao escudeiro que estava pensando em tirar uma soneca na minha rede, o que eu esperava que me fizesse bem. Entrei, e o garoto fechou bem a janela, para me proteger do frio. Dormi imediatamente, e tudo que posso deduzir é que, enquanto dormia, o escudeiro, achando que nenhum perigo pudesse acontecer, foi dar uma olhada nos ovos dos pássaros entre as rochas, tendo eu o observado de minha janela ele procurando e pegando um ou dois entre as fendas.
Seja como for, de repente eu acordei com um violento solavanco no anel, que estava preso no topo da minha caixa, para facilitar o transporte. Senti que a minha caixa era levantada muito alto no ar, e então empurrada para a frente com uma velocidade espantosa.
A primeira sacudida parecia ter me lançado para fora da rede, mas depois o movimento ficou mais suave. Gritei várias vezes, tão alto quanto pude erguer a minha voz, mas de nada adiantou. Olhei pelas minhas janelas, e não vi nada além das nuvens e do céu.
Ouvi um barulho bem acima da minha cabeça, tal como batidas de asas, e então comecei a perceber a condição angustiosa em que me encontrava, uma águia havia pego o anel de minha caixa em seu bico, com a intenção de derrubá-la sobre uma pedra, como uma tartaruga dentro da sua concha, com o intuito de tirar o meu corpo para fora e devorá-lo: porque a sagacidade e o faro desta ave permite descobrir a sua presa a uma grande distância, e ainda que pudesse estar escondido mais do que eu poderia dentro de uma placa de cinco centímetros de espessura.
Em pouco tempo, percebi que o ruído e o batimento das asas aumentavam muito rapidamente, e a minha caixa era lançada para cima e para baixo, como uma tabuleta num dia de vento forte.
Ouvi diversas batidas ou bicadas, segundo acreditava, feitas pela águia (pois assim acreditava que estivesse acontecendo porque ela tinha o anel da minha caixa preso em seu bico), e então, repentinamente, senti que caia perpendicularmente por um espaço de um minuto, mas com uma velocidade tão grande, que quase não conseguia respirar.
A minha queda terminou com um forte barulho de água, que soava mais alto em meus ouvidos do que a catarata de Niágara, depois disso, fiquei quase no escuro por mais um minuto, e então a minha caixa começou a subir tão alto, que eu poderia ver luzes do alto das minhas janelas.
Percebi então que havia caído no mar. A minha caixa, por causa do peso do meu corpo, das coisas que haviam dentro, e das grandes placas de ferro colocadas como reforço no quatro cantos do topo e do fundo, flutuava a um metro e meio debaixo da água. Supus então, e suponho ainda hoje, que a águia que fugiu com a minha caixa era perseguida por duas ou três outras águias, e forçada a me derrubar, enquanto ela se defendia das demais, que desejavam compartilhar a presa.
As placas de ferro no fundo da caixa (que eram muito fortes para elas) mantiveram o equilíbrio durante a queda, e impediram que a caixa se rompesse ao bater na superfície da água. Todas as junções da caixa estavam bem ajustadas, e as portas não se moveram sobre as dobradiças, mas para cima e para baixo como as janelas, que mantiveram tão fechado o meu gabinete que pouca água entrou.
Com muita dificuldade saí da minha rede, tendo primeiro arriscado em deslizar a corrediça do teto já mencionada, criada com o propósito de permitir a entrada de ar, na falta da qual eu me sentiria praticamente asfixiado.
Quantas vezes desejei estar ao lado da minha querida Glumdalclitch, de quem estava separado por uma distância de uma hora! E devo dizer com sinceridade, que no meio de todas as minhas desditas não poderia deixar de lamentar a minha pobre babá, a tristeza que ela sofreria pela minha perda, o desgosto da rainha, e o fim da sua sorte.
Talvez muitos viajantes não tivessem passado por tantas dificuldades e desventuras do que eu sofri nessa conjuntura, esperando ver a todo momento minha caixa desfeita em pedaços, ou no mínimo revirada pelo primeiro violento tufão ou por uma onda gigante.
Uma brecha em uma única placa de vidro teria sido morte imediata: nem nada poderia ter preservado as janelas, não fossem os arames fortes colocados nos cantos do lado de fora, para impedir acidentes de viagem.
Percebi que a água se infiltrava em vários fendas, embora os vazamentos não fossem consideráveis, e eu me esforçava para tapá-los o melhor que podia. Eu não conseguia levantar o teto do meu gabinete, caso contrário, certamente o teria feito, e me sentei no topo do teto, onde eu poderia pelo menos preservar a minha vida por mais algumas horas, do que ficar enclausurado (como poderia chamar isso) naquele porão.
Ou, se eu me livrasse daqueles perigos por um ou dois dias, o que poderia me esperar senão morrer miseravelmente de frio e fome? Eu fiquei quatro horas nessas circunstâncias, esperando, e desejando de fato, que cada momento fosse o meu último.
Eu já havia contado ao leitor que havia duas fortes alças fixadas daquele lado da minha caixa onde não havia janela, e onde o criado, que costumava me levar no dorso do cavalo, colocava um cinturão de couro, e prendia a caixa com uma fivela na sua cintura.
Estando eu naquela situação desoladora, ouvi, ou pelo menos pensei que ouvi, algum tipo de ruído de algo raspando naquele lado da minha caixa onde as alças estavam fixadas, e logo depois eu tive a sensação que a caixa era puxada ou rebocada sob o fluxo do mar, pois de vez em quando sentia uma espécie de puxão, o que fazia com que as ondas chegassem perto do alto das minhas janelas, me deixando quase no escuro.
Isso me proporcionava alguma leve esperança de alívio, embora não fosse capaz de imaginar como isso estava acontecendo. Arrisquei desparafusar uma das minhas cadeiras, que eram sempre presas ao assoalho, e me esforçando ao máximo para soltá-la novamente, bem debaixo da corrediça que tinha aberto por último, subi na cadeira, e colocando a minha boca tão perto quanto pude do buraco, gritei por socorro em voz alta, e em todos os idiomas que eu conhecia.
Amarrei então o meu lenço a uma bastão que eu geralmente levava comigo, e o atravessei pelo buraco, fazendo vários movimentos giratórios no ar, de modo que se algum barco ou navio estivesse nas proximidades, os marinheiros poderiam chegar à conclusão de que algum mortal estava preso dentro da caixa.
Não consegui nenhum resultado depois de tudo que fiz, mas percebi claramente que o meu gabinete era empurrado; e no espaço de uma hora, ou menos, que o lado onde ficavam as alças, e que não tinha janela, bateu em alguma coisa muito dura.
Deduzi que fosse uma rocha, e fui sacudido com muita força. Ouvi nitidamente um ruído sobre a tampa do meu gabinete, como o de um cabo, que raspava a medida que passava pelo anel. Eu então fui içado, pouco a pouco, pelo menos pouco menos de um metro acima do que estava antes. Nesse instante, ergui novamente o bastão com o lenço, e gritei por socorro até ficar quase rouco.
E em resposta, ouvi um grito forte ser repetido três vezes, produzindo em mim alentos de alegria que somente pode sentir isso quem passou por uma situação semelhante. Ouvi passos sobre a minha cabeça, e alguém que chamava em voz alta através do buraco, em inglês, “que se houvesse alguém em baixo, que falasse.”
Respondi “que eu era britânico, levado pela má sorte para o maior sofrimento que uma criatura poderia passar em sua vida, e implorei, com todas as minhas forças, para que fosse retirado da prisão onde me encontrava,” A voz respondeu, “que eu estava seguro, pois a minha caixa fora amarrada ao navio; e um carpinteiro chegaria e encontraria um buraco na tampa, grande o bastante para me tirar de lá.”
Respondi, “que isso era desnecessário, e que levaria tempo demais, pois nada mais havia para ser feito, exceto que um dos tripulantes colocasse seu dedo no anel, e levasse a caixa para fora do mar dentro do navio, e depois para a cabine do capitão.”
Alguns deles, ouvindo-me falar tão desesperadamente, pensavam que eu havia enlouquecido: outros riam, pois de fato nunca poderia pensar, que me encontrava agora entre pessoas do meu próprio tamanho e altura. O carpinteiro chegou, e em poucos minutos serrou uma passagem do tamanho de pouco mais que um metro e vinte centímetros quadrado, depois desceu uma pequena escada, sobre a qual eu subi, e daí fui levado para o navio numa condição de extrema fraqueza.
Os marinheiros ficaram todos espantados, e me fizeram milhares de perguntas, as quais eu não tinha vontade de responder. Eu estava igualmente confuso com a visão de tantos pigmeus, pois assim eu achava que fossem, depois de ter acostumado os meus olhos com os objetos enormes que eu havia deixado.
Mas o capitão, Sr. Thomas Wilcocks, homem honesto e honrado de Shropshire, percebendo que eu estava quase desmaiando, levou-me para a sua cabine, ofereceu uma bebida estimulante para me reconfortar, e me fez deitar em seu próprio leito, e recomendou para que descansasse um pouco, o que realmente estava precisando muito.
Antes de ir dormir, fiz com que ele entendesse que havia alguns móveis de valor na minha caixa, bons demais para que se perdessem: uma ótima rede, uma bela cama de campanha, duas cadeiras, uma mesa, e um armário; que o meu quarto era supenso por todos os lados, ou mais apropriadamente acolchoado, com seda e algodão; e que se ele permitisse que um dos tripulanntes trouxesse o meu armário para a sua cabine, eu o abriria diante dele e lhe mostraria tudo que havia nele.
O capitão, ao ouvir todos esses absurdos, concluiu que eu delirava; contudo (suponho que para me acalmar) ele me prometeu dar as ordens conforme desejava, e indo até o convés, mandou que alguns dos seus homens fossem até o meu gabinete, de onde (como descobri depois) retiraram todas as coisas minhas que haviam lá, e arrancaram todo o acolchoado, mas as cadeiras, o armário, e a cama, como estavam fixadas ao solo, foram muito danificados devido à incompetência dos marujos, que os arrancaram a força.
Então eles retiraram algumas das tábuas para uso do navio, e depois que haviam feito tudo que desejavam fazer, jogaram o container no mar, o qual, por causa das muitas brechas feitas no fundo e nas laterias, afundou rapidamente.
E, na verdade, eu não teria ficado feliz em ver o estrago que haviam feito, pois tenho a certeza que eu ficaria emocionado, por trazer à minha lembrança algumas situações, que eu preferiria esquecer.
Dormi algumas horas, ainda que longamente perturbado por sonhos dos lugares onde havia estado, e os perigos que eu havia escapado. Todavia, ao acordar, eu me senti bastante recuperado. Eram agora quase oito horas da noite, e o capitão mandou servir a sopa imediatamente, achando que eu estava em jejum há muito tempo.
Me distraiu com grande gentileza, observando que eu não olhava de modo selvagem, nem falava coisas sem fundamento: e, quando ficamos sozinhos, me pediu que lhe fizesse um relato de minhas viagens, e por qual casualidade eu havia ficado a deriva, naquela imensa caixa de madeira.
Ele disse “que por volta do meio dia, quando ele estava olhando com seus binóculos, e viu algo a distância, e pensando que fosse um barco a vela, teve a ideia de se aproximar, não estando muito fora do seu percurso, na esperança de comprar alguns biscoitos, porque os seus estavam começando a faltar.”
E que ao aproximar-se, descobriu que havia se enganado, enviando então uma lancha para averiguar do que se tratava; seus homens voltaram assustados, jurando que eles tinham visto uma casa flutuando. Então ele riu da maluquice deles, e seguiu ele próprio no barco, ordenando a seus homens que levassem um cabo forte junto com eles.
E que o tempo estando calmo, ele remou em torno de mim por diversas vezes, observou as minhas janelas e as grades de arame que as protegiam. Que ele descobriu duas alças de um lado, e que tudo era feito de placas, sem que houvesse passagem para a luz. Ele então ordenou a seus homens para que remassem para aquele lado, e amarrando um cabo a uma das alças, ordenou que eles arrastassem a minha arca, com eles a chamavam, até ao navio.
Quando ela chegou lá, ele deu instruções para que fosse amarrado um outro cabo ao anel preso à tampa, e alçassem a minha arca por meio de polias, o que todos os marinheiros não conseguiram levantar se a altura fosse maior que sessenta ou noventa centímetros.” Ele disse, “que viram o meu bastão com o lenço levantado para fora do buraco, e concluíram que algum infeliz pudesse estar preso dentro da cavidade.”
Perguntei, “se ele ou a tripulação haviam visto alguns pássaros prodigiosos no ar, por volta do momento em que haviam me encontrado pela primeira vez.” Tendo ele respondido, que conversando sobre este assunto com os marinheiros enquanto eu estava dormindo, um deles disse, que tinha visto três águias voando em direção ao norte, mas não percebeu nada com relação a serem maiores do que o tamanho usual, “o que suponho deva-se atribuir à grande altura em que se encontravam, e ele não conseguiu entender o motivo da minha pergunta.”
Eu então perguntei ao capitão, “a que distância da costa ele achava que estávamos?” Ele respondeu, “que segundo seus melhores cálculos, estávamos a pelo menos cem léguas.” Assegurei-lhe, “que ele estava enganado em quase a metade, posto que eu não havia deixado o país de onde viera duas horas antes de cair no mar.”
E com isso ele começou a achar que o meu cérebro estava perturbado, me sugerindo então ele, e me aconselhando para que fosse dormir na cabine que ele havia providenciado.” Assegurei-lhe que “me sentia refrescado com o seu bom acolhimento e sua companhia, e que estava tanto em meu perfeito juízo como nunca houvera estado em minha vida.”
Ele então ficou sério, e quis me perguntar com liberdade, “se não estaria eu perturbado com meus pensamentos devido à consciência de algum crime horrendo, do qual fora punido, sob a ordem de algum príncipe, havendo me colocado naquela arca, como fazem com grandes criminosos, em outros países, quando são lançados ao mar em um barco furado, sem provisões: pois embora ele tivesse se apiedado de ter recolhido em seu navio um homem em condições tão desfavoráveis, deu a sua palavra de colocar-me a salvo em terra, no primeiro porto que chegássemos.”
E acrescentou, “que suas desconfianças haviam atingido níveis inaceitáveis devido a algumas histórias muito absurdas que eu havia dito aos seus marinheiros quando do meu resgate, e depois para ele mesmo, com relação ao meu armário ou à minha caixa, bem como por causa dos meus olhares estranhos e do meu comportamento durante o jantar.”
Implorei a sua paciência para que ouvisse o relato da minha história, o que fiz com fidelidade, desde a última vez que deixara a Inglaterra, até o momento que ele me descobriu pela primeira vez. E, como a verdade sempre abre caminho para as mentes racionais, do mesmo modo este cavalheiro honesto e valoroso, convenceu-se imediatamente de minha franqueza e de minha veracidade.
Mas, para confirmar melhor tudo que havia dito, pedi a ele que desse ordens para que fosse trazido o meu gabinete, cuja chave havia guardado em meus bolsos; pois ele já tinha me informado sobre o que os marinheiros haviam feito com o meu armário. Abri ele na sua frente, e mostrei-lhe a pequena coleção de raridades que eu fizera no país do qual havia me libertado de maneira tão singular.
Lá estava o pente que eu construíra com as cerdas da barba do rei, e um outro com os mesmos materiais, mas presos com as aparas das unhas do polegar de sua majestade, a rainha, que servia de guarnição.
Havia uma coleção de agulhas e alfinetes, que mediam de trinta a cinquenta centímetros de comprimento, quatro ferrões de abelha, parecidas com taxas de carpinteiro, alguns fios de cabelos da cabeça da rainha, um anel de ouro, que ela, um dia, me presenteou, da maneira mais delicada, tirando-o do seu dedo anular, e passando-me pela cabeça com se fosse um colar.
Fiz questão que o capitão tivesse a gentileza de aceitar este anel em retribuição pelas boas maneiras com que me recebeu; o que ele recusou terminantemente.
Mostrei a ele um calo que eu havia retirado com minhas próprias mãos, do pé de uma dama de honra; ele tinha o tamanho de uma maçã da região do Kent, e era tão duro, que quando eu retornei para a Inglaterra, coloquei-o dentro de uma xícara, e o pintei de prata. Por último, quis que ele visse as ceroulas que eu usava naquele momento, as quais eram feitas com pele de camundongo.
Nada pude forçar que aceitasse exceto um dente de um cavaleiro, que eu observei quando ele examinou com grande curiosidade, e acreditei que ele tinha simpatia pelo objeto. Ele o recebeu me agradecendo inúmeras vezes, mais do que aquele objeto sem valor pudesse merecer.
Ele havia sido retirado por engano por um cirurgião inabilidoso, de um dos servidores de Glumdalclitch, que estava desesperado com dor de dente, mas que era tão perfeito como qualquer outro em sua boca. Fiz questão de limpá-lo, e guardei-o em meu armário. Ele tinha cerca de trinta centímetros de comprimento e dez centímetros de diâmetro.
O capitão ficou muito satisfeito com este relato completo que fiz a ele, e disse, “que esperava, quando eu retornasse para a Inglaterra, que eu faria um grande favor ao mundo registrando todos esses acontecimento em papel, e tornando-o público.”
A minha resposta foi “que já havia livros de viagens além da conta: e que nada agora poderia acontecer que não fosse extraordinário, de onde duvidava eu que alguns autores buscavam menos a verdade, do que sua própria vaidade, ou interesse, ou o entretenimento dos leitores vulgares; e que a minha história dizia muito pouco além dos acontecimentos comuns, sem aquelas descrições ornamentais de plantas, árvores, pássaros e outros animais estranhos; ou sobre os costumes bárbaros e a idolatria de um povo selvagem, fatos estes de que estavam infestados a maioria dos escritores.
Todavia, agradeci a ele pela sua ótima opinião, e prometi que levaria o assunto em consideração.”
Disse ele “que de uma coisa lhe havia chamado muito a atenção, que foi, ouvir-me falar de modo tão alto;” perguntando eu, “se o rei ou a rainha daquele país eram surdos do ouvido?” Disse-lhe “que era assim que eu havia me acostumado, tendo decorrido mais de dois anos, e que eu tinha muita admiração pela sua voz e de seus homens, que me pareciam somente murmurios, e no entanto, eu conseguia ouví-los relativamente bem.
Mas, quando eu falava naquele país, era como se um homem falasse nas ruas, com um outro no alto de um campanário, exceto quando eu era colocado em cima da mesa, ou era segurado pela mão de uma pessoa.” Disse-lhe, “que eu tinha também observado uma outra coisa, que, quando eu havia entrado no navio pela primeira vez, e os marinheiros estavam todos ao meu redor, eu achei que eles eram as criaturas mais insignificantes que eu já havia visto.”
Pois, de fato, enquanto permaneci no país daquele príncipe, nunca havia conseguido olhar-me no espelho, porque os meus olhos haviam se acostumado a objetos tão prodigiosos, e porque a comparação me proporcionava um conceito bastante deprezível a respeito de mim mesmo.
O capitão respondeu, “que enquanto estávamos jantando, ele observou que eu olhava para todas as coisas com uma espécie de admiração, e que muitas vezes eu parecia ter dificuldade em conseguir conter meu riso, o que ele não sabia como entender isso, mas atribuía-o a alguma perturbação da minha cabeça.”
Respondi a ele, “que isso era verdade, que eu ficava atônito como eu poderia me conter, quando percebi que os pratos pareciam ter o tamanho de uma moeda de prata de três centavos, um pernil de porco do tamanho de podia caber na boca, uma xícara não maior que uma casca de nozes;” e assim continuei, descrevendo da mesma maneira, o resto de seus utensílios domésticos e mantimentos.
Pois, embora a rainha tivesse mandado providenciar alguns equipamentos para todas as coisas que fossem necessárias para mim, enquanto me encontrava a seus serviços, no entanto, minhas ideias foram totalmente tomadas por aquilo que via cercado por todos os lados, e passava despercebido a minha própria pequenez, como acontece com as pessoas em relação a seus próprios defeitos.
O capitão entendeu perfeitamente minhas brincadeiras, e alegremente respondeu com um velho provérbio inglês, “que ele duvidava que meus olhos fossem maiores que o meu estômago, pois não notara ele que meu estômago estivesse tão bem, embora eu tivesse ficado sem comer o dia todo;” e, continuando com sua alegria, declarou que “ele daria com prazer cem libras, para ter visto o meu gabinete no bico da águia, e depois em sua queda para o mar de uma altura tão grande, o que certamente teria sido o objeto mais maravilhoso, digno de ser o seu relato transmitido para as futuras gerações:” e a comparação de Fáeton[1] era tão óbvia, que ele não poderia deixar de aplicá-la, ainda que não tivesse admirado muito o conceito.
O capitão, tendo estado em Tonquin[2], foi, em seu retorno para a Inglaterra, empurrado para nordeste à latitude de 44 graus, e longitute de 143 graus. Porém, tendo encontrado um vento geral dois dias depois de estar a bordo, navegamos para o sul durante longo tempo, e costeamos a Nova Holanda, mantivemos nosso curso oeste-sudoeste, e depois sul-sudoeste, até dobrarmos o Cabo da Boa Esperança.
A nossa viagem foi muito favorável, mas não vou incomodar o leitor com um diário de nossas aventuras. O capitão fez escalas em um ou dois portos, e enviou a lancha em busca de provisões e de água fresca; mas eu nunca saía do navio até que chegamos em Downs, que foi em 3 de junho de 1706, cerca de nove meses depois da minha fuga.
Ofereci deixar meus pertences em segurança como pagamento do meu transporte: mas o capitão protestou que não aceitaria nenhum centavo. Despedimo-nos cordialmente uns dos outros, e fiz com que me prometesse uma visita a minha casa em Redriff. Aluguei um cavalo e um guia por cinco xelins, que eu emprestei do capitão.
Quando estava a caminho, observando o tamanho das casas, árvores, gados, e das pessoas, eu comecei a pensar em mim mesmo quando estava em Lilipute. Tinha medo de pisar em cada viajante que encontrava, e muitas vezes gritava em voz alta para que saíssem do caminho, de forma que eu quase acertei a cabeça de dois ou três por causa da minha teimosia.
Quando cheguei em minha casa, para a qual eu fui obrigado a perguntar, quando um dos criados abriu a porta, eu me abaixei para entrar, (como um ganso se abaixa para atravessar um portão) com medo de bater minha cabeça.
Minha esposa correu para me abraçar e beijar, mas eu me inclinei abaixo de seus joelhos, pensando que ela poderia por outro lado nunca ser capaz de alcançar a minha boca. Minha filha se ajoelhou para pedir-me as bênçãos, mas eu não consegui vê-la até que ela se levantou, tendo desse modo me habituado a ficar com minha cabeça e com os olhos levantados na altura de mais de dezoito metros, e depois fui pegá-la com a mão pela cintura.
Olhei os criados e um ou dois amigos que estavam lá em casa, como se fossem pigmeus e eu um gigante. Disse à minha esposa, que “ela tinha sido muito parcimoniosa, pois eu achei que ela e a sua filha haviam passado fome sem motivos.”
Resumindo, me comportei de modo tão inexplicável, que eles concordaram com a opinião do capitão quando me viu pela primeira vez, e concluíram que eu havia perdido o juízo. Cito isto como exemplo do grande poder do hábito e do preconceito.
Em pouco tempo, eu, minha família e meus amigos chegamos a um entendimento perfeito: mas a minha esposa protestou que “eu não deveria nunca mais ir para o mar;” embora meu destino cruel determinasse, que ela não tinha poderes para me impedir, como o leitor poderá verificar nos próximos relatos.
No entanto, termino aqui a segunda parte de minhas desventuradas viagens.
[O autor embarca em sua terceira viagem. É feito prisioneiro pelos piratas. A maldade de um holandês. A sua chegada a uma ilha. Ele é recebido em Laputa.]
Não fiquei em casa mais do que dez dias, quando o Capitão William Robinson, natural da Cornualha e comandante do Hopewell, um navio robusto de trezentas toneladas, veio me visitar. Eu havia sido em outras épocas cirurgião de um outro navio de quem ele era o comandante, e um dos quatro participantes de uma viagem para o Levante. Ele sempre me havia tratado mais como irmão, do que como subalterno inferior, e tendo sido informado da minha chegada, fez-me uma visita, segundo supus, somente por causa de nossa amizade, pois nada de mais havia acontecido além do usual depois das longas ausências.
Porém, havendo me feito inúmeras visitas, e expressando sua alegria em me encontrar em boas condições de saúde, perguntou, “se eu já estava sossegado em minha vida?” acrescentando, “que ele pretendia fazer uma viagem para as Índias Orientais nos próximos dois meses,” tendo por fim claramente me convidado para ser o cirurgião do navio ainda que me apresentasse algumas desculpas; “de que haveria um outro cirurgião sob meu comando, além de dois outros auxiliares; que o meu salário seria o dobro do salário habitual, e que tendo verificado que o meu conhecimento em assuntos marítimos era pelo menos igual ao dele, ele assumiu o compromisso de seguir as minhas orientações, desde que eu compartilhasse com ele o comando.”
Ele me falou de tantas outras coisas interessantes, e sabendo eu que ele era um homem honesto, não poderia de modo algum rejeitar a sua proposta; a sede que eu tinha de ver o mundo, não obstante todos os infortúnios que tinham me acontecido, continuava tão viva como nunca. A única dificuldade que permanecia, era convencer a minha esposa, cuja permissão obtive finalmente, com as perspectivas dos benefícios que ela mencionou com relação aos filhos.
Embarcamos no dia 5 de agosto de 1706, e chegamos ao Forte São Jorge em 11 de abril de 1707. Lá permanecemos três semanas para descanso da nossa tripulação, muitos dos quais estavam doentes. Daí, partimos para Tonquin, onde o capitão decidiu permanecer algum tempo, porque tais mercadorias que ele pretendia adquirir ainda não estavam prontas, nem poderia ele esperar que fossem despachadas em vários meses.
De modo que, para compensar alguns gastos que ele teria, ele comprou uma corveta, carregou-a com vários tipos de mercadorias, com as quais os comerciantes de Tonquin costumavam negociar com as ilhas vizinhas, e colocando quatorze homens a bordo, dos quais três eram do país, ele me nomeou comandante da corveta, e me concedeu poderes para comercializar, enquanto realizava seus negócios em Tonquin.
Três dias ainda não haviam se passado de nossa partida, quando surgiu uma grande tempestade, e durante cinco dias fomos arrastados para nor-nordeste, e em seguida para o leste: depois disso o tempo melhorou, embora houvesse ainda um pé-de-vento muito forte à oeste. Quando chegamos ao décimo dia de viagem fomos perseguidos por dois barcos piratas, que em pouco tempo nos alcançou, porque a minha corveta estava tão carregada, que ela navegava muito vagarosamente, e não estávamos nem em condições de nos defender.
Fomos abordamos quase ao mesmo tempo pelos dois barcos piratas, que invadiram furiosamente seguidos pelos seus homens, mas encontrando-nos deitados de cara para o chão (pois dera ordens para que o fizesse), amarraram-nos com fortes cordas, e depois nos fazerem vigia, foram em direção à corveta.
Observei que entre eles havia um holandês, que parecia deter alguma autoridade, embora não fosse o comandante de qualquer um dos navios. Pelo nosso aspecto ele percebeu que éramos ingleses, e falando atropeladamente em seu próprio idioma, jurou que seríamos amarrados um de costa para o outro e atirados ao mar.
Eu falava holandês relativamente bem, e disse a ele quem éramos, e lhe imploramos, em consideração por sermos cristãos e protestantes, de países vizinhos unidos por estreitas alianças, para que convencesse os capitães a terem um pouco de piedade com relação a nós. Isto enfureceu ainda mais o seu ódio, voltou a repetir suas ameaças, e voltando-se para os seus companheiros, falou com grande veemência no idioma japonês, segundo supus, usando muitas vezes a palavra CHRISTIANOS.
O maior dos dois barcos piratas era comandado por um capitão japonês, que falava um pouco de holandês, mas de modo muito imperfeito. Ele se aproximou de mim, e depois de fazer várias perguntas, as quais respondia com a maior humildade, ele disse, “que não deveríamos morrer.” Fiz ao capitão uma profunda reverência, e depois, voltando-me para o holandês, disse, “que lamentava ter encontrado mais misericórdia num pagão, do que num irmão cristão.”
Mas logo tive razões para me arrepender de palavras tão tolas: pois o malvado sem coração, tendo muitas vezes instado em vão convencer os dois capitães que eu deveria ser atirado ao mar (o que eles não concordaram, depois de terem me prometido que eu não deveria morrer), todavia, conseguiu ele convencê-los de que uma punição me deveria ser imputada, pior aos olhos humanos que a própria morte. Meus homens foram enviados em grupos iguais para os dois navios piratas, e a minha corveta comandada por nova tripulação.
Quanto a mim, ficou decidido que eu deveria ser posto a deriva numa pequena canoa, com remos e uma vela, e provisões para quatro dias; e por último, o capitão japonês foi muito gentil em duplicar com seus próprios mantimentos, não permitindo que ninguém viesse em meu auxílio. Baixei a canoa, enquanto o holandês, de pé no convés, me carregava de maldições e termos injuriosos que em seu idioma podia expressar.
Cerca de uma hora antes de avistarmos os piratas eu havia feito uma observação, e descobri que estávamos em latitude de 46 graus norte e longitude de 183 graus. Quando eu estava a alguma distância dos piratas, descobri, usando meu anteolhos de bolso, várias ilhas a sudeste. Ajustei a minha vela, estando ainda o vento suave, com o propósito de chegar às ilhas mais próximas, tendo me esforçado para conseguir em cerca de três horas.
Era toda cheia de rochas: no entanto, encontrei muitos ovos de pássaros, e, fazendo fogo, queimei alguns matos e algas secas, onde assei os ovos que havia encontrado. Não comi mais nada na janta, tendo decidido economizar minhas provisões o máximo que pudesse. Passei a noite protegido por algumas rochas, espalhando alguns matos como cama, e dormi muito bem.
No dia seguinte naveguei para outra ilha, e daí para uma terceira e quarta, usando algumas vezes a minha vela e outras vezes os meus remos. Porém, para não incomodar o leitor com um relato detalhado dos meus infortúnios, basta dizer que, no quinto dia cheguei na última ilha que havia avistado, e que ficava a sul-sudeste da anterior.
Esta ilha estava a uma distância maior do que eu esperava, e eu não consegui chegar a ela em menos de cinco horas. Dei volta quase todo em torno dela, antes que pudesse encontrar um lugar adequado para desembarcar; e que era uma pequena enseada, cerca de três vezes a largura da minha canoa. Descobri que a ilha era toda rochosa, entremeada com tufos de grama, e ervas que tinham um cheiro doce.
Retirei as minhas poucas provisões e depois de ter me refrescado um pouco, guardei o resto numa caverna, dos quais havia ainda uma grande quantidade; colhi muitos ovos que havia nas rochas, e peguei uma porção de algas secas, e grama ressequida, com as quais eu planejava me aquecer no dia seguinte, e assar os ovos tão bem quanto me fosse possível, pois tinha comigo uma pederneira, um punhal, fósforo, e uma lupa para acender fogo.
Fiquei a noite inteira dentro da caverna onde havia colocado as minhas provisões. A minha cama era feita com os mesmos matos e algas secas que eu usava como combustível. Dormi muito pouco, por culpa da minha inquietação que prevalecia sobre o meu cansaço, e me mantive acordado. Refleti em como seria impossível preservar a minha vida num lugar tão desolado, e como seria triste o meu fim: contudo, me sentia tão apático e desanimado, que não tive ânimo para me levantar, e antes que tivesse forças o bastante para me rastejar para fora da caverna, o dia já havia clareado a muito tempo.
Caminhei durante algum tempo por entre as rochas: o céu era perfeitamente claro, e o sol tão quente, que eu era forçado a desviar o rosto dos raios: quando, de repente, ficou escuro, creio eu, que de uma maneira bastante diferente do que acontece com a interposição de uma nuvem. Voltei para trás e percebi um corpo vasto e opaco entre mim e o sol movendo-se para a frente em direção à ilha: julguei que tivesse duas milhas de altura, tendo ocultado o sol durante seis ou sete minutos; mas não percebi que o ar tenha ficado mais frio, ou o céu mais escuro, do que se estivesse debaixo das sombras de uma montanha.
A medida que a coisa se aproximava do lugar onde eu estava, me pareceu que fosse uma substância firme, com fundo plano, liso e brilhante com grande intensidade, devido ao reflexo do mar lá em baixo. Eu estava a uma distância de cerca de duzentos metros da praia, e vi que este corpo imenso descia quase que em paralelo comigo, a menos da distância de uma milha inglesa. Peguei o meu anteolho de bolso, e pude perceber claramente que uma multidão de pessoas se movia para cima e para baixo das laterais do corpo, que parecia estar se inclinando, mas o que aquelas pessoas estavam fazendo eu não fui consegui descobrir.
O amor natural pela vida despertou em mim um ímpeto de alegria, e já achava que poderia alimentar a esperança que esta aventura poderia, de uma forma ou de outra, ajudar a livrar-me do lugar desolado e da situação em que me encontrava. Mas, ao mesmo tempo, o leitor dificilmente poderá imaginar o meu assombro, em contemplar uma ilha suspensa, habitada por homens, que eram capazes (como parecia) de levantá-la ou baixá-la, e de colocá-la em movimento progressivo como desejassem.
Mas não me encontrando naquele momento com um espírito de questionamento a respeito daquele fenômeno, optei por observar o curso que a ilha iria tomar, porque durante algum tempo me pareceu que ela estava parada. No entanto, pouco tempo depois, ela avançou mais perto, e eu pude ver que as laterais dela eram cercadas por várias séries de galerias, e escadas, em determinados intervalos, que desciam de uma para outra.
Na galeria mais inferior, vi que algumas pessoas pescavam com longas varas com anzóis, e outras que olhavam. Agitei o meu boné (porque o meu chapéu estava desgatado a muito tempo) e o meu lenço em direção à ilha; e me achando mais próximo, chamava e gritava com todas as forças do meu pulmão; e então, olhando mais detidamente, vi que uma multidão se aglomerava daquele lado onde eu podia ver melhor.
Percebi que acenavam para mim e uns para os outros, e que declaradamente eles haviam me descoberto, ainda que não dessem respostas para os meus gritos. Mas pude ver que quatro ou cinco homens, correndo apressadamente, subiam as escadas, até o topo da ilha e desapareciam. Supus imediatamente que iam receber ordens de alguma autoridade para o que estava acontecendo.
O número de pessoas aumentou, e em menos de meia hora, a ilha se moveu e foi levantada de tal maneira, que a galeria mais baixa ficou em paralelo a menos de cem metros de distância da altura onde eu estava. Eu então me coloquei na posição mais suplicante, e falei usando tons de humildade, mas não obtive resposta. Aqueles que estavam mais perto de frente comigo, pareciam ser pessoas de alto nível, segundo supus por causa da roupa que usavam.
Conferenciavam seriamente uns com os outros, e me olhavam com frequência. Por fim, um deles gritou num dialeto claro, educado e suave, não muito diferente do som do idioma italiano: e por conseguinte, respondi nesse idioma, esperando pelo menos que o meu estilo fosse agradável aos ouvidos deles. Embora nenhum de nós entendesse uns aos outros, o significado do que dissera foi facilmente apreendido, pois as pessoas perceberam o apuro em que me encontrava.
Fizeram sinais para que eu descesse da rocha, e seguisse em direção à costa, o que fiz conforme mandavam; e estando a ilha voadora suspensa a uma altura adequada, com a borda diretamente sobre minha cabeça, uma corrente me foi lançada da galeria mais baixa, com um assento preso ao fundo, a qual me segurei e fui arrastado por polias.
[Descrição do temperamento e do caráter dos Lapucianos. Um relato do conhecimento desse povo. O rei e a sua corte. A recepção para o autor. Os receios e as inquietações dos seus habitantes. Um relato sobre as mulheres.]
Assim que cheguei, fui cercado por uma multidão de pessoas, mas aqueles que estavam mais próximos pareciam ser de melhor nível. Eles me olhavam com todos os sinais e características de que estavam encantados, mesmo eu de fato desfrutava dos mesmos sentimentos, pois jamais havia visto até então uma raça de mortais com maneiras, hábitos e aspectos tão exóticos.
A cabeça deles era totalmente inclinada, ou para a direita, ou para a esquerda, um de seus olhos era voltado para dentro, e o outro voltado diretamente para o céu. Suas roupas externas eram adornadas com figuras de sóis, luas, e estrelas, entremeados com violinos, flautas, harpas, trombetas, guitarras, cravos, e muitos outros instrumentos musicais desconhecidos para nós outros na Europa.
Observei por todos os lados, que muitos usavam roupas de criados, portando em suas mãos bexigas infladas, amarradas como um mangual na ponta de um bastão. Dentro de cada bexiga havia uma pequena quantidade de ervilhas secas, ou pequenos pedriscos, como fui informado posteriormente. Com estas bexigas, eles batiam de vez em quando nas bocas e nas orelhas daqueles que estavam próximos, prática essa que eu não consegui entender o significado.
Me pareceu que a mente daquelas pessoas estava tão absorvida com intensas preocupações, que eles não podiam nem falar, nem prestar atenção às ações externas, sem serem despertados por algum toque exterior sobre os órgãos da fala e da audição, e essa é a razão porque algumas pessoas que dispunham de recursos, mantinham um responsável (chamado por eles de CLIMENOLE) em suas famílias, como um de seus criados, e não saíam para fora nem faziam visitas sem a companhia de um deles.
E a função desse lacaio era, quando duas ou três pessoas se encontravam, bater suavemente com esta bexiga na boca do indivíduo que devia falar, e na orelha direita de quem ouvia ou de quem o interlocutor se dirigia. Este responsável era também utilizado para acompanhar o seu mestre em suas caminhadas, e de vez em quando, tocar-lhe suavemente os olhos com a bexiga, porque o seu contratante estava tão mergulhado em pensamentos, que ele corria o risco de cair em algum precipício, ou bater a cabeça contra algum poste, e nas ruas, de colidir com outras pessoas, ou de ser empurrado dentro de um canil.
Foi necessário oferecer ao leitor esta informação, sem a qual ele estaria em desvantagem comigo para entender o comportamento daquelas pessoas, quando eles me fizeram subir as escadas até o topo da ilha, e de lá até o palácio real. Enquanto estávamos subindo, por diversas vezes eles esqueceram o que estavam fazendo, e me deixavam sozinhos, até que suas memórias eram ativadas pelos seus criados, pois eles me pareceram completamente indiferentes com a visão da minha roupa de estrangeiro e do meu aspecto, e com os gritos das pessoas comuns, cujos pensamentos e mentes eram mais livres.
Enfim, entramos no palácio, e seguimos até a sala de audiência, onde vi o rei sentado em seu trono, acompanhado de ambos os lados por pessoas de alta linhagem. Diante do trono, havia uma mesa enorme repleta de globos e esferas, e instrumentos matemáticos de todos os tipos. O rei não teve a mínima percepção de nossa presença, embora a nossa entrada não tivesse ocorrido sem algum barulho, devido ao concurso de pessoas que faziam parte na corte.
Porém, estava ele extremamente preocupado com um problema, e nós aguardamos pelo menos uma hora, até que ele conseguisse resolvê-lo. Havia junto dele, de cada lado, um pajem com bexigas em suas mãos, e quando viram que ele havia terminado, um deles bateu gentilmente na boca do rei, e o outro em seu ouvido direito, e nisso ele se assustou como alguém que é acordado de repente, e olhando em minha direção e das pessoas que me acompanhavam, lembrou-se de ter sido anteriomente informado sobre nossa chegada.
Disse algumas palavras, e imediatamente um jovem com uma bexiga se aproximou de mim, e bateu levemente na minha orelha direita; porém, eu fiz sinais, tão bem quanto pude, de que eu não via necessidade do uso daquele instrumento, o que, como soube mais tarde, deu à sua majestade e à toda corte, um conceito muito desfavorável sobre a minha inteligência. O rei, pelo que pude supor, me fez várias perguntas, e eu me dirigia a ele em todos os idiomas que eu conhecia.
Quando percebi que eu não conseguiria entender nem ser entendido, fui conduzido, por ordens suas, para um apartamento em seu palácio (este príncipe se distinguira acima de seus antecessores em razão de sua hospitalidade aos estrangeiros), onde dois criados foram designados para me servir. Meu jantar foi trazido, e quatro pessoas de alto nível, de quem me lembro ter visto muito próximo da pessoa do rei, me fizeram a honra de jantar comigo.
Tivemos duas entradas, com três pratos cada uma. Na primeira entrada havia uma perna de carneiro cortada no formato de um triângulo equilátero, um pedaço de carne de boi no formato de um rombóide, e um chouriço de sangue na forma de um ciclóide. Na segunda entrada havia dois patos dispostos no formato de violinos, salsichas e chouriços parecendo flautas e oboés, e um peito de vitela no formato de harpa. Os criados cortavam o pão em cones, cilindros, paralelogramos, e várias outras figuras matemáticas.
Enquanto jantávamos, tomei a liberdade de perguntar os nomes de várias coisas no idioma deles, e aqueles nobres cavalheiros, com a ajuda de seus criados, tiveram a maior satisfação de me responderem, esperando aumentar a minha admiração por suas grandes habilidades se eu pudesse manter algum tipo de conversação com eles. Não demorou muito e já conseguia pedir pão e bebida, ou qualquer coisa que desejasse.
Depois do jantar os meus acompanhantes se retiraram, e uma pessoa me foi enviada por ordens do rei, acompanhada de um lacaio. Trazia consigo uma caneta, tinta, e papel, e três ou quatro livros, fazendo-me entender através de sinais, que ele havia sido enviado para me ensinar o idioma. Sentamo-nos juntos durante quatro horas, tempo esse que aproveitei para anotar um grande número de palavras em colunas, com as traduções ao lado delas; eu também me esforcei para aprender várias sentenças curtas; pois o meu professor havia mandado um dos meus criados a buscar alguma coisa, voltar-se, fazer uma reverência, sentar, ou ficar de pé, ou caminhar, e coisas assim.
Então eu anotava a frase no papel. Ele também me mostrou, em um dos seus livros, as figuras do sol, da lua, das estrelas, do zodíaco, dos trópicos, e dos círculos polares, junto com as denominações de muitos planos e sólidos. Me ensinou os nomes e descrições de todos os instrumentos musicais, e os termos gerais da arte de tocar cada um deles. Depois que ele se foi, coloquei todas as palavras que havia aprendido, com suas interpretações, em ordem alfabética.
E assim, em poucos dias, com a ajuda de minha fiel memória, adquiri alguns conhecimentos do idioma deles. A palavra, que eu entendia como ilha voadora ou flutuante, originalmente se fala LAPUTA, cuja etimologia jamais consegui aprender. LAP, no idioma arcaico e obsoleto, significava alto, e UNTUH, governante; da qual dizem eles que por corrupção teve origem a palavra LAPUTA de LAPUNTUH.
Mas eu não aprovei esta derivação, que me pareceu um pouco forçada. Arrisquei-me a oferecer, aos eruditos daquele povo, uma teoria criada por mim mesmo, de que LAPUTA era QUASI LAP OUTED; LAP significando na verdade a dança dos raios solares no mar, e OUTED, asa, suposição essa entretanto que não gostaria de impor, mas de submeter ao judicioso leitor.
Aqueles a quem o rei havia me confiado, observando como eu me trajava muito mal, ordenaram que um alfaiate me procurasse na manhã seguinte, e tirasse as medidas para a confecção de algumas roupas. Este operário cumpriu o seu papel de uma maneira diferente daqueles que praticam esse ofício na Europa.
Ele primeiro mediu a minha altura usando um quadrante, e depois, com régua e compassos, descreveu as dimensões e contornos de todo o meu corpo, e todos esses dados eram colocados no papel, e em seis dias trouxe minhas roupas muito mal feitas, e totalmente fora de medida, por ter-se equivocado com algum número durante o cálculo. Mas o meu consolo foi, que eu observei que tais acidentes eram muito frequentes, e pouco considerados.
Durante o meu confinamento por falta de roupas, e por culpa de uma indisposição que me afastaram alguns dias mais, eu aumentei consideravelmente o meu dicionário, e quando fui à corte pela segunda vez, consegui entender muitas coisas que o rei falou, e dar a ele algum tipo de resposta. Sua majestade havia dados ordens para que ilha se deslocasse para nordeste e pelo leste, até o ponto vertical sobre Lagado, a metrópole de todo o reino inferior, sobre a terra firme.
Localizava-se a cerca de noventa léguas de distância, e nossa viagem durou quatro dias e meio. Eu não tinha a menor ideia do movimento progressivo realizado pela ilha no espaço. Na manhã do segundo dia, por volta das onze horas, o próprio rei em pessoa, acompanhado por membros da nobreza, cortesãos, e oficiais, tendo preparado todos os instrumentos musicais, tocou para eles durante três horas sem interrupção, de tal modo que eu fiquei atordoado com tanto barulho, nem poderia ter adivinhado o significado daquilo, até que o meu professor me informou.
Ele disse que, as pessoas daquela ilha tinham os seus ouvidos adaptados para ouvir “a música das esferas, que sempre era tocada em determinados períodos, e a corte naquele momento estava preparada para tomar parte, com qualquer instrumento que eles tivessem mais habilidade.”
Em nossa viagem rumo a Lagado, a capital do país, sua majestade ordenou que a ilha deveria parar sobre certas cidades e vilarejos, para receber as petições de seus súditos. E para esta finalidade, várias cordas foram descidas, com pequenos pesos nas pontas. Sobre essas cordas as pessoas colavam seus pedidos, que subiam rapidamente, como os rascunhos de papel amarrados pelos estudantes na extremidade de um barbante que segura seus papagaios. Algumas vezes recebíamos vinho e alimentos do pessoal de baixo, os quais eram trazidos por meio de polias.
O conhecimento que eu tinha de matemática, me ajudou muito no aprendizado da confecção de frases, o qual dependia muito daquela ciência, e da música, e com relação à última eu tinha uma certa habilidade. Todas as ideias que expressavam eram constantemente transformadas em linhas e figuras.
Se eles, por exemplo, quisessem louvar a beleza de uma mulher, ou de qualquer outro animal, eles descreviam isso usando losangos, círculos, paralelogramos, elipses, e outros termos geométricos, e por meio de palavras artísticas retiradas da música, que não é necessário repetir aqui. Observei na cozinha do rei todos os tipos de instrumentos matemáticos e musicais, em cujas figuras eles cortavam as articulações da res que eram servidas na mesa da sua majestade.
Suas casas eram muito mal construídas, as paredes tortas, com nenhum ângulo reto em qualquer um dos apartamentos, e este defeito tinha sua origem no desprezo que dedicavam à geometria prática, pois a consideravam vulgar e mecânica; as instruções que eles ofereciam eram demasiadamente profundas para o intelecto de seus trabalhadores, que cometiam erros constantes.
E embora fossem habilidosos o bastante com um pedaço de papel, no uso da régua, do lápis, e do compasso, nas ações mais simples e no modo de viver, jamais vi povo mais tosco, desajeitado, e complicado, nem tão lentos e indecisos em suas concepções sobre todos os outros assuntos, exceto os de matemática e música. Eles tinham um raciocínio muito deficiente, gostavam de contrariar com veemência, exceto quando estavam com razão, o que era muito raro.
A imaginação, a fantasia, e a criatividade, são para eles totalmente desconhecidos, nem possuem eles em seu idioma palavras com as quais essas ideias possam ser expressas, todo o círculo de seus pensamentos e ideias está contido dentro das duas ciências mencionadas anteriomente.
A maioria deles, e especialmente aqueles que se dedicavam às ciências astronômicas, tinha sólida confiança na astrologia judicial, embora se sentissem envergonhados de admitir isso em público. Mas o que eu mais admirei neles, e me pareceu completamente inexplicável, foi a forte disposição que encontrei neles com relação à informação e à política, questionando continuamente a temática pública, dando suas opiniões em assuntos de estado, e debatendo apaixonadamente cada detalhe de uma opinião em particular.
Observei, na verdade, o mesmo entusiasmo entre a maioria dos matemáticos que eu conheci na Europa, embora nunca tivesse conseguido descobrir a menor analogia entre essas duas ciências, a menos que aquelas pessoas pensassem, que como o círculo menor tem a mesma quantidade de graus que o maior, assim também o controle e a administração do mundo não requeria maiores habilidades além de manejar e girar o globo; mas eu prefiro aceitar que esta condição nasce de uma enfermidade muito comum da natureza humana, que nos leva a ser mais curiosos e afetados por assuntos dos quais não detemos nenhum conhecimento, e para os quais estamos menos adaptados por uma questão de estudo ou natural.
Aquelas pessoas viviam sob constantes inquietudes, jamais desfrutando sequer de um pouco de paz de espírito, e a perturbação neles procedia de causas que afetavam muito pouco o resto dos mortais. As suas preocupações surgiram por causa das várias alterações que eles temiam em relação aos corpos celestiais: por exemplo, que a terra, por causa das contínuas aproximações do sol em relação a ela, deve, no decorrer do tempo, ser absorvida ou engolida; que a face do sol, será pouco a pouco incrustada por seus próprios eflúvios, e não fornecerá mais a sua luz para o mundo; e que a terra escapou por muito pouco de ser atingida pela cauda do último cometa, que com certeza a teria reduzido a destroços; e que o próximo, que eles calculavam para dali a trinta e um anos, iria provavelmente nos destruir.
Porque se, em seu periélio, a terra se aproximasse a uma determinada distância do sol (e segundo os seus cálculos eles tinham motivos para temer) ela iria receber uma intensidade de calor dez mil vezes maior do que aquela do ferro em brasa, e que na ausência do sol, ela arrastará uma cauda inflamável de um milhão e catorze milhas de comprimento, e se a terra passar a uma distância de cem mil milhas a partir do seu núcleo, ou do corpo principal do comenta, ela deverá em seu curso, se incendiar e se reduzir a cinzas: e que o sol, queimando diariamente seus raios sem qualquer combustível para alimentá-lo, seria finalmente totalmente consumido e aniquilado, o que seria acompanhado pela destruição da terra, e de todos os planetas que recebem luz dele.
Eles viviam tão permanentemente alarmados com tais preocupações, e com outras catástrofes parecidas, que eles nem conseguiam dormir tranquilamente em suas camas, nem tinham qualquer satisfação nos prazeres comuns e nas diversões da vida. Quando de manhã eles encontram um amigo, a primeira pergunta que fazem é sobre a saúde do sol, qual a aparência que ele tinha ao se por e ao se levantar, e quais as esperanças que ainda conservavam de impedir o choque com o cometa que se aproximava.
Eles abordavam esta conversação com a mesma disposição como os garotos quando descobrem com alegria ao ouvir as histórias terríveis de fantasmas e duendes, que escutam avidamente e não se atrevem a ir para a cama com medo.
As mulheres da ilha eram dotadas de grande vivacidade: elas ignoravam seus maridos, e eram extremamente apaixonadas por estrangeiros, dos quais existe uma quantidade considerável proveniente do continente abaixo, e que frequentavam a corte, ou para tratar assuntos das várias cidades e corporações, ou por motivos particulares, mas eram muito preteridos, porque lhes faltavam os mesmos talentos.
Dentre estes as damas elegiam seus cavalheiros: mas o problema é que elas agiam com excesso de tranquilidade e segurança, porque o marido estava sempre mergulhado em suas preocupações, que a esposa e o amante podiam se entregar a maiores familiaridades na cara dele, caso ele estivesse usando papel e outros implementos, sem um guardião do seu lado.
As esposas e as filhas lamentavam o isolamento na ilha, embora eu tenha achado que tenha sido o mais maravilhoso pedaço de terra do mundo, e embora eles vivam aqui com grande fartura e magnificência, e lhes fosse permitido fazer tudo que desejassem, eles sonhavam em ver o mundo, e levar as diversões para a metrópole, o que não lhes era permitido fazer sem uma licença particular do rei, e isto não foi fácil de conseguir, porque as pessoas da nobreza descobriram, através de inúmeras experiências, como é difícil convencer suas mulheres a retornarem de baixo.
Me contaram que uma grande dama da corte, que tinha vários filhos, — que era casada com o primeiro ministro, o súdito mais rico do reino, uma pessoa muito educada, que gostava muito dela, e que vivia no lugar mais requintado da ilha — desceu até Lagado a pretexto de cuidar da saúde, e lá se escondeu durante vários meses, até que o rei enviou uma ordem de procuração para resgatá-la; e ela foi encontrada numa obscura casa de alimentação toda em frangalhos, tendo empenhorado suas roupas para a manutenção de um lacaio mal vestido, que batia nela todos os dias, e em cuja companhia ela foi levada, muito contra sua vontade. E embora o marido dela a recebesse com toda gentileza possível, e sem a menor reprovação, não demorou muito e ela tentou fugir novamente, com todas as suas joias, com o mesmo cavalheiro, e nunca mais se ouviu falar dela.
Isto talvez para o leitor possa ser considerado mais uma história de europeu ou de um inglês, do que para alguém de um país tão remoto. Porém devemos considerar que os caprichos das mulheres não estão circunscritos a nenhum clima ou nação, e que esses fatos são muito comuns, como podem ser facilmente imaginados.
Por volta de um mês, eu havia feito um relativo progresso no idioma deles, e já podia responder a maioria das perguntas do rei, quando eu tinha o prazer de lhe fazer companhia. Sua majestade jamais demonstrou a menor curiosidade de perguntar sobre as leis, o governo, a história, a religião, ou os costumes dos países que visitei, mas restringiu suas perguntas sobre a situação da matemática, e recebia as notícias que lhe dava com grande desprezo e indiferença, muito embora fosse despertado pelo responsável por lhe bater com a bexiga de cada lado.
[Um assunto resolvido pelas filosofia e astronomia modernas. Grandes avanços dos lapucianos com relação à astronomia. O método do rei na supressão de insurreições.]
Supliquei a autorização deste príncipe para conhecer as curiosidades da ilha, que ele teve o maior prazer de permitir, e ordenou ao meu professor para que me acompanhasse. Desejava saber principalmente, por quais razões, da arte ou naturais, ocorriam os vários movimentos, sobre os quais irei agora algum fazer ao leitor um relato filosófico.
A ilha voadora ou flutuante era exatamente circular, seu diâmetro era de 7166 metros, ou cerca de quatro milhas e meia, e por consequência ela tinha uma área equivalente a dez mil acres. Tinha duzentos e setenta e quatro metros de espessura. A base, ou sua superfície inferior, que é vista por aqueles que a olham de baixo, é uma placa regular de diamante, atingindo a altura de aproximadamente centro e oitenta e dois metros.
Acima dessa placa ficavam os diversos minerais em sua ordem natural, e acima dela uma capa de terra riquíssima, de três metros a três metros e meio de profundidade. A declividade da superfície superior, da circunferência até o centro, é a causa natural pela qual o sereno e as chuvas, que caem sobre a ilha, são conduzidos para dentro de pequenos riachos no meio da ilha, de onde afluem para quatro grandes bacias, cada uma com quase uma milha de diâmetro, e a quase duzentos metros de distância do centro.
Nessas bacias a água é evaporada continuamente pelo sol durante o dia, e como resultado impede o seu transbordamento. Além do mais, cabe à autoridade do monarca elevar a ilha para cima das regiões de nuvens e vapores, de modo a impedir a queda de vapores e de chuvas sempre que o desejar. Porque as nuvens mais altas não podem subir mais que duas milhas, como concordam os naturalistas, pelo menos nunca se soube que era assim que as coisas aconteciam nesse país.
No centro da ilha havia uma cratera com cerca de quarenta e cinco metros de diâmetro, de onde os astrônomos desciam para um imenso domo, chamado por eles com o nome de FLANDONA GAGNOLE, que quer dizer caverna do astrônomo, situada a uma profundidade de cerca de noventa metros abaixo da superfície superior do diamante. Nestas cavernas havia vinte pontos de iluminação queimando continuamente, os quais, refletidos pelo diamante, lançavam uma luz forte para todos os lados.
Nesse lugar havia uma quantidade muito grande de sextantes[1], quadrantes[2], telescópios, astrolábios, e outros instrumentos astronômicos.
Mas o fato mais curioso, do qual dependia o destino da ilha, era uma pedra de magnetita de proporções gigantescas, parecendo-se com uma lançadeira de tecelão. Tinha o comprimento de quase seis metros, e na sua parte mais grossa media quase três metros ou mais. Esta magnetita era suspensa por um eixo muito forte de diamante passando pelo seu centro, sobre o qual ela se movimentava, e era colocada de modo tão preciso que podia ser movimentada sob o mais fraco impulso.
Era fixada por um cilindro oco de diamante, colocado horizontalmente, e apoiada por oito pés de diamante, cada um com mais de cinco metros de altura. Na parte interna do meio da parte côncava, ficava uma canaleta com trinta centímetros de profundidade, na qual as extremidades do eixo eram alojadas, e giravam quando houvesse necessidade.
A pedra não podia ser removida de sua localização por qualquer força, o círculo e suas bases formavam uma peça única com o corpo do diamante que constituia a base da ilha.
É por meio desta pedra que a ilha subia e descia, e se deslocava de um lugar para outro. Pois, com respeito à essa parte da Terra de onde o monarca imperava, a pedra era dotada em um dos seus lados por forças de atração, e do outro por forças de repulsão. Colocando a magnetita em posição ereta, com sua extremidade de atração em direção à Terra, a ilha descia; mas quando as extremidades de repulsão apontavam para baixo, a ilha subia diretamente em sentido vertical. Quando a posição da pedra era inclinada, o movimento da ilha se inclinava também: pois neste imã, as forças atuavam em linhas paralelas à sua direção.
Por meio deste movimento inclinado, a ilha se movimentava para partes diferentes dos domínio do monarca. Para entender como tudo isso acontecia, vamos supor que A B representem uma linha que foram traçadas através dos domínios de Balnibarbi, e suponhamos que C D representem a pedra magnetita, da qual façamos de conta que D seja a extremidade de repelência, e C a extremidade de atração, e a ilha ficando acima da linha C: vamos supor que a pedra seja colocada na posição C D, com sua extremidade de repulsão para baixo; a ilha seria deslocada para cima em posição oblíqua em relação a D.
Quando ela atinge D, admitamos que a pedra girasse em torno do seu eixo, até que a sua extremidade de atração apontasse para a direção E, e então a ilha se deslocaria obliquamente em direção a E, onde, se a pedra girar novamente em torno de seu eixo até ficar na posição E F, com sua extremidade de repulsão para baixo, a ilha irá subir obliquamente em direção a F, onde, direcionando a extremidade de atração em direção a G, a ilha pode ser deslocada para G, e de G para H, girando o imã, de modo a fazer com que a sua extremidade de repelência aponte diretamente para baixo.
E desse modo, mudando a posição da pedra, sempre que fosse necessário, a ilha poderia subir e descer por vezes em direção inclinada, e com essas subidas e descidas alternadas (não considerando a declividade) eram realizados os deslocamentos de uma parte do domínio para outra.
Mas devemos observar, que esta ilha não podia se mover além da extensão dos domínios abaixo, nem subir acima da altura de quatro milhas. Para isso os astrônomos (que escreveram imensos tratados a respeito da pedra) encontram a seguinte explicação: que a capacidade magnética não pode ser maior do que distância de quatro milhas, e que o mineral, que atua sobre a pedra nas entranhas da terra e do mar a cerca de seis léguas de distância do litoral, não se encontra difuso por todo o globo, mas está circunscrito às fronteiras dos domínios do rei; e era fácil para o príncipe, em razão da grande vantagem de sua condição de superioridade, fazer com que qualquer país lhe dedicasse obediência dentro dos campos de atração daquele imã.
Quando a pedra fosse colocada em plano paralelo ao horizonte, a ilha ficava parada; pois neste caso as extremidades do imã, estando a igual distância da terra, atuavam com forças de mesma intensidade, uma puxando para baixo e a outra empurrando para cima, e por consequência nenhum movimento podia ocorrer.
Esta magnetita ficava sob a responsabilidade de determinados astrônomos, que de vez em quando, movimentavam a pedra para as posições que o monarca determinava.
Passam, aquelas pessoas, a maior parte de suas vidas, observando os corpos celestiais, e fazem uso de espelhos, que superam os nossos com vantagem. Porque, embora seus maiores telescópios não fossem maiores que um metro, eles possuiam uma amplitude muito maior do que uma centena dos nossos, e mostravam as estrelas com maior clareza. Esta superioridade possibilitou a eles estenderem suas descobertas muito além dos nossos astrônomos na Europa; tendo eles criado um catálogo com dez mil extrelas fixas, ao passo que o maior dos nossos telescópios não consegue ver uma terça parte disso.
Eles também descobriram duas estrelas menores, ou satélites, que giram em torno de Marte; dos quais a distância do satélite mais próximo até o centro do planeta principal é exatamente três vezes o seu diâmetro, e o satélite mais distante, cinco, o primeiro tem um movimento de rotação sobre si mesmo de dez horas, e o segundo de vinte e uma horas e meia; de modo que os quadrados de seus tempos periódicos estão bem próximos da proporção com os cubos de suas distâncias até o centro de Marte, o que evidentemente resulta serem governados pela mesma lei de gravitação que influencia os outros corpos celestes.
Eles já observaram noventa e três cometas diferentes, e calcularam suas revoluções com grande exatidão. Se isto for verdade (e eles afirmam isso com grande confiança) seria muito desejável, que as observações deles fossem tornadas públicas, de modo que a teoria dos cometas, que atualmente é bastante imperfeita e incompleta, pudesse elevar-se à mesma perfeição que os outros estudos da astronomia.
O rei poderia ser o príncipe mais absoluto do universo, se ele conseguisse convencer que o ministério se juntasse a ele; mas como estes possuiam propriedades abaixo no continente, e considerando que a posição de favorito tinha uma duração incerta, jamais permitiriam a escravização do país.
Se alguma cidade se insurgisse com rebeldia ou insubordinação, desencadeasse desordens violentas, ou se recusasse a pagar os impostos usuais, o rei tinha duas maneiras de convencê-los à obediência. A primeira medida e a mais suave era, manter a ilha suspensa em cima da cidade em questão, e das terras que a circundavam, e com isso ele os privava dos benefícios do sol e da chuva, e consequentemente trazendo aflição aos habitantes como fome e enfermidades: e caso o crime fosse grave, grandes pedras eram atiradas ao mesmo tempo do alto, contra as quais não tinham defesa, exceto rastejando-se para dentro de covas ou cavernas, ao passo que os telhados de suas casas seriam reduzidos a destroços.
Mas se eles continuassem a insistir, e chegassem a provocar insurreições, ele lançava mão de seu último recurso, fazendo com que a ilha caisse diretamente sobre a cabeça deles, causando uma destruição total tanto das casas como das pessoas. Todavia, este era um recurso o qual o príncipe raramente utilizava, nem na verdade desejava ele por em execução tal medida, nem ousavam seus ministros propor-lhe tal ação, pois que isso causaria grandes prejuízos para suas propriedades, que ficavam todas abaixo, já que a ilha era propriedade do rei.
Mas havia ainda uma razão mais forte pela qual o rei desta nação sempre tinha aversão para executar uma ação tão terrível, a não ser em caso de extrema necessidade. Pois, se a cidade que ele pretendesse destruir tivesse rochas muito altas, como regra geral acontece nas maiores cidades, uma situação que provavelmente fosse uma opção com vistas a impedir tal catástrofe, ou se nela houvesse pináculos altíssimos, ou pilares de pedras, uma queda ocasional poderia por em risco a base ou a superfície inferior da ilha, que, embora fosse constituída, como eu disse, inteiramente por diamante, com quase duzentos metros de espessura, poderia se romper por um choque muito grande, ou explodir ao se aproximar demais dos fogos das casas abaixo, como acontece muitas vezes com as placas corta fogo de nossas chaminés, sejam elas de ferro ou de pedra.
De tudo isso as pessoas são muito bem informadas, e entendem até que ponto a teimosia deles pode chegar, quando a liberdade e a propriedade estão em questão. E o rei, quando provocado em seu mais alto grau, e mais determinado a transformar uma cidade em escombros, dá ordens para que a ilha desça bem suavemente, sob uma pretensa preocupação com as pessoas, mas, na verdade, com receio de quebrar a base de diamante, e nessas circunstâncias, segundo o ponto de vista dos filósofos desse país, a pedra magnetita não poderá mais sustentar a ilha, e todo o bloco poderia sucumbir.
Devido a uma lei fundamental deste reino, nem ao rei, nem a qualquer um de seus filhos mais velhos, é permitido deixar a ilha, nem a rainha, até que haja dado a luz.
↑Sextante:, é um instrumento elaborado para medir a abertura angular da vertical de um astro e o horizonte para fins de posicionamento global de navegação estimada, mas nada impede de ser usado para calcular as distancias comparando o tamanho aparente de objetos.
↑“Quadrante”:, O quadrante é na sua forma mais rudimentar, e tal como o nome indica, um instrumento que consiste num quarto de círculo graduado ao qual está fixo um fio de prumo.
[O autor deixa Laputa; e vai para Balnibarbi, chega na metrópole. Uma descrição da metrópole e das regiões circunstantes. O autor é recebido com hospitalidade por um grande senhor. Suas conversações com esse senhor.]
Embora não possa dizer que fui maltratado nessa ilha, devo confessar que me considerei muito menosprezado, e em alguns aspectos até com um certo grau de desdém, pois nem o príncipe nem as pessoas pareceram estar curiosas por nenhum estudo de conhecimento, exceto em matemática e música, no que eu estava em desvantagem em relação a eles, e por esse motivo eles tinham pouca consideração por mim.
Por outro lado, depois de ter visto todas as curiosidades da ilha, eu estava muito ansioso em sair dali, porque me sentia muito aborrecido com aquelas pessoas. Eles realmente eram excelentes nas duas ciências pelas quais tenho grande estima, e não era de todo leigo, mas, ao mesmo tempo, eles eram tão abstraídos e envolvidos em reflexões, que jamais conheci companheiros tão desagradáveis.
Eu conversava somente com as mulheres, os comerciantes, os criados que batiam com a bexiga, e os pajens da corte, durante dois meses de minha permanência naquele lugar; quando finalmente acabei me sentindo completamente desprezado; no entanto, aquelas eram as únicas pessoas de quem eu podia receber respostas razoáveis.
Eu havia conseguido, através do meu empenho, um grau apreciável sobre o conhecimento do idioma deles: eu estava cansado de permanecer confinado numa ilha onde recebia tão pouca atenção, e decidi abandoná-la na primeira oportunidade.
Havia na corte um grande senhor, quase que aparentado do rei, e somente por esta razão era tratado com respeito. Todos o tinham como a pessoa mais ignorante e estúpida daquele lugar. Ele havia realizado muitos serviços importantes para a coroa, possuía muitos dotes naturais e outros que foram adquiridos, adornados pela integridade e pela honra, mas tinha um péssimo ouvido para a música, que seus detratores contavam, “que ele era muito conhecido por tocar fora de ritmo”; nem tampouco conseguiam os seus professores com extrema dificuldade, ensiná-lo a realizar as questões mais rudimentares de matemática.
Ele tinha o maior prazer em fazer demonstrações para mim das muitas provas de sua benignidade, e muitas vezes me dava a honra de suas visitas, tinha curiosidade em saber sobre as coisas da Europa, as leis e os costumes, os hábitos e o conhecimento dos vários países por onde eu havia viajado. Ele gostava de me ouvir com muita atenção, e fazia sempre sábias observações sobre tudo que eu falava. Devido ao seu posto ele possuía dois batedores de bexiga mas jamais precisava deles, exceto na corte e nas visitas de cerimônia, e sempre pedia que eles se retirassem quando estávamos somente nós dois.
Supliquei a esta ilustre autoridade para que intercedesse em meu favor junto a sua majestade, para me permitir que partisse; o que fez ele, segundo se dignou contar-me, com grande pesar: pois na verdade ele me havia feito inúmeras propostas muito vantajosas, que eu, todavia, recusei, com expressões do mais alto reconhecimento.
No dia 16 de fevereiro me despedi de sua majestade e da corte. O rei me deu um presente no valor de aproximadamente duzentas libras inglesas, e meu protetor, seu parente, outro tanto, acompanhado de uma carta de recomendação para um amigo seu de Lagado, a metrópole. A ilha pairava em cima de uma montanha a cerca de duas milhas da capital, eu desci partindo da galeria mais baixa, da mesma maneira que me haviam subido.
O continente, que era subordinado ao monarca da ilha voadora, era conhecido pelo nome geral de BALNIBARBI, e a metrópole, como disse antes, era chamada de LAGADO. Eu senti um pouco de satisfação ao me encontrar novamente em terra firme. Caminhei em direção à cidade sem qualquer preocupação, pois estava vestido como um dos nativos, e tinha conhecimentos o bastante para conversar com eles.
Não demorou muito e logo encontrei a casa da pessoa para quem fora recomendado, apresentei a carta do seu amigo que era o todo poderoso da ilha, e fui recebido com muita cordialidade. Este grande senhor, que se chamava Munodi, me reservou um aposento em sua própria casa, onde fiquei durante a minha permanência naquele lugar, e fui tratado com a maior hospitalidade.
Na manhã seguinte da minha chegada, ele me levou em sua carruagem para conhecer a cidade, que tinha o tamanho da metade de Londres, mas as casas eram construídas de modo muito estranho, e a maioria delas havia falta de reparos. As pessoas nas ruas andavam com pressa, pareciam desesperados, tinham os olhos parados, e geralmente andavam maltrapilhos.
Atravessamos um dos portões da cidade, e avançamos cerca de três milhas em direção aos campos, onde avistei inúmeros trabalhadores utilizando vários tipos de ferramentas no solo, mas não conseguiam entender o que estavam fazendo: pois não observei a existência de milho ou de grama, embora o solo me desse a impressão de ser de excelente qualidade.
Não pude deixar de me surpreender com estas experiências estranhas, tanto da cidade como nas áreas rurais, e tomei a liberdade de perguntar ao meu condutor, se ele faria o favor de me explicar, qual era o significado de tantas cabeças, mãos, e rostos ocupados, tanto nas ruas como nos campos, porque eu não conseguia entender nenhum bom resultado que fosse produzido, mas, pelo contrário, nunca havia visto um solo tão mal cultivado, casas tão mal construídas e de tão má qualidade, ou pessoas cujas expressões e hábitos expressavam tanta miséria e necessidade.
Este senhor Munodi era pessoa de alto nível, e durante alguns anos havia sido governador de Lagado, mas, devido à conspiração dos ministros, ele foi demitido por incapacidade. Todavia, o rei tratou-o com respeito, porque era homem de boa índole, porém deficiente de entendimento.
Depois de haver feito aquela franca censura a respeito do país e de seus habitantes, ele não me deu mais nenhuma resposta além de me dizer, “que eu não havia estado tempo o bastante entre eles para fazer um julgamento, e que as diferentes nações do mundo possuíam diferentes costumes,” além de outros tópicos comuns com o mesmo objetivo. Porém, ao retornar para o seu palácio, ele me perguntou “se eu havia gostado da construção, que absurdos havia observado, e o que eu tinha a dizer sobre a roupa e o aspecto de seus criados?” Isto ele fez com segurança, porque tudo que havia ao seu redor era magnífico, harmonioso e elegante.
Disse a ele, “que a prudência, a natureza, e a sorte de sua excelência o haviam isentado daqueles defeitos, que a loucura e a miséria haviam produzido nos outros.” Disse ele, “que se eu pudesse acompanhá-lo até sua casa de campo, a cerca de vinte milhas de distância, onde ficava sua propriedade, teríamos mais tempo livre para este tipo de conversação.” Disse a sua excelência “que me colocava inteiramente ao seu dispor”; e conforme combinado partimos na manhã seguinte.
Durante o nosso passeio ele pediu para que eu observasse os diversos métodos usados pelos lavradores no manejo de suas terras, os quais eram para mim totalmente incompreensíveis, pois, com exceção de alguns poucos lugares, eu não conseguia descobrir nenhuma espiga de milho ou camada de grama. Porém, depois de três horas viajando, o cenário se modificou totalmente, penetramos a mais bela paisagem rural; as casas dos lavradores, a pequena distância, e perfeitamente construídas, os campos no entorno, contendo vinhedos, plantações de milho e a pastagem.
Nem me lembro ter visto paragens mais maravilhosas. Sua excelência notou que o meu semblante havia se descongestionado; e me disse, suspirando, “que ali começava a sua propriedade, e que continuava do mesmo jeito, até que chegássemos a sua casa: e que os seus compatriotas o ridicularizavam e o desprezavam, porque ele não cuidava bem de seus negócios, e por oferecer tão mal exemplo ao reino, comportamento esse, todavia, que era imitado por alguns, velhos, voluntariosos e fracos como ele mesmo.”
Chegamos finalmente na casa dele, que era de fato um edifício nobre, construído de acordo com as melhores regras da arquitetura antiga. As fontes, os jardins, os passeios, as avenidas, e os arvoredos, tudo estava disposto com perfeito bom senso e em bom estilo.
Fazia os elogios devidos a cada coisa que eu via, porém sua excelência não deu a menor atenção até depois do jantar, quando, não havendo uma terceira companhia, disse-me ele com um tom de profunda melancolia, “que ele receava ter de derrubar suas casas da cidade e do campo, e reconstruí-las de acordo com o modelo atual, destruir todas as suas plantações, para fazer outras na forma permitida pelo costume moderno, e tomar as mesmas medidas em relação a seus arrendatários, sob pena de incorrer em censura por motivo de orgulho, excentricidade, pretensionismo, ignorância, obstinação, e quem sabe até recrudescer o descontentamento de sua majestade, e que a admiração que eu parecia sentir se acabaria ou diminuiria, quando ele me informou de alguns detalhes, que, provavelmente, eu nunca tinha ouvido falar na corte, porque as pessoas alí estavam muito mergulhadas em suas meditações, para darem atenção ao que acontecia lá em baixo.”
O resultado de suas conversas teve este efeito: “Que a cerca de quarenta anos atrás, algumas pessoas subiram até Laputa, uns para fazer negócios, outros para diversão, e, depois de terem permanecido naquele lugar durante cinco meses, retornaram com um conhecimento muito superficial de matemática, mas repletos de ideias voláteis daquela região da atmosfera: e que estas pessoas, depois que retornaram, começaram a olhar com desdém a forma como eram tratadas todas as coisas que ficam aqui em baixo, e criaram planos para dar um novo impulso a todas as artes, ciências, idiomas, e aos estudos sobre a mecânica.
Para essa finalidade, procuraram uma patente real para erigir uma academia de cientistas em Lagado, e de tal modo se estendeu a fantasia entre aquelas pessoas, que não existe nenhuma cidade importante dentro do reino que não disponha dessa tal academia.
Nesses centros de estudos os professores criam novas regras e métodos de agricultura e construção, e novos instrumentos e ferramentas para todos os comércios e oficinas de produção, através dos quais, segundo pretendem eles, um homem faria o trabalho de dez, um palácio poderia ser criado em uma semana, com materiais tão duráveis que poderiam durar para sempre sem necessitar de reparos.
Todas as frutas da Terra poderiam amadurecer em qualquer estação que desejássemos escolher, e aumentar a sua produção centenas de vezes mais do que acontece atualmente, além de muitas outras propostas felizes. A única incoveniência era que nenhum desses projetos tinha sido ainda aperfeiçoado, e enquanto isso, o país todo se debatia em cruel desperdício, as casas estavam em ruínas, e as pessoas não tinham comida nem roupas.
Diante desse quadro, ao invés de desistirem, eles estavam cinquenta vezes mais decididos na consecução de seus planos, impulsionados também pela esperança e pelo desespero: e no que diz respeito a ele, não tendo espírito de empreendedor, ele ficaria satisfeito em seguir a moda antiga, de viver nas casas que os seus ancestrais haviam construído, e fazer como eles faziam, em todas as situações da vida, sem inovações: e que algumas outras pessoas importantes e da pequena nobreza haviam feito o mesmo, mas eram olhadas com sinais de desprezo e de má vontade, como se fossem adversários da arte, ignorantes, e inimigos da comunidade, preferindo a tranquilidade e a indolência em detrimento da melhoria geral do país onde moravam.”
Acrescentou também sua excelência, “que ele não desejava, ao relatar novos detalhes, tirar-me o prazer que seguramente eu teria em ver a grande academia, para onde ele havia decidido me levar.” Ele fez questão que eu observasse um edifício em ruínas, na lateral de uma montanha distante a três milhas, da qual ele me fez o seguinte relato:
“De que tinha ele um engenho que ficava a meia milha da sua casa, movido por uma corrente que vinha de um grande rio, e que era suficiente para a sua família, bem como para a grande maioria dos seus arrendatários; e que a aproximadamente sete anos atrás, um grupo daqueles cientistas vieram procurá-lo com planos para destruir o engenho, e construir um outro na lateral daquela montanha, na longa crista onde um canal seria aberto, como repositório das águas, que seriam levadas através de tubulações e mecanismos para o abastecimento do engenho, porque o vento e o ar das alturas agitavam a água, e portanto, a tornavam mais adequada para o movimento, e porque a água, descendo por causa da declividade, moveria o engenho com a metade da corrente do rio cujo curso está mais ao nível.”
Ele disse, “que como não tinha um bom relacionamento com a corte, e pressionado por muitos dos seus amigos, ele concordou com a proposta, e depois de serem utilizados cem homens durante dois anos, a obra foi abandonada, e os cientistas se mandaram, deixando que toda a culpa caisse em cima dele, e desde aquela época todos o censuram, além de repetirem com outros a mesma experiência, com igual garantia de sucesso, bem como igual desencanto.”
Decorridos alguns dias, voltamos para a cidade, e sua excelência, considerando a imagem ruim que ele tinha da academia, não quis me acompanhar, mas me recomendou a um amigo seu, para que me acompanhasse até lá. Meu senhor fez questão de me representar como grande admirador daqueles projetos, que eu era uma pessoa muito curiosa e fácil de convencer, e isso, na verdade, não era de todo inverídico, porque eu havia sido uma espécie de cientista nos dias de minha juventude.
[O autor é autorizado a visitar a grande academia de Lagado. Completa descrição da academia. As artes a que se dedicam os professores.]
Esta academia não é formada por um único edifício, mas tratava-se de uma série de várias construções de ambos os lados da rua, as quais tendo-se deteriorado, foram adquiridas e utilizadas para esse fim.
Eu fui recebido com muita atenção pelo administrador, e durante muitos dias visitei a academia. Em todos as salas havia um ou mais cientistas; e acredito que não estive em menos de quinhentas salas.
A primeira pessoa que conheci foi um homem de aspecto magro, com a cara e as mãos sujas de fuligem, usava cabelos e barbas longas, todo maltrapilho, e chamuscado em várias partes. Suas roupas, a camisa e a pele eram todos da mesma cor. Há oito anos que ele estava debruçado em cima de um projeto para extração de raios de sol a partir de pepinos, que deviam ser colocados em frascos de vidros hermeticamente fechados, e deixados aquecer ao ar livre nos verões inclementes e de forma natural.
Ele me contou, que não tinha dúvida, de que dentro de oito anos, ele conseguiria fornecer luz solar para os jardins do governador, a um custo razoável: mas ele se queixava que o seu estoque era baixo, e me pediu “que lhe oferecesse alguma coisa como estímulo à sua criatividade, especialmente porque esta tinha sido uma estação muito favorável para os pepinos.” Fiz questão de dar-lhe um presente, pois o meu senhor me havia favorecido com alguma soma para essa finalidade, porque ele conhecia a prática deles de pedir para todos aqueles que iam visitá-los.”
Fui para uma outra sala, porém quase recuei, pois um fedor horrível quase me dominou. O meu condutor me forçou a avançar, e me implorou quase em voz baixa “para que não fosse motivo de ofensa, pois poderiam ficar muito ressentidos,” e portanto não me atrevi tanto a ponto de acalmar o meu nariz. O cientista daquela sala era o estudante mais antigo da academia, seu rosto e sua barba eram amarelos pálidos, suas mãos e suas roupas cobertas de sujeira.
Quando fui apresentado a ele, ele me deu um forte abraço, cumprimento esse que eu poderia ter dispensado. As suas atividades, desde que chegou pela primeira vez na academia, era uma operação para reduzir o excremento humano ao seu alimento original, através da separação dos seus diversos componentes, removendo a tintura proveniente da bilis, fazendo exalar o mau cheiro, e removendo a saliva. Ele recebia cotas semanais da sociedade, de um recipiente repleto com excrementos humanos, aproximadamente a metade de um tonel dos que temos em Bristol.
Ví um outro trabalhando a calcinar gelo em pólvora; o qual também me mostrou um tratado escrito por ele relativamente à maleabilidade do fogo, que ele pensava em publicar.
Havia lá um arquiteto muito criativo, que havia pensado numa nova maneira de construir casas, começando pelo telhado, e trabalhando em sentido descendente até chegar a base, tendo ele me explicado, que práticas semelhantes eram feitas por insetos prudentes, tais como a abelha e a aranha.
Havia lá um homem que era cego de nascimento, que possuía vários aprendizes nas mesmas condições: a função deles era misturar as tintas para os pintores, os quais haviam aprendido com seus mestres a distinguir as diferenças de tons através do sentido e do olfato. Na verdade, tive a infelicidade de encontrá-los ainda naquela oportunidade com algumas deficiências em seus aprendizados, e o próprio professor ocasionalmente cometia alguns equívocos. Este artista era bastante estimulado e contava com a estima de toda a equipe.
Numa outra sala fiquei muito contente com um cientista que havia descoberto uma maneira de arar a terra utilizando porcos, com a finalidade de reduzir os custos de serviço, do rebanho e do trabalho.
O método era o seguinte: em um acre de solo você enterra, a quinze centímetros de distância e a vinte de profundidade, uma quantidade de bolinhas, tâmaras, castanhas, e outras frutas ou verduras que os animais gostam mais, depois você espalha seiscentos ou mais desse material pelo campo, onde, no prazo de alguns dias, eles irão penetrar por todo o terreno em busca de alimento, e tornando-os apropriados para a semeadura, e ao mesmo tempo em que é feita a adubação com esse esterco: é verdade que a experiência mostrou que o custo e o trabalho eram muito intensos e que eles tiveram pouco ou nenhum rendimento. Todavia, não há dúvida, de que esta invenção é suscetível de grande melhoria.
Fui para uma outra sala, onde as paredes e o teto estavam cobertos de teias de aranhas, com exceção de uma passagem estreita que o artista utilizava para entrar e sair. Ao entrar, ele gritou para mim em voz alta “para que tivesse cuidado com as teias.” Ele lamentava “o grande erro que o mundo havia permanecido durante tanto tempo, ao utilizar bichos-da-seda ao passo que tínhamos tantos insetos domésticos que eram muito superiores a ele, porque os bichos-da-seda sabiam como criar teias bem como tecê-las.”
Tendo ele proposto posteriormente, “que utilizando aranhas, poderia-se reduzir drasticamente o custo de coloração da seda,” tese essa que me convenci totalmente, quando ele me mostrou um vasto número de moscas lindamente coloridas, as quais ele utilizava para alimentar suas aranhas, e garantindo para nós “que as teias fariam a extração da tintura delas, e como ele as possuía de todas as tonalidades, ele tinha esperanças de satisfazer o gosto de todas as pessoas, assim que conseguisse encontrar o alimento adequado para as moscas, com base em determinadas gomas, óleos, e outras substâncias pegajosas, que oferecem força e resistência às teias.”
Havia lá um astrônomo, que havia assumido a tarefa de colocar um relógio de sol sobre um grande catavento na prefeitura da cidade, ajustando os movimentos anuais e diurnos da terra e do sol, de modo que atendam e coincidam com todos as revoluções do vento.
Eu havia me queixado de um pequeno acesso de cólica, quando o meu acompanhante me levou para uma sala onde ficava um grande médico, que era famoso por curar essa doença, com procedimentos contrários obtidos do próprio agente. Ele possuía um grande fole, que tinha um bocal longo e delgado feito de marfim: isso era introduzido até vinte centímetros dentro do ânus do paciente, e soprando com vento, ele afirmava que conseguia limpar o intestino deixando-o totalmente vazio como uma vesícula seca.
Porém, quando a doença era mais resistente e violenta, ele introduzia o bocal enquanto o fole estivesse cheio de ar, e descarregava dentro do corpo do paciente; em seguida, ele retirava o instrumento e tornava a enchê-lo, apertando fortemente o polegar contra o orifício do ânus do paciente, e isso era repetido três ou quatro vezes, os gases ocasionais começariam a serem expelidos, removendo as toxinas junto com eles, (como a água puxada por uma bomba), e o paciente se recuperava.
Eu o vi testar ambos os experimentos com um cachorro, mas não consegui distinguir nenhum diferença da experiência anterior. Com o último experimento o animal começou a evacuar, e de forma tão violenta que foi muito desagradável para mim e meu companheiro. O cachorro morreu ali mesmo, e nós deixamos o doutor que se esforçava para se recompor, usando os mesmos procedimentos.
Visitei muitas outras instalações, mas não vou incomodar o meu leitor com todas as curiosidades que observei, por causa da falta de tempo.
Com isto eu havia visto somente um lado da academia, o outro lado era reservado para os propagadores do estudo especulativo, do qual vou relatar alguma coisa, ao fazer a descrição de mais uma pessoa ilustre, denominada pelos seus colegas como “o artista universal.” Ele nos contou, “que durante trinta anos ele havia se dedicado à melhoria da vida humana.” Ele possuía duas grandes salas cheias de curiosidades maravilhosas, e cinquenta homens trabalhando.
Alguns deles estavam condensando ar em uma substância seca e tangível, extraindo o nitrogênio, e permitindo a filtragem das partículas aquosas ou fluidas; outros faziam estudos para o amolecimento do mármore, para que fossem utilizados em travesseiros e almofadas para alfinetes; outros petrificavam os cascos de um cavalo vivo, para impedir que eles atolassem.
O próprio artista estava naquele momento ocupado com dois grandes projetos, o primeiro, semear a terra com palha, onde afirmava ele que a virtude seminal estava contida, como demonstrou em diversos experimentos, os quais não fui habilidoso o bastante para compreender. O outro projeto era, utilizando uma certa composição de gomas, e vegetais, aplicados externamente, impedir o crescimento de lã nos cordeiros mais jovens, e ele esperava, num prazo de tempo razoável ampliar a raça de cordeiros pelados por todo o reino.
Fizemos um passeio para a outra parte da academia, onde, como já disse, moravam os cientistas de estudos especulativos.
O primeiro professor que encontrei, estava numa sala muito grande, com quarenta alunos em torno dele. Depois das saudações, tendo observado que eu olhava com curiosidade para um painel, que ocupava a maior parte tanto do comprimento como da largura da sala, disse ele, que “talvez eu pudesse gostar de vê-lo utilizando um projeto para a melhoria do conhecimento especulativo, por meio das operações práticas e mecânicas.”
Pois não demoraria muito para que o mundo compreendesse a sua utilidade, e se vangloriava que pensamento mais nobre e elevado jamais havia despontado na cabeça de qualquer outra pessoa. Todos sabiam como era trabalhoso o método atual para a conquista das artes e das ciências, ao passo que, graças às suas ideias, a pessoa mais ignorante, a um custo acessível, e com pouco esforço físico, poderia escrever livros de filosofia, poesia, política, direito, matemática, e teologia, sem necessidade de recorrer ao auxílio de um gênio ou através do estudo.”
Ele então me conduziu até o painel, que ficavam nas laterais, onde seus alunos permaneciam em fila. Ele tinha cinco metros quadrados, e estava colocado no meio da sala. As superfícies eram compostas por vários pedaços de madeira, aproximadamente do tamanho de um dado, porém alguns eram maiores que os outros. Todos eles eram ligados juntos por meio de finos arames. Esses pedaços de madeira eram cobertos, em cada quadrado, com papéis colados a eles, e sobre estes papéis estavam escritos todas as palavras do idioma deles, em seus mais diversos modos, tempos, e declinações, porém sem nenhuma ordem.
O professor então quis que eu “observasse, porque ele iria colocar seu mecanismo em funcionamento.” Os alunos, sob sua direção, seguravam cada um deles uma alça de ferro, das quais havia quarenta fixadas em torno das extremidades do painel, e dando-lhes uma volta súbita, toda a disposição das palavras se modificava totalmente. Pediu então para que trinta e seis dos garotos, lessem vagarosamente as diversas linhas, a medida que elas apareciam no painel, e quando eles encontravam três ou quatro palavras juntas que pudessem fazer parte de uma sentença, eles ditavam para os quatro garotos restantes, que eram os escreventes.
Esta operação foi repetida três ou quatro vezes, e em cada volta, o mecanismo era tão bem planejado, que as palavras se moviam para novos lugares, a medida que os pedaços de madeira quadrados se movimentavam de cima para baixo.
Seis horas por dia eram empregados pelos estudantes para realização desta tarefa, e o professor me mostrou vários volumes em grande formato, já colecionados, de frases incompletas, as quais ele pretendia montar, e além dessa riqueza de material, com a finalidade de oferecer ao mundo uma obra completa de todas as artes e ciências, as quais, todavia, poderiam ainda serem melhoradas, e em muito aceleradas, se o público criasse um fundo para construção e utilização de quinhentos painéis como aquele em Lagado, e obrigasse os diretores a contribuirem conjuntamente com suas inúmeras coleções.
Ele me garantiu que “naquela invenção havia utilizado todas a inteligência da sua juventude, que ele havia esgotado todo o vocabulário com o seu painel, e havia feito um cálculo rigoroso da proporção geral que havia nos livros entre os números de partículas, substantivos, e verbos, e outros componentes de uma oração.
Expressei meus reconhecimentos mais humildes à sua ilustre pessoa, pelo seu grande poder de comunicação, e prometi que “se algum dia tivesse a felicidade de retornar ao meu país natal, que eu lhe faria justiça, na qualidade de único inventor daquela máquina maravilhosa;” cuja forma e invenção eu desejaria registrar em papel, bem como na figura aqui anexada.
Disse a ele, que “embora fosse hábito de nossos eruditos da Europa roubar invenções uns dos outros, o qual tinha com isto pelo menos uma problemática, que se tornava controverso quem seria o verdadeiro autor do projeto, no entanto, eu tomaria certos cuidados, para que ele desfrutasse totalmente da honra, com a inexistência de qualquer competidor.”
Fomos em seguida para a escola de idiomas, onde três professores se sentaram com vistas a melhorar o seu país. O primeiro projeto era, a diminuição das frases, reduzindo os polissílabos em uma sílaba, e eliminando verbos e particípios, porque, na realidade, todas as coisas imagináveis nada mais são do que conceitos.
O outro projeto era, um plano para abolir inteiramente todas as palavras sejam elas quais forem, e isto era estimulado como grande vantagem do ponto de vista da saúde, bem como da brevidade. Pois acreditava-se, que toda palavra que falamos, de certa maneira, representa uma diminuição do nosso pulmão por efeito da corrosão, e consequentemente, contribui para a redução de nossas vidas.
Uma solução foi portanto proposta, “que sendo as palavras somente definições para coisas, seria mais conveniente que todas as pessoas levassem consigo tudo de que achassem necessário para expressar um negócio particular sobre o qual precisassem discorrer.”
E esta invenção certamente teria sido implantada, para grande comodidade bem como para o bem estar dos súditos, se as mulheres, aliadas às pessoas comuns e aos iletrados, não tivessem ameaçado levantar uma rebelião a menos que lhes fosse concedida a liberdade de falar com suas línguas, de acordo com os costumes de seus antepassados; tais inimigos perpétuos e irreconciliáveis com a ciência eram o povo vulgar.
Entretanto, a maioria dos mais sábios e eruditos aderiram ao novo projeto de se expressarem através das coisas, o qual apresentava apenas uma inconveniência de aprovação, que se os interesses de um homem fossem muito grandes, e muito variado, ele deveria ser obrigado, proporcionalmente, a carregar um grande saco de coisas nas suas costas, a menos que contratasse um ou dois criados para serví-lo.
Vi, muitas vezes, dois desses sábios quase afundando sob o peso de suas bagagens, a maneira de nossos mascates, que quando se encontram nas ruas, colocam no chão todas as suas coisas, abrem seus sacos, e ficam conversando durante horas, depois, voltam a guardar os utensílios, e ajudam uns ao outros para retomar as suas cargas, e se despedem.
Mas para conversações curtas, um homem poderia levar os objetos em seus bolsos, e debaixo de seus braços, o bastante para sua sobrevivência, e em sua casa, nada lhe poderia faltar. Portanto, a sala onde as pessoas encontravam aqueles que praticavam esta arte, estava cheia de objetos, prontos e indispensáveis, para fornecer material para este tipo de conversa artificial.
Uma outra grande vantagem proposta por esta invenção era, que isso servisse de idioma universal, para ser entendido por todas as nações civilizadas, e cujas mercadorias e utensílios geralmente são praticamente os mesmos, ou bem parecidos, de modo que seus usos pudessem ser facilmente compreendidos. E desse modo os embaixadores estariam qualificados para tratar com os príncipes estrangeiros, ou com os ministros de estado, para quem seus idiomas fossem completamente desconhecidos.
Estava eu numa escola de matemática, onde o mestre ensinava seus alunos segundo um método dificilmente imaginável por nós da Europa. A proposição e a demonstração eram escritas corretamente numa pastilha fina, com uma tinta feita de uma tintura encefálica. O estudante devia engolir isto com o estômago em jejum, e nos três dias seguintes, não comer nada exceto pão e água.
A medida que a pastilha era digerida, a tintura subia até a sua cabeça, levando a proposição junto com ela. Mas nenhum sucesso foi conseguido até o momento, em parte por algum erro no QUANTUM ou na composição, e em parte por causa da maldade dos garotos, os quais consideravam desagradáveis aquelas bolinhas, que eles geralmente colocavam de lado com a língua, e as disparavam para o alto, antes que elas começassem a funcionar, e nem se conseguiu convencê-los de fazer uma demorada abstinência, como exige a prescrição.
[Mais histórias sobre a academia. O autor propõe algumas melhoras, que são honrosamente recebidas.]
Na escola de cientistas políticos, fui mal recebido, parecendo os professores, de acordo com o meu julgamento, totalmente malucos, com uma imagem que nunca me deixava de causar tristeza. Aquelas pobres criaturas haviam propostos planos para convencer os monarcas para escolherem os favoritos mediante o grau da sabedoria, capacidade e virtude deles; de ensinar os ministros a deliberarem sobre o bem público; de recompensarem o mérito, as grandes habilidades, de ensinarem príncipes no conhecimento de seus verdadeiros interesses, colocando-os nos mesmos princípios que foram criados para o povo; de elegerem para os cargos pessoas qualificadas para os seus exercícios, além de muitos outros absurdos estúpidos e quase impossíveis, que nunca antes passaram pela mente humana, e que me deram a certeza diante das antigas observações, “de que não existe nada tão extravagante e irracional, que não tenha sido considerado como verdadeiro por alguns filósofos.”
No entanto, hei de fazer justiça a este departamento da Academia, a ponto de reconhecer que nem todos eles eram tão visionários. Havia lá um doutor extremamente criativo, que parecia dominar perfeitamente a arte da natureza e o sistema de governos.
Esta ilustre pessoa havia utilizado de forma bastante aproveitável os seus estudos, na descoberta de remédios eficazes para todas os males e corrupções às quais estavam sujeitos os mais diversos tipos de administrações públicas, em razão da imoralidade e da falta de vontade daqueles que governavam, bem como da licenciosidade daqueles que deviam obedecer.
Por exemplo: embora todos os escritores e pensadores pudessem concordar, que havia uma semelhança rigorosamente universal entre as organizações políticas e naturais, pode haver algo mais evidente, do que a preservação da saúde dessas duas instituições, e dos males sanados, utilizando-se dos mesmos procedimentos?
Sabe-se, que os senados e os grandes conselhos encontram-se frequentemente molestados por situações redundantes, calorosas e viciadas; por causa das numerosas enfermidades mentais e muitas outras de caráter íntimo; por fortes convulsões, por graves contrações dos nervos e dos tendões em ambas as mãos, mais particularmente da mão direita; por depressão, flatulência, vertigens, e delírios; por tumores ganglionares, repletos de matéria purulenta e fétida, por eructações ácidas e espumosas: por apetites caninos, e problemas de digestão, além de muitas outras enfermidade que são desnecessárias mencionar.
Este médico então propôs, que “durante uma reunião do senado, certos médicos deveriam estar presentes nos três primeiros dias de suas sessões, e no final das discussões de cada dia medissem os pulsos de cada senador, e depois de estudar e pesquisar com seriedade sobre a natureza das diversas enfermidades, e os métodos de cura, ele deveriam retornar no quarto dia à casa do senado, acompanhados por seus farmacêuticos trazendo os remédios apropriados; e antes de iniciar a reunião, administrar a cada um deles calmantes, xaropes, purgativos, corrosivos, medicamentos restringentes, paliativos, laxantes, cefalálgicos, ictéricos, apoflegmáticos, acústicos, como requerem os inúmeros casos, e segundo os efeitos provocados por estes remédios, repetir, mudar, ou deixar de prescrevê-los na próxima reunião.”
Este projeto não poderia ter custo nenhum para o público, e na minha opinião, poderia ser muito útil na deliberação dos assuntos, naqueles países onde o senado de alguma forma tivesse qualquer participação de poderes com o poder legislativo, para gerar consenso, encurtar debates, abrir algumas bocas que agora estavam fechadas, e fechar muitas outras que agora estavam abertas; inibir a impulsividade dos jovens, e corrigir o excesso de confiança dos idosos, despertar os tolos, e conter os insolentes.
E por se tratar de uma queixa que a todos aflige, e como os favoritos dos príncipes padecem de memória curta e fraca, o mesmo médico propôs, “que todo aquele que estivesse a serviço de um primeiro ministro, depois de haver-lhe comunicado todos os assuntos, com a maior brevidade possível e da forma mais natural, deveria, ao sair, dar ao mencionado ministro, uma torcida em seu nariz, ou um chute no seu estômago, ou uma pisada em seus calos, ou lhe puxasse três vezes suas duas orelhas, ou enfiasse um alfinete em suas ceroulas, ou beliscasse o braço dele até ficar roxo, para impedir que ele tivesse lapsos de memória, e todos os dias quando fosse tomar café com algum visitante, repetisse as mesmas operações, até que o problema fosse resolvido ou totalmente afastado.
Ele também pretendia, “que todo senador do grande conselho de uma nação, depois de haver apresentado suas opiniões, e discutido todas as suas propostas de defesa, deveria ser compelido a votar de forma diretamente oposta, porque se isso fosse feito, os resultados seriam direcionados certamente em benefício do povo.”
Quando os partidos de uma nação se mostrassem violentos, ele propunha uma invenção maravilhosa para a reconciliação deles. O método era o seguinte: Você pegava cem líderes de cada partido, você os colocava em pares aqueles cujas cabeças tivessem praticamente o mesmo tamanho; fazia com que dois funcionários de boa índole serrasse o occipício de cada dupla simultaneamente, de tal maneira que os cérebros fossem divididos de formas iguais.
Depois faria a troca dos occipícios, que foram cortados, e ajustando-os à cabeça do político do partido contrário. De fato, isso parecia ser um trabalho, que exigia uma certa precisão, mas o professor nos assegurou de “que se isso fosse feito com habilidade, a cura seria garantida.”
Pois defendia ele, “que as duas metades do cérebro que fossem deixadas discutindo o assunto entre si mesmas, formando um único crânio, em pouco tempo chegariam a uma solução, e produziriam a moderação, bem como a simetria dos pensamentos, tão desejáveis nas cabeças daqueles que imaginavam ter vindo ao mundo somente para observar e governar os seus movimentos: e com relação à diferença dos cérebros, tanto em qualidade como em quantidade, dentre aqueles que eram os diretores dos partidos, o doutor nos garantiu, com base em seus conhecimentos, que “isso era coisa totalmente sem importância,”
Tive a oportunidade de assistir a um debate muito caloroso entre dois professores, sobre os modos e procedimentos mais fáceis e mais eficientes de levantar recursos, sem molestar os súditos. O primeiro afirmava, “que o método mais justo seria, estabelecer um imposto determinado sobre os vícios e a loucura; devendo ser fixado o valor atribuído a cada pessoa, segundo a maneira mais correta, por meio de um jurado constituído por seus vizinhos.”
O segundo médico tinha opinião exatamente contrária, “na atribuição de um imposto para aqueles tipos de corpo e mente, para os quais os homens, principalmente, conservavam seus próprios valores; o valor deveria ser mais ou menos, consoante seus atributos de superioridade; cuja decisão ficaria inteiramente a cargo de seus próprios sentimentos.” Os valores mais altos caberiam a aqueles que são os preferidos do sexo oposto, e a determinação da penalidade deveria ser proporcional ao número e a natureza dos favores que houvessem recebidos; e para isso, eles mesmos deveriam julgar em causa própria.
A inteligência, o valor e a educação também foram propostos para que fossem taxados, e cobrados da mesma maneira, sendo que cada pessoa deveria dar sua palavra de honra para os recursos que ela possuía.
Mas em relação à honra, a justiça, a sabedoria, e ao conhecimento, não deveriam ser cobrados de modo algum, porque todas elas seriam qualificações com uma particularidade tão singular, que nenhuma pessoa conseguiria declarar isso para o seu vizinho ou avaliar tais qualidades em si mesmo.
Às mulheres foram propostas para que pagassem impostos em razão da beleza delas ou da habilidade com que se vestiam, recebendo elas os mesmos privilégios que os homens, os quais seriam definidos por critérios próprios. Mas a constância, a castidade, o bom senso, e o bom comportamento, não deveriam ser taxados porque eles não suportariam o custo da cobrança.
Para fazer com que os senadores estivessem a serviço da coroa, foi proposto que os membros passassem por um sorteio na conquista de um cargo; todo candidato depois de ter feito o juramento, e de oferecer garantias, de que ele votaria em favor da corte, quer ele vencesse ou fosse derrotado, reservando-se aos perdedores, por sua vez, a liberdade de serem sorteados para o próximo cargo que estivesse desocupado.
Desse modo, a esperança e a expectativa seriam mantidas vivas, ninguém se queixaria dos promessas não cumpridas, mas poderiam atribuir à sorte suas frustrações, cujos ombros são mais amplos e mais resistentes do que aqueles de um ministro.
Um outro professor me mostrou um enorme documento com instruções para descobertas de complôs e conspirações contra o governo. Ele aconselhava grandes homens de estado para que examinassem a dieta de todas as pessoas suspeitas; suas horas de alimentação, de que lado eles dormiam na cama, com qual de suas mãos eles limpavam os seus traseiros, fizessem um rigoroso exame de seus excrementos, e, de acordo com a cor, o cheiro, o sabor, a consistência, a forma natural ou transformada da digestão, e formassem um julgamento de suas opiniões e idéias, porque as pessoas nem sempre são tão sérias, cuidadosas, e objetivas, do que quando estão “sentadas no trono”, descoberta essa que ele fizera devido aos seus frequentes experimentos, pois, diante de tais conjunturas, tinha ele o hábito de refletir, apenas como experiência, em qual seria a melhor maneira de assassinar o rei, então os seus excrementos teriam uma coloração verde, mas seria muito diferente, se uma pessoa pensasse em levantar uma insurreição, ou incendiar uma metrópole.
Todo o raciocínio dele era escrito com grande perspicácia, contendo muitas observações, tanto curiosas como úteis para os políticos, mas, como imaginei, incompletas de maneira geral. Arrisquei dizer isto ao autor, e ofereci, caso o desejasse, dar a ele mais algumas orientações. Ele recebeu as minhas propostas com a maior condescendência não muito usual entre os escritores, particularmente aqueles com as características de cientista, e afirmou “que ele ficaria feliz em receber mais informações.”
Disse a ele, “que no reino de Tribnia, chamado pelos nativos como Langdon, onde havia estagiado durante algum tempo em minhas viagens, a maioria das pessoas era constituída, de certa maneira, totalmente por descobridores, testemunhas, informantes, acusadores, perseguidores, indiciadores, blasfemadores, assim como seus inúmeros instrumentos de subserviência e subalternidade, todos eles sob a bandeira, direção e remuneração de ministros de estados, e dos seus deputados.”
Os complôs naquele reino, normalmente eram artifícios daquelas pessoas que desejavam realçar suas imagens de políticos responsáveis, para dar nova força para aquela administração decadente, sufocar ou desviar descontentamentos generalizados, enchendo seus cofres com os confiscos, e levantar ou derrubar a opinião da credibilidade pública, e que melhor resultado trouxesse para seus interesses particulares.
A princípio haviam concordado e estabelecido entre eles, quais pessoas seriam acusadas de complô, depois, um cuidado especial deveria ser tomado com relação as suas cartas e documentos, e colocando seus possuidores na cadeia. Estes documentos deveriam ser entregues a um quadro de artistas, bastante habilidosos para descobrirem os significados misteriosos das palavras, sílabas, e letras: por exemplo, eles poderiam descobrir que um banquinho fechado poderia significar um conselho particular; um bando de gansos poderia ser um senado; um cachorro manco, um invasor; a peste, um exército de prontidão; um urubu, um primeiro ministro; uma gota, um alto sacerdote; uma forca, um secretário de estado; um penico, uma comissão de pessoas ilustres; uma peneira, uma dama da corte; uma vassoura, uma revolução; uma ratoeira, um cargo; um poço sem fundo, um tesouro; um pianista, uma corte; um capuz e algumas cascavéis; um favorito, uma flauta quebrada; uma corte de justiça; um tonel vazio, um general; uma ferida sangrando, uma administração.
Quando este método falhava, eles possuíam dois outros mais eficientes, que os entendidos entre eles chamavam de acrósticos e anagramas. Em primeiro lugar, eles poderiam decifrar todas as letras iniciais em seus sentidos políticos. Assim o N poderia significar uma conspiração, o B, um regimento de cavalaria; o L, uma frota de navios; ou, em segundo lugar, fazendo a transposição das letras do alfabeto de qualquer documento suspeito, eles poderiam fazer transparecer os sinais mais recônditos de descontentamento de um partido.
Assim, por exemplo, numa carta para um amigo se poderia falar, “O nosso irmão Tom teve um ataque de hemorróidas,” um habilidoso decifrador iria descobrir, que as mesmas letras que compõem essa frase, poderiam ser analisadas na seguintes palavras: “Resista —, um complô está para acontecer — Viaje.” E é assim que funciona o método constituído por anagramas.
O professor expressou seu grande reconhecimento por haver-lhe informado a cerca destas observações, e prometeu fazer menções honrosas a meu respeito em seu tratado.
E não vi nada naquele país que me fosse um convite para uma permanência mais prolongada, e comecei a pensar em meu retorno para a Inglaterra.
[O autor sai de Lagado e chega em Maldonada. Nenhum navio estava disponível. Empreende uma pequena viagem à cidade de Glubbdubdrib. A recepção do autor por parte do governador.]
O continente, ao qual este reino estava separado, estendia-se, como tenho razões para crer, a leste, para aquela região da América na parte oeste da Califórnia; e ao norte pelo Oceano Pacífico, que não passa de cento e cinquenta milhas de Lagado; onde existe um movimentado porto, e um florescente comércio com a ilha grande de Luggnagg, situada a noroeste a aproximadamente 29 graus de latitude norte, e 140 graus de longitude. A ilha de Luggnagg ficava na parte sudeste do Japão, a cerca de cem léguas de distância.
Existe uma estreita aliança entre o imperador japonês e o rei de Luggnagg, o que permite frequentes oportunidades de navegação de uma ilha a outra. De modo que decidi orientar a minha viagem por esta rota, segundo minhas pretensões de retornar à Europa. Contratei duas mulas, e mais um guia, para que me mostrassem o caminho, e levassem minhas poucas bagagens. Me despedi do meu nobre protetor, o qual havia sido muito gentil comigo, e ofereci a ele um generoso presente em vista de minha partida.
A minha viagem ocorreu sem quaisquer acidentes ou acontecimentos dignos de menção. Quando eu cheguei ao porto de Maldonada (pois era assim que se chamava) não havia nenhum navio no porto com destino a Luggnagg, nem havia qualquer perspectiva de aparecer um nos próximos períodos. A cidade era praticamente tão grande quanto Portsmouth[1]. Em pouco tempo fiz algumas amizades, e fui recebido com muita hospitalidade.
Um senhor de nobre aspecto me disse, “que não havendo navios disponíveis com destino a Luggnagg num período menor que trinta dias, não me seria um passatempo desagradável se eu fizesse um passeio à pequena ilha de Glubbdubdrib, aproximadamente a cinco léguas de distância à sudoeste.” Ele próprio e um amigo se ofereceram para me acompanhar, e além disso eu não poderia prescindir de um barco pequeno e adequado para a viagem.”
Glubbdubdrib, em seu sentido etimológico mais preciso, significava ilha dos feiticeiros e dos mágicos. Ela tinha cerca de um terço do tamanho da Ilha de Wight[2], e era extremamente fértil: era governada pelo chefe de uma certa tribo, e que todos eles tinham sido mágicos. Esta tribo se casava somente entre si, e o mais velho da sucessão era o príncipe ou governador. Havia lá um suntuoso palácio, e um parque com aproximadamente três mil acres, cercado por uma muralha feita de pedra talhada com mais de seis metros de altura. Neste parque havia diversos espaços reservados para o gado, cultivo de cereais e jardinagem.
O governador e sua família eram servidos e assistidos por criados de certo modo um tanto singulares. Devido a suas habilidades com a necromancia, o governador tinha o poder de evocar os mortos, qualquer um que ele quisesse, e de colocá-los a seu serviço durante vinte e quatro horas, porém, não mais que isso; nem podia ele evocar as mesmas pessoas novamente num prazo menor que três meses, exceto em situações muito extraordinárias.
Quando eu cheguei na ilha, sendo já por volta das onze da manhã, um dos cavalheiros me acompanhou em uma visita ao imperador, solicitando a autorização para um estrangeiro, que havia chegado com o intuito de conhecer a sua alteza. A permissão foi concedida imediatamente, e nós três atravessamos os portões do palácio diante de duas filas de sentinelas, armados e vestidos à moda de um costume muito antigo, e com alguma coisa em seus semblantes que me fazia tremer com um pavor que eu não consigo explicar.
Passamos diante de vários apartamentos, entre servidores da mesma linhagem, postados um de cada lado como antes, até que chegamos até a sala de audiência, onde depois de externarmos três reverências profundas, e de responder algumas perguntas, foi-nos permitido que sentássemos em três banquinhos, perto do degrau mais inferior ao trono da sua alteza. Ele compreendia o idioma falado em Balnibarbi, embora houvesse diferenças com o que era falado naquela ilha. Ele pediu para que eu falasse um pouco sobre as minhas viagens, e deu a entender que eu seria tratado sem cerimônia; dispensou todos os seus acompanhantes com um gesto de dedo, tendo visto eu, com grande assombro, que eles desapareceram rapidamente, como se fossem visões de um sonho como quando acordamos repentinamente.
Levei algum tempo para me recompor, até que o governador me garantiu, “que eu teria minha integridade assegurada:” e observando os meus dois companheiros que demonstravam uma certa preocupação, mas que tinham sido tratados da mesma maneira, comecei a tomar coragem, e relatei a sua alteza uma pequena história da minhas inúmeras aventuras; não, todavia, sem alguns sobressaltos, e várias vezes olhava para trás para o lugar onde havia visto antes as figuras dos criados. Tive a honra de jantar com o governador, onde um novo elenco de fantasmas serviu a refeição, e fazia as honras da mesa.
Percebia eu que agora estava menos assustado do que estivera quando de manhã. Fiquei até o sol se por, porém, humildemente pedi desculpas à sua alteza por não aceitar o convite que ele me fizera para me hospedar em seu palácio. Meus dois amigos e eu ficamos numa casa em particular de uma cidade nas proximidades, que era a capital da pequena ilha, e na manhã seguinte retornamos para prestar nossas homenagens ao governador, como ele próprio nos havia solicitado.
E desse modo permanecemos na ilha durante dez dias, a maior parte de todos os dias com o governador, e a noite em nossos alojamentos. Logo me familiarizei com a visão dos espíritos, tanto que depois da segunda ou terceira vez eles já não me causavam nenhum pavor: ou, se alguns receios ainda houvessem, a minha curiosidade superava todos os medos.
Pois, a sua alteza, o governador, me ordenou “que eu evocasse qualquer pessoa cujos nomes me ocorresse, e quantos desejasse, dentre todos os mortos desde o começo do mundo até o tempo atual, e ordenou-lhes que respondessem a quaisquer perguntas que achasse apropriado fazer, desde que as minhas perguntas ficassem restritas ao período de tempo que eles tivessem vivido.”
E de uma coisa eu poderia estar certo, de que eles certamente diriam somente a verdade, porque a mentira era um recurso sem utilidade no mundo inferior.” Expressei à sua alteza os meus mais humildes reconhecimentos por sua preciosa atenção.
Nós estávamos num compartimento do palácio de onde podíamos ter uma bela vista para o parque. E como pretendíamos nos entreter com momentos de pompa e magnificência, pedi para ver Alexandre, O Grande, no comando do seu exército, pouco depois da batalha de Arbela[3]: e com um movimento de dedo do governador, imediatamente surgiu um campo imenso, sob a janela onde nós encontrávamos.
Alexandre foi chamado para que viesse até o local onde nos estávamos: foi com grande dificuldade que entendi o grego que ele falava, porque eram parcos os meus conhecimentos dessa língua. Ele me garantiu pela sua honra “de que não havia sido envenenado, mas que morrera por causa de uma febre insidiosa que se instalara por ter bebido demais.”
Em seguida, eu vi Aníbal atravessando os Alpes, e que me disse “não haver uma gota de vinagre no seu acampamento.” E vi César e Pompeu comandando suas tropas, prontos para um combate. Vi César em seu grande e último triunfo. Desejei que o senado de Roma aparecesse diante de mim, em uma sala grande, e uma assembléia de uma época um pouco posterior, para efeito de comparação, numa outra sala. A primeira parecia ser uma assembleia de heróis e semideuses; a outra, um bando de mendigos, batedores de carteiras, salteadores de estradas, e de valentões.
O governador, a meu pedido, fez sinal para que César[4] e Brutus[5] se aproximassem de nós. Fui tomado por um sentimento de profunda veneração diante da visão de Brutus, e pude facilmente perceber as mais evidentes demonstrações de virtude, inaudita coragem e firmeza de espírito, o amor mais sincero pelo seu país, e uma evidente benevolência pela humanidade, em todos os aspectos de sua expressão.
Observei, com muito prazer, que essas duas pessoas demonstravam boa compreensão uma para com a outra, e César teve a liberdade de me confessar, “que as maiores ações da sua vida não se comparavam, nem de longe, à glória que lhe haviam subtraído.” Eu tive a honra de iniciar um diálogo com Brutus, e ele me disse, “que os seus ancestrais, Junius, Sócrates[6], Epaminondas[7]; Catão, O Jovem[8]; Sir Thomas More[9], e ele próprio estavam sempre juntos: esse era um sextunvirato[10] ao qual todas as épocas do mundo não poderiam acrescentar um sétimo.”
Seria tedioso cansar o leitor com relatos das inúmeras personalidades ilustres que foram evocadas para satisfazer o desejo insaciável que eu tinha de conhecer o mundo em todos os períodos da antiguidade e que foram colocados diante de mim. Mas, sobretudo, enchi os meus olhos na contemplação daqueles destruidores de tiranos e usurpadores, e dos restauradores da liberdade das nações oprimidas e ameaçadas. Porém, é impossível expressar a satisfação que senti dentro de mim, a ponto de tornar as minhas aventuras um passatempo divertido para o leitor.
↑Portsmouth: é uma cidade do condado de Hampshire, ao sul da Inglaterra.
↑A Ilha de Wight é uma ilha localizada ao sul de Southampton, na costa sul da Inglaterra.
↑Batalha de Arbela:, também chamada de Batalha de Gaugamela, cidade da Assíria, onde Alexandre, O Grande, da Macedônia, venceu Dario III no dia primeiro de outubro do ano 331 a.C.
↑Júlio César: (* 13 de julho do ano 100 a.C † 15 de março do ano 44 a.C), foi um imperador, patrício, líder militar e político romano.
↑Décimo Júnio Bruto Albino, (* 81 a.C † 43 a.C), filho adotivo de César, foi general e político romano, tendo sido mais tarde um de seus conspiradores e assassinos.
↑Sócrates (* 469 a.C † 399 a.C): foi filósofo grego e mestre de Platão. Não deixou nenhum registro, porém, seus princípios estão de acordo com os atuais conceitos cristãos.
↑Epaminondas (418 a.C † 362 a.C.) foi general tebano e chefe de estado grego.
↑Catão, O Jovem (* Roma, 95 a.C † Útica, na atual Tunísia, em abril do ano 46 a.C): foi político, chefe de estado e filósofo romano.
↑Sir Thomas More, (* 7 de fevereiro de 1478 † 6 de julho de 1535), foi santo, bacharel, filósofo e humanista inglês. Foi decapitado por não concordar com o casamento de Henrique VIII.
↑Sextunvirato: governo administrado por seis indivíduos, associação constituída por seis cidadãos, reunindo sobre si toda autoridade.
[Mais histórias sobre Glubbdubdrib. Correção das histórias antiga e moderna.]
Desejando conhecer aquelas personagens antigas que haviam se notabilizado pela inteligência e pela erudição, dediquei um dia inteiro para essa finalidade. Propus então que Homero[1] e Aristóteles[2] aparecessem diante de todos os seus comentadores, estes, porém, eram em número tão elevado, que centenas deles foram obrigados a esperar na corte, e nas salas externas do palácio. Logo de vista conheci e pude distinguir estes dois heróis, não só dentre a multidão, mas também um do outro.
Homero era o mais alto e a pessoa mais simpática dentre os dois, caminhava de forma bastante correta para uma pessoa da sua idade, e o seus olhos eram os mais vivos e penetrantes dentre os que já havia visto. Aristóteles andava muito curvado, e usava uma bengala. Seu rosto era magro, seus cabelos eram lisos e finos, e sua voz cavernosa. Logo notei que os dois eram verdadeiros estranhos em relação aos demais que ali compareciam, e que nunca tinham visto ou ouvido falar deles; e um fantasma de cujo nome declinarei, me sussurrou: "que estes comentadores sempre se mantinham nos lugares mais afastados dos seus comentados, no mundo inferior, devido ao sentimento de vergonha e culpa, porque haviam representado de forma tão adulterada o pensamento dos autores para a posteridade."
Eu apresentei Dídimo[3] e Eustácio à Homero, e os convenci para que fossem tratados melhor talvez do que merecessem, pois ele logo notou que eles queriam que um gênio assumisse o comando do espírito do poeta. Aristóteles, porém, perdeu toda sua paciência devido ao relato que lhe fiz de Escoto e de Ramus, quando lhes apresentei a ele, e perguntou-lhes, "se os outros membros daquela tribo eram tão ignorantes como eles próprios?"
Em seguida, solicitei ao governador para que evocasse Descartes e Gassendi, com quem insisti para que explicassem seus sistemas a Aristóteles. Este grande filósofo espontâneamente reconheceu seus próprios equívocos com relação à filosofia natural, alegando que muitas vezes fizera uso da imaginação, como fazem todas as pessoas, e ele achou que Gassendi, que havia tornado a doutrina de Epicuro tão aceitável quanto possível, bem como os vórtices de Descartes, haveriam de ser desmascarados. Ele prognosticou a tão conhecida teoria da atração, de quem os sábios em questão são seus zelosos divulgadores. Disse ele, "que os novos sistemas da natureza eram apenas novos modismos, que poderiam variar em todas as épocas, e mesmo aqueles, que fingem demonstrar essas teorias a partir de princípios matemáticos, teriam seus momentos de glória somente por um curto período de tempo, perderiam o seu brilho quando isso fosse determinado."
Passei cinco dias conversando com muitos outros dos antigos que conheci. Vi a maioria dos primeiros imperadores romanos. Insisti para que o governador evocasse os cozinheiro de Heliogabalus para que nos preparasse um jantar, mas não lhe foi possível demonstrar muitas das suas habilidades, por falta de material. Um escravo de Agesilaus preparou para nós um prato de sopa espartana, mas não consegui dar uma segunda colherada.
Os dois cavalheiros, que haviam me levado até a ilha, tinham pressa para decidir seus assuntos particulares pois deviam retornar em três dias, tempo esse que utilizei para ver alguns dos mortos modernos, que haviam sido uma das maiores figuras, durante duzentos ou trezentos anos no passado, em nosso próprio e em outros países da Europa, e tendo sido sempre um grande admirador das antigas famílias ilustres, pedi ao governador que evocasse uma ou duas dúzias de reis, acompanhados de seus ancestrais em ordem de suas oito ou nove gerações.
Porém o meu desapontamento foi doloroso e inesperado. Porque, no lugar de uma imensa comitiva desfilando diademas reais, vi em uma família dois violinistas, três elegantes cortesãos, e um prelado italiano. Numa outra, um barbeiro, um abade, e dois cardeais. Eu sentia uma veneração muito grande por cabeças coroadas, para permanecer muito tempo com um tema tão fascinante. Porém, com relação aos condes, marqueses, duques, e outras dignidades honoríficas, não tive tantos escrúpulos. E devo confessar, que não foi sem alguns resquícios de prazer, que eu pude rastrear os aspectos particulares, com os quais se notabilizaram determinadas famílias, desde suas origens.
Pude descobrir claramente de onde provêm numa família um queixo pronunciado, porque uma outra era repleta de patifes durante duas gerações, e de tolos por mais duas; porque uma terceira família era constituída por pessoas fracas de cabeça, e uma quarta de criaturas mais perspicazes; sendo decorrente desse fato, o que Polidoro Virgílio dizia a respeito de uma certa casa de renome, NEC VIR FORTIS, NEC FŒMINA CASTA[4]; o modo como a crueldade, a falsidade, e a covardia, começaram a se tornar as características pelas quais determinadas famílias se distinguiam, bem como pelos seus brasões de armas; quem pela primeira vez trouxe a varíola para uma casa nobre, o que acabou se transformando em tumores escrofulosos para a posteridade. Nem poderia eu ficar surpreso diante de tudo isso, quando eu conheci uma certa interrupção de linhagem de constituída por escudeiros, lacaios, valetes, cocheiros, jogadores, violinistas, atores, capitães e ladrões de carteira.
Fiquei, principalmente, decepcionado com a história moderna. Pois, tendo examinado rigorosamente todas as pessoas de maior distinção nas cortes dos príncipes, durante cem anos no passado, descobri como o mundo havia sido mal conduzido por escritores corruptos, que atribuiram as maiores façanhas de guerra, a homens covardes; os conselhos mais sábios, a néscios; a sinceridade, a aduladores; a virtude romana, a traidores de suas pátrias; a piedade, a ateus, a castidade, a sodomitas; a verdade, a espiões: quantas pessoas inocentes e de grande mérito foram condenadas a morte ou ao exílio devido à influência de grandes ministros mediante a corrupção dos juízes, e a maldade de determinadas facções: quantos vilões foram exaltados aos píncaros da verdade, do poder, da dignidade e da vantagem: como era intensa a participação nos movimentos e nos acontecimentos das cortes, conselhos, e senados que foram desafiados por cafetinas, prostitutas, alcoviteiros, parasitas e bufões.
Como era pouco o respeito que eu tinha com relação à sabedoria e à integridade humana, quando fui verdadeiramente informado a respeito dos recursos e das razões das grandes iniciativas e revoluções existentes no mundo, e dos fatos desprezíveis que resultaram na sua vitória.
Foi aí que eu descobri a malandragem e a ignorância daqueles que fingem escrever fatos engraçados, ou uma história secreta; que mandaram tantos reis para suas sepulturas com uma taça de veneno; irão repetir o debate entre um príncipe e um primeiro ministro, não havendo nenhuma testemunha por perto; desvendam os pensamentos e os gabinetes de embaixadores e secretários de estado, e possuem o eterno infortúnio de se equivocarem permanentemente. Aqui eu descobri as verdadeiras causas de muitos grandes eventos que causaram assombro para o mundo; como uma prostituta podia governar dos bastidores, os bastidores de um conselho, e o conselho de um senado.
Um general confessou, em minha presença, "que ele havia sido vitorioso simplesmente devido à força da covardia e da ausência de comando;" e um almirante, "que, por não dispor de inteligência própria, derrotara o inimigo, cuja frota ele pretendia trair." Três reis reclamaram para mim, "que durante todo o reinado deles jamais tiveram preferência por qualquer pessoa de valor, a menos que por engano, ou deslealdade de algum ministro em quem depositavam confiança, nem o fariam se tivessem de viver novamente: "e que o trono real não poderia se sustentar sem corrupção, porque o caráter positivo, seguro, e determinado, que a virtude impõe ao homem, era um permanente obstáculo aos negócios públicos."
Tive a curiosidade de perguntar, de maneira particular, quais teriam sido os métodos usados por muitos para reivindicarem para si mesmos altos títulos de nobreza, e grandes propriedades; tendo restringido minha pergunta a um período bastante recente: todavia, sem tocar no tempo presente, porque eu queria ter certeza de não ofender nenhum estrangeiro (pois eu espero não seja necessário dizer ao leitor que no mínimo não desejo fazer críticas ao meu país, com os fatos que estou mencionando agora); um número considerável de pessoas foram evocadas, e depois de um exame bastante rápido, descobri uma cena de tamanha infâmia, que não posso refletir sobre ela sem uma certa crítica.
O perjúrio, a opressão, o suborno, a fraude, a alcoviteirice, e outros males do mesmo gênero, foram os artifícios mais desculpáveis que eles tinham para mencionar, e com relação a isso, como era razoável, fui extremamente condescendente. Mas quando alguns deles me confessaram que deviam o poder e a riqueza à sodomia, ou ao incesto, outros, à prostituição de suas próprias esposas e filhas; outros, por terem sido objetos de traição de seu país ou de seu príncipe; alguns, por causa de envenenamento; e muitos à perversão da justiça, com vistas a destruição de pessoas inocentes, espero ser perdoado, caso estas descobertas tenham diluído em mim os sentimentos daquela profunda veneração, que eu naturalmente consagrava à pessoas daquela estatura, e que deveriam ter sido tratadas com o mais devido respeito por nós, criaturas inferiores, em razão de sua dignidade sublime.
Havia muitas vezes lido a respeito de grandes serviços prestados a príncipes e a estados, e desejei ver as pessoas para quem esses serviços foram oferecidos. Diante da pergunta eles me disseram "que os seus nomes não constavam de nenhum registro, com exceção de alguns deles, de quem a história tem apresentado como os malandros e traidores mais abjetos." Todos eles tinham o aspecto de depressivos, e estavam miseravelmente apresentados, e a maioria deles me dizia, "que haviam morrido na pobreza e na miséria, e os demais no patíbulo ou na forca."
Dentre outros, havia uma pessoa, cujo caso me pareceu um pouco incomum. Estava acompanhado de um jovem que estava do lado dele e que tinha aproximadamente dezoito anos de idade. Ele me contou que, "durante muitos anos tinha sido comandante de um navio, e que na Batalha naval do Áccio[5] ele tivera muita sorte de romper a grande linha de combate do inimigo, afundara três de seus navios mais importantes, e apreendera um quarto, o qual tinha sido a única razão para a fuga de Marco Antonio, e da conquista da vitória; e que o jovem que estava ao seu lado, e que era seu único filho, havia sido morto em combate."
Acrescentou ele, "devido à confiança que depositava no caráter do filho, que a guerra havia acabado, e tendo ele tomado o caminho de Roma, solicitou à corte de Augusto para que um grande navio fosse colocado sob seu comando, cujo comandante havia sido morto, mas, com todo o desrespeito às suas pretensões, o posto foi oferecido a um garoto, o qual jamais havia visto o mar, era filho de Libertina, que era dama de companhia de uma das amantes do imperador. Ao retornar para sua embarcação, foi acusado de negligência do dever, e o navio foi posto sob o comando do escudeiro favorito de Publicola, o vice-almirante; diante disso, ele se retirou para um pequeno sítio que ficava a uma considerável distância de Roma, e ali viveu até o fim de seus dias." Eu estava tão curioso para conhecer a verdade sobre esta história, que eu pedi para que Agrippa fosse evocado, porque ele havia sido almirante naquele combate. Ele compareceu, e confirmou toda a história: porém com detalhes muito mais vantajosos para o capitão, cuja modéstia havia atenuado ou ocultado grande parte de seu valor.
Eu fiquei surpreso de ver que a corrupção havia atingido voos tão altos e de maneira tão rápida naquele império, por culpa da imposição dos excessos que haviam sido introduzidos nos últimos tempos, o que me fez me surpreender menos ainda diante de muitos casos paralelos que ocorrem em outros países, onde vícios de toda espécie haviam se multiplicado durante tanto tempo, e onde todo louvor, assim como toda pilhagem, havia sido monopolizada pelo comandante chefe, que talvez não tivesse direito nem a uma coisa, nem a outra.
Como toda pessoa evocada tivesse a mesma aparência que quando vivia no mundo, foi com grande tristeza que observei como a raça humana havia se degenerado nos últimos cem anos; como a varíola, com todas as suas decorrências e denominações, havia modificado todos os contornos da expressão de um britânico; como havia reduzido o tamanho dos corpos, contraído os nervos, relaxado os tendões e os músculos, oferecendo uma aparência pálida, e dando à carne um aspecto de flacidez e deformação.
Rebaixei-me a ponto de pedir que algum soldado inglês com uma figura do passado fosse convidado a estar presente, outrora tão conhecido por causa da simplicidade de suas maneiras, dieta, ou forma de se vestir, pela sua forma de tratar a justiça, pelo seu espírito de liberdade, pelo valor e pelo amor que devotava ao país. Nem poderia eu ficar totalmente indiferente, ao comparar os vivos com os mortos, quando refleti que todas aquelas virtudes puras e simples foram corrompidas pela riqueza de seus netos, os quais, ao venderem seus votos e envolvendo-se em eleições, adquiriram todos aqueles vícios e corrupção de talvez pudessem ser aprendidos na corte.
Todos os termos grifados em verde ou constantes desta referência não constam da obra original e foram colocadas pelo tradutor para melhor entendimento do texto.
↑Homero:viveu por volta do ano 850 a.C, foi poeta épico da Grécia Antiga, ao qual tradicionalmente se atribui a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisseia.
↑Aristóteles:(em grego antigo: Ἀριστοτέλης, transl. Aristotélēs; Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C.) foi um filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande.
↑Dídimo Calcenteros ou Dídimo de Alexandria (em grego:Δίδυμος χαλκέντερος; ca. 63 a.C. — 10) foi gramático grego que viveu em Alexandria. Junto a outros quatro gramáticos de Alexandria, nomeadamente Aristônicos, Seleucos e Filoxenos, dedicou-se Dídimo ao estudo dos textos de Homero.
↑NEC VIR FORTIS, NEC FŒMINA CASTA:Expressão em latim que significa: [Esta casa não possui]] nem um homem forte, nem uma mulher virtuosa.
↑Batalha de Áccio: ocorrida em 2 de setembro do ano 31 a.C., perto de Actium, na Grécia. Vitória decisiva de Otaviano (futuro imperador Augusto) sobre Marco Antonio.
[O autor retorna a Maldonada. Embarca para o reino de Luggnagg. O autor é detido. É procurado pela corte. A forma como foi recebido. A grande benevolência do rei aos seus súditos.]
Tendo chegado o dia de nossa partida, me despedi de sua alteza, o governador de Glubbdubdrib, e retornei com meus dois acompanhantes a Maldonada, onde, depois de uma espera de quinze dias, um navio estava pronto para partir para Luggnagg. Os dois cavalheiros, e alguns outros, foram tão generosos e gentis, a ponto de me fornecerem alguns mantimentos, e se despedirem de mim a bordo.
Passei um mês de viagem. Tivemos uma tempestade violenta, e fomos obrigados a tomar a direção oeste a fim de penetrarmos na rota de comércio, pois faltavam ainda mais de sessenta léguas. No dia 21 de abril de 1708, já nos encontrávamos no leito do rio Clumegnig, que era uma cidade portuária, na região à sudeste de Luggnagg.
Lançamos âncora ainda a uma légua da cidade, e fizemos um sinal solicitando um piloto. Dois deles vieram a bordo em menos de meia hora, e por eles fomos conduzidos em meio aos cardumes de peixes e os recifes, os quais eram muito perigosos de atravessar, até atingirmos uma imensa bacia, onde uma frota podia manobrar com segurança a uma distância de um cabo das muralhas da cidade.
Alguns de nossos marinheiros, fosse por traição ou por inadvertência, haviam informado os pilotos “de que eu era estrangeiro, e navegador de renome;” tendo estes feito a comunicação para um oficial da alfândega, por quem fui vistoriado de forma muito rigorosa ao desembarcar. Este oficial falou comigo no idioma de Balnibarbi, o qual, em razão do intenso comércio, era geralmente entendido naquela cidade, especialmente por marinheiros e por aqueles que trabalhavam na alfândega.
Fiz a ele um breve relato de alguns detalhes, tentando tornar a minha história mais plausível e consistente possível, porém, achei necessário ocultar minha nacionalidade, e dizer que era holandês; porque meus planos eram de ir ao Japão, e eu sabia que os holandeses eram os únicos europeus com permissão de acesso a aquele reino. Portanto, disse ao oficial, “que tendo naufragado na costa de Balnibarbi, e tendo sido lançado contra um recife, fui recebido em Laputa, ou ilha voadora (da qual muitas vezes ele havia ouvido falar), e estava agora tentando chegar ao Japão, onde achava que seria conveniente retornar ao meu país.
Disse o oficial, que “eu precisava ser detido até que ele pudesse receber ordens da corte, a quem ele escreveria uma carta imediatamente, e esperava receber a resposta em quinze dias.” Fui levado a um confortável alojamento e um sentinela ficou postado à minha porta, todavia, podia passear por um grande jardim, e fui tratado com relativa humanidade, tendo permanecido às custas do rei durante todo aquele período. Fui convidado por várias pessoas, levadas principalmente por causa da curiosidade, porque tinham dito que eu havia chegado de países muito distantes, dos quais nunca tinham ouvido falar.
Contratei um jovem, que havia chegado no mesmo navio, para me servir de intérprete; era natural de Luggnagg, mas durante alguns anos havia vivido em Maldonada, e era um mestre perfeito em ambos os idiomas. Com a ajuda dele, foi possível manter conversação com aqueles que vieram me visitar, ainda que nosso encontro fosse constituído apenas de perguntas e respostas.
O despacho chegou da corte por volta do período que esperávamos. Ele continha uma autorização legal para que me conduzissem bem como à minha comitiva até TRALDRAGDUBH, ou TRILDROGDRIB (porque essa palavra era escrita dessas duas maneiras pelo que eu me lembro), escoltado por um pequeno destacamento com dez homens. Toda a minha comitiva era apenas aquele pobre rapaz que me servia de intérprete, a quem convenci prestar-me alguns serviços, e atendendo aos meus pedidos, fomos brindados com uma mula para cada um de nós.
Um mensageiro foi despachado com meio dia de jornada a nossa frente, para dar ao rei a notícia de nossa chegada, e para solicitar “que a sua majestade se dignasse a indicar um dia e hora, quando o prazer da sua graça permitiria, que eu pudesse ter a honra de lamber a poeira diante de seu trono.”
Este era o estilo usado na corte, e descobri que isso era muito mais do que uma questão de formalidade: pois, quando fui recebido, dois dias depois de minha chegada, me ordenaram para que me arrastasse de barriga, e lambesse o chão a medida que avançava, porém, por conta de ser estrangeiro, tiveram o cuidado de limpá-lo, para que a poeira não tivesse gosto desagradável.
Contudo, esse era um privilégio especial, somente permitido a pessoas do mais alto nível, quando era solicitada uma audiência. Ao contrário, algumas vezes o assoalho era propositalmente espargido com poeira, quando a pessoa em audiência fosse por acaso uns inimigos poderosos da corte; e certa vez vi um grande senhor com a boca tão suja, que depois de rastejar até uma certa distância do trono, ele não conseguia dizer nem uma palavra.
E não havia o que fazer, porque era considerado crime capital, para aqueles que são recebidos em audiência, cuspir ou limpar suas bocas na presença de sua majestade. Há ainda um outro costume, que de modo algum eu posso aprovar: quando o rei tinha a ideia de mandar matar um de seus nobres de forma branda e tolerante, ele ordenava para que o chão fosse atapetado por um pó marrom de uma composição letal, que ao ser lambida, matava a vítima impreterivelmente dentro de vinte e quatro horas.
Porém, como prova da grande generosidade deste príncipe, e do cuidado que ele tinha pelas vidas dos seus súditos (onde seria de desejar que os monarcas da Europa pudessem imitá-lo), e que deve ser dito em nome de sua honra, que ordens severas eram dadas para que fossem bem lavadas as partes infectadas do chão depois de toda execução dessa categoria, e caso seus criados não tomassem o devido cuidado, ele corriam o risco de cair no desagrado real.
Eu mesmo presenciei quando ele dava orientações, para que um de seus escudeiros, cuja função era avisar sobre a limpeza do chão após uma execução, fosse açoitado, mas deixou de fazê-lo por maldade, cuja negligência concorreu para que um jovem senhor, em quem o rei depositava grandes esperanças, sofresse envenenamento acidental, embora o rei não tivesse nenhum plano de tirar-lhe a vida naquele momento. Mas este bom príncipe era tão generoso, a ponto de perdoar o pobre escudeiro de ser açoitado, desde que jurasse não cometer mais atos assim, sem ordens especiais.
Deixando de lado esta digressão, depois de ter rastejado quatro metros de distância do trono, eu me levantei vagarosamente de joelhos, e então, batendo sete vezes a cabeça contra o chão, pronunciei as seguintes palavras, que me haviam ensinado na noite anterior: INCKPLING GLOFFTHROBB SQUUT SERUMMBLHIOP MLASHNALT ZWIN TNODBALKUFFH SLHIOPHAD GURDLUBH ASHT.
Este era o cumprimento, estabelecido conforme as leis do país, para todas as pessoas recebidas em audiência na presença do rei. Isso pode ser traduzido como: “Que a vossa majestade imperial possa sobreviver ao sol, por um período de onze luas e meia!” Nesse instante, o rei dava alguma resposta, que, embora não pudesse entender, eu respondia como havia sido orientado: FLUFT DRIN YALERICK DWULDOM PRASTRAD MIRPUSH, que queria dizer:
“A minha língua está na boca do meu amigo;” e esta expressão queria dizer, que eu pedia permissão para trazer o meu intérprete, tendo sido introduzido o jovem mencionado anteriormente, através de cuja mediação respondi a todas as perguntas que sua majestade conseguiu fazer em pouco mais de uma hora. Eu falava no idioma de Balnibarbi, e o meu intérprete traduzia para o idioma que era falado em Luggnagg.
O rei ficou muito satisfeito com a minha companhia, e ordenou que o seu BLIFFMARKLUB, ou camareiro-mor, para que preparasse as acomodações na corte para mim e para o meu intérprete, com uma recomendação diária para a minha mesa, e uma generosa bolsa de ouro para minhas despesas comuns.
Fiquei três meses nesse país, em completa obediência a sua majestade, que tinha a maior satisfação em me favorecer, tendo me feito propostas bastante vantajosas. Porém, achei mais coerente e mais justo permanecer o restante dos meus dias com a minha esposa e a minha família.
[Os habitantes de Luggnagg são elogiados. Descrição detalhada dos Struldbrugs, com muitos diálogos entre o autor e algumas pessoas ilustres sobre esse assunto.]
Os luggnaggianos eram um povo educado e generoso, e embora eles não possuissem um pouco daquele orgulho muito peculiar aos países orientais, mostravam-se, no entanto, muito corteses com os estrangeiros, especialmente por aqueles que eram favorecidos pela corte. Eu fiz muitas amizades, principalmente com pessoas de renome, e como estava sempre acompanhado pelo meu intérprete, a conversação que tivemos não foi nada desagradável.
Certo dia, estando eu em boa companhia, uma pessoa muito ilustre me perguntou “se eu já tinha visto um de seus STRULDBRUGS ou imortais?” Disse a ele, que “não”, e pedi para que me explicasse “o que ele queria dizer com aquela expressão, que era aplicada a uma criatura mortal.” Ele me disse, “que algumas vezes, embora muito raramente, uma criança acontecia de nascer numa família, com uma mancha vermelha circular, particularmente na testa, bem em cima da sobrancelha esquerda, que era uma marca inegável de que ela nunca deveria morrer.”
“A mancha,” como foi descrita por ele, “era do tamanho de uma moeda de três centavos, mas com o passar do tempo ela ficava maior, e mudava de cor, e se tornava verde quando a criança fizesse doze anos, e permanecia assim até quando ela tivesse vinte e cinco anos, ela então ficava azul escura: aos quarenta e cinco anos ela se tornava negra como o carvão, e tão grande quanto uma moeda de um xelim; e daí em diante não ocorria nenhuma alteração posterior.”
Disse ele, “que esses nascimentos eram tão raros, que ele não acreditava que houvessem mais de mil e cem struldbrugs, de ambos os sexos, em todo o reino, dos quais ele calculou que cerca de cinquenta viviam na metrópole, e dentre os demais havia uma garota com cerca de três anos de idade, e que esses casos não eram comuns a qualquer família, mas simplesmente obra do acaso e que os filhos dos STRULDBRUGS mesmo eram igualmente mortais como as demais pessoas.
Reconheço sinceramente ter ficado assombrado com uma alegria indizível, ao ouvir esta história: e a pessoa que me contou por acaso entendia o idioma de Balnibarbi, que eu falava muito bem, e eu não conseguia deixar de fazer algumas expressões talvez um pouco extravagantes. Eu exclamava, como que arrebatado, “Feliz é a nação, onde toda criança tivesse pelo menos uma chance de ser imortal!”
“Felizes são as pessoas, que desfrutam de tantos exemplos vivos da virtude dos antigos, e possuem mestres dispostos a ensiná-los na sabedoria de todas as épocas remotas! Porém, mais felizes, sem qualquer comparação, são aqueles excelentes STRULDBRUGS, que, tendo nascido, imunes à aquela calamidade universal da natureza humana, tinham suas mentes livres e desimpedidas, sem o peso e o abatimento dos espíritos, causados pela eterna preocupação com a morte!”
Fiquei muito admirado por não ter observado nenhuma dessas pessoas ilustres na corte, sendo a mancha negra na testa um sinal tão visível, que facilmente não me teria passado despercebido: e era impossível que a sua majestade, que era um príncipe muito sensato, não fizesse uso também de um bom número de conselheiros sábios e hábeis dessa estirpe.
No entanto, talvez a virtude desses veneráveis sábios fosse muito restrita por causa dos modos corruptos e libertinos da corte: e muitas vezes acreditamos por experiência, que os jovens são muito sugestionáveis e instáveis para serem orientados pelos sóbrios conceitos de seus ancestrais.
Contudo, uma vez que o rei teve o prazer de permitir o meu acesso a sua pessoa real, eu havia decidido, na primeira ocasião, de expor a ele, com toda a franqueza e liberdade, a minha opinião sobre este assunto, com a ajuda do meu intérprete, e caso ele tivesse o prazer de aceitar ou não a minha opinião, mais uma coisa eu havia decidido, que a sua majestade, tendo muitas vezes me oferecido para que permanecesse em seu país, eu aceitaria a gentileza, com muitas demonstrações de gratidão, e passaria a minha vida alí conversando com esses seres superiores, os STRULDBRUGS, caso eles pudessem me aceitar.”
O cavalheiro a quem dirigi minha palavra, como ele falava o idioma de Balnibarbi (conforme pude perceber), me disse, expressando um sorriso que normalmente oscilava entre a piedade e a ignorância, “que ele ficaria feliz em me receber dentre eles a qualquer momento, e solicitou a minha permissão para explicar o que eu havia falado para aqueles que o acompanhavam.”
Assim o fez, e durante algum tempo conversaram em seu próprio idioma, o qual não consegui entender nem uma sílaba, nem pude perceber pelas suas expressões, a impressão que a minha conversa havia causado neles. Depois de um curto silêncio, a mesma pessoa me disse, “que os seus amigos e os meus (como achou por bem exprimir-se), estavam muitos satisfeitos com as sábias observações que eu havia feito sobre a grande felicidade e os benefícios de uma vida imortal, e eles estavam ansiosos para saber, de maneira particular, que plano de vida eu havia estipulado para mim mesmo, se por acaso eu tivesse nascido um STRULDBRUG.”
Respondi, “que era fácil ser eloquente diante de um tema tão rico e fascinante, principalmente em relação a mim, que muitas vezes havia me divertido com as visões daquilo que eu deveria fazer, caso eu fosse um rei, um general, ou um grande senhor: e a respeito deste mesmo caso, eu, muitas vezes havia imaginado todo o plano de como eu agiria, e utilizaria o tempo, se eu tivesse a certeza de viver para sempre.”
“E que, seu tivesse tido a sorte de penetrar no mundo de um STRULDBRUG, a ponto de encontrar a minha própria felicidade num curto espaço de tempo, entender a diferença entre a vida e a morte, eu decidiria em primeiro lugar, procurar riquezas para mim mesmo, usando de todos os meios e artifícios, quaiquer que fossem eles.”
E na busca desses bens, através da economia e da boa administração, eu poderia esperar razoavelmente, que em cerca de duzentos anos, seria o homem mais rico do reino. Em segundo lugar, me dedicaria, desde os primeiros anos de minha juventude, ao estudo das artes e das ciências, cujos meios chegaria a tempo de superar todos os outros na área do conhecimento.
E por último, registraria cuidadosamente todos os atos e eventos importantes, e que fossem de conhecimento público, e documentaria com imparcialidade todos os personagens das várias sucessões de príncipes e dos primeiros ministros dos estados, e faria observações sobre todos os aspectos. Faria questão de anotar todas as várias mudanças de costumes, idioma, modos de se vestir, dieta, e diversões. Com todas essas conquistas, eu seria um tesouro vivo de conhecimento e sabedoria, e certamente me tornaria o oráculo da nação”.
Jamais me casaria depois depois da terceira idade, mas viveria de maneira hospitaleira, ainda que vivendo parcimoniosamente. A minha distração seria a formação e a orientação do pensamento de jovens promissores, convencendo-os, com minhas lembranças, experiências, e observações, fortalecidas por numerosos exemplos, a respeito da utilidade da virtude nas vidas pública e privada.
Mas os meus companheiros constantes e por opção seriam um grupo de meus irmãos imortais, dentre os quais, eu escolheria uma dúzia, desde os mais antigos, até os meus próprios contemporâneos. Quando um desses precisasse de fortuna, eu forneceria a ele confortáveis acomodações nas proximidades de minhas próprias propriedades, e faria questão de conservar alguns deles junto de minha mesa, mesclando somente alguns dos mortais de valor dentre vocês, a quem a duração dos tempos daria a mim a firmeza necessária de perder com pouca ou nenhuma relutância, e de tratar os seus descendentes da mesma maneira, assim como um homem se entretém anualmente com as sucessões de cravos e tulipas em seu jardim, sem lamentar a perda daquelas que murcharam no ano anterior.
Estes STRULDBRUGS e eu poderíamos informar nossas observações e nossas lembranças uns aos outros, com o curso do tempo, anotaríamos as diversas variedades com que a corrupção assola o mundo, opondo-nos a ela em todas as situações, oferecendo conselhos e instruções à humanidade, a qual, fortalecida pela forte influência do nosso próprio exemplo, poderia impedir essa contínua degeneração da natureza humana que com tanta justiça se queixam em todas as épocas.
Além disso, o prazer de ver as inúmeras revoluções dos estados e dos impérios, as mudanças do mundo superior e inferior, cidades antigas em ruínas, e aldeias obscuras se tornando sedes de reis; rios famosos sendo reduzidos a riachos superficiais, o oceano se afastando de uma costa e invadindo outra; a descoberta de muitos países ainda desconhecidos, a truculência dominando as nações mais desenvolvidas, e os bárbaros se tornando civilizados. Poderia ver a descoberta da longitude, do movimento contínuo, da medicina universal, e de muitas outras grandes invenções, trazidas ao mais alto grau da perfeição.
“Que maravilhosas descobertas faríamos na astronomia, ao sobreviver e tendo confirmadas as nossas próprias previsões, observando o progresso e o retorno dos cometas, bem como as mudanças de movimento do sol, da lua e das estrelas!”
Me extendi em muitos tópicos, os quais, o desejo natural de uma vida eterna e da felicidade terrestre, facilmente me proporcionavam. Quando havia terminado, e uma síntese dos meus discursos tivesse sido interpretada, como fizera anteriormente, para os outros que o acompanhavam, conversaram demoradamente no idioma do país deles, não sem alguns risos da minha parte.
Finalmente, o mesmo cavalheiro, que era o meu intérprete, disse, “que ele fora solicitado pelos demais para me corrigir em alguns equívocos, dos quais me tornara prisioneiro em razão da estupidez da natureza humana, e que por esse motivo seria menos responsável por pensar assim.
[Disse-me ele] que esta raça de STRULDBRUGS era comum em seu país, pois que tais criaturas não existiam nem em Balnibarbi nem no Japão, onde ele tivera a honra de ser embaixador de sua majestade, e achou muito difícil que os nativos desses dois reinos acreditassem que tal fato seria possível: e isso aconteceu por causa do meu assombro, quando ele mencionou o assunto pela primeira vez para mim, porque eu recebera esse fato como uma coisa inteiramente nova, e difícil de acreditar.
E que nos dois reinos que foram mencionados anteriormente, onde, durante a sua permanência, ele havia conversado bastante, ele observou que uma vida longa era o desejo universal e o sonho de toda a humanidade. E que todo aquele que estivesse com um pé na cova fazia o maior esforço para manter o outro tão forte quanto pudesse.
E que os mais velhos tinham esperanças de viver um dia mais, e viam a morte como o mais temível inimigo, do qual a natureza sempre o impeliria a se afastar. Apenas nesta ilha de Luggnagg o apetite de viver não era tão marcante, por causa do exemplo contínuo dos STRULDBRUGS diante de seus olhos.
“Que o sistema de vida que eu imaginava, era irracional e injusto, porque sustentava a eternidade da juventude, da saúde e do vigor, que nenhuma pessoa poderia esperar com tanta ingenuidade, por mais extravagantes que fossem os seus desejos. E que a questão, portanto, não seria se um homem desejaria permanecer sempre no vigor da sua juventude, acompanhado pela prosperidade e pela saúde, mas como ele passaria uma vida eterna com as desvantagens que a velhice traz consigo.”
Pois, embora poucas pessoas admitam seus desejos de serem imortais, diante de condições tão difíceis, nos dois reinos mencionados anteriormente, de Balnibarbi e do Japão, ele observou que todos desejavam adiar a morte para algum tempo posterior, para que ela chegasse sempre o mais tarde possível: e ele raramente tinha ouvido falar de qualquer homem que houvesse desejado morrer, exceto quando afligido pela dor ou tortura mais extrema. E me perguntou, se naqueles países para os quais eu tinha viajado, bem como em meu próprio país, eu não tinha observado a mesma disposição geral.”
Depois desta introdução, ele me fez um relato particular dos STRULDBRUGS que vivia entre eles. Disse “que eles normalmente viviam como se fossem mortais até os trinta anos de idade, depois disso, pouco a pouco, eles ficavam tristes e deprimidos, aumentando isso gradualmente até quando atingiam a quarta idade.”
Ele aprendera isto por confissão dos próprios STRULDBRUGS, pois, caso contrário, não havendo mais do que dois ou três nascimentos dessa espécie numa época, eles eram muito poucos para termos uma ideia geral mais completa. Quando eles chegavam aos oitenta anos, a qual é reconhecida neste país como a extremidade da vida, eles adquiriam todas as doenças e enfermidades dos outros velhos, além de muitas outras que surgiam oriundas da assustadora perspectiva de não morrer nunca.
Tornavam-se não apenas preconceituosos, teimosos, avaros, sombrios, convencidos, faladores, mas também avessos à amizade, e destituídos de toda afeição natural, que nunca ia além de seus netos. A inveja e seus desejos impotentes eram suas paixões principais. Porém, os alvos contra os quais direcionavam sua inveja eram principalmente contra os vícios dos jovens e a morte dos idosos.
Refletindo sobre os primeiros, eles se achavam totalmente excluídos de todas as possibilidades de prazer, e sempre que viam um funeral, lamentavam e se queixavam de que outros chegaram ao porto do descanso aos quais eles jamais podiam ter a esperança de chegar. Eles não tinham lembrança de nada, apenas do que aprenderam e observaram durante a juventude e na meia-idade, e mesmo isso de maneira imperfeita, e com relação à verdade ou aos detalhes de qualquer fato, era mais seguro confiar na tradição comum, do que em suas melhores recordações. Os menos miseráveis dentre eles pareciam ser aqueles que se voltavam para a senilidade, e perdiamm totalmente suas memórias, estes encontravam mais piedade e mais ajuda, porque lhes faltava as más qualidades que extrapola nos outros.
Se por acaso um STRULDBRUG se casava com uma de sua própria espécie, o casamento era dissolvido naturalmente, por misericórdia do reino, assim que o mais jovem dos dois completasse oitenta anos, pois, prescrevia a lei com racional indulgência, que aqueles que eram condenados, mas não possuiam nenhuma culpa, para uma eterna permanência no mundo, não deveriam ter suas misérias multiplicadas com o peso de uma esposa.
Assim que completavam os oitenta anos, por lei eles eram considerados como se mortos fossem, seus herdeiros imediatamente tomavam posse de suas propriedades, somente uma pequena parcela era reservada para sua manutenção, e os pobres eram mantidos pelo tesouro público.
Depois desse período, eram considerados incapazes de ocupar qualquer cargo de confiança ou com vencimentos, nem podiam comprar ou arrendar terras, nem lhes era permitido ser testemunhas em qualquer causa, ou civil ou criminal, nem sequer para decisões sem importância ou em questões de fronteiras.
Aos noventa anos, perdiam seus dentes e cabelos, e com essa idade não conseguiam distinguir os sabores, mas comiam e bebiam qualquer coisa que pudessem, não sentindo sabor nem apetite. As enfermidades a que estavam sujeitos ainda continuava, não aumentando nem diminuindo.
Ao falar, eles esqueciam os nomes comuns das coisas, e os nomes das pessoas, mesmo daqueles que tinham sido seus amigos e parentes mais próximos. Pela mesma razão, nem se divertiam com a leitura, porque a memória deles não conseguia se manter do começo de uma frase até o fim da mesma, e por causa desta deficiência, eram privados do único entretenimento a que poderiam ser dedicar.
Como o idioma deste país sempre sofria modificações, os STRULDBRUGS de uma época não entendiam os de outra, nem eram eles capazes, depois de duzentos anos, de manter qualquer conversação (além de algumas palavras de saudação) com seus vizinhos, os mortais, e desse modo eles estavam na desvantagem de viver como estrangeiros em seu próprio pais.”
Esta foi a história que me contaram sobre os STRULDBRUGS, pelo que consegui recordar. Depois eu vi cinco ou seis deles de épocas diferentes, os mais jovens não tinham mais que duzentos anos, que por diversas vezes eram trazidos até mim por alguns de meus amigos; mas também porque haviam dito a eles, “que eu era um grande viajante, e tinha visitado muitas partes do mundo,” eles não tiveram a menor curiosidade de me fazer qualquer pergunta, apenas desejavam que “eu desse a eles um SLUMSKUDASK,” ou seja, uma pequena recordação, a qual era uma maneira modesta de mendigar, para não ter problemas com a lei, que proíbia terminantemente isso, porque eles eram atendidos pelo poder público, embora fosse de fato com uma pensão muito reduzida.
Eles eram deprezados e odiados por todos os tipos de pessoas. Quando nascia um deles, ele era considerado agourento, e o nascimento deles era registrado de modo muito particular para que você pudesse saber a sua idade consultando o registro, o qual, no entanto, não era conservado quando passava dos mil anos anteriores, ou no mínimo, era destruído pelo tempo ou por desordens públicas. Mas o modo habitual de saber a idade deles, era lhes perguntando quais reis ou grandes personagens eles conseguiam se lembrar, e depois, consultando a história, pois com certeza o último príncipe de que se lembravam não iniciou o seu reinado somente depois que eles tinham oitenta anos de idade.
Eles constituíam o espetáculo mais horroroso que eu já havia contemplado, e as mulheres eram mais horríveis que os homens. Além das deformidades comuns devido à velhice extrema, eles adquiriam um pavor adicional, em proporção ao número de sua idade, que seria horrível descrever, e num grupo de meia dúzia deles, podia logo distinguir qual era o mais velho, embora não tivessem mais que cem ou duzentos anos entre eles.
O leitor com facilidade poderá crer, que de tudo aquilo que ouvi e vi, diminuiu muito o meu vivo apetite pela perpetuidade da vida. Fiquei muito envergonhado das visões agradáveis que eu havia criado, e pensei que tirano algum poderia inventar uma morte na qual eu me atiraria com prazer caso tivesse uma vida como aquela.
O rei ouvia tudo aquilo que havia passado entre mim e os meus amigos sobre esse problema, me animou muito amavelmente, desejando que eu enviasse dois STRULDBRUGS para o meu próprio país, para armar o nosso povo contra o medo da morte, mas pelo que parece, isto era proibido, segundo as leis fundamentais do reino, caso contrário, eu me entregaria com a maior satisfação ao trabalho e com os custos de transportá-los.
Não pude fazer nada, exceto concordar, que as leis deste reino, relativa aos STRULDBRUGS, tinham como base as razões mais sólidas, e assim como poderia ocorrer com qualquer outro país, em circunstâncias análogas. Em outras situações, sendo a avareza o resultado natural da velhice, estes imortais, com o passar do tempo, se tornariam proprietários de toda a nação, e monopolizariam o poder civil, o qual, com falta de pessoas capacitadas na administração, terminariam em ruína do poder público.
[O autor deixa Luggnagg e embarca para o Japão. De lá ele retorna em um navio holandês para Amsterdam, e de Amsterdam, para a Inglaterra.]
Creio que esta história dos STRULDBRUGS possa ter sido considerada interessante para o leitor, porque ela parece que foge um pouco dos fatos mais comuns; pelo menos eu não me lembro ter encontrado nada parecido em qualquer livro de viagens que chegou até minhas mãos: se eu estiver enganado, por favor, aceitem as minhas desculpas, pois é necessário para viajantes que descrevem o mesmo país, que eles concordem muitas vezes no tocante a alguns detalhes, porém, não merecem serem censurados por terem emprestado ou transcritos textos daqueles que os precederam.
Há na verdade um perpétuo comércio entre este reino e o grande império do Japão, e é muito provável, que os autores japoneses possam ter feito algum relato sobre os STRULDBRUGS; mas a minha permanência no Japão foi muito curta, e eu era um completo estranho no idioma deles, que não me senti qualificado para fazer qualquer pergunta. Mas, eu espero que os holandeses, sabendo destes detalhes, ficarão curiosos e saberão suprir com propriedade as minhas falhas.
Sua majestade, tendo muitas vezes me pressionado para aceitar algum posto na sua corte, e achando-me absolutamente decidido a retornar ao meu país natal, com satisfação me deu a sua permissão para partir, e me honrou com uma carta de recomendação, de próprio punho, ao Imperador do Japão. Ele também me presenteou com quatrocentas e quarenta e quatro peças de ouro (este país gostava muito dos números pares) e um diamante vermelho, o qual eu vendi na Inglaterra por mil e cem libras.
No dia 6 de maio de 1709, me despedi solenemente de sua majestade, e de todos os meus amigos. Este príncipe era tão generoso a ponto de ordenar que uma escolta me conduzisse para Glanguenstald, que era um porto real à sudoeste daquela ilha. Decorridos seis dias me utilizei de um navio prestes a me levar para o Japão, numa viagem que levou quinze dias.
Desembarcamos numa pequena cidade portuária chamada Xamoschi, situada na parte sudeste do Japão, a cidade ficava na parte ocidental, onde havia um pequeno estreito que levava para o norte em direção a um braço do mar, onde, do lado noroeste, ficava Yedo, a metrópole. Ao desembarcar, mostrei aos oficiais da alfândega a minha carta de recomendação assinada pelo rei de Luggnagg à sua majestade imperial.
Eles conheciam perfeitamente bem o selo real, ele era tão grande como a palma da minha mão. A estampa apresentava UM REI LEVANTANDO UM MENDIGO MANCO DO CHÃO. Os magistrados da cidade, ao saberem da carta que portava, me receberam na condição de ministro de estado.
Eles colocaram à minha disposição carruagens e serviçais, e pagaram minhas despesas a Yedo, onde fui recebido para uma audiência, e entreguei a minha carta, a qual foi aberta com grande cerimônia, e traduzida para o Imperador por um intérprete, que então me trouxe a notícia, por ordem de sua majestade, “que eu deveria fazer valer de meus direitos, e quaisquer que fossem eles, seriam atendidos, em nome da sua amizade real ao seu irmão de Luggnagg.”
Este intérprete era uma pessoa usada para assuntos de transação com os holandeses. Ele logo concluiu, pela minha aparência, que eu era europeu, e portanto, reiterava as ordens de sua majestade em baixo holandês, idioma que ele dominava perfeitamente bem.
Respondi, como havia decidido anteriormente, “que eu era um comerciante holandês, que tinha naufragado num país muito distante, e que tinha viajado pelo mar e desembarcado em Luggnagg, e de lá peguei um navio para o Japão, onde sabia que os meus compatriotas comercializavam com muita frequência, e com alguns deles tinha esperanças de conseguir uma oportunidade para retornar a Europa: de modo que, com a máxima humildade supliquei os favores reais, para que desse ordens de maneira a que fosse conduzido com segurança a Nangasac.”
A este pedido, acrescentei um outro, “que, em nome do meu protetor, o rei de Luggnagg, sua majestade se dignasse me perdoar de executar a cerimônia imposta a meus compatriotas, de pisar no crucifixo: porque eu havia sido chegado a aquele reino por infelicidade, sem nenhuma intenção de fazer comércio.”
Quando este último pedido foi traduzido para o Imperador, ele ficou muito surpreso, e disse, que “acreditava ele que eu tinha sido o primeiro dos meus compatriotas a ter algum escrúpulo neste aspecto, e que ele começava a duvidar se eu era realmente um holandês, ou não, mas tinha suas suspeitas de que eu era um cristão.
Todavia, pelos motivos que eu tinha apresentado, mas, principalmente para agradecer ao rei de Luggnagg como um sinal inconfundível de sua benevolência, concordaria com a singularidade do meu pedido, mas o assunto deveria ser tratado com habilidade, e seus oficiais receberiam ordens para permitir a minha passagem, como se fosse por esquecimento. Pois, me garantira ele, que se o segredo fosse descoberto pelos meus compatriotas, os holandeses, eles cortariam a minha cabeça na viagem.”
Tornei a agradecer, por meio do intérprete, por um favor tão incomum, e estando algumas tropas naquele momento em marcha para Nangasac, o oficial comandante recebeu ordens para me transportar até lá com segurança, com instruções particulares sobre o assunto do crucifixo.
No dia 9 de Junho de 1709, cheguei a Nangasac, depois de uma viagem longa e tumultuada. Logo fazia parte da companhia de alguns marinheiros holandêses que pertenciam a Amboyna de Amsterdam, um gigantesco navio de 450 toneladas. Durante muito tempo havia vivido na Holanda, onde realizei meus estudos em Leyden, e eu falava bem o holandês.
Os marinheiros logo descobriram onde havia estado pela última vez: eles estavam curiosos para fazer perguntas sobre as minhas viagens e sobre a minha vida. Contei a eles uma história tão curta e verossímil quanto possível, mas ocultei a maior parte. Conhecia muitas pessoas na Holanda. Poderia até ter inventado nomes para os meus pais, os quais menti que eram pessoas obscuras da província de Gelderland.
Eu teria dado ao capitão (um certo Theodorus Vangrult) o que ele tivesse pedido pela viagem que fiz até a Holanda, mas sabendo da minha posição de cirurgião, ele ficou satisfeito em exigir somente metade do valor habitual, com a condição de serví-lo em caso de ser chamado. Antes de embarcarmos, muitas vezes alguns da tripulação me perguntavam, se eu tinha executado o cerimonial que mencionei anteriormente.
Respondi a pergunta com evasivas, “dizendo que havia satisfeito o imperador bem como a corte em todos os aspectos.” Todavia, um capitão, velhaco e trapaceiro, foi até o oficial, e me apontou dizendo-lhe, que “eu ainda não havia pisado no crucifixo;” mas o outro, que tinha recebido instruções para me deixar passar, deu vinte chicotadas de bambu no ombro do infeliz, e depois disso eu não fui mais incomodado com perguntas desse tipo.
Nenhum fato digno de menção aconteceu nesta viagem. Navegamos com vento favorável até o Cabo da Boa Esperança, onde permanecemos o suficiente para nos abastecermos de água fresca. No dia 10 de Abril de 1710, chegamos a salvo em Amsterdam, tendo perdido somente três homens por motivo de doença durante a viagem, e um quarto, que caiu do mastro principal no mar, não muito longe da costa da Guiné. De Amsterdam, pouco depois, embarquei para a Inglaterra, num pequeno barco daquela cidade.
No dia 16 de Abril chegamos a Downs. Desembarcamos na manhã seguinte, e vi mais uma vez minha terra natal, depois de uma ausência de cinco anos e seis meses inteiros [1]. Fui direto para Redriff, onde cheguei no mesmo dia às duas da tarde, e encontrei a minha esposa e a minha família com boa saúde.
↑Se o autor partiu em “'6 de Agosto de 1706”' e retornou para casa em “'16 de abril de 1710”', a viagem durou exatamente três anos, oito meses e doze dias.
[O autor embarca como capitão de um navio. Seus homens conspiram contra ele, prendem-no durante muito tempo em sua cabine, e o deixam no litoral de um país desconhecido. O autor viaja pelo país. Descrição dos yahoos, uma estranha espécie de animal. O autor encontra os Houyhnhnms.]
Fiquei em casa com minha esposa e meus filhos por volta de cinco meses, vivendo momentos felizes, se eu pudesse ter aprendido a lição de saber o que era estar bem. Deixei minha pobre esposa que estava esperando um filho, e aceitei uma oferta vantajosa feita para ser capitão do Aventureiro, um prodigioso navio mercante de 350 toneladas: pois entendia muito de navegação, e estava ficando entediado do posto de cirurgião marinho, o qual, no entanto, eu poderia exercer ocasionalmente, e coloquei para esse posto no meu navio um jovem, cujo nome era Robert Purefoy. Partimos de Portsmouth no dia 7 de setembro de 1710, no dia 14 encontramos o Capitão Pocock, da cidade de Bristol, o qual se encontrava em Tenerife, e que estava indo para a Baía de Campechy para fazer um carregamento de madeira.
No dia 16, ele se separou de nós por causa de uma tormenta, em meu regresso, ouvi dizer que o seu navio havia afundado, e ninguém se salvou, com exceção de uma garoto que estava na cabine. Ele era um cara honesto, e bom navegador, mas um pouco confiante demais em seus pontos de vista, os quais resultaram na sua perda, como já aconteceu com muitos outros, porque, se ele tivesse seguido meu conselho, ele poderia estar salvo em casa, com sua família neste momento, assim como estou.
Tive muitos homens que morreram em meu navio por causa de insolação, de modo que fui obrigado a recrutar pessoal fora de Barbados e das Ilhas Leeward, onde fiz uma parada, seguindo orientação dos mercadores que me contrataram, porém, em pouco tempo tive inúmeros motivos para me arrepender: pois descobri pouco tempo depois que a maioria deles tinha sido piratas. Eu tinha vinte e cinco homens a bordo, e meus planos eram, que eu deveria comercializar com os índios no Mar do Sul, e realizar todas as descobertas que pudesse. Aqueles trapaceiros, que eu havia escolhido, subornaram meus outros homens, e todos eles formaram uma conspiração para tomar o navio, e me prenderam; e fizeram isso em uma manhã, quando invadiram a minha cabine, e me amarraram as mãos e os pés, ameaçando-me atirar do navio, caso eu fizesse qualquer movimento.
Disse a eles, “que eu era prisioneiro deles, e não ofereceria nenhuma resistência”. Eles me fizeram jurar que não dificultaria a situação e então me soltaram, amarrando uma de minhas pernas com uma corrente, perto da cama, e colocaram um sentinela na minha porta, com sua pistola carregada, o qual tinha ordens para atirar para matar se eu tentasse me libertar. Me enviaram alguns alimentos e bebida, e tomaram eles mesmos o controle do navio. O plano deles era se tornarem piratas e, saquear os espanhóis, o que eles não poderiam fazer até que conseguissem mais homens.
Decidiram primeiro vender as mercadorias do navio, e depois seguirem em direção a Madagascar para fazer algum recrutamento, porque muitos deles haviam morrido desde a minha prisão. Navegaram durante muitas semanas, e comercializaram com os índios, mas eu não sabia o rumo que eles estavam tomando, sendo mantido fechado como prisioneiro em minha cabine, e não esperava mais nada, exceto ser assassinado, porque eles me ameaçavam frequentemente.
No dia 9 de maio de 1711, um tal de James Welch veio até a minha cabine, e disse, “que ele tinha ordens do capitão para me deixar no litoral.” Discuti com ele, mas foi em vão, nem podia ele me dizer quem era o novo capitão. Eles me obrigaram a entrar num barco comprido, e permitiram que eu vestisse minhas melhores roupas, que eram tão boas quanto as novas, e que fizesse uma pequena trouxa de roupa, porém, não me permitiram nenhuma arma, com exceção do meu cutelo, e eles foram tão civilizados a ponto de não revistarem os meus bolsos, onde levava todo dinheiro que tinha, além de algumas outras poucas necessidades. Eles remaram aproximadamente uma légua, e então fizeram com que eu desembarcasse numa praia. Pedi para que me dissessem que país era aquele. Todos eles juraram “que não sabiam nada mais do que eu;” mas disseram, “que o capitão” (como eles o chamavam) “havia decidido, depois que tivessem vendido a carga, livrar-se de mim no primeiro lugar onde pudessem descobrir terra.” Imediatamente eles se afastaram, recomendando-me para que me apressasse, com receio de que fosse alcançado pela maré, e assim se despediram de mim.
Nesta situação de abandono eu segui em frente, tendo logo chegado em terra firme, onde me sentei num banco de areia para descansar, e pensar no que eu poderia fazer. Tendo já me refrescado um pouco, adentrei aquela região, decidido a me entregar aos primeiros selvagens que encontrasse, e salvar a minha vida em troca de alguns braceletes, anéis de vidro, e outros brinquedos, que normalmente os marinheiros levam consigo em suas viagens, e os quais guardava alguns junto comigo. O país era dividido por longas fileiras de árvores, irregularmente plantadas, porém, nascidas de forma natural; havia mato em grande quantidade, e vários campos de aveia. Andava com muito cuidado, com medo de ser surpreendido, ou subitamente atingido por uma flecha nas costas, ou de qualquer outro lado.
Caminhei por uma estrada de terra batida, onde encontrei muitos sinais de pés humanos, e alguns de vacas, mas a maioria era de cavalos. Enfim, visualizei vários animais em um campo, e um ou dois da mesma espécie sentados debaixo das árvores. O formato deles era muito singular e disforme, e isso me deixou desconcertado, de modo que eu fiquei atrás de um arbusto para observá-los melhor. Alguns deles se aproximaram do lugar onde eu estava, dando-me a oportunidade de observar perfeitamente a forma deles. A cabeça e o peito deles eram cobertos por um pelo espesso, encaracolados alguns, lisos em outros, eles tinham barbas como as cabras, e longa crista de cabelos descia pelas costas, e pelas partes frontais de suas pernas e patas, mas o resto dos seus corpos era pelado, de modo que eu pude ver suas peles, que eram de cor castanho amarelado.
Não possuíam rabos, nem qualquer pelo de nenhum tipo em seus traseiros, exceto em torno do ânus, o qual, presumo eu, a natureza tenha colocado ali para protegê-los ao se sentarem no chão, pois costumavam ficar nessa posição, e também deitados, e muitas vezes ficavam de pé sobre suas patas traseiras. Subiam nas árvores mais altas tão rapidamente como se fossem esquilos, pois eram dotados de fortes e longas garras na frente e atrás, que terminavam em pontas afiadas e com formatos de ganchos. Costumavam brincar, dar botes, e saltar, com uma agilidade prodigiosa. As fêmeas não eram tão grandes como os machos, elas possuíam pelos longos e lisos em suas cabeças, mas nenhum pelo em suas faces, nem nada além de uma espécie de penugem no resto do seu corpo, exceto ao redor do ânus e das partes íntimas.
As tetas ficavam dependuradas entre suas patas dianteiras, e muitas vezes chegavam quase até o chão quando caminhavam. Os pelos tanto do macho como da fêmea eram de várias cores, pardos, ruivos, negros, e amarelos. No conjunto, nunca havia visto, em todas as minhas viagens, um animal tão desagradável, ou algum que me inspirasse uma aversão tão forte. De modo que, pensando que já havia visto o suficiente, tomado por desprezo e aversão, levantei-me, e caminhei pelo chão de terra batida, esperando que ele pudesse me levar até a cabana de algum índio. Não tinha ido muito longe, quando encontrei uma dessas criaturas totalmente no meu caminho e vindo diretamente em minha direção.
O monstro horrível, quando me viu, retorceu de todas as maneiras, todos os músculos de sua face, e olhava assustado, como para alguma coisa que ele nunca havia visto antes, depois, se aproximou mais, levantou sua pata dianteira, não posso dizer se foi por curiosidade ou se estava mal intencionado, mas, saquei o meu cutelo, e lhe dei um golpe certeiro com o lado liso da faca, pois não me atrevi a golpeá-lo com a ponta, com receio que os habitantes pudessem ficar furiosos comigo, caso eles viessem a saber que eu tivesse matado ou mutilado algum do seu gado.
Quando o animal sentiu a dor, afastou-se, e rugiu tão alto, que uma manada de pelo menos quarenta deles vieram em bando em torno de mim proveniente de um campo das imediações, uivando e fazendo carantonhas terríveis, mas eu corrí para o tronco de uma árvore, e encostando a minha costa contra ela, os mantive afastados brandindo o meu cutelo. Vários desta maldita raça, firmando-se nos galhos de trás, saltaram para cima da árvore, e começaram a lançar seus excrementos sobre a minha cabeça, todavia, escapei com habilidade colando-me com firmeza ao tronco da árvore, mas quase fui sufocado por causa da imundície, que caía em torno de mim de todos os lados.
No meio deste sufoco, observei que todos fugiam de repente tão velozes quanto podiam, e então arrisquei-me a sair da árvore e seguir o caminho, imaginando o que teria acontecido para que tivessem se assustado dessa maneira. Porém, olhando minha mão esquerda, vi um cavalo que caminhava tranquilamente pelo campo, o qual, tendo sido visto primeiro pelos meus perseguidores, teria sido a causa da fuga deles. O cavalo estremeceu um pouco, quando se aproximou de mim, mas logo se recompôs, e olhou bem no meu rosto com evidentes sinais de espanto, examinou minhas mãos e meus pés, caminhando em torno de mim várias vezes. Eu teria seguido a minha viagem, mas ele se colocou diretamente em meu caminho, olhando ainda com aspecto bastante tranquilo, sem qualquer demonstração de violência.
Durante algum tempo ficamos olhando um para o outro, por fim, me atrevi a estender minha mão em direção ao seu pescoço com o propósito de acariciá-lo, usando o estilo e o assobio habitual dos jóqueis, quando vão lidar pela primeira vez com um cavalo estranho. Mas este animal parecia receber com desprezo meus gestos de civilidade, balançou a cabeça, franziu as sobrancelhas, levantando suavemente a sua pata dianteira direita para afastar a minha mão. Depois, ele relinchou três ou quatro vezes, porém, num ritmo tão diferente, que eu quase comecei a pensar, que ele estava falando consigo mesmo, em sua linguagem própria.
Enquanto ele e eu estávamos assim ocupados, um outro cavalo apareceu, e se juntou ao primeiro de uma maneira bastante formal, tocaram suavemente o casco direito um do outro antes, relincharam várias vezes, um de cada vez, e com variação de sons, que pareciam quase articulações. Afastaram-se alguns passos, como se estivessem conferenciando juntos, andando lado a lado, pra trás e pra frente, como pessoas que decidem sobre algum assunto de peso, mas frequentemente voltando seus olhos em minha direção, como se fossem para me vigiar para que eu não fugisse. Eu estava assustado em presenciar ações e comportamento desse tipo em animais brutos, e concluí comigo mesmo, que se os habitantes daquele país fossem dotados com um grau proporcional de entendimento, eles deveriam ser as pessoas mais sábias da terra.
Este pensamento me causou tanto alívio, que eu decidi seguir em frente, até que pudesse descobrir alguma casa ou aldeia, ou encontrar alguns dos nativos, deixando os dois cavalos discursando juntos como preferiam. Mas o primeiro, que tinha pintas cinzentas, observando que me afastava, relinchou atrás de mim de uma maneira tão expressiva, que eu imaginei ter entendido o que ele queria dizer, diante disso voltei, e me aproximei dele esperando suas ordens em seguida: porém, ocultando o meu temor tanto quanto podia, pois eu começava a ter algum receio em como terminaria esta aventura, e o leitor facilmente poderá crer que eu não estava apreciando muito a minha situação atual.
Os dois cavalos se aproximaram de mim, olhando muito atentamente o meu rosto e as minhas mãos. O corcel cinza roçou todo o meu chapéu com sua pata dianteira direita, e tanto tirou ele do lugar que eu fui obrigado a ajustá-lo melhor tirando-o e colocando-o novamente; diante disso, ele e seu companheiro (que era um cavalo baio pardo) me pareciam muito supresos: o último tocou a lapela do meu casaco, e como ela estava solta, ambos olhavam com novos sinais de assombro. Ele tocou a minha mão direita, parecendo admirado com a suavidade e talvez a cor, mas ele apertou tão forte entre o casco e a quartela, que fui obrigado a berrar, depois disso, os dois me tocaram com a maior suavidade possível. Eles ficaram muito perplexos com meus sapatos e meias, os quais tocaram várias vezes, relinchando um para o outro, e usando de várias gesticulações, não diferente daquele que faz um filósofo, quando ele tenta resolver algum fenômeno novo e difícil.
Em suma, o comportamento desses animais era tão metódico e racional, tão perspicaz e sensato, que por fim concluí que haviam de ser mágicos, que tinham então se metamorfoseado em razão de algum plano, e tendo encontrado um estrangeiro no meio do caminho, resolveram se divertir com ele, ou, talvez, estivessem realmente surpresos com o aspecto de um homem, com hábito, aparência, e semblante tão diferentes, daqueles que provavelmente habitariam em climas tão remotos. Devido ao fundamento deste raciocínio, arrisquei me dirigir a eles da seguinte maneira: “Cavalheiros, se sois encantadores, como tenho fortes razões para crer, podeis entender o meu idioma, portanto, atrevo a comunicar vossas senhorias que sou um inglês pobre e aflito, lançado em vossa costa por algum infortúnio, e rogo para que um de vós permita que eu cavalgue em seu dorso, como se fosse um cavalo de verdade, até alguma casa ou aldeia onde me possam ajudar.”
“Em troca desse favor, eu lhe darei de presente esta faca ou um bracelete,” e os tirei do meu bolso. As duas criaturas ficaram em silêncio enquanto falava, parecendo que me ouviam com bastante atenção, e quando havia terminado, eles relinchavam um para o outro, como se estivessem ocupados numa conversação séria. Observei atentamente que o idioma deles expressava muito bem as paixões, e as palavras poderiam, com poucos esforços, ser traduzidos para um alfabeto mais fácil do que o chinês.”
Muitas vezes eu conseguia distinguir a palavra Yahoo, a qual era repetida por cada um deles várias vezes: e embora fosse impossível para mim imaginar o que isso queria dizer, enquanto os dois cavalos permaneciam ocupados na conversação, me esforcei para praticar esta palavra na minha língua, e assim que ficaram em silêncio, corajosamente pronunciei Yahoo em voz alta, imitando ao mesmo tempo, tão bem quanto podia, o relinchar de um cavalo, diante disso, os dois ficaram visivelmente surpresos, e o cinzento repetiu a mesma palavra duas vezes, como se desejasse me ensinar a pronúncia correta, e assim repetia depois dele tão bem quanto podia, e notei que melhorava perceptivelmente a cada momento, embora fosse muito distante de qualquer grau de perfeição. Então, o cavalo baio tentou uma segunda palavra, muito mais difícil de ser pronunciada, mas convertendo-a para a ortografia inglesa, pode ser pronunciada assim: HOUYHNHNM. Eu não consegui pronunciá-la tão bem como a anterior, porém, depois de duas ou três tentativas a mais, tive melhor sorte, e os dois ficaram assustados com a minha capacidade.
Depois de mais alguns discursos, que eu então imaginei que poderia estar relacionado comigo, os dois amigos se despediram, com o mesmo cumprimento tocando o casco um do outro, e o cavalo cinzento me fez sinais para que eu caminhasse na frente dele, o que julguei que fosse prudente concordar, até que encontrasse um regente mais capacitado. Quando eu propunha diminuir a marcha, ele gritava HHUUN HHUUN: adivinhei o que significava, e fiz com que ele entendesse, tão bem quanto pude, “que eu estava muito cansado, e não conseguia andar mais rápido;” e assim ele ficava parado e me deixava descansar.
[O autor é levado por um Houyhnhnm a sua casa. Descrição da casa. Como o autor é recebido. O alimento dos Houyhnhnms. O autor se aborrece por falta de alimento. Finalmente ele é solto. Como ele se alimentava naquele país.]
Tendo percorrido por volta de três milhas, chegamos a uma espécie de grandes construções, feitas de madeira coladas no chão, e entrelaçadas, o teto era baixo e coberto de palha. Agora eu começava a sentir um certo alívio, e tirei dos meus bolsos alguns brinquedos, que viajantes normalmente levam como presentes para os índios selvagens da América, e de outras partes, na esperança que as pessoas da casa se sintam com isso estimulados a recebê-los com cordialidade.
O cavalo fez um sinal para que eu entrasse primeiro, era um cômodo grande com chão de barro liso, e de um lado havia um cocho e uma manjedoura, que se estendia por todo o comprimento da parede. Lá estavam três cavalos de sela e duas éguas, que não estavam comendo, mas, alguns deles, estavam sentados sobre suas patas traseiras, o que me deixou muito admirado, porém, tive vontade de conhecer os outros[1] que eram utilizados nos serviços domésticos, e que tinham semelhança com o gado vulgar. Todavia, isto confirmava para mim, a opinião que tive a princípio, de que as pessoas que podiam domesticar dessa maneira os animais selvagens, deveriam ser superiores em sabedoria a todas as nações do mundo.
O cavalo cinzento chegou logo em seguida, e com isso evitou qualquer mal tratamento que os outros pudessem me dar. Relinchou para eles diversas vezes num tom de autoridade, e também recebia respostas.
Além deste alojamento havia três outros, que alcançavam o comprimento da casa, ao qual três portas lhe davam acesso, uma de frente para a outra, como em uma perspectiva. Atravessamos o segundo cômodo e chegamos ao terceiro. Nesse ponto, o cavalo cinzento foi na frente, e me acenou para que esperasse: esperei no segundo cômodo, e preparei os meus presentes para o dono e a dona da casa, eram duas facas, três braceletes de pérolas falsas, um espelho pequeno, e um colar de contas. O cavalo relinchou três ou quatro vezes, e eu esperava ouvir alguma resposta parecida com a voz humana, mas não houve retorno exceto no mesmo dialeto, um ou dois relinchos um pouco mais agudo que o dele. Comecei a achar que esta casa devia pertencer a uma pessoa da alta hierarquia daquela região, diante de todo aquele cerimonial para que eu pudesse ser recebido.
Porém, acreditar que um homem de alto padrão fosse servido apenas por cavalos, era algo que eu não conseguia compreender. Tive medo que a minha cabeça estivesse perturbada devido aos sofrimentos e aflições pelos quais eu tinha passado. Levantei-me, e olhei ao redor da sala onde fora deixado sozinho: tinha a mesma disposição que o anterior, apenas era um pouco mais elegante. Esfregava os olhos com frequência, porém, os mesmos objetos voltavam a aparecer. Belisquei os meus braços e dos lados para acordar, pensando que estivesse sonhando. Concluí, então, com certeza, que tudo o que tinha visto nada mais era do que efeito da necromancia ou da magia. Porém, não me foi mais possível continuar nessas reflexões, porque o cavalo cinzento veio até a porta, e fez sinal para que o acompanhasse até o terceiro cômodo onde vi uma égua muito graciosa, bem como um potro e seu filhote, sentados sobre suas ancas em tapetes de palha, feitos de modo tão natural, e perfeitamente limpos e asseados.
A égua, assim que entrei, levantou-se de seu tapete de palha, e aproximando-se, depois de ter observado demoradamente minhas mãos e meu rosto, me fez um olhar de desinteresse, e virando-se para o cavalo, ouvi que a palavra Yahoo foi diversas vezes repetidas por eles, cujo significado da palavra não consegui entender naquele momento, embora tenha sido a primeira que eu tinha conseguido pronunciar. Mas logo me informaram melhor, para minha eterna humilhação, pois o cavalo, acenando para mim com a cabeça, e repetindo HHUUN HHUUN, como fazia durante o percurso, e que eu entendia que era para acompanhá-lo, me conduziu para uma espécie de pátio, onde havia uma outra construção, a uma certa distância da casa.
Entrei e vi três daquelas criaturas detestáveis, que havia encontrado depois do meu desembarque, alimentando-se de raízes, e da carne de alguns animais, que depois descobri que eram de burros e de cachorros, e de vez em quando de vaca, que morreu ou por acidente ou de doença. Todos eles estavam amarrados pelo pescoço por meio de cordas feitas de junco presos a uma trave, seguravam seus alimentos com as garras de suas patas dianteiras, e os rasgavam com seus dentes.
O cavalo chefe ordenou a um cavalo alazão, um de seus criados, para que desamarrasse o maior desses animais, e o levasse para o pátio. O animal e eu fomos trazidos juntos, e pelos nossos aspectos éramos comparados tanto pelo chefe como pelo criado, o qual então repetiu várias vezes a palavra Yahoo. Não consegui ocultar o meu horror e o meu espanto, quando observei neste animal abominável, uma perfeita figura humana: o rosto dele de fato era liso e largo, o nariz achatado, lábios largos, e boca larga, mas, estas diferenças são comuns a todas as nações mais atrasadas, onde os contornos dos semblantes são distorcidos pelos nativos que obrigam as crianças a andar se arrastando pelo chão, ou transportando-os em suas costas, encostando o nariz e a cara nos ombros das mães.
As patas dianteiras dos Yahoos não eram muito diferentes das minhas mãos exceto no comprimento das unhas, na rusticidade, na cor escura de suas palmas, e no excesso de cabelos das costas. As mesmas semelhanças se viam em nossos pés, e também as mesmas diferenças, os quais eu reparei muito bem, embora os cavalos não [2], por causa dos meus sapatos e das minhas meias, o mesmo também se percebia com todas as partes do nosso corpo, com exceção da pelagem e da cor da pele, as quais já foram descritas por mim.
A grande dificuldade que parecia incomodar os dois cavalos, era ver o resto do meu corpo tão diferente do de um Yahoo, e isso era por causa das minhas roupas, de quem não faziam a menor ideia. O cavalo alazão me ofereceu uma raiz, a qual ele segurava (segundo o jeito deles, como iremos descrever no momento oportuno) entre o casco e a quartela; peguei-a com minhas mãos, e depois de cheirá-la, devolvi a ele novamente de maneira tão civilizada quanto pude. Depois ele trouxe um pedaço de carne de burro que havia no estábulo do Yahoo, mas ele tinha um cheiro tão forte que virei a cara de nojo: ele então lançou o pedaço para o Yahoo, que o devorou com sofreguidão. Depois ele me mostrou um punhado de feno, e outro boleto cheio de aveia, mas eu acenei com minha cabeça para dar a entender que nada daquilo era alimento para mim.
E de fato eu, naquelas alturas, havia aprendido que deveria absolutamente passar fome, se eu não conseguisse algo de que estava acostumado, porque aqueles malvados Yahoos, embora por lá, naquele momento, houvessem poucos grandes amantes da humanidade como eu, devo confessar, todavia, que jamais conheci criaturas mais desprezíveis em todos os aspectos, e quanto mais tentava me aproximar deles, mais odiosos se tornavam, durante o tempo que permaneci naquele lugar. O cavalo chefe percebeu este meu comportamento, e diante disso, ordenou que o Yahoo retornasse para o seu estábulo. Ele, então, levou o seu casco dianteiro na boca, o que me surpreendeu muito, embora o fizesse com facilidade, e com um movimento que me pareceu perfeitamente natural, e fazia outros sinais, para saber o que eu comeria; mas eu não poderia retornar-lhe com uma resposta que ele pudesse entender, e se ele tivesse me entendido, eu não compreendia como era possível inventar uma maneira de encontrar alimento para mim mesmo.
Estávamos assim comprometidos, quando observei uma vaca que passava, diante disso, apontei para ela, e expressei meu desejo de ir ordenhá-la. Parece que isto teve algum efeito, porque ele me conduziu de volta para a casa, e ordenou que uma égua, que era uma criada, abrisse uma sala, onde havia um bom estoque de leite em recipientes de barro e de madeira, tudo muito bem arrumadinho e limpo. Ela me ofereceu uma tigela cheia, da qual bebi com gosto, sentindo-me satisfeito.
Por volta do meio dia, percebi que vinha em direção a casa uma espécie de veículo puxado como se fosse um trenó por quatro Yahoos. Nele havia um corcel velho, que parecia ser importante; desceu com suas patas traseiras na frente, porque ele havia sofrido um acidente e machucado a perna dianteira esquerda. Ele tinha vindo para jantar com o nosso cavalo, que o recebeu com belas demonstrações de civilidade. Comeram na melhor sala, e foi servido aveia fervida no leite como segundo prato, que o cavalo velho comeu quente e os demais frio. Suas manjedouras eram colocadas de modo circular no meio da sala, e era constituída por várias divisões, ao redor das quais sentavam sobre suas ancas, em cima de um monte de palhas. No meio havia um cocho grande, com repartições que correspondiam a cada divisão da manjedoura, de modo que todo cavalo e toda égua comiam de seu próprio feno, e tinham seus próprios mingaus de aveia e leite, tudo com muita higiene e bem arrumado.
O jovem potro e o filhote se comportavam de forma muito modesta, enquanto que o cavalo chefe e a sua esposa pareciam bastante felizes e foram muito amáveis com o convidado. O cavalo cinzento pediu para que eu ficasse perto dele, e parecia que ele e seu amigo conversavam bastante a meu respeito, conforme descobri devido aos olhares estranhos que lançavam para mim muitas vezes, e também devido a palavra Yahoo que era repetida frequentemente.
Por acaso eu estava usando minhas luvas, que o chefe cinzento observava, parecendo perplexo, e buscava sinais tentando imaginar o que teria acontecido com as minhas patas dianteiras. Por três ou quatro vezes mostrou o seu casco, como se tentasse me dizer, para que retomassem[3] o formato anterior, o que fiz imediatamente, retirando as luvas, e colocando-as dentro do bolso. Isto provocou um novo início de conversa, e percebi que eles estavam satisfeitos com o meu comportamento, e com isso logo comecei a colher os bons resultados. Me pediram para que repetisse algumas palavras que eu entendia, e enquanto jantavam, o chefe me ensinou a falar algumas palavras tais como aveia, leite, fogo, água, e muitas outras, que eu conseguia pronunciar facilmente depois dele, pois desde a minha juventude sempre tive facilidade em aprender idiomas.
Quando o jantar ficou pronto, o cavalo chefe me levou de lado, e por meio de sinais e de palavras me fez entender a sua preocupação que ele tinha porque eu não havia comido nada. Aveia no idioma deles era HLUNNH. Pronunciei esta palavra duas ou três vezes, pois, embora a princípio houvesse recusado comer isso, pensando melhor, imaginei que poderia descobrir uma maneira de fazer uma espécie de pão com ela, a qual ficaria excelente quando misturada com leite, para me manter vivo, até que conseguisse encontrar uma forma de fugir para algum outro lugar, e com criaturas de minha própria espécie. O cavalo mandou imediatamente que a égua, que era a criada de sua família, me trouxesse uma grande quantidade de aveia numa espécie de bandeja de madeira. Cozinhei tudo isso no fogo, tão bem quanto pude, e as esfreguei bem até sairem as cascas que foram separadas dos grãos.
Moí e bati os grãos de aveia usando duas pedras, depois peguei água, e fiz uma pasta ou uma torta com elas, aqueci no fogo e comi ainda quente com leite. A princípio parecia ser uma dieta bastante insípida, embora fosse muito comum[4] em muitas partes da Europa, porém, com o passar do tempo foi ficando mais tolerável, e tendo me habituado a uma parca refeição durante a minha vida, este não era o primeiro experimento que fazia para entender como era fácil satisfazer os nossos instintos. E não posso deixar de relatar, que jamais fiquei sequer uma hora doente durante o tempo que permaneci naquela ilha. É verdade, que algumas vezes tive de me esforçar para caçar um coelho, ou um pássaro, usando laços feitos com pelos de Yahoos, e muitas vezes colhi grandes maços de erva, que eu fervia, e comia com saladas e pão, e de vez em quando, raramente, fazia um pouco de manteiga, e bebia o soro do leite.
No começo senti muito falta de sal, porém, logo me habituei à falta dele, e tenho certeza de que o uso frequente de sal em nossa cultura é uma forma de ostentação, pois foi introduzido apenas como estimulante para a bebida, exceto nos casos que é necessário para preservar as carnes em longas viagens, ou em lugares remotos dos grandes mercados, pois observamos que nenhum animal faz uso dele, exceto o homem, e no que me diz respeito, quando deixei este lugar, se passou muito tempo até que pudesse suportar o gosto do sal em qualquer coisa que eu comia.
Acredito que isso basta para falar um pouco sobre o tema da minha dieta, sendo que outros viajantes enchem seus livros, como se os leitores estivessem realmente preocupados se passamos bem ou mal. Contudo, foi necessário que mencionasse este assunto, caso contrário, o mundo poderia pensar que seria impossível que eu tivesse sobrevivido durante três anos nesse lugar, e no meio de habitantes daquele tipo.
Quando foi anoitecendo, o cavalo chefe preparou um lugar para que me albergasse, ficava apenas a seiscentos metros da casa e era separado do estábulo onde ficavam os Yahoos. Lá eu consegui um pouco de palha, e cobrindo-me com minhas próprias roupas, dormi muito profundamente. Mas, em pouco tempo, fiquei melhor acomodado, como o leitor irá descobrir mais adiante, quando passarei a tratar de modo mais detalhado a respeito do tipo de vida que tive.
[O autor estuda para aprender o idioma. O Houyhnhnm, seu amo, o auxilia no aprendizado. Descrição do idioma. Diversos Houyhnhnms de importância, movidos pela curiosidade, visitam o autor. Ele faz ao seu amo um curto relato de sua viagem.]
O meu objetivo principal era estudar o idioma, para isso, meu amo (pois assim passarei a chamá-lo), seus filhos, e todos os criados de sua casa tinham grande interesse em me ensinar, pois eles consideravam um prodígio, que um animal irracional (como eu) tivesse as marcas de uma criatura inteligente. Eu apontava todos os objetos, e perguntava os seus respectivos nomes, os quais anotava em meu diário quando estava sozinho, e corrigia o meu sotaque imperfeito pedindo aos membros da família para que repetissem várias vezes a pronúncia. Para esta tarefa, um cavalo alazão, que era um dos criados subalternos, estava sempre a minha disposição para me ajudar.
Ao falar, eles pronunciavam através do nariz e da garganta, e o idioma deles tinha grandes semelhanças com o baixo holandês, ou o alemão, do que com qualquer outro idioma que eu conhecia na Europa, mas era muito mais gracioso e expressivo. O imperador Carlos V fez quase a mesma observação, quando afirmou certa vez “que se ele tivesse de conversar com seu cavalo, o idioma seria o baixo-holandês.”
A curiosidade e a impaciência do meu amo era tamanha, que ele passava muitas de suas horas de lazer me ensinando. Ele estava convencido (como me disse mais tarde) de que eu devia ser um Yahoo, todavia, a facilidade com que estudava, a civilidade e o asseio o aturdiam, pois esses eram atributos que os Yahoos não possuíam. Ele ficou perplexo com as minhas roupas, as quais, ficava pensando ele se elas faziam parte do meu corpo: pois eu nunca as tirava até que a família tivesse ido dormir, e as colocava antes que eles acordassem de manhã. Meu amo estava ansioso para descobrir “de onde eu viera, de onde eu adquirira todas aqueles sinais de racionalidade, que eu demonstrava em todo o meu comportamento, e saber toda a minha história contada por mim mesmo, o que ele esperava que logo o conseguisse devido a grande capacidade que eu tinha para aprender e pronunciar as palavras e as frases.”
Para ajudar a minha memória, eu colocava tudo que aprendia no alfabeto inglês, e anotava as palavras com suas respectivas traduções. Finalmente, depois de algum tempo, arrisquei fazer uma demonstração na frente do meu amo. Foi para mim muito difícil explicar para ele o que eu estava fazendo, pois os habitantes daquele lugar não tinham a menor ideia sobre o que eram livros e literatura.
Em dez semanas aproximadamente, eu já era capaz de entender a maioria de suas perguntas, e em três meses, já podia dar a eles algumas respostas plausíveis. Ele estava muito curioso para saber “de que região daquele país eu tinha vindo, e como eu havia aprendido a imitar uma criatura racional, porque os Yahoos (com quem ele achava que eu era muito parecido devido ao formato da cabeça, das mãos e do rosto que eram visíveis) que pareciam inteligentes, e tinham forte tendência para travessuras, de todos os animais, eram considerados os mais obtusos com relação ao aprendizado. Respondi-lhes “que viera através dos mares, de um lugar muito distante, onde havia muitos outros de minha própria espécie, dentro de um grande recipiente oco feito de troncos das árvores, e que meus companheiros me obrigaram a desembarcar nesta costa, e depois me abandonaram à própria sorte.
Foi com grande dificuldade, e usando muitos sinais, que eu fiz com que ele me entendesse. Ele respondeu, “que eu deveria estar enganado, ou que falava de coisas que não tinham sentido,” porque eles não tinham no idioma deles uma palavra que tivesse o mesmo significado de mentira ou falsidade. “Ele sabia que era impossível que houvesse um país que ficasse do outro lado do mar, ou que um bando de animais irracionais pudesse transportar um recipiente de madeira para onde quisessem por cima das águas. Ele tinha certeza de que nenhum HOUYHNHNM que estivesse vivo, poderia criar tal recipiente, nem achava que os Yahoos pudessem fazer isso.”
A palavra HOUYHNHNM, no idioma deles, significava CAVALO, e etimologicamente, queria dizer a PERFEIÇÃO DA NATUREZA. Disse ao meu amo, “que me faltavam palavras, mas prometia melhorar tão rápido quanto possível, e esperava, num espaço curto de tempo, ser capaz de lhe dizer maravilhas.” Ele ficou feliz em dar instruções para que a sua égua, o seu potro, o pequeno filhote, e os criados da família, fizessem uso de todas as situações para me ensinar, e todos os dias durante duas ou três horas, tendo ele mesmo se esforçado nesse sentido. Vários cavalos e éguas de qualidade nas vizinhanças frequentemente vinham à nossa casa, pois se alastrara a notícia de que “um maravilhoso Yahoo, podia falar como um HOUYHNHNM, e parecia que eles haviam descoberto, em suas palavras e ações, alguns brilhos de inteligência.”
Eles ficavam encantados em conversar comigo: e faziam muitas perguntas, e recebiam respostas sempre quando que me era possível. Diante de tanto sucesso, eu havia feito um progresso tão grande, que, em cinco meses desde a minha chegada, eu compreendia tudo que falavam, e podia me expressar com relativa facilidade.
Os HOUYHNHNMS, vieram para visitar o meu amo, e tinham também planos para me conhecerem ou de falarem comigo, pois tinham dificuldade para crer que eu fosse um Yahoo verdadeiro, porque o meu corpo tinha uma cobertura diferente daqueles da minha espécie. Eles ficaram perplexos ao observarem que eu era desprovido de cabelos ou de pele habituais, com exceção da cabeça, do rosto e das mãos, mas eu revelei esse segredo para o meu amo durante um episódio ocorrido quinze dias antes.
Eu já havia dito ao leitor, que todas as noites, quando a família ía dormir, tinha o hábito de me despir, e me cobrir com minhas roupas. Porém, num dia de manhã, aconteceu que o meu amo mandou que um cavalo alazão, que era o seu criado particular, fosse me procurar. Quando ele chegou, eu dormia profundamente, minhas roupas estavam caídas de lado, e minha camisa estava acima da minha cintura. Acordei com o barulho que ele fez, e notei que ele entregou o recado com um certo desconforto, tendo depois retornado para o meu amo, e muito assustado fez um confuso relato do que havia visto.
Descobri isso imediatamente, porque, vestindo-me rapidamente para atender ao seu chamado, ele me perguntou “sobre o que o seu criado havia lhe contado, de que eu não era a mesma coisa quando dormia, como parecia ser em outras situações, e que o seu criado particular havia lhe garantido, que parte do meu corpo era branca, outra parte era amarela, pelo menos não tão branca, e era um pouco moreno.”
Até aquele momento, eu havia ocultado o segredo das minhas roupas, para me diferenciar, tanto quanto possível, daquela raça execrável de Yahoos, porém, agora, era inútil continuar agindo assim. Além disso, levei em consideração que minhas roupas e meus sapatos logo estariam gastos, os quais já se encontravam em situação decadente, e teriam de ser substituídos por algo que pudesse ser feito com as peles dos Yahoos, ou de outros animais, e desse modo todo meu segredo seria descoberto. Disse, portanto, ao meu amo “que no país de onde viera, aqueles que eram semelhantes a mim cobriam seus corpos com os pelos de certos animais preparados com arte, e com decência para se protegerem contra as inclemências do tempo, tanto do calor como do frio, e disso, eu pessoalmente, poderia convencê-lo imediatamente, caso ele assim o desejasse: somente me desculpando, por não exibir aquelas partes que a natureza nos ensinou a ocultar.”
Ele disse, “que a minha conversa causava uma certa estranheza, particularmente em relação a última parte, pois ele não conseguia entender, porque a natureza nos ensinava a ocultar o que ela mesma nos havia oferecido, e que nem ele, nem sua família, tinham vergonha de qualquer parte de seus corpos, no entanto, eu poderia fazer o que desejasse.” Assim, desabotoei o meu casaco, e o tirei. Fiz o mesmo com o meu colete. Tirei os meus sapatos, meias e ceroulas. Minha camisa ficou baixada até a cintura, e desci até o traseiro, amarrando-a como uma cinta na metade do corpo, para ocultar a minha nudez.
O meu amo assistia a toda exibição com grandes sinais de curiosidade e admiração. Pegou com a sua quartela todas as minhas roupas, peça por peça, e as examinou cuidadosamente, ele então tocou o meu corpo muito suavemente, e olhou em torno de mim várias vezes; depois disso, disse ele, que ficava claro que eu deveria ser um perfeito Yahoo, mas que eu era muito diferente do resto da minha espécie por causa da suavidade, do brancura, e pelo fato da minha pele ser lisa; devido a ausência de pelos em várias partes do meu corpo, do formato e pelo fato de minhas garras serem tão curtas, e devido ao meu esforço de caminhar sempre sobre as minhas patas traseiras. Não desejou ver mais nada, e me deu permissão para que vestisse as roupas novamente, porque eu estava tiritando de frio.
Expressei meu descontentamento por me chamar tantas vezes de Yahoo, que era um animal odioso, pelo qual eu sentia um ódio e um desprezo absoluto: Pedi para que ele parasse de me chamar daquele jeito, e fiz o mesmo pedido a sua família e na frente de seus amigos, os quais ele permitia que viessem me visitar. Solicitei, também, “para que o segredo de usar uma falsa cobertura para o meu corpo, não fosse do conhecimento de outras pessoas, exceto de si mesmo, pelo menos enquanto durassem as minhas roupas que vestia naquele momento, pois tudo quanto o cavalo alazão, que era seu criado particular, tinha observado, que a sua senhoria deveria exigir que ele não revelasse a ninguém.”
Tudo isso me prometeu o meu amo, amavelmente, e assim o segredo foi mantido até que minhas roupas começassem a se desgastar, o que me forçou a substituí-las por várias outras criações que serão mencionadas posteriormente. Durante esse período, ele pediu “para que eu me empenhasse o máximo para aprender o idioma deles, porque ele ficou mais admirado com a minha capacidade de falar e de raciocinar, do que com o aspecto do meu corpo, se ele era coberto ou não: acrescentando, “que ele esperava com impaciência ouvir as maravilhas que eu havia prometido lhe contar.”
Daí em diante ele duplicou os esforços que fazia para me ensinar: me levava para todas as reuniões, e fazia com que me tratassem com educação, porque, como dissera a eles, em particular, “isso me deixaria mais bem humorado, e me divertiria mais.”
Todos os dias, quando esperava por ele; além do trabalho que ele tinha em me ensinar, ele me fazia várias perguntas sobre a minha pessoa, as quais respondia tão bem quanto possível, e diante disso ele já tinha algumas ideias gerais, embora fossem muito imperfeitas. Seria tedioso relatar as várias etapas que passei até chegar a uma conversação mais regular, mas a primeira vez que falei de mim mesmo com uma certa coerência e demoradamente foi com o seguinte propósito:
”Que eu havia vindo de um país muito distante, como eu já havia tentado dizer isso a ele antes, e onde havia cinquenta ou mais da minha espécie, e que havíamos viajado pelos mares, em um grande recipiente oco feito de madeira, e maior do que a casa de sua senhoria. Descrevi para ele o barco da melhor forma que podia, e expliquei, fazendo demonstrações com o meu lenço, como fazia para que o barco fosse impulsionado pelo vento. E que por causa de uma discussão ocorrida entre nós, eu havia sido deixado nesta costa, onde eu segui em frente, sem saber para onde, até que ele me libertou da perseguição dos detestáveis Yahoos.” Ele me perguntou, “quem havia construído o navio, e como era possível que os HOUYHNHNMS de meu país, permitissem que animais ficassem em seu comando?” Respondi que, “não me atreveria a contar mais nada para ele, a menos que ele me desse sua palavra de honra de que ele não se ofenderia, e então eu lhe falaria sobre as maravilhas que lhe tinha prometido tantas vezes.”
Ele concordou, e eu continuei lhe garantindo, que o navio havia sido construído por pessoas como eu mesmo, as quais, em todos os países por onde havia viajado, bem como em meu próprio país, eram os únicos animais racionais que comandavam, e que ao chegar naquele lugar, eu fiquei admirado em ver os HOUYHNHNMS agir como se fossem criaturas racionais, como ele, ou seus amigos, também eram, ao encontrar sinais de inteligência numa criatura que ele tinha o prazer de chamar de Yahoo, aos quais eu tinha muitas semelhanças em todos os sentidos, mas que não deveriam levar em contar os modos estúpidos e brutais deles. E disse mais, “que se o destino algum dia permitisse retornar ao meu país natal, para contar as minhas viagens até ali, como havia decidido fazer, todos haveriam de crer, de que falava de coisas que não existiam, que as história eram inventadas da minha própria cabeça, e que (com todo o respeito que devia a ele mesmo, à sua família, e aos seus amigos, e diante da promessa de não se ofender) os nossos compatriotas dificilmente achariam possível que um HOUYHNHNM pudesse ser uma criatura que governa uma nação, e um Yahoo, um animal irracional.”
[O conceito de um Houyhnhnm sobre a verdade e a mentira. Seu amo desaprova as falas do autor. O autor fornece fatos mais detalhados sobre si mesmo, e os acidentes da viagem.]
Meu amo me ouvia com grandes demonstrações de insatisfação em seu semblante, porque a dúvida e a desconfiança, eram sentimentos pouco conhecidos neste país, por isso, os habitantes não sabiam se comportar diante de tais circunstâncias. E eu me recordo, nos discursos frequentes que tinha com o meu amo em relação à natureza do ser humano em outras partes do mundo, quando tive a oportunidade de falar sobre a mentira e o falso testemunho, e foi com grande dificuldade que ele compreendeu o que eu queria dizer, embora, em outras situações ele tivesse revelado um poder de raciocínio muito perspicaz.
Pois defendia ele: “que o uso da palavra era para que nos entendêssemos uns aos outros, e recebêssemos as informações sobre os fatos, e se alguém dizia que tal coisa não existia, isso deveria ser combatido, porque eu não poderia dizer que o havia compreendido, e me sentia mais distante ainda do entendimento da informação, se ele me tivesse deixado em situação pior do que na ignorância, pois eu era induzido a acreditar que tal coisa é preta, quando na verdade ela era branca, curta ou quando ela era comprida.” E estes eram todos os conceitos que ele tinha com relação à propriedade da mentira, tão perfeitamente compreendida, e praticada de forma tão universal, entre os seres humanos.
Retornando desta digressão filosófica, quando eu havia afirmado que os Yahoos eram os únicos animais governantes do meu país, tendo o meu amo falado que tudo isso ia além de sua compreensão, ele quis saber “se havia HOUYHNHNMS em nosso país, e o que eles faziam?” Disse-lhe, “que os tínhamos em grande quantidade, e que no verão eles pastavam nos campos, e no inverno eles ficavam dentro das casas munidos de feno e aveia, onde os criados Yahoos aproveitavam para alisar as suas peles, pentear a crina deles, dar-lhe comida e preparar suas camas.”
“Eu o entendo perfeitamente,” disse meu amo: “agora ficou bastante claro, depois de tudo que você me contou, que seja qual for a parcela de inteligência dos Yahoos, os HOUYHNHNMS são seus donos, e gostaria que os nossos Yahoos fossem assim tratáveis. “Pedi a sua senhoria se dignasse me perdoar de continuar a falar sobre esse assunto, porque eu tinha certeza de que os fatos que ele esperava que eu relatasse seriam bastante desagradáveis.” Mas ele insistiu e me ordenou que lhe contasse sobre tudo, as coisas boas e as ruins.
Disse-lhe “que ele devia ser obedecido.” Confessei a ele “que os HOUYHNHNMS que vivem entre nós, a quem chamamos de cavalos, eram os animais mais generosos e mais graciosos que tínhamos, que eles eram muito superiores em força e velocidade, e quando seus proprietários eram pessoas de importância, eles os utilizavam para viajar, em corridas de cavalos ou para puxar carruagens, e eles eram tratados com muita cordialidade e carinho, até quando ficavam doentes, ou machucavam suas patas; então, eles eram vendidos, e usados para todos os tipos de trabalhos até quando morressem; depois disso, suas peles eram tiradas, e vendidas pelo preço que valiam, e seus corpos eram devorados pelos cães e aves de rapina”.
“Porém, a raça comum de cavalos não tinha tanta sorte assim, pois ficavam nas mãos de lavradores e de transportadores, e de outras pessoas malvadas, que os colocavam em trabalhos pesados, e os alimentavam da pior maneira.” Descrevi, da melhor maneira possível, o nosso modo de cavalgar, o formato e o uso de um freio, de uma sela, da espora, do chicote, dos arreios e das rodas. Acrescentei “que aplicávamos placas de um substância dura, chamada ferro, no fundo de suas patas, para proteger os seus cascos que se quebravam nos caminhos pedregosos, onde viajávamos com frequência.”
Meu amo, depois de algumas expressões de grande indignação, queria saber “como é que ousávamos montar as costas de um HOUYHNHNM, porque ele tinha certeza, que o criado mais fraco de sua casa seria capaz de sacudir e derrubar o mais forte dos Yahoos, ou de jogar ao chão e rolar em suas costas, e de pisar até matar o animal irracional.”
Respondi “que os nossos cavalos eram treinados, desde os três ou quatro anos de idade, para os vários usos a que pretendíamos, e que caso alguns deles se mostrassem intoleravelmente vingativos, eram usados para transportes, e que apanhavam com rigor, quando eram jovens, em caso de mau comportamento, e que os machos eram criados para o uso comum de cavalgar ou no transporte, geralmente eram castrados cerca de dois anos depois do seu nascimento, para abrandar seus impulsos, e torná-los mais domesticáveis e gentis, e que eles eram passíveis de recompensas e de punições, mas a sua senhoria se dignasse compreender, que eles não possuíam o menor vestígio de inteligência, não mais do que os Yahoos desta região.”
Tive de me esforçar muito, me utilizando de inúmeros circunlóquios para oferecer ao meu amo um ideia correta daquilo que eu falava, porque o idioma deles não era rico em variedade de palavras, e porque as suas necessidades e as suas paixões eram mais reduzidas em relação às nossas. Mas, é impossível expressar o nobre ressentimento do meu amo com relação ao tratamento da raça de um HOUYHNHNM, mais especificamente, depois de eu ter explicado os nossos modos e os costumes de castrar os cavalos, para impedir que eles propagassem a sua espécie, e para torná-los mais servis.
Ele disse, “que se existisse um país onde somente os Yahoos fossem dotados de inteligência, eles certamente seriam os animais governantes, porque, com o decorrer do tempo, a inteligência deveria prevalecer sobre a força bruta. Porém, considerando a estrutura dos nossos corpos, e especialmente a minha, achava ele que nenhuma criatura de igual tamanho seria tão mal projetada para o uso da inteligência, nos ofícios comuns da vida;” e desse modo ele quis saber, “se entre aqueles com quem vivia, se pareciam comigo, ou com os Yahoos do seu país?” Assegurei-lhe, “que eu tinha uma boa compleição física como a maioria dos que tinham a minha idade, mas os mais jovens e as mulheres, eram muito mais fracos e delicados, e que a pele deles normalmente era branca como o leite.”
Ele disse, “que de fato eu era diferente dos outros Yahoos, e que era mais asseado, e não totalmente tão feio, porém, no tocante as vantagens positivas, ele achava que as minhas diferenças eram piores: que as minhas unhas não tinham utilidade para as minhas patas dianteiras e traseiras; com relação às minhas patas dianteiras, ele praticamente não poderia atribuir-lhe esse nome, pois, ele nunca tinha me visto caminhar sobre elas, que elas eram fracas demais para suportar o chão, e que geralmente elas estavam sempre descobertas, e que as proteções que nelas eu usava tinham o mesmo formato, ou eram tão fortes como aquelas que eu usava nas minhas patas traseiras: que eu não conseguia andar com nenhuma segurança, pois se uma de minhas patas traseiras escorregasse, fatalmente eu cairia.”
Ele então começou a achar defeito nas outras partes do meu corpo, “que o meu rosto era chato, que o meu nariz era grande, e que os meus olhos ficavam diretamente na frente, de modo que eu não conseguia olhar dos dois lados sem virar a cabeça: que eu não conseguia me alimentar, sem levantar uma de minhas patas dianteiras até a boca: e que a natureza havia colocado estas junções para atender a essas necessidades. Ele não sabia para que serviam aquelas inúmeras rachaduras e subdivisões das minhas patas traseiras, e que elas eram muito frágeis para suportar as pedras duras e afiadas, sem uma cobertura feita com a pele de algum animal irracional, e que todo o meu corpo precisava de uma cerca para me proteger contra o frio e o calor, e que eu era obrigado a tirá-la ou colocá-la todos os dias, sendo isso muito tedioso e um transtorno: e finalmente, que ele tinha percebido que todos os animais do seu país tinham aversão natural pelos Yahoos, que eram evitados pelos mais fracos e os mais fortes se afastavam deles”.
De modo que, partindo-se do pressuposto de que tivéssemos o dom da inteligência, ele não conseguia entender como era possível sanar essa antipatia natural, que toda criatura possui em relação a nós, nem consequentemente, como poderíamos domesticá-los e torná-los servíveis. No entanto, como disse ele, “não queria continuar discutindo mais sobre esse assunto, porque ele queria saber mais sobre a minha própria história, sobre o país onde nasci, e tudo o que havia se passado na minha vida, antes de chegar ali.”
Fiz com que ele percebesse, “como eu desejava muito que ele ficasse satisfeito em todos os aspectos, porém, tinha muitas dúvidas, caso me fosse possível esclarecer todos os diversos assuntos, os quais a sua senhoria não fazia nenhuma ideia, porque eu não tinha visto nada ali onde ele vivia, com que pudesse compará-los, mas que, no entanto, faria o melhor, e me esforçaria para me expressar com coisas semelhantes, e desejava humildemente a ajuda dele quando me faltassem as palavras adequadas;” o que ele me prometeu satisfeito.
Disse a ele, “que havia nascido de pais honestos, em uma ilha chamada Inglaterra, que ficava longe do seu país, numa viagem de tantos dias quanto o mais forte dos seus criados pudesse viajar no percurso anual do sol, que eu tinha sido educado como cirurgião, cujo ofício era curar ferimentos e machucados do corpo, por acidente ou por motivo de violência, e que o meu país era governado por uma mulher, a quem chamavam de rainha, que eu o havia deixado para conseguir riquezas, com que pudesse manter a mim e a minha família, quando retornasse, e que, na minha última viagem, eu tinha sido comandante do navio, e tinha cerca de cinquenta Yahoos sob meu comando, muitos dos quais morreram no mar, e eu fui forçado a substituí-los por outros provenientes de várias nações, e que o nosso navio por duas vezes correu o risco de naufragar, a primeira vez por uma grande tormenta, e a segunda vez por ter batido contra um rochedo.”
Nesse ponto, o meu amo se interpôs, e me perguntou, “como é que eu teria conseguido convencer estrangeiros, de vários países diferentes, a se aventurar comigo, depois das perdas que havia sofrido, e dos riscos que havia corrido?” Disse-lhe, “que eles eram desesperados companheiros da fortuna, forçados a fugir de seus locais de nascimento por causa da pobreza ou por crimes que haviam cometido. Alguns estavam arruinados por causa de ações judiciais, outros haviam gasto tudo que tinham com bebidas, prostituição e em jogatinas; outros haviam fugido por problemas de traição, muitos por motivos de assassinatos, furtos, envenenamentos, roubos, perjúrios, falsificações, por cunhar dinheiro falso, raptos, ou por sodomia; por abandono do serviço militar ou por desertarem para o lado do inimigo; e a maioria deles havia fugido da prisão, e nenhum destes ousava retornar para seus países de origem, com medo de serem enforcados, ou morrerem de fome na prisão, e portanto, eles viviam sob a constante necessidade de buscar o próprio sustento em outras paragens.”
Durante este discurso, meu amo teve a satisfação de me interromper por diversas vezes. Eu havia me utilizado de muitos circunlóquios para descrever para ele a natureza dos diversos crimes para os quais a maior parte dos nossos tripulantes tinham sido forçados a fugir de seus países. Este esforço tomou vários dias de conversação, antes que ele pudesse me entender. Ele ficou totalmente confuso para entender para que servia ou porque precisavam eles praticar aqueles crimes.
E para que ele entendesse, me esforcei para dar a ele algumas ideias sobre o desejo do poder e das riquezas, dos efeitos terríveis da luxúria, do destempero, da maldade, e da inveja. Tudo isso eu fui compelido a definir e descrever criando exemplos e fazendo suposições. Depois disso, como se a sua imaginação tivesse sido golpeada por algo nunca visto ou que nunca tinha ouvido falar, ele erguia seus olhos com assombro e indignação.
Poder, governo, guerra, lei, punição, e milhares de outras coisas, não havia termos que o idioma deles pudesse expressar esses conceitos, o que tornava praticamente impossível oferecer ao meu amo, qualquer ideia daquilo que eu pretendia dizer. Porém, como ele era dotado de um perfeito entendimento, muito melhorado devido à reflexão e ao diálogo que tivemos, ele finalmente chegou a um completo entendimento do que a natureza humana, em nossas partes do mundo, era capaz de fazer, e pediu para que eu lhe fizesse alguns relatos particulares sobre a região a que chamava de Europa, porém, mais especificamente sobre o meu próprio país.
[O autor, em obediência a seu amo, fala para ele sobre o Estado da Inglaterra. As causas das guerras entre os príncipes da Europa. O autor começa a falar sobre a constituição inglesa.]
Permita-me advertir o leitor, que o contexto a seguir sobre as muitas conversas que tive com meu amo, contém um sumário dos assuntos mais importantes que foram tratados por diversas vezes durante mais de dois anos; a sua senhoria, queria sempre mais amplas informações, a medida que melhorava os meus conhecimentos do idioma dos HOUYHNHNMS. Apresentei diante dele, de forma tão clara quanto possível, todo o Estado da Europa, falei sobre o comércio e a indústria, as artes e as ciências, e as respostas que eu dava a todas as perguntas que ele fazia, a medida que iam aparecendo em razão dos vários assuntos, eram um plano inesgotável de conversação.
Porém, irei aqui detalhar somente a essência de tudo que falamos com relação ao meu país, resumindo nossas conversas o quanto possível, sem qualquer compromisso com o tempo ou com outras circunstâncias, atendo-me estritamente à verdade. A minha única preocupação era, que eu dificilmente conseguiria fazer justiça aos argumentos e conceitos apresentados pelo meu amo, cujas deficiências se deviam à minha falta de capacidade, bem como por culpa da tradução para o nosso bárbaro idioma inglês.
Obedecendo, portanto, às ordens de sua senhoria, fiz a ele um relato da Revolução movida pelo Príncipe de Orange, durante a longa guerra com a França, provocada pelo mencionado príncipe, e que fora retomada pela sua sucessora, a rainha atual, onde ficaram comprometidos os maiores poderes do Cristianismo, e que se faz durar ainda até os dias de hoje: Calculei, a seu pedido, “que cerca de um milhão de Yahoos devem ter sido mortos durante toda a guerra, e talvez uma centena ou mais de cidades tenham sido tomadas, e mais de quinhentos navios destruídos por incêndio ou naufragados.”
Ele me perguntou, “quais foram as causas ou os motivos mais comuns que faziam com que um país entrasse em guerra com outro?” Respondi, “que os motivos eram inúmeros, porém, faria menção apenas aos principais. Algumas vezes a causa era a ambição dos príncipes, que nunca se contentavam com o país ou com as pessoas para as quais governavam; outras vezes, a corrupção dos ministros, que incitavam seu amo à guerra, com o único objetivo de abafar ou entreter o clamor dos súditos contra a má administração do príncipe.”
A diferença de opiniões tem custado muitos milhões de vidas: por exemplo, se a carne era pão, ou se o pão era carne; se o suco de uma determinada fruta vermelha era sangue ou vinho; se assobiar era um vício ou uma virtude; se as pessoas deveriam beijar um poste ou lançá-lo ao fogo; qual era a melhor cor de um casaco, se era preto, branco, vermelho ou cinzento; e se ele deveria ser longo ou curto, estreito ou largo, sujo ou limpo, além de muitas outras coisas.
Nem eram as guerras tão violentas ou sangrentas, ou muito duradouras, como aquelas que eram causadas pelas diferenças de opiniões, especialmente quando se tratavam de coisas sem importância.
“Algumas vezes a discussão que havia entre dois príncipes era para decidir qual deles deveria se apoderar dos domínios de um terceiro, aos quais nenhum deles tinha qualquer direito. Algumas vezes um príncipe discutia com outro receando que este discutisse com ele. Algumas vezes uma guerra era iniciada, porque o inimigo era muito forte, e algumas vezes, porque ele era fraco demais. Algumas vezes os nossos vizinhos queriam as coisas que tínhamos, e tinham as coisas que queríamos, e ambos lutávamos, até que tomassem as nossas coisas, ou nos dessem as deles.
Era também um motivo muito justificável para a guerra, invadir um país depois que população foi assolada pela fome, devastada pela peste, ou confusos em razão das lutas internas. Era justificável entrar em guerra contra o nosso aliado mais próximo, quando temos interesses em uma de suas cidades, ou em um de seus territórios de terra, e se isso torna os nossos domínios maiores e mais completos. Se um príncipe enviava tropas para uma nação, onde o povo era pobre e ignorante, ele podia legalmente acabar com a metade da sua população, e escravizar os demais, com o propósito de civilizar e minimizar os seus modos de vida bárbaros.
É uma prática real, honrosa e frequente, quando um príncipe pedia a ajuda de um outro, para lhe dar segurança diante de uma invasão, e que o país que oferece ajuda, depois de ter expulsado o invasor, devia ele próprio se apoderar dos domínios, e matar, prender, ou banir, o príncipe que ele veio ajudar. Alianças por consanguinidade, ou em razão de casamentos, é uma causa frequente de guerras entre os príncipes, e quanto mais próximo for o grau de parentesco, tanto maior será a sua disposição para a discussão; as nações pobres tem fome, e as nações ricas são arrogantes, e o orgulho e a fome estarão sempre se confrontando. Por estas razões, o ofício de soldado é considerado o mais honroso de todos os outros, porque um soldado é um Yahoo que foi contratado para matar, a sangue frio, todos os que conseguir, de sua própria espécie, dos quais jamais recebeu uma ofensa.
Existe também uma espécie de príncipes pedintes na Europa, que não sendo capazes de entrar em guerra por si mesmos, contratam tropas de nações mais ricas, por um determinado valor por dia para cada homem, dos quais guardam três quartos para si mesmos, e essa é a melhor parte do sustento deles: príncipes desse tipo estão nas muitas regiões ao norte da Europa.”
“O que você me contou,” disse o meu amo, “sobre o assunto da guerra, sem dúvida revela os efeitos mais admiráveis da inteligência a que você se atribui: todavia, ainda bem que a vergonha seja maior que o risco, e que a natureza vos criou declaradamente incapazes de causar muitos danos. Pois, sendo a boca de vocês chatas em seus rostos, dificilmente vocês poderão morder uns aos outros, seja por qualquer motivo, exceto em caso de consentimento. Depois, as garras de suas patas dianteiras e traseiras, elas são tão curtas e frágeis, que um de nossos Yahoos poria para correr uma dúzia de vocês na frente deles. E portanto, reavaliando o número daqueles que foram mortos em batalha, só posso crer que você falou sobre uma coisa que não seja possível.”
Não pude deixar de balançar a minha cabeça, e rir um pouco da ignorância dele. E como estava familiarizado com a arte da guerra, fiz-lhe uma descrição a respeito dos canhões, colubrinas[1], mosquetes, carabinas, pistolas, projéteis, pólvora, espadas, baionetas, batalhas, assédios, retiradas, ataques, minas, contraminas, bombardeios, batalhas navais, navios que naufragaram com milhares de homens, tendo sido mortos vinte mil de cada lado, gemidos de moribundos, membros explodindo no ar, fumaça, barulho, confusão, pisoteamentos até a morte debaixo das patas dos cavalos, fuga, perseguição, vitória, campos repletos de carcassas abandonados como alimento para cães, lobos e aves de rapina; pilhagem, despojos, violências, incêndios e destruições. E para exaltar o valor dos meus queridos compatriotas, assegurei-lhe “que eu os tinha visto explodirem uma centena de inimigos de uma só vez durante um cerco, e a mesma quantidade em um navio, e havia testemunhado quando os corpos dos mortos cairam aos pedaços das nuvens, para grande diversão dos espectadores.”
Estava para contar mais alguns detalhes, quando o meu amo pediu para que me calasse. Disse ele, “que qualquer um que conhecesse o modo dos Yahoos, poderia facilmente acreditar que fosse possível para um animal tão mesquinho ser capaz de todas as ações que eu havia falado, e a força e a astúcia deles se equipararia à sua maldade. Porém, como o meu discurso havia aumentado a sua repugnância com relação a todos da espécie, então acreditava ele que isso houvesse lhe causado um perturbação tão grande em sua cabeça, a qual lhe era totalmente desconhecida até aquele momento.
Ele achava que os seus ouvidos, tendo se habituado com palavras tão abomináveis, pudesse, pouco a pouco, aceitá-las sem maior contestação: e que embora ele detestasse os Yahoos de sua região, ele não mais os culpava por suas odiosas qualidades, da mesma forma que culpava um GNNAYH (que era uma ave de rapina) pela sua crueldade, ou uma pedra afiada por ter-lhe cortado o casco. Porém, quando uma criatura que alegava certa inteligência fosse capaz de praticar tamanhas atrocidades, tinha receios de que a corrupção dessa prática fosse bem pior do que a brutalidade propriamente dita. Ele então parecia confiante, que, ao invés da inteligência, nós éramos apenas dotados de alguma qualidade ajustada para aumentar os nossos vícios naturais, do mesmo modo como o reflexo de um lago agitado retorna a imagem de um corpo com má formação, não apenas maior, mas mais deformado.
Acrescentou ele, “que já tinha ouvido o bastante com relação à guerra, tanto neste como nos discursos anteriores. Porém, havia um outro assunto, que lhe causava uma certa perplexidade ultimamente. Eu o havia informado, de que alguns dos nossos tripulantes haviam deixado seu país em razão de terem sido prejudicados pela lei, que eu já havia explicado o significado dessa palavra, mas ele ainda não havia compreendido como é que poderia, que a lei, que fora criada para a preservação de todas as pessoas, poderia representar a ruína para alguns. De modo que ele tinha vontade de saber mais sobre o que eu queria dizer com leis, e a respeito de seus executores, de acordo com o que se praticava hoje em dia no meu país, porque achava ele que a natureza e a inteligência eram os guias adequados para um animal racional, como alegávamos ser, ao nos demonstrar o que deveríamos fazer, e o que deveria ser evitado.”
Assegurei a sua senhoria, “que a lei era uma ciência sobre a qual pouco havia conversado, apenas durante a contratação de alguns advogados, dos quais não tive bons resultados, em razão de algumas injustiças que haviam acontecido comigo: todavia, eu lhe daria todos os esclarecimentos de que fosse capaz.”
Disse a ele “que entre nós havia uma classe de homens, que foram educados desde a juventude na arte de desmonstrar com palavras exacerbadas e provar que o branco é preto, e o preto é branco, de acordo com seus honorários. Para esta classe de gente todas as outras pessoas eram escravas. Por exemplo, se o meu vizinho quer a minha vaca, ele chama um advogado para provar que ele deve ter a vaca que é minha. Eu, então, devo contratar outro para defender os meus direitos, sendo contra todas as regras da lei que a qualquer homem tenha a permissão falar por si mesmo”.
Ora, neste caso, eu, que sou o verdadeiro proprietário, fico sob duas grandes desvantagens: primeiro, o meu advogado, estando prático em defender mentirosos desde que nasceu, seria um elemento totalmente estranho quando estivesse a serviço da justiça, sendo para ele um ofício não natural a que ele se dedica com grandes dificuldades, ou mesmo com má vontade. A segunda desvantagem era, que meu advogado devia agir com a máxima cautela, caso contrário ele seria repreendido pelos juizes, odiado pelos seus colegas, como uma pessoa que menospreza a prática da lei.
E portanto, eu tenho apenas duas alternativas para preservar a minha vaca. A primeira seria, vencer o advogado do meu adversário pagando o dobro, o qual então irá trair o seu cliente insinuando que a justiça está do seu lado. A segunda maneira seria o meu advogado fazer com que a minha causa pareça tão injusta quanto possível, permitindo que a vaca pertença ao meu adversário: e isto, quando feito com habilidade, certamente resultará em favor do réu.
Agora, a sua senhoria queria saber, se estes juízes eram pessoas designadas para decidir todas as controvérsias sobre propriedades, bem como os processos criminais, e se eram escolhidos entre os mais hábeis advogados, que eram os mais velhosos ou ociosos, e se durante toda a vida deles eram tendenciosos e contra a verdade ou a igualdade, e se viviam sob o impulso fatal de favorecer a fraude, o perjúrio, e a opressão, e se eu conhecia alguns deles que haviam recusado um grande suborno da parte onde ficava a justiça, ao invés de menosprezar a própria capacidade, fazendo coisas que atentavam contra a própria natureza ou contra o próprio ofício.
Havia um provérbio entre estes advogados que dizia que qualquer coisa que tivesse sido feita anteriormente, legalmente poderia ser feita de novo: e portanto, eles tomavam cuidado especial para registrar todas as decisões feitas anteriormente contra a justiça comum, e a razão corrente da humanidade. Essas coisas, que recebiam a denominação de precedentes, eram produzidas como se fossem autoridades para justificar as decisões mais iníquas, e os juízes jamais deixavam de baixar decretos baseados nesses princípios.
“Nos casos litigiosos, estudavam minuciosamente as maneiras de evitar que entrassem nos méritos da causa, porém, eram barulhentos, violentos e persistentes, ao lidar com circunstâncias que não tivessem esse propósito. Por exemplo, no caso já mencionado, eles nunca queriam saber que direitos ou títulos o meu adversário possuia em relação à minha vaca, mas apenas se a dita vaca era vermelha ou preta, se os chifres dela eram longos ou curtos, se o campo onde ela pastava era redondo ou quadrado, se ela era ordenhada em casa ou em outro lugar, a quais doenças ela tinha propensão, e coisas parecidas; depois disso eles consultavam os precedentes, adiavam a causa de tempos em tempos, e dentro de dez, vinte ou trinta anos chegavam a uma conclusão.
“Deve-se observar também, que esta classe de advogados fazia uso de um fraseado e um jargão muito peculiar que eles mesmos criaram, e que nenhum outro mortal consegue entender, na qual todas as suas leis são escritas, e que eles tomam cuidado especial ao divulgar, por meio do qual eles confundem totalmente a verdadeira essência da verdade e da mentira, do direito e da usurpação, de modo que serão necessários trinta anos para deliberar, se o sítio que os meus ancestrais deixaram para mim, durante seis gerações, pertence a mim, ou a um estrangeiro que vive a trezentas milhas de distância.
“No julgamento de pessoas acusadas por crimes contra o Estado, o método é muito mais reduzido e recomendável: o juiz primeiro procura estudar a situação daqueles que estão no poder, e depois disso ele pode enforcar ou salvar um criminoso, preservando com rigor todas as formas devidas da lei.”
Nesse momento, o meu amo interrompeu, dizendo “que era uma pena que, criaturas dotadas de tão prodigiosas capacidades mentais como estes advogados deviam ser com certeza, segundo a descrição que fiz deles, não fossem estimuladas a serem instrutores de outras pessoas no tocante à sabedoria e ao conhecimento.” Como resposta, assegurei à sua senhoria, “que em todos os assuntos que não diziam respeito ao próprio ofício deles, normalmente eles eram uma geração muito ignorante e de estúpidos entre nós, os mais desprezíveis nas conversações correntes, inimigos declarados de todo conhecimento e do aprendizado, sendo igualmente induzidos a perverter a razão geral da humanidade em todos os outros aspectos do discurso bem como no que diz respeito ao próprio ofício.
[Continuação sobre o Estado da Inglaterra durante o governo da rainha Ana. O caráter de um primeiro ministro de Estado nas cortes europeias.]
Meu amo ainda não conseguia entender que motivos poderiam ter incitado esta classe de advogados a se desorientarem, perturbarem e se entediarem, e a criarem uma confederação de injustiça, simplesmente por questões de injúria de alguns animais, seus semelhantes, nem ele conseguiu entender o que eu quis dizer, quando falei que eles faziam isso quando eram contratados. E por isso tive de me esforçar muito para descrever a ele sobre o uso do dinheiro, os materiais de que era feito, e o valor dos metais; “e que quando um Yahoo houvesse conseguido uma grande quantidade dessa substância preciosa, ele podia conseguir aquilo que desejasse: a roupa mais fina, as casas mais nobres, grandes lotes de terra, os alimentos e as bebidas mais caras, e podia escolher as mulheres mais lindas.”
“Portanto, uma vez que só o dinheiro era capaz de realizar esses feitos, os nossos Yahoos achavam que eles não iriam jamais conseguir ter o suficiente para gastar, ou para poupar, porque eles tinham uma inclinação natural, à prodigalidade ou à avareza, que os ricos usufruíam os frutos do homem pobre, e que entre estes havia uma proporção de mil para um em relação aos anteriores, e que a grande massa do nosso povo era forçada a viver na miséria, trabalhando todos os dias a baixos salários, para viverem com plenitude.”
Me aprofundei bastante sobre estes e muitos outros detalhes com o mesmo propósito, mas a sua senhoria continuava ainda sem entender, pois tinha ele uma ideia de que todos os animais tinham o direito a uma parte em tudo o que fosse produzido na terra, especialmente aqueles que governavam sobre os demais. Portanto, ele quis que eu explicasse, “se estes alimentos eram caros, e como acontecia quando alguns de nós precisava deles?” Foi aí que enumerei todos os exemplos que me vieram à cabeça, bem como as várias maneiras de prepará-los, o que não poderia ser feito se não enviássemos navios para os mares a todas as partes do mundo, e também licores para beber, temperos e muitos outros ingredientes.
Assegurei-lhe “que todo este globo de terra deveria realizar pelo menos três voltas antes que uma de nossas Yahoos fêmeas pudesse tomar o seu café da manhã, ou beber o conteúdo de uma xícara até se sentir satisfeita.” Ele disse, “num país como este deve haver muita miséria, pois não consegue fornecer alimentos para seus próprios habitantes. Mas, o que mais o deixou espantado foi, como é que aqueles imensos territórios de terra que eu havia descrito poderiam ser totalmente desprovidos de água fresca, tendo as pessoas a necessidade de atravessar os mares em busca de água para beber.”
Respondi-lhe “que a Inglaterra (o adorado país onde nasci) calculava que a sua produção de alimentos era três vezes superior à quantidade que seus habitantes podiam consumir, bem como de licores conseguidos através de grãos, ou extraídos das frutas de algumas árvores, as quais produziam excelente bebida, e a mesma proporção para todas as outras comodidades da vida. No entanto, para manter o fausto e a intemperança dos homens, e a vaidade das mulheres, enviamos a maior parte das coisas que nos são necessárias para outros países, e em troca, trazemos os materiais que causam doenças, loucura, e vícios, para consumo de nosso povo.”
“É aí que surge a miséria, e uma grande parte de nossa gente é obrigada a buscar a sobrevivência mendigando, roubando, furtando, trapaceando, fofocando, lisonjeando, bajulando, intimidando, votando, rabiscando, olhando as estrelas, envenenando, se prostituindo, se lamuriando, processando, pensando livremente, além de outras ocupações semelhantes:” e cada uma dessas expressões me deu muito trabalho para que ele entendesse.
Acrescentei, “que o vinho que importávamos não era proveniente de países estrangeiros para suprir a falta de água ou de outras bebidas, mas como ele era uma espécie de líquido que nos fazia felizes e nos tirava os sentidos, afastava os nossos pensamentos da melancolia, criava ideias extravagantes em nosso cérebro, realçava as nossas esperanças, e expulsava os nossos temores, durante algum tempo desativava todas as funções da inteligência, e nos privava do uso de nossos membros, até cairmos em sono profundo, ainda que devemos reconhecer, que acordávamos sempre indispostos e mal humorados, e que o uso deste licor enchia-nos de doenças que nos tornavam a vida desconfortável e curta.”
“Mas, além disso tudo, a granda massa de nossa gente vivia suprindo as necessidades e as comodidades da vida dos ricos e também uns dos outros. Por exemplo, quando estou em casa, e vestido como devo estar, levo em meu corpo o trabalho de cem fabricantes, a construção e os móveis de minha casa empregam muito mais, e cinco vezes esse valor para os enfeites de minha esposa.”
Ia lhe falar sobre um outro tipo de pessoa, que ganha sua vida atendendo os doentes, e em algumas ocasiões, informei sua senhoria que muitos da minha tripulação haviam morrido de doenças. Mas foi com a maior dificuldade que eu fiz com que ele compreendesse o que eu queria dizer. “Ele poderia facilmente imaginar, que um HOUYHNHNM, ficava fraco e pesado alguns dias antes de morrer ou se quebrasse a perna por algum acidente, porém, essa natureza, que tudo faz com a máxima perfeição, não permitia que nenhuma dor ocorresse em nossos corpos, ele achou isso impossível, e queria saber a causa para um mal tão inexplicável.”
Disse-lhe, “que nos alimentávamos de mil coisas que funcionavam de modo contrário umas das outras; que comíamos quando não estávamos com fome, e que bebíamos sem que estivéssemos com sede, e que passávamos noites inteiras sentados e bebendo licores, comendo muito pouco, o que nos induzia à indolência, inchava os nossos corpos, e acelerava ou impedia a digestão; que prostitutas fêmeas Yahoo adquiriam determinadas doenças, que causava podridão nos ossos daqueles que caiam em seus braços, e que esta, e muitas outras doenças, eram propagadas de pai para filho, de modo que muitos deles vinham ao mundo sofrendo de doenças complexas, e que a lista de doenças que atingiam o corpo humano, e que eu poderia oferecer a ele era muito grande, pois elas não eram menos que quinhentas ou seiscentas, se espalhavam por todos os membros e juntas – resumindo, todas as partes externas e internas possuíam suas respectivas doenças.”
Para remediá-las, havia em nosso país, uma classe de pessoas, cuja função ou pretensão era curar os enfermos. E como eu tinha uma certa habilidade nesse ofício, como gratidão à sua senhoria, eu o informaria sobre todos os mistérios e modos de nossos procedimentos.
“A questão fundamental era, que todas as doenças surgiam por causa da saciedade, e daí concluíram ser necessário que no corpo ocorra uma grande evacuação, tanto através da passagem natural, como por cima, através da boca. A etapa seguinte acontece com as ervas, minerais, gomas, óleos, conchas, sais, sucos, algas, excrementos, cascas de árvores, serpentes, sapos, rãs, aranhas, carnes e ossos de pessoas mortas, aves, animais, e peixes, que juntos formam um composto, que para o olfato e o paladar, são os mais abomináveis, asquerosos e detestáveis, possam fazer com que o estômago rejeite imediatamente com nojo, a que chamam de vômito; ou ao contrário, eles nos mandam tomar pelo orifício superior ou inferior (da mesma forma como são prescritos pelos médicos), obtidos dos mesmos fornecedores, e acrescentando outros aditivos venenosos, um remédio igualmente repulsivo e de gosto ruim para os intestinos, os quais, relaxando o estômago, expulsa tudo que está dentro dele, e isso recebe o nome de purgação, ou de clíster.”
Pois a natureza (segundo dizem os médicos) tendo criado o orifício anterior superior somente para a ingestão de sólidos e líquidos, e o inferior posterior apenas para a ejeção, estes artistas inteligentemente considerando que em todas as doenças a natureza perde a sua condição natural, de modo que, para suprir essa deficiência, o corpo deve ser tratado de maneira diretamente contrária, intercambiando o uso de cada orifício, introduzindo sólidos e líquidos no ânus, e forçando evacuações pela boca.
No entanto, além das doenças reais, estamos sujeitos a muitas que são somente imaginárias, para as quais os médicos inventaram curas imaginárias, tendo estas os mais diversos nomes, e do mesmo modo as drogas que são apropriadas para elas, e destas as nossas fêmeas Yahoos vivem sempre infestadas.”
“Uma grande qualidade entre os médicos, é a habilidade que eles tem para fazer prognósticos, sendo que raramente erram as suas previsões acerca das doenças reais, quando elas atingem um certo grau de malignidade, e que normalmente levam à morte, sobre a qual tem eles todos os poderes, quando não há sinais de recuperação: e portanto, diante do menor sinal de melhoria, depois de haverem declarado a sua sentença, ao invés de serem acusados como falsos profetas, eles sabem como provar a sua sagacidade diante do mundo, com algum recurso oportuno.”
“Eles são também úteis especialmente para os maridos e as esposas que estão cansados de seus companheiros, bem como aos filhos mais velhos, aos grandes ministros de Estado, e frequentemente aos príncipes.”
Em certa ocasião, eu havia tido uma conversa com o meu amo sob a forma geral de governar, particularmente acerca de nossa magnífica Constituição, merecidamente uma maravilha e motivo de inveja de todo o mundo. Porém, como por acaso eu havia mencionado acerca de um ministro de estado, ele me pediu, algum tempo depois, para que o informasse, “sobre a que espécie de Yahoo eu me referia com aquele nome.”
Disse-lhe que, “um primeiro ministro ou um ministro chefe de estado, a pessoa a quem pretendia descrever, era uma criatura totalmente isenta de alegria e dor, amor e ódio, e que não sentia nenhuma paixão, exceto um incontido desejo de riqueza, poder, e títulos, e que ele fazia uso de suas palavras para todos os fins, menos para externar os seus pensamentos, e que ele nunca falava a verdade exceto com o objetivo de que ela fosse entendida tal qual uma mentira, nem uma mentira, mas com o propósito de que fosse entendida como uma verdade, e aqueles de quem ele falava mal por trás, com certeza estavam em vias de serem nomeados, e sempre que ele elogiava alguém para os outros, ou para você mesmo, era porque daquele dia em diante esse alguém estava sem perspectivas. A pior coisa que você possa receber dele é uma promesa, especialmente se ela for confirmada com um juramento, depois disso, toda criatura prudente se afasta e perde todas as esperanças.
“Existem três maneiras, por meio das quais um homem pode chegar a ministro chefe. A primeira é saber dispor com prudência de uma esposa, uma filha ou de uma irmã; a segunda, é traindo ou puxando o tapete do seu predecessor; e a terceira maneira é, demonstrar um zelo ferrenho, nas assembleias públicas, contra as corrupções da corte. Mas um príncipe sábio iria preferir utilizar aqueles que praticam este último critério, porque zelotes desse tipo se mostram mais obsequiosos e subervientes à vontade e às paixões de seu amo. E que estes ministros, sendo usados em múltiplos ofícios ao seu dispor, se mantém no poder, corrompendo a maioria do senado ou de um grande conselho; e finalmente, por fim, fazendo-se uso de um expediente, a que chamamos de Ato de Ressarcimento” (cuja natureza expliquei ao meu amo), “eles se garantem contra qualquer acerto de contas posterior, e se afastam do poder público munidos com os despojos da nação”.
“O palácio de um primeiro ministro era um seminário onde outros eram educados no mesmo ofício: os escudeiros, os lacaios, e os porteiros, à imitação de seus mestres, tornavam-se ministros de estado em seus vários distritos, e aprendiam a se superar nas três artes principais que eram: a insolência, a mentira e a corrupção. Diante disso, são providos de uma corte subalterna paga por pessoas do melhor nível, e por vezes, por força da habilidade e da impudência, chegavam a ser sucessores de seus senhores, por meio de promoções graduais.”
“Normalmente esse primeiro ministro era dependente de uma meretriz decadente, ou de um cavaleiro de renome, os quais são os túneis para os quais convergem todos os favores, e que podem ser chamados apropriadamente, em último recurso, de os governadores do reino.”
Um dia, conversando com ele, meu amo, que tinha me ouvido falar sobre a nobreza do meu país, fez questão de me fazer um elogio do qual não julgo merecer: “que ele tinha certeza de que eu havia nascido de alguma família nobre, porque de longe eu era superior na forma, na cor, e na higiene, todos os Yahoos de sua nação, embora parecesse que eu fosse deficiente com relação a força e agilidade, o que deve ser imputado ao meu modo de vida que era diferente dos outros animais, e além disso eu não era somente dotado com a faculdade da fala, mas também com alguns rudimentos de inteligência, num grau que, devido a todo o seu conhecimento, eu poderia ser considerado um prodígio.”
Ele me fez perceber, “que entre os HOUYHNHNMS, o branco, o alazão, e o cinzento ferroso, não tinham um formato tão perfeito como o cavalo baio, o malhado de cinza, e o negro; nem com os talentos de genialidade congênitos, ou com capacidade para melhorar tudo isso, e que por isso continuavam sempre na condição de criados, sem nunca poderem aspirar uma comparação com a própria raça deles, e que nesse país seria considerado monstruoso e artificioso.”
Ofereci ao meu amo os meus mais humildes reconhecimentos pelo bom conceito que ele fazia da minha pessoa, mas lhe assegurei que, ao mesmo tempo, “o meu nascimento havia ocorrido dentro das classes mais humildes, e que havia nascido de pais reconhecidamente honestos, que apenas puderam me oferecer uma educação razoável, e que a nobreza, em nosso país, era algo totalmente diferente do conceito que ele tinha, que os jovens de nossa nobreza eram educados desde a infância na ociosidade e na riqueza, e que, tão logo os anos permitam, eles consumiam a saúde, contraindo doenças horríveis entre fêmeas lascivas, e quando arruinavam completamente suas riquezas, casavam-se com mulheres de condição inferior, ou com uma pessoa desagradável, e de fraca constituição (unicamente por causa do dinheiro), a quem odiavam e menosprezavam.”
Que os filhos desses casamentos geralmente eram de crianças escrofulosas, raquíticas ou deformadas; e por causa disso as famílias raramente continuavam mais que três gerações, a menos que a esposa tivesse o cuidado de conseguir um pai saudável, entre os seus vizinhos ou criados, com o propósito de melhorar e dar prosseguimento à prole. E que um corpo fraco e doentio, de aspecto débil, e de pálida compleição, eram as verdadeiras marcas de um sangue nobre, e que uma aparência saudável e robusta era um infortúnio muito grande para um homem de qualidade, sendo que o mundo chegava à conclusão de que seu pai verdadeiro teria sido um criado ou um cocheiro. As imperfeições das ideias desses fidalgo tinham um certo paralelismo com as deformações do seu corpo, sendo elas uma composição de má vontade, tédio, ignorância, teimosia, sensualidade e orgulho.
“Sem o consentimento deste quadro de pessoas ilustres, nenhuma lei podia ser decretada, rejeitada ou modificada: e estes nobres tinham também, em última instância, a decisão acerca de nossas propriedades.”
[O grande amor do autor pelo país onde nasceu. As observações de seu amo sobre a constituição e a administração da Inglaterra, segundo descrições do autor, com casos e comparações paralelas. As observações de seu amo sobre a natureza humana.]
O leitor pode estar curioso em saber como é que eu tomei a liberdade de fazer uma representação tão liberal sobre a minha própria espécie, entre uma raça de mortais com habilidade o bastante para inventar as piores coisas sobre a nossa humanidade, partindo da completa congruência que havia entre mim e os Yahoos. Mas devo confessar sinceramente, que as inúmeras qualidades daqueles inteligentes quadrúpedes, quando confrontadas diretamente com as corrupções humanas, abriram de tal maneira os meus olhos, e ampliaram o meu entendimento de tal forma, que eu comecei a ver as ações e as paixões do homem por um perfil muito diferente, e pensar na honra da minha raça sem o valor que sempre atribuí a ela, sendo que, além disso, me era impossível continuar agindo dessa maneira, diante de uma pessoa com um poder de avaliação tão apurado como o meu amo, que diariamente me convencia das milhares de falhas cometidas por mim mesmo, e das quais eu não fazia antes a menor ideia, e as quais, em nosso país, jamais seriam catalogadas nem mesmo como falhas humanas. Tinha também aprendido, com o exemplo dele, a me colocar abertamente contra qualquer mentira ou falsidade, e a verdade me pareceu um sentimento tão nobre, que eu havia decidido a sacrificar tudo para defendê-la.
Permita-me o leitor a franqueza de admitir que havia ainda uma razão mais profunda para a liberdade que tomara para representação dos fatos. Eu não havia completado ainda um ano naquele país quando me vi conquistado pelo amor e pela veneração daqueles habitantes, até que tomei a firme resolução de jamais retornar para a humanidade, e passar o resto da minha vida entre aqueles admiráveis HOUYHNHNMS, na contemplação e na prática de toda virtude, onde jamais poderia ter um exemplo de incitamento ao vício.
Mas o destino, meu eterno inimigo, me decretou, que uma felicidade tão grande jamais seria minha eterna companheira. No entanto, sinto agora algum conforto em refletir, que tudo o que disse a respeito dos meus compatriotas, lhes atenuei suas falhas com total ousadia diante de um crítico tão rigoroso, e para a cada assunto criei uma imagem tão favorável quanto o tema poderia oferecer. Pois, na verdade, haverá algum ser vivo que não seja arrastado por suas tendências, e que não tenha inclinações pela terra onde nasceu? Já relatei a essência de várias conversações que tive com o meu amo durante a maior parte do tempo que tive a honra de estar a seu serviço, porém, por causa da brevidade do tempo, a omissão foi muito maior do que os fatos que foram aqui narrados.
Depois de ter respondido a todas as suas perguntas, e ter aparentemente saciado toda a curiosidade dele, um dia de manhã, ele mandou me buscar, e pediu para que me sentasse a alguma distância dele (uma honra que ele nunca havia me dispensado até aquele momento). E disse, “que ele havia pensado seriamente sobre tudo aquilo que eu havia contado a ele, tanto no que se referia a mim como aos fatos contados sobre o meu país, e que ele nos via como uma espécie de animais, cujo valor, ele não conseguia entender por alguma razão, porém, acreditava que houvessem alguns resquícios de inteligência, da qual não fazíamos uso, exceto quando éramos auxiliados, agravando a nossa corrupção natural, e adquirindo outras tendências, que a natureza não nos havia oferecido; e que havíamos nos afastado das muitas habilidades que ele nos tinha oferecido,
“e que havíamos conseguido, com muito sucesso, multiplicar as nossas necessidade naturais, e aparentemente passávamos a nossa vida inteira esforçando-nos inutilmente para suprí-las com nossas invenções, e que, no tocante a mim, tornava-se evidente, que eu não tinha nem a força, nem a agilidade de um Yahoo comum, e que eu caminhava de modo vacilante sobre as minhas patas traseiras, tinha descoberto maneiras de tornar as minhas garras inúteis ou inservíveis para a defesa, e de ter removido o pelo do rosto, que fora criado para me proteger do sol e das intempéries: e por último, que eu não conseguia nem correr com velocidade, nem subir em árvores como os meus irmãos,” como ele dizia “que eram, os Yahoos de seu país”.
“E que as nossas instituições governamentais e de direito foram criadas devido aos nossos flagrantes desvios da razão, e por conseguinte, da virtude; porque somente a razão é capaz de governar uma criatura racional, a qual, no entanto, era uma característica que não tínhamos pretensão de reclamar, nem mesmo partindo dos relatos que havia feito sobre o meu próprio povo, embora ele tivesse percebido claramente, que, para favorecer os meus compatriotas, eu havia ocultado muitos detalhes, e mencionado muitas vezes coisas que não eram verdades.”
“Ele estava muito convencido desta opinião, porque, observara ele, que como eu tinha semelhanças, em todos os aspectos do meu corpo, com outros Yahoos, exceto naquilo que se constituía em desvantagens verdadeiras com relação à força, velocidade e agilidade, além das minhas garras que eram curtas demais, e de alguns outros detalhes dos quais a natureza não fazia parte, portanto, partindo da representação que lhe havia dado sobre as nossas vidas, os nossos modos, e as nossas ações, ele descobrira uma semelhança muito próxima com relação à tendência de nossos espíritos.”
Ele disse, “que os Yahoos eram conhecidos por se odiarem uns aos outros, mais do que odiavam outras diferentes espécies de animais, e a razão a que eles atribuíam normalmente era, o horror que sentiam por suas próprias formas, e que tudo podia ser visto nos outros, mas não em si mesmos. De modo que, ele achava tolice quando cobríamos os nossos corpos, e que com essa invenção cobríamos muitas das nossas deformidades uns dos outros, que de outro modo dificilmente seriam suportadas”.
“Mas agora ele achava que havia se enganado, e que as diferenças encontradas nos animais que havia em seu país, eram devido às mesmas causas que as nossas, como eu as havia descrito. Pois, se” disse ele, “você jogasse para cinco Yahoos alimento o suficiente para alimentar cinquenta deles, ao invés de comerem pacificamente, começariam a dar cabeçadas uns nos outros, todos eles impacientes por comerem tudo o que puderem, e portanto, um criado normalmente era usado para esperar o tempo que eles estivessem se alimentando lá fora, e aqueles que ficavam em casa eram amarrados à distância uns dos outros: porque se uma vaca morresse por velhice ou por acidente, e não houvesse um HOUYHNHNM que pudesse protegê-la de seus próprios Yahoos, aqueles que estivessem próximos viriam em bandos para capturá-la, e então ocorreriam lutas como as que eu descrevi, com ferimentos terríveis causados pelo uso das garras de ambos os lados, embora raramente fossem capazes de aniquilar-se uns aos outros, por falta de instrumentos adequados para matar conforme havíamos inventados.”
Em outras ocasiões, batalhas da mesma proporção eram travadas entre os Yahoos de várias vizinhanças, sem qualquer causa aparente; aqueles que pertenciam a um determinado distrito vigiavam todas as chances de supreender o outro, antes que estivessem preparados. Mas se eles achassem que o plano deles houvesse falhado, voltariam para casa, e, na falta de inimigos, empreenderiam uma guerra civil entre si mesmos.
“E que em alguns campos daquele país existiam algumas pedras brilhantes de diversas cores, e as quais eram muito apreciadas pelos Yahoos: e quando parte dessas pedras eram encontradas na terra, como frequentemente acontece, eles cavavam com suas garras dias inteiros para encontrá-las, e depois levá-las para longe, e ocultá-las aos montões em seus esconderijos, temendo que seus compatriotas encontrassem seus tesouros.”
Meu amo disse, “que ele jamais conseguiu entender o motivo deste apetite nada natural, ou para que serviriam estas pedras a um Yahoo, mas, agora, acreditava ele que provavelmente isso teria a mesma origem no princípio da avareza que eu havia descrito com relação à humanidade. Que ele havia, em certa ocasião, por meio de experimentos, removido secretamente um monte dessas pedras do lugar onde um de seus Yahoos as haviam escondido; e tendo o sórdido animal percebido a falta de seu tesouro, com gritos e urros atraiu todo o bando para o lugar, e depois de bramir como um miserável, começou a morder e a despedaçar os demais, e depois foi definhando, não queria comer nada, nem dormir, nem trabalhar, até que ordenou a um criado em particular para que transportasse as pedras para o mesmo buraco, e as escondesse como antes, e depois que o Yahoo as encontrou, recuperou suas energias e o seu bom humor, mas teve grande cuidado de removê-las para um esconderijo melhor, e desde então tornou-se um animal muito dócil.” Meu amo mais tarde me confirmou, e que eu mesmo pude observar, “que nos campos onde havia aquelas pedras em abundância, os combates mais renhidos e mais frequentes eram travados, e que eram ocasionados devido às contínuas incursões dos Yahoos vizinhos.”
Disse, “que era comum, quando dois Yahoos descobriam tais pedras em um campo, e brigavam sobre qual deles devia ser o proprietário, um terceiro se aproveitava do momento, e as levava embora de ambos,” e com isto o meu amo afirmou que havia alguma semelhança em relação aos nossos processos judiciais; e considerando isso um crédito em relação a nós, não desejei decepcioná-lo, já que a decisão citada por ele fosse muito mais justa do que muitos decretos que eram decididos em nosso país, porque ali o queixoso e o reclamante perderam nada mais do que a pedra que era a causa da disputa entre eles: ao passo que as cortes de justiça jamais abandonariam uma causa, enquanto uma das partes não houvesse deixado alguma coisa.
Meu amo, continuando o seu discurso, disse que, “não havia nada que enfurecesse mais os Yahoos, do que o seu insopitável apetite de devorar tudo que estivesse no caminho deles, desde ervas, raízes, grãos, a carne podre de alguns animais, ou tudo junto: e isso era um comportamento peculiar ao temperamento deles, e que tivessem mais preferência por coisas que pudessem conseguir através da rapina ou do furto a uma distância maior, do que muita comida de melhor qualidade que lhes fosse fornecida em casa. E que se a presa deles lhes oferecesse alguma resistência, eles a comeriam até explodirem de satisfação, pois que a natureza lhes havia provido de uma certa raiz que lhes provocava uma evacuação geral.
“Havia também um outro tipo de raiz, muito suculenta, mas um tanto rara e difícil de ser encontrada, que os Yahoos buscavam com certa euforia, e a saboreavam deliciosamente; ela produzia neles os mesmos efeitos como o vinho atua sobre nós. Ela fazia com que eles algumas vezes se abraçassem, e outras vezes se mordiam uns aos outros; eles rugiam, se alegravam, tagarelavam, cambaleavam e levavam tombos, e depois dormiam na lama.”
Observei de fato, que os Yahoos eram os únicos animais deste país sujeitos a determinadas enfermidades, as quais, no entanto, eram muito menores do que entre os cavalos que vivem entre nós, e que eram contraídas, não devido aos maus tratos que lhe eram devidos, mas, à imundície e a ganância daqueles animais sórdidos. Nem tinha o idioma deles uma denominação geral para essas enfermidades, a qual era emprestada do nome desse animal, e chamada de hnea-yahoo, que quer dizer, o mal dos Yahoos, e a cura prescrita era uma mistura de esterco e de urina, ingeridos a força pelas goelas do Yahoo. E isso eu soube que era frequentemente tomado com sucesso, e aproveito o momento para recomendá-lo aos meus compatriotas, para o bem da comunidade, como um formidável antídoto contra todas as doenças produzidas pelo estado da saciedade.
“Com relação ao conhecimento, ao governo, as artes, as manufaturas e as coisas do mesmo gênero,” meu amo confessou, “que ele não conseguia encontrar pouca ou nenhuma semelhança entre os Yahoos daquele país e os nossos, pois só tinha ele intenção de observar as igualdades que haviam em nossas naturezas. Ele tinha ouvido quando alguns HOUYHNHNMS curiosos observaram, que na maioria dos bandos havia uma espécie de comandante Yahoo (como entre nós existe geralmente, nos parques, alguns veados que exercem o papel de líderes ou de chefias), que tinham quase sempre o corpo deformado e eram mais mal comportados do que qualquer outro do bando, e que este líder normalmente tinha um favorito, tão parecido com ele quanto possível, cuja função era lamber as patas e o traseiro do seu amo, e atrair as Yahoos fêmeas até o estábulo dele, sendo, de vez em quando, recompensado com um pedaço de carne de burro.”
“Este favorito era odiado por toda a manada, e portanto, para se proteger, ele precisava ficar sempre perto da pessoa do seu líder. Ele normalmente continuava prestando serviços até que um pior que ele pudesse ser encontrado, e no mesmo instante em que ele era descartado, o seu sucessor, na liderança de todos os Yahoos daquele distrito, jovens e velhos, machos e fêmeas, formando um só corpo, descarregavam seus excrementos sobre ele, da cabeça aos pés. Porém, se semelhante comportamento pudesse ser aplicado em nossas cortes, aos favoritos e aos ministros de estado, o meu amo disse que eu deveria pensar melhor.”
Não me atrevi a responder a esta maldosa insinuação, que humilhava o entendimento humano abaixo da sagacidade de um cão viralata, o qual possui inteligência o suficiente para distinguir e obedecer o comando do cachorro mais hábil da matilha, sem nunca se enganar.
Meu amo me disse, “que havia algumas qualidades notáveis nos Yahoos, e que ele não havia observado ter eu mencionado, ainda que superficialmente, nas histórias que havia contado sobre o gênero humano.” Ele disse, que “aqueles animais, como os outros animais irracionais, tinham suas fêmeas em comum, porém, nisto eles se diferenciavam, que a Yahoo fêmea aceitaria os machos enquanto estivesse grávida, e que os machos discutiam e lutavam com as fêmeas, tão ferozmente como se lutassem uns com os outros, sendo as duas práticas nada mais do que graus da vergonhosa brutalidade, a que nenhuma outra criatura sensível jamais havia chegado.”
“Uma outra coisa que ele achava estranho nos Yahoos, era a singular inclinação deles para sujeira e à imundície, ao passo que os outros animais parecem ter um amor natural pela higiene.” Com relação às primeira acusações, fiz questão de ignorá-las, porque não havia nada que pudesse dizer em defesa da minha espécie, o que de outro modo teria feito de acordo com minhas próprias inclinações. Mas eu poderia facilmente ter vingado a raça humana partindo da imputação da peculiaridade deste último atributo, caso houvesse um suíno naquele país (mas que não havia para minha desgraça), o qual, embora pudesse ser um quadrúpede mais dócil do que um Yahoo, não podia pretextar ser mais higiênico, segundo meus padrões de humildade, e desse modo, a sua senhoria mesmo poderia comprovar, se ele tivesso visto o jeito imundo de se alimentarem, e o hábito que eles tinham de se chafurdar e de dormir no lodo.”
Meu mestre também mencionou outra qualidade que os seus criados haviam descobertos em vários Yahoos, e que para ele era totalmente inaceitável. Ele disse, “que um Yahoo algumas vezes era tomado por um capricho e se afastava para um cantinho, deitava-se, rugia, gemia, e parecia indiferente a tudo o que se aproximasse dele, embora fosse jovem e gordo, não queria nem comida e nem água, nem nada, assim pensava o criado, que pudesse talvez ajudá-lo. E o único remédio que eles encontraram era, fazê-lo trabalhar duramente, e assim ele se recuperava com toda certeza.” Com relação a isto eu guardei silêncio devido ao apoio natural que dava à minha espécie, mesmo assim eu poderia esclarecer completamente as verdadeiras sementes da indolência, da qual sofrem somente os ociosos, os opulentos e os ricos, que se fossem constrangidos a passar pelo mesmo regime, eu poderia ajudá-los com relação à cura.
Sua senhoria continuou a observar, “que uma Yahoo fêmea frequentemente se escondia atrás de um morro ou de algum arbusto, para daí observar os machos que passavam, e depois, aparecer e se esconder, usando inúmeros gestos e carantonhas bizarras, e nesses momentos observou-se que elas exalavam um cheiro bastante ofensivo, e quando algum dos machos avançava, ela se retirava lentamente, olhando para trás muitas vezes, com uma falsa demonstração de medo, e corria para algum lugar conveniente, onde ela sabia que o macho a seguiria.”
“Outras vezes, se uma fêmea que não pertencia ao bando se aproximava deles, três ou quatro do mesmo sexo se aproximavam dela, a olhavam, e rangiam entre si, e rilhavam umas para as outras, e cheiravam-na totalmente, e depois voltavam a se comunicar através de gestos, que aparentemente expressavam desdém e menosprezo.”
Talvez o meu amo exagerasse um pouco com relação a essas reflexões, que ele havia extraído das observações feitas por ele mesmo, ou que outros lhe houvessem contado, todavia, não posso refletir sem um certo espanto, e com muito pesar, que os rudimentos da lascívia, do ódio, da censura e do escândalo, tivessem cavado seus ninhos nos instintos femininos.
Esperava a todo momento que meu amo fosse acusar os Yahoos por apetites incomuns em ambos os sexos, tão frequentes entre nós. Mas a natureza, pelo que aparenta, parece não ter sido uma mestra tão habilidosa, e que estes delicados prazeres sejam inteiramente produções da arte e da razão do nosso lado do mundo.
[O autor relata várias particularidades a respeito dos Yahoos. As grandes virtudes dos HOUYHNHNMS. A educação e a prática da juventude deles.]
Como entendia de natureza humana melhor do que supunha que fosse possível ao meu amo, então foi fácil aplicar a mim mesmo e aos meus compatriotas, o conceito que ele tinha dos Yahoos; e eu achava que poderia fazer novas descobertas, partindo das minhas observações. Solicitei, então, à sua senhoria, muitas vezes, autorização para visitar os inúmeros grupos de Yahoos das cercanias, a qual ele generosamente sempre me concedia, porém, totalmente convencido do ódio que guardava por aqueles animais, jamais me permitiria que fosse corrompido por eles, e sua senhoria ordenou que um de seus criados, um forte potro alazão, bastante honesto e de boa índole, fosse meu guardião, pois sem a proteção dele eu não ousaria empreender tais aventuras.
Como já disse anteriormente ao leitor o quanto fora importunado por estes odiosos animais, quando aqui cheguei pela primeira vez, e depois disso, por duas ou três vezes, escapei por muito pouco de cair nas garras deles, quando certa vez passeava a alguma distância sem o meu cutelo. E eu tinha razões para acreditar que eles pensavam que eu fosse da espécie deles, tendo eu de arregaçar as minhas mangas, e mostrar a eles os meus braços nus e o meu peito para eles, nas ocasiões em que o meu protetor estava comigo. Nesses momentos, eles se aproximavam tão perto quanto a ousadia permitia, e imitavam as minhas ações do mesmo modo como fazem os macacos, porém, sempre com grandes sinais de ódio, assim como uma gralha domesticada com boné e meias é sempre perseguida pelos mais selvagens, quando acontece de estar entre eles.
Desde a sua infância eles são incrivelmente ágeis. Todavia, eu peguei certa vez um jovem macho yahoo com três anos de idade, e tentei acalmá-lo, sendo carinhoso com ele, mas o pequeno diabrete começou a berrar tanto, e a arranhar, e a morder com tal violência, que fui obrigado a soltá-lo, e já estava na hora, pois uma tropa inteira composta pelos mais velhos, tendo ouvido o barulho, vieram ao nosso encalço, e vendo que o filhote estava a salvo (pois fugira para longe), e estando por perto o meu potro alazão, eles não arriscaram maior aproximação.
Pude perceber que a carne deste jovem animal tinha um cheiro muito especial, e o seu odor ficava entre uma fuinha e uma raposa, porém, muito mais desagradável. Estou me esquecendo de uma outra situação (e talvez deva pedir desculpas ao leitor por essa completa omissão) que, enquanto eu segurava o odioso verme em minhas mãos, ele lançava seus excrementos nojentos compostos de uma substância líquida e amarela por toda a minha roupa, mas por sorte havia um pequeno riacho nas imediações, onde me lavei e me limpei como pude, embora não ousasse chegar à presença do meu amo até que estivesse totalmente aerado.
Mas como eu pude descobrir, os Yahoos parecem ser de todos os animais, os mais avessos ao aprendizado, sendo que a capacidade deles jamais vai além de puxar ou transportar cargas. Contudo, sou de opinião, que este defeito tem origem em seu temperamento perverso e rebelde, porque eles eram astutos, maldosos, traiçoeiros e vingativos. Eles eram também fortes e durões, porém, dotados de um espírito covarde, e por conseguinte, insolentes, abjetos e cruéis. Pode-se observar, que aqueles que possuíam pelagem ruiva de ambos os sexos eram os mais libidinosos e arteiros que os demais, a quem eram superiores em força e agilidade.
Os HOUYHNHNMS mantém os Yahoos, que são seus criados, em cabanas não distantes das casas, porém, os demais são mandados para certos campos, onde desenterram raízes, comem diversos tipos de ervas, e se dedicam em busca de carniça, ou algumas vezes caçam fuinhas e LUHIMUHS (uma espécie de rato selvagem), a quem devoram avidamente. A natureza os ensinou a cavar buracos profundos usando suas unhas nas laterais das elevações dos terrenos, onde ficam encostados; somente os estábulos das fêmeas são maiores, o suficiente para caber dois ou três filhotes.
Eles nadam desde quando são crianças assim como as rãs, e conseguem permanecer longo tempo debaixo da água, onde frequentemente pegam peixes, os quais as fêmeas levam para casa para seus filhotes. E a respeito desta ocasião, espero que o leitor me perdoe por relatar uma aventura curiosa.
Tendo ficado fora o dia todo, junto de meu protetor, o potro alazão, e estando o tempo exageradamente quente, eu solicitei a ele que me deixasse banhar em um rio que havia nas imediações. Ele me permitiu, e eu imediatamente me despi totalmente, e entrei suavemente no riacho. Aconteceu que uma jovem fêmea Yahoo, que estava atrás de um banco de areia, tendo assistido a toda ação, inflamou-se de desejos, como o alazão e eu imaginávamos, e veio correndo com toda velocidade, pulando para dentro da água, a cinco metros do lugar onde eu me banhava.
Nunca em minha vida me assustei tanto. O potro ficou pastando a alguma distância, sem suspeitar de nenhum perigo. Ela me abraçou de uma maneira muito exagerada. Gritei o mais alto que pude, e o potro veio a galope em minha direção, foi quando ela parou de me agarrar, com muita relutância, e pulou para o banco de areia do lado contrário, onde ficou me olhando e gemendo o tempo todo enquanto eu vestia as minhas roupas.
Isto foi motivo de diversão para o meu amo e sua família, bem como de mortificação para mim mesmo. Pois agora eu não poderia negar que eu era realmente um Yahoo em todos os membros e no aspecto, uma vez que as fêmeas tinham uma inclinação natural para mim, como se fosse um de sua própria espécie. Nem o pelo daquele animal fêmea era de cor ruiva (o que seria uma desculpa para um apetite um tanto incomum), porém, negro como o abrunho[1], e o seu semblante não tinha um aspecto totalmente odioso como o resto da sua espécie, pois eu achava que ela não teria mais que onze anos.
Tendo vivido três anos naquele país, o leitor, suponho, espera que eu, como fazem os outros viajantes, lhe fale um pouco acerca das maneiras e dos hábitos de seus habitantes, o que, de fato, foi o meu principal objeto de estudo.
Como estes nobres HOUYHNHNMS por natureza são dotados de uma disposição geral para todas as benevolências, e não fazem nenhuma ideia ou conceito das coisas más que existem numa criatura racional, assim, tudo o que eles mais gostam é de cultivar a razão, e serem totalmente governados por ela. Nem é a razão para eles uma questão problemática, como acontece conosco, onde os homens conseguem argumentar razoavelmente com ambos os aspectos da questão, exceto quando somos despertados por uma convicção imediata, como necessariamente deve acontecer, desde que não esteja mesclada, obscurecida ou contaminada pela paixão e pelo interesse.
Recordo-me que foi com extrema dificuldade que pude fazer com que meu amo entendesse o significado da palavra opinião, ou como um conceito poderia ser questionável, porque a razão nos ensina a afirmar ou negar somente aquilo que temos certeza, e sem o nosso conhecimento não conseguimos fazer nenhuma das coisas. De modo que as controvérsias, as discussões, os debates, a positividade, nas proposições falsas ou duvidosas, são males desconhecidos entre os HOUYHNHNMS.
De modo semelhante, quando eu costumava explicar a ele os nossos vários sistemas acerca da filosofia natural, ele começava a rir, “e que uma criatura a quem se atribuía o uso da razão, devia ter valor pelo conhecimento adquirido das ideias dos outros povos, e pelas coisas onde esse conhecimento, não serviria para nada, caso tivessem a certeza de tudo isso.” E neste ponto ele concordava totalmente com o pensamento de Sócrates, mencionado por Platão, o qual eu considero como a maior honra que posso prestar a aquele príncipe dos filósofos – com frequência tenho refletido na destruição que semelhante doutrina causaria nas bibliotecas da Europa, e quantos caminhos da fama seriam obstruídos no mundo dos eruditos.
Amizade e benevolência são as duas principais virtudes entre os HOUYHNHNMS, e estas não ficavam restritas a objetos particulares, eram, porém, universais para todas as raças, pois um estrangeiro que viesse dos lugares mais remotos era igualmente tratado como o vizinho mais próximo, e onde quer que ele fosse, ele seria tratado como se estivesse em casa. Eles consideravam a decência e a educação como seus maiores objetivos, porém, ignoravam completamente a formalidade. Eles não tinham preferência por seus filhotes ou crias, porém, o cuidado que eles tinham pela educação era ditado inteiramente pela razão. E eu observei o meu amo quando ele mostrou a mesma afeição pela cria do seu vizinho, como se fosse dele próprio. Eles agem assim porque a natureza os ensina a amar a todas as espécies, e existe somente uma razão que distingue as pessoas, quando são dotadas por um grau superior de virtude.
Quando a mãe de família de um HOUYHNHNM dá a luz a um casal de ambos os sexos, eles não mais fazem companhias a seus cônjuges, exceto se perderem uma das crias por alguma fatalidade, o que raramente acontece, mas, nesses casos, eles tornam a se encontrar, ou quando acidentes desse porte ocorrem com uma pessoa cuja esposa não consegue mais ter filhos, algum outro casal cede a eles uma de suas crias, e depois permanecem juntos novamente até que a mãe fique grávida. Esse cuidado é necessário para evitar a superpopulação do país. Mas a raça do HOUYHNHNMS inferiores, que são criados para serem serviçais, não é tão rigorosamente restrita a este respeito: a estes se permite produzir três de cada sexo, para serem serviçais nas casas dos nobres.
Quando se casam, eles dedicam um cuidado muito especial na escolha das cores para que não ocorra nenhuma mistura desagradável na raça. A força é o principal valor de um macho, e a beleza na fêmea, e não por exigência do amor, porém, para preservar a raça da degeneração, pois onde uma fêmea se destaca por causa da força, um consorte é escolhido por causa da beleza.
A cortesia, o amor, os presentes, os dotes, e os contratos não ocupam lugar em seus pensamentos, nem os termos que os expressem no idioma deles. O jovem casal se encontra e se une, simplesmente por determinação de seus pais e amigos, é o que eles veem acontecer todos os dias, e eles veem isso como uma das coisas necessárias para um ser racional. Porém, a violação do casamento, ou da falta da castidade, jamais se ouviu falar entre eles, e os cônjuges passam suas vidas com a mesma amizade e benevolência mútua, que dedicam a todos os outros da mesma espécie, quando lhes atravessam o caminho, sem ciúmes, preferências, discussões, ou descontentamentos.
Na educação dos jovens de ambos os sexos, o método deles é admirável, e digno de ser imitado por nós humanos. Não lhes é permitido provar nenhum grão de aveia, exceto em determinados dias, até quando completam dezoito anos, nem leite, mas, muito raramente, e durante o verão eles pastam duas horas de manhã, e duas horas durante a noite, onde são observados também pelos seus pais, mas aos criados não são permitidos mais do que a metade desse tempo, e uma grande parte da grama é trazida para casa, da qual se servem nas horas mais convenientes, quando podem ser poupados do trabalho.
A temperança, a criatividade, o exercício, e a higiene, são lições igualmente prescritas aos jovens de ambos os sexos: e o meu amo achava monstruoso que entre nós dávamos às fêmeas um tipo de educação diferente dos machos, exceto em alguns aspectos com relação à administração doméstica, e desse modo, como ele acertadamente raciocinou, metade dos nossos nativos não serviam para nada além trazer crianças ao mundo, e confiar o cuidado de nossos filhos a esses animais tão inúteis, disse ele, seria o maior exemplo da nossa brutalidade.
Mas os HOUYHNHNMS adestravam os seus jovens para a força, a velocidade, e a resistência, exercitando-os a correr em subidas e descidas nas colinas, e em áreas repletas de pedras duras, e quando estavam todos suados, eles eram obrigados a pular de cabeça em um lago ou num rio. Durante quatro vezes por ano os jovens de cada distrito se reuniam para demonstrar os progressos que realizavam em corridas e saltos, e em outros exercícios de força e agilidade, onde o vitorioso ou vitoriosa era recompensado com uma canção em sua homenagem. Durante este festival, os criados conduziam um bando de Yahoos ao campo, carregados com feno, aveia, e leite, para repasto dos HOUYHNHNMS, e depois disto, esses animais irracionais eram imediatamente levados de volta novamente, com receio de que exalassem mau cheiro para os circunstantes.
A cada quatro anos, durante o equinócio da primavera, acontecia um conselho representativo de toda nação, que se reuniam numa planície, a cerca de vinte milhas de nossas casas, e que durava cerca de cinco ou seis dias. Aí eles checavam o estado e a condição dos diversos distritos, se eles tinham fartura ou escassez de feno, ou de aveia, ou de vacas, ou de Yahoos, e sempre que alguma coisa lhes faltava (o que acontecia somente raramente), eram imediatamente supridos com o consentimento e a contribuição de todos. Alí também se decidia sobre a educação dos filhos: como, por exemplo, se um HOUYHNHNM possuia dois filhotes machos, ele trocava um deles por um outro que possuia duas fêmeas, e quando alguma cria se perdia por alguma razão, quando a mãe não tinha mais idade para procriar, se determinava qual família do distrito iria procriar para suprir a perda.
[Um grande debate na assembleia geral dos HOUYHNHNMS, e o que ficou decidido. A educação dos HOUYHNHNMS. Suas construções. Seus costumes nos sepultamentos. As imperfeições do idioma deles.]
Uma dessas assembleias foi realizada quando ainda estava por lá, aproximadamente três meses antes de minha partida, e lá o meu amo atuou como representante do nosso distrito. Neste conselho, davam prosseguimento ao debate anterior, e na verdade, o único debate que era realizado no país deles, do qual, o meu amo, quando retornou, me fez um relato bem detalhado.
O assunto a ser discutido era, “se os Yahoos deveriam ser exterminados da face da terra?” Um dos membros, que era favorável propôs, vários argumentos de grande força e peso, alegando, “que os Yahoos eram os animais mais imundos, fétidos e disformes que a natureza jamais produziu, portanto, eles eram os mais intratáveis e obtusos, maldosos e perversos; chupavam, às ocultas, as tetas das vacas dos HOUYHNHNMS, matavam e devoravam seus gatos, pisoteavam suas plantações de aveia e as gramas, e se não fossem vigiados permanentemente, cometeriam milhares de outras extravagâncias.”
Em seguida, trouxe alguns informes a respeito da tradição geral, “que os Yahoos nem sempre haviam estado no país deles, mas, que há muito tempo atrás, dois desses animais apareceram juntos numa montanha, nunca se sabendo ao certo, se eles tinham sido produzidos por causa dos efeitos do calor do sol sobre a lama e o lodo putrefatos, ou se pelo escoamento e espuma do mar; e que estes Yahoos e suas descendências haviam criado, em pouco tempo, uma prole tão numerosa a ponto de devastar e infestar toda a nação, e que os HOUYHNHNMS, para se livrarem deste pesadelo, organizaram uma caçada geral, e finalmente conseguiram confinar toda a manada, e depois de matarem os velhos, cada HOUYHNHNM conservou dois jovens filhotes em um canil, e deram a eles um grau tão alto de domesticação, que um animal, tão selvagem por natureza, pode ser capaz de conseguir, usando-os para carga e transporte, e que parecia ter sido verdade nesta tradição,”
“e que estas criaturas não poderiam ter sido os YINHNIAMSHY (ou os aborígenes daquela região), por causa do ódio violento que os HOUYHNHNMS, bem como outros animais, dedicavam a eles, e que mereciam tudo isso por causa de suas más tendências, e que jamais poderiam ter chegado a um grau tão elevado se tivessem eles sido os aborígenes, ou, ao contrário, teriam sido extintos há muito tempo, e que os habitantes, imaginando fazer uso dos serviços dos Yahoos, muito imprudentemente, teriam deixado de cultivar a raça de asnos, que eram animais graciosos, fáceis de manter, mais mansos e asseados, não tendo cheiro forte, e que tinham força suficiente para o trabalho, ainda que fossem menos favorecidos que o outro com relação a agilidade do corpo, e que o urro que produziam, embora não fosse um som agradável, era muito mais preferível do que os horríveis uivos dos Yahoos.”
Vários outros declararam seus sentimentos com o mesmo objetivo, quando o meu amo propôs um expediente para a assembleia, cuja ideia inicial ele havia emprestado de mim. “Ele aprovava a tradição mencionada pelo honorável membro, que falara antes dele, e afirmou, que os dois Yahoos mencionados, e que tinham sido vistos pela primeira vez entre eles, haviam sido trazidos para cá pelo mar, e que ao chegarem em terra, e sendo abandonados por seus companheiros, se retiraram para as montanhas, e que haviam se degenerado pouco a pouco, tornando-se com o passar do tempo muito mais selvagens do que os da sua espécie, no país de onde vieram estes dois originais.”
O motivo desta afirmação era, que ele tinha agora em sua posse um certo Yahoo maravilhoso (referindo-se a mim mesmo), que muitos deles tinham ouvido falar, e que outros deles já tinham visto. Ele então relatou aos presentes como ele me encontrou pela primeira vez, e que o meu corpo era todo coberto de uma textura artificial de peles e pelos de outros animais; que eu falava uma língua que me era própria, e havia aprendido o idioma deles completamente, e que eu contara a ele os acidentes que o haviam trazido até ali, e que ele havia me visto sem a minha cobertura, sendo eu um Yahoo em todos os aspectos, somente dotado de uma cor mais branca, menos peludo e com garras mais curtas.
“Ele acrescentou, como eu tinha me esforçado para convencê-lo, que em meu próprio país e nos outros, os Yahoos atuavam como governantes, animais racionais, e mantinham os HOUYHNHNMS na servidão, e que ele tinha percebido em mim todas as qualidades de um Yahoo, somente um pouco mais civilizado, com alguns resquícios de inteligência, a qual, no entanto, era em grau bem mais inferior ao da raça dos HOUYHNHNMS, como os Yahoos do país deles eram em relação a mim, e que entre outras coisas, eu havia mencionado um costume que tínhamos de castrar os HOUYHNHNMS quando eles eram ainda jovens, de modo a torná-los mais mansos, e que a operação era simples e segura; que não era vergonha aprender com a sabedoria que vinha dos animais irracionais, como o trabalho conjunto era ensinado pelas formigas, e as andorinhas (pois eu assim traduzira a palavra LYHANNH, embora esta seja uma ave muito maior) nos ensinavam a construir, e que estas práticas deveriam ser executadas pelos Yahoos mais jovens daqui, os quais, além de se tornarem mais tratáveis e mais adequados para o trabalho, com o tempo acabariam pondo um fim a toda espécie, sem destruir a vida, e que enquanto isso, os HOUYHNHNMS deveriam ser estimulados a cultivar a raça de asnos, os quais, sendo os mais valiosos animais em todos os aspectos, tinham eles esta vantagem, de estarem aptos para o serviço aos cinco anos de idade, quando os outros aos doze ainda não o eram.”
E isso foi tudo o que o meu amo achou adequado para falar de mim, naquele momento, e que foi relatado no grande conselho. Mas ele fez questão de ocultar um detalhe, que só dizia respeito a mim mesmo, do qual logo senti o efeito infeliz, como o leitor irá saber no momento adequado, datando daí todos os infortúnios da minha vida.
Os HOUYHNHNMS não conheciam o alfabeto, e consequentemente todo o conhecimento deles era puramente tradicional. Porém, havia poucos eventos de importância entre um povo tão unido, com disposição natural para a virtude, governados completamente pela razão, e não dispondo de comércio algum com outras nações, o aspecto histórico era ainda preservado sem sobrecarga para as suas lembranças. Eu já tinha observado que eles não eram sujeitos a nenhuma doença, e portanto, não tinham necessidade de médicos. Todavia, eles possuíam excelentes medicamentos, compostos por ervas, para curar contusões acidentais e ferimentos na quartela ou ranilhas nos pés, causadas por pedras afiadas, bem como outras mutilações e machucados nas várias partes do corpo.
Eles calculavam o ano pelas revoluções do sol e da lua, mas não tinham subdivisões para as semanas. Eram bastante familiarizados com os movimentos daqueles dois astros, e tinham conhecimento da natureza das eclipses, e este teria sido o maior progresso de sua astronomia.
Na poesia, temos que reconhecer que superavam a todos os mortais, no entanto, a precisão de suas parábolas, bem como os detalhes e a exatidão de suas descrições eram verdadeiramente inimitáveis. Os seus versos eram repletos destas duas temáticas, e normalmente continham algumas exaltações de amizade e falavam da benevolência ou dos louvores a aqueles que saíram vitoriosos nas corridas ou nos exercícios físicos. Suas construções, embora fossem muito rudes e simples, não eram desconfortáveis, mas muito bem projetadas para os protegerem de todas as adversidades e do calor.
Eles tinham uma espécie de árvore, que soltavam suas raízes aos quarenta anos de idade, e caiam ao sinal da primeira tempestade: elas cresciam bem na vertical, e eram apontadas como estacas por meio de uma pedra afiada (pois os HOUYHNHNMS não conheciam o ferro), eram cravadas diretamente no solo, a aproximadamente vinte e cinco centímetros de distância uma das outras, e depois eram entrelaçadas com palhas de aveia, ou algumas vezes com vime. O telhado era construído da mesma maneira, e também as portas.
Os HOUYHNHNMS utilizavam a parte oca, entre a quartela e o casco de suas patas dianteiras, assim como fazemos com nossas mãos, e isto com a maior habilidade que eu poderia imaginar a princípio. Vi quando uma égua branca da nossa família enfiou uma agulha (que eu emprestei a ela de propósito) usando esta articulação. Eles ordenhavam suas vacas, colhiam a aveia, e faziam todo o trabalho onde as mãos eram necessárias, da mesma maneira. Eles possuíam um tipo de pederneiras duras, as quais, esfregando contra outras pedras, eles as transformavam em instrumentos, que eram usados no lugar de cunhas, machados e martelos. Com ferramentas construídas destas pederneiras, eles também cortavam o feno, e colhiam a aveia, que crescia de modo natural nos diversos campos; os Yahoos levavam os feixes em carroças, e os criados os pisoteavam dentro de certas cabanas cobertas para fazer a extração dos grãos, que eram guardados em armazéns. Eles fabricavam um tipo tosco de vasilhas de barro e de madeira, e os coziam sob o sol.
Quando conseguiam evitar as casualidades, morriam somente em idade avançada, e eram sepultados nos lugares mais obscuros que podiam ser encontrados, e seus amigos e parentes não expressavam nenhuma alegria nem pesar pelos que partiam, nem o moribundo demonstrava o menor sentimento por estar deixando o mundo, era como se ele estivesse voltando para casa depois de uma visita que fez a um de seus vizinhos. Me recordo que o meu amo uma vez tinha um compromisso com um amigo e sua família que viriam à sua casa, para tratar algum assunto de importância: e no dia combinado, a dona da casa e seus dois filhos chegaram muito atrasados, dando ela algumas desculpas, primeiro por causa do seu marido, que, como ela disse, naquela mesma manhã tinha ido para SHNUWNH. Essa palavra era muito expressiva no idioma deles, e muito difícil de ser traduzida para o nosso idioma, significando, “retornar para a sua primeira mãe.” A sua desculpa por não ter vindo mais cedo era, que seu marido, tendo morrido no início da tarde, ela tinha ficado um bom tempo conversando com seus criados a respeito de um lugar apropriado onde poderiam depositar o corpo dele, e eu percebi, que em nossa casa ela se comportava de maneira tão alegre como os demais. Ela morreu cerca de três meses depois.
Geralmente eles viviam até os setenta ou setenta e cinco anos, muito raramente até os oitenta. Algumas semanas antes de morrerem, eles sentiam um enfraquecimento gradativo, porém, não sofriam dor. Durante esse período eles recebiam muitas visitas de seus amigos, porque eles não podiam sair com a facilidade e a satisfação habitual. Contudo, aproximadamente dez dias antes de morrer, e isso eles raramente esqueciam de calcular, eles retribuiam as visitas que lhes eram feitas por aqueles que estavam mais próximos na vizinhança, sendo transportados num trenó confortável puxado por Yahoos, e eles utilizavam este veículo, não apenas nestas ocasiões, mas também quando ficavam velhos, em longas viagens, ou quando mancavam em razão de algum acidente: e portanto, quando os HOUYHNHNMS que estão morrendo retornavam essas visitas, despediam-se solenemente de seus amigos, como se estivessem indo para uma parte muito remota do país, onde planejaram passar o resto de suas vidas.
Não sei se vale a pena falar, que os HOUYHNHNMS não possuiam nenhuma palavra no idioma deles para expressar qualquer coisa que seja má, exceto quando tomavam de empréstimo as deformidades ou as más qualidades dos Yahoos. De modo que, eles demonstravam a tolice de um criado, a omissão de uma criança, uma pedra que fere os seus pés, a duração de um tempo ruim ou impróprio, e coisas assim, adicionando a cada palavra o epíteto Yahoo. Por exemplo: HHNM YAHOO, WHNAHOLM YAHOO, YNLHMNDWIHLMA YAHOO, e uma casa mal construída YNHOLMHNMROHLNW YAHOO.
Com grande prazer eu poderia me alongar mais a respeito das maneiras e das virtudes deste povo maravilhoso, mas como pretendia, num curto espaço de tempo, publicar um volume, especialmente tratando desse assunto, faço os encaminhamentos para o leitor, e enquanto isso, passo a relatar as minhas tristes desventuras.
[A economia e a vida feliz do autor entre os Houyhnhnms. Seus grandes avanços com relação à virtude nas conversas que teve com eles. Seus diálogos. O autor recebe uma notícia dada pelo seu amo, que ele deve deixar o país. Ele perde os sentidos de tanto pesar, mas aceita. Ele constrói e termina uma canoa com a ajuda de um criado e amigo, e se lança ao mar em aventura.]
Eu havia estabelecido minha pequena economia para satisfação de meu próprio coração. Meu amo ordenara a construção de algumas acomodações para mim, segundo o hábito deles, a seis metros de distância da casa: as paredes e os pisos foram revestidos de argila, e cobertos com uma camada de junco tudo feito por mim mesmo. Juntei folhas de cânhamo batidas, que ali cresce naturalmente, e construí uma espécie de acolchoado, que enchi com plumas de várias aves que eu apanhara com laços feitos dos pelos dos Yahoos, e que depois resultaram numa iguaria de excelente qualidade. Com a minha faca construí duas cadeiras, sendo ajudado nas tarefas mais difíceis pelo cavalo alazão.
Quando as minhas roupas ficaram todas rasgadas, fiz outras com as peles de coelhos, e de um certo animalzinho muito bonito, quase do mesmo tamanho, chamado NNUHNOH, sendo que a pele dele era coberta por uma penugem muito suave. Com estas peles fiz também algumas meias que ficaram razoáveis. Coloquei solado de madeira em meus sapatos, que eu cortei de uma árvore, e o ajustei ao couro da parte superior, e quando o couro se rompia, eu o substituía por peles de Yahoos secas ao sol.
Eu frequentemente encontrava mel nos buracos das árvores, que eu misturava com água, ou comia com pão. Nada poderia justificar mais a verdade destas duas máximas, “A natureza se satisfaz com pouco” e, “A necessidade é a mãe de todas as invenções”. Eu desfrutava de perfeita saúde física, e paz de espírito; jamais sentira a traição ou a inconstância de um amigo, nem os agravos de um inimigo fosse ele secreto ou declarado. Nunca precisei subornar, bajular, ou fuxicar, buscar os favores de alguma pessoa importante, ou de sua favorita; não precisei criar defesas contra a fraude e a opressão, aqui não havia nem médico para destruir o meu corpo, nem advogado para arruinar a minha vida, nem espiões para vigiar as minhas palavras ou as minhas ações, ou para forjar acusações contra mim a troco de qualquer interesse financeiro:
Aqui não havia zombeteiros, censuradores, caluniadores, batedores de carteira, salteadores, arrombadores de casa, procuradores, cafetinas, bufões, jogadores, políticos, pessoas criativas, hipocondríacos, tagarelas, controversistas, arrebatados, assassinos, ladrões, virtuosos, nenhum líder ou seguidores de um partido ou de uma facção, nem amigos do vício, seja por sedução ou pelo exemplo, nenhuma masmorra, machado, forca, poste de chicoteamento ou pelourinho, nem comerciantes ou artífices desonestos, não havia orgulho, vaidade, ou fingimento; nem almofadinhas, intimidadores, bêbedos, nem prostitutas passeando, nem sifilíticos; nem retóricos, libidinosos, esposas dispendiosas, não havia pessoas estúpidas, orgulhosas ou pedantes; nem pessoas incômodas, dominadoras, criadoras de caso, barulhentas, berrando, fúteis, vaidosas, companheiros que blasfemam, nem canalhas que surgiam da poeira do mérito de seus vícios, nem nobres levados em conta por suas virtudes, nem senhores, violinistas, juízes, ou mestres de dança.
Eu tive a honra de conhecer vários HOUYHNHNMS, que vinham visitar ou jantar com o meu amo, onde a sua senhoria graciosamente me permitia que esperasse na sala, para ouvir as suas conversas. Tanto ele como a sua visita frequentemente se dignavam a me fazer perguntas, e recebiam minhas respostas. Algumas vezes eu também fazia questão de acompanhar o meu amo em suas visitas a outras pessoas. Nunca ousava falar, exceto quando era perguntado, e então eu fazia isso com um certo pesar, porque perdia minhas chances de melhorar o meu aprendizado; porém, fiquei infinitamente satisfeito com a postura de um humilde auditor nessas conversações, onde ele aproveitava somente o que fosse útil, expressos com poucas palavras mas com grande significação, onde, como já disse antes, se observava a dignidade em seu mais alto grau, sem os menores resquícios de formalidade, onde ninguém emitia qualquer parecer se isso não lhe fosse agradável ou prazeiroso aos seus companheiros, e onde não havia interrupções, tédio, calor ou diferença de sentimentos.
Eles tinham um conceito, de que quando as pessoas estavam reunidas, um breve silêncio melhorava consideravelmente a conversação: e isso eu descobri ser verdadeiro, pois durante os pequenos intervalos da conversa, novas ideias surgiam em suas mentes, e isso estimulava em muito o discurso. O tema predileto deles, em geral, era sobre a amizade e a benevolência, sobre a ordem e a economia, e outras vezes sobre as atividades visíveis da natureza, ou sobre as tradições antigas, as fronteiras e os limites da virtude, sobre as inequívocas regras da razão, ou sobre as deliberações a serem tomadas na próxima e grande assembleia: e frequentemente sobre as inúmeras vantagens da poesia.
Posso acrescentar, sem qualquer vaidade, que a minha presença frequentemente proporcionava a eles temas para várias discussões, porque isso dava oportunidade ao meu amo de contar a minha história e de meu país aos seus amigos, sobre o qual eles tinham o maior prazer de discorrer, de uma maneira não muito proveitosa para a humanidade: e por esse motivo não repetirei aqui o que eles disseram, somente me sendo permitido falar, que a sua senhoria, para minha grande admiração, parecia entender a natureza dos Yahoos muito melhor do que eu mesmo. Ele percorria todos os nossos vícios e tolices, e descobria muitos, que eu nunca havia mencionado a ele, supondo apenas quais qualidades um Yahoo de seu país, com um pequeno grau de inteligência, poderia conseguir desenvolver, e concluiu, com os exageros da possibilidade, “como essa criatura podia ser tão vil e mesquinha.”
Confesso, na verdade, que todo escasso conhecimento de algum valor que eu possuía, foi adquirido nas conversas que ouvi do meu amo, e nas oitivas dele com seus amigos, aos quais eu tinha o maior orgulho em assistir, do que se fosse para discursar com a maior e mais sábia assembleia na Europa. Eu admirava a determinação, a graça, e a agilidade dos habitantes; e tamanha constelação de virtudes, no meio de pessoas tão amáveis, produziu em mim a mais alta veneração. A princípio, na verdade, eu não sentia aquele pavor natural, que os Yahoos e todos os outros animais tinham em relação a eles, porém, isso foi crescendo dentro de mim aos poucos, muito mais cedo do que eu imaginava, e foi-se mesclando com um amor e uma gratidão respeitosos, que eles se dignaram distinguir-me do resto da minha espécie.
Quando eu pensava em minha família, meus amigos, meus compatriotas, ou na raça humana em geral, eu os considerava, como eles realmente eram, Yahoos na forma e no temperamento, talvez um pouco mais civilizados, e qualificados com o dom da fala, mas que não faziam melhor uso da razão, além de melhorar e multiplicar aqueles vícios dos quais os seus irmãos deste país tinham somente a parcela que a natureza atribuira a eles. Quando ocasionalmente eu contemplava o reflexo da minha forma num lago ou numa fonte, eu virava meu rosto tomado de horror e de repugnância por mim mesmo, e eu podia suportar melhor a visão de um simples Yahoo do que a minha própria pessoa. Conversando com os HOUYHNHNMS, e olhando-os com um certo encantamento, comecei a imitá-los no jeito de andar e em seus modos, que agora se tornou um hábito, e os meus amigos frequentemente me diziam, de forma descortês, “que eu andava trotando como um cavalo;” o que, todavia, aceito como um grande elogio. Tampouco posso negar, que ao falar eu era capaz de imitar a voz e os modos dos HOUYHNHNMS, e vejo-me ridicularizado por esse motivo, sem o menor problema.
No meio de toda essa felicidade, e quando me considerava totalmente estabelecido na vida, meu amo me mandou buscar numa manhã um pouco mais cedo do que o usual. Notei pelo seu semblante que ele estava um pouco perplexo, e indeciso em como começar o que ele tinha para falar. Depois de um breve silêncio, ele me disse “que não sabia como eu interpretaria o que ele tinha para me dizer: que na última assembleia geral, quando o assunto dos Yahoos foi tratado, os representantes ficaram ofendidos que ele tivesse um Yahoo (queriam se referir a mim) em sua família, tratado como se fosse um HOUYHNHNM e não como um animal irracional, que sabiam que ele conversava frequentemente comigo como se ele pudesse ter alguma vantagem ou prazer com a minha companhia;
“que tal prática não era agradável à razão ou à natureza, ou era uma coisa de que jamais se ouvira falar antes entre eles; de modo que, a assembleia o exortava, ou a me utilizar como o resto da minha espécie, ou me obrigavam a voltar nadando para o lugar de onde viera: e que o primeiro desses expedientes havia sido declaradamente rejeitado por todos os HOUYHNHNMS que haviam me visto em sua casa ou por eles próprios, pois alegavam eles, que, como eu possuía alguns rudimentos de inteligência, além da perversidade natural daqueles animais, era de temer que eu pudesse seduzí-los para dentro dos bosques ou para os lados das montanhas daquela região, e trazê-los em tropas à noite para destruir o gado dos HOUYHNHNMS, porque eles eram do tipo vorazes por natureza e avessos ao trabalho.”
Meu amo acrescentou, “que ele era pressionado diariamente pelos HOUYHNHNMS da vizinhança para que executasse o mandado da assembleia, a qual ele não poderia adiar por muito mais tempo. Duvidava que seria impossível para mim ir nadando para um outro país, e portanto, desejava que eu pudesse construir algum tipo de veículo, semelhante a aqueles que eu havia descrito a ele, e que pudesse me levar para o mar, e para cujo trabalho eu poderia contar com a ajuda de seus próprios criados, bem como alguns dos seus vizinhos.” Ele concluiu, dizendo “que de sua parte, ele poderia ter a satisfação de manter-me a seus serviços enquanto vivesse, porque ele achava que eu tinha me curado de alguns hábitos e manias, esforçando-me, tanto quanto permitiam a minha natureza inferior, por imitar os HOUYHNHNMS.”
Eu devo aqui lembrar ao leitor, que um decreto da assembleia geral neste país era expresso com a palavra HNHLOAYN, o que significa, segundo consegui traduzir, exortação, porque eles não conseguiam entender que uma criatura racional não podusse ser obrigada, mas apenas aconselhada ou exortada; porque pessoa alguma poderia afrontar a razão, sem renunciar a suas reivindicações de ser considerado uma criatura racional.
Fui tomado por um pesar e um desespero tão extremos diante do discurso do meu amo, e não conseguindo suportar as angústias que me oprimiam, cai desfalecido aos seus pés. Quando voltei a mim, ele me disse que “ele tinha chegado à conclusão de que eu estava morto;” porque aquele povo não tinha tendências para imbecilidades daquela natureza. Respondi com a voz sumida, “que a morte teria sido uma grande felicidade; e que embora não pudesse culpar a exortação da assembleia, ou a pressa dos amigos dele, na minha forma de entender fraca e venal, eu poderia pensar com razão que teria sido menos rigoroso; e que eu não conseguiria nadar uma légua, e provavelmente o país mais perto dalí estaria a uma distância de mais de cem léguas: e que muitos materiais, necessários para construir um pequeno barco para me levar embora, não podiam de forma alguma serem encontrados neste país, os quais, todavia, eu tentaria, em obediência e gratidão a sua senhoria, embora chegasse a conclusão de que isso seria impossível, e que, por conseguinte, já me considerava entregue ao abandono, e que a perspectiva de uma morte não natural seria o menor dos males, pois, supondo que eu conseguisse escapar com vida por alguma estranha aventura,”
“como é que eu poderia pensar com tranquilidade em passar os meus dias entre os Yahoos, e reincidir em meus antigos delitos, por falta de exemplos a seguir e me manter dentro dos caminhos da virtude? E que eu conhecia muito bem sobre quais bases sólidas se basevam todas as determinações dos sábios HOUYHNHNMS, sem serem afetados pelos argumentos de um miserável Yahoo como eu, e portanto, depois de lhe apresentar os meus agradecimentos mais humildes pela proposta de ajuda dos seus criados para a construção de um barco, e desejoso de um tempo razoável para um trabalho tão difícil, disse-lhe que me esforçaria para preservar uma criatura arruinada, e se algum dia retornasse à Inglaterra, não seria sem esperanças de ser útil à minha própria espécie, cantando os louvores dos renomados HOUYHNHNMS, e propondo as virtudes deles como exemplo para a humanidade.”
Meu amo, em poucas palavras, me deu uma resposta amável, e me concedeu o prazo de dois meses para terminar o meu barco, e ordenou ao cavalo alazão, meu criado e companheiro (pois assim, a esta distância, presumo dever chamá-lo), para seguir minhas instruções, porque eu havia dito ao meu amo, “que esta ajuda seria suficiente, e eu sabia que ele tinha um certo carinho por mim.”
Em sua companhia, a primeira coisa que fiz foi ir até aquela parte da costa onde a minha tripulação rebelada me havia ordenado que fosse colocado em terra. Subi até uma altura, e olhando para o mar em todas as direções, imaginei ter visto uma pequena ilha na direção nordeste. Saquei meus ante-olhos e pude então distinguí-la claramente a mais de cinco léguas de distância, segundo meus cálculos, mas para o cavalo alazão ela parecia ser apenas uma nuvem azul: pois ele não fazia ideia de nenhum outro país além do seu próprio, então, ele não poderia ser tão esperto para distinguir objetos à distância, no mar, como nós que estamos familiarizados com esses elementos.
Depois que eu tinha descoberto a ilha, não pensei mais nela, porém, decidi que se fosse possível, ela seria o meu primeiro lugar de exílio, deixando as consequências para decisão da sorte.
Voltei para casa, e conversando com o cavalo alazão, fomos até um pequeno bosque a alguma distância, onde eu, com uma faca, e ele com uma pederneira afiada, muito artificialmente amarrada do jeito deles a um cabo de madeira, derrubamos diversas varas de carvalho, da grossura aproximada de uma bengala, e algumas peças maiores. Mas não vou incomodar o leitor com uma descrição detalhada de minhas próprias técnicas, basta dizer, que em seis semanas, com a ajuda do cavalo alazão, que executava as tarefas que exigiam trabalho mais pesado, eu terminei uma espécie de canoa indiana, porém, muito maior, e a revesti com as peles de Yahoos, bem costuradas com fios de cânhamo e tudo feito por mim. A minha vela era também composta por peles do mesmo animal, mas eu aproveitei a dos mais jovens que pude conseguir, pois as mais velhas eram duras e grossas, e também providenciei para mim mesmo quatro remos. Coloquei alguns pedaços de carne cozida, de coelhos e de aves, e levei comigo dois recipientes, um cheio de leite e o outro com água.
Experimentei a minha canoa em um grande lago, perto da casa do meu amo, e depois corrigi nela o que não estava bem, vedando todas as fendas com sebo de Yahoo, até que a considerei segura, e capaz de suportar a mim e a minha carga, e quando ela estava tão completa quanto era possível fazê-la, mandei que ela fosse arrastada bem devagar por um veículo pelos Yahoos até o litoral, sob o comando do cavalo alazão e de um outro criado.
Quando tudo estava pronto, e havia chegado o dia da minha partida, despedi-me de meu amo e da sua esposa e de toda a família, meus olhos transbordavam de lágrimas, e meu coração estava dilacerado de tanta dor. Mas a sua senhoria, por curiosidade e talvez (se é que eu posso falar sem vaidade) em parte por gentileza, estava decidido a se despedir de mim em minha canoa, e levou vários de seus amigos das redondezas em sua companhia. Fui obrigado a esperar mais de uma hora pela maré, e então, observando o vento que felizmente soprava em direção à ilha à qual eu tencionava orientar o meu curso, me despedi pela segunda vez do meu amo, mas, quando eu estava para me ajoelhar para beijar o seu casco, ele me fez a gentileza de levá-lo suavemente até a minha boca.
Não posso ignorar o quanto fui censurado por mencionar este último detalhe. Os detratores tem o prazer de achar isso improvável, que uma pessoa tão ilustre pudesse ter-se humilhado a ponto de demonstrar uma marca de sua nobreza para uma criatura tão inferior quanto eu. Tampouco me esqueci de como alguns viajantes são capazes de se vangloriarem por favores que tenham recebido. Mas, se estes censuradores estivessem mais familiarizados com as posturas nobres e gentis dos HOUYHNHNMS, logo mudariam de opinião.
Apresentei os meus respeitos a todos os demais HOUYHNHNMS que tinham acompanhado sua senhoria, depois, entrando na minha canoa, afastei-me da costa.
[A perigosa viagem do autor. Ele chega a Nova Holanda, com a esperança de se estabelecer nesse lugar. É ferido por uma flecha dos nativos. É capturado e levado a força para um navio português. Os bons modos do capitão. O autor chega à Inglaterra.]
Iniciei esta desesperada travessia em 15 de Fevereiro de 1715, às nove horas da manhã. O vento estava favorável, contudo, fiz uso a princípio somente dos meus remos, mas, levando-se em conta que logo eu estaria cansado, e que o vento poderia mudar de direção, arrisquei a içar minha pequena vela, e desse modo, com a ajuda da maré, me deslocava a velocidade de uma légua e meia por hora, segundo meus cálculos. Meu amo e seus amigos continuavam na praia até quase me perderem de vista, e eu frequentemente ouvia o cavalo alazão (que sempre teve o maior carinho por mim) gritando, “HNUY ILLA NYHA, MAJAH YAHOO;” “Tome cuidado, meu bom Yahoo.”
O meu plano era, se possível, descobrir alguma pequena ilha desabitada, porém, suficiente para, com o meu trabalho, me prover das coisas necessárias para viver, o que eu teria considerado a maior felicidade, do que ser primeiro ministro na corte mais culta da Europa, portanto, foi horrível, a ideia que tive de retornar a vida em sociedade, sob o governo dos Yahoos. Pois em completa solidão eu desejava, que eu pudesse pelo menos desfrutar dos meus pensamentos, e refletir com alegria nas virtudes daqueles HOUYHNHNMS inimitáveis, sem as chances de me degenerar para os vícios e as corrupções da minha própria espécie.
O leitor deve se lembrar o que relatei, quando a minha tripulação conspirou contra mim, e me confinou na cabine, e como eu continuei ali durante várias semanas sem saber que destino tomar, e quando eles me deixaram em terra no longo barco, e como os marinheiros me contaram, sob juramento, não sei se verdadeiro ou falso, “de que eles não sabiam em que parte do mundo nos encontrávamos.” Todavia, eu acreditei então que estávamos a aproximadamente 10 graus ao sul do Cabo da Boa Esperança, ou a cerca de 45 graus de latitude sul, como apreendi de algumas palavras no ar que ouvi por acaso entre eles, estando eu, supostamente, a sudeste da viagem que pretendiam para Madagascar.
E embora isso tivesse sido um pouco mais do que suposições, decidi tomar o meu rumo para leste, esperando alcançar o sudoeste da costa da Nova Holanda, e talvez alguma ilha do tipo que sonhava e que ficava na direção oeste dela. O vento soprava forte para oeste, e por volta das seis da tarde, calculei, eu tinha rumado para leste dezoito léguas pelo menos, quando avistei uma ilha muito pequena a cerca de meia légua de distância, que não tardei a alcançar. Ela não passava de um rochedo, com uma enseada em forma de arco natural devido a força das tempestades.
Aí deixei minha canoa, e subindo por um pedaço do rochedo, descobri claramente que havia terra na parte leste, e que se estendia do sul para o norte. Fiquei a noite toda na minha canoa, e repetindo a minha viagem bem cedo de manhã, cheguei em sete horas na ponta sudeste de Nova Holanda. Isto veio a me confirmar uma desconfiança de tinha há muito tempo, de que os mapas e as cartas geográficas posicionavam este país pelo menos três graus mais a leste do que realmente era, tendo comunicado esse fato há muitos anos ao meu grande amigo, Sr. Herman Moll, e expliquei a ele as minhas razões para essa desconfiança, embora ele tivesse preferido seguir outros autores.
Não tinha visto nenhum habitante no lugar onde desembarcara, e como estava desarmado, receava me aventurar mais para o interior do país. Encontrei alguns mariscos na praia, e os comi cru, nem ousei acender uma fogueira, com receio de ser descoberto pelos nativos. Continuei me alimentando durante três dias de ostras e moluscos, para poupar minhas próprias provisões, e por felicidade encontrei um riacho com água de excelente qualidade, o que me deu grande alívio.
No quarto dia, cedo me aventurando para um lugar um pouco mais distante, encontrei vinte ou trinta nativos a uma determinada altura e a uma distância não maior que quinhentos metros de mim. Eles eram homens, mulheres e crianças totalmente nus, em torno de uma fogueira, como pude perceber por causa da fumaça. Um deles me viu, e deu a notícia para os demais, cinco deles avançaram em minha direção, deixando as mulheres e as crianças em torno da fogueira. Corri para a praia, o mais veloz que pude, e, entrando em minha canoa, me afastei rapidamente: os selvagens, vendo que me retirava, correram atrás de mim, e antes que eu pudesse atingir grande distância até o mar, dispararam uma flecha que me feriu profundamente na parte do meu joelho esquerdo, cujas marcas levarei para o túmulo. Pensei que a flecha pudesse estar envenenada, e remando para longe do alcance de seus dardos (pois o dia era calmo), me esforcei para sugar o ferimento, e cuidei dele tão bem quanto pude.
Não conseguia imaginar o que fazer, pois não ousaria retornar para o mesmo lugar de desembarque, mas ficaria ao norte, e era forçado a remar, pois o vento, embora muito suave, estava em direção contrária, soprando de noroeste. Enquanto procurava por um lugar seguro para desembarcar, vislumbrei uma vela na direção nor-noroeste, a qual a cada minuto parecia se tornar mais visível, e eu estava em dúvida se devia ou não esperar por ela, mas, finalmente, o meu desprezo pela raça dos Yahoos foi maior, e virando a minha canoa, eu velejava e remava ao mesmo tempo em direção ao sul, e penetrei na mesma enseada de onde havia partido de manhã, mas disposto a me entregar para aqueles bárbaros, do que viver com Yahoos europeus. Arrastei o máximo que pude a minha canoa para a praia, e me escondi atrás de uma pedra perto do pequeno riacho, o qual, como já disse, tinha uma água de excelente qualidade.
O navio se aproximou a cerca de meia légua desta enseada, e um barco comprido foi enviado com vasilhas para pegar água fresca (pois me parece que o lugar era bem conhecido), porém, não tinha percebido isso, até que o barco estava quase na praia, e já era tarde demais para procurar um outro esconderijo. Ao desembarcarem, os marinheiros viram a minha canoa, e vasculhando por toda parte, chegaram logo a conclusão de que o proprietário não poderia estar longe. Quatro deles, bem armados, revistaram todos os cantos e esconderijos, até que finalmente me encontraram atrás da pedra com a cara escondida entre as mãos.
Ficaram pasmos durante algum tempo admirando as minhas roupas estranhas e rudes, meu casaco era feito de peles, meus sapatos com solado de madeira, e minhas meias também de pele, concluindo, então, que eu não era nativo dali, onde todos andavam nus. Um dos marinheiros, em português, pediu para que me levantasse, e me perguntou quem eu era. Eu falava muito bem aquele idioma, e ficando de pé, disse, “que eu era um pobre Yahoo que tinha sido expulso pelos HOUYHNHNMS, e desejava que eles tivessem a gentileza de me levar.”
Ficaram admirados em ouvir que respondia em seu próprio idioma, e viram pelo meu aspecto que eu devia ser um europeu, mas não conseguiram entender o que eu queria dizer com Yahoos e HOUYHNHNMS, e ao mesmo tempo cairam na risada devido ao meu sotaque estranho de falar, que se parecia com o relinchar de um cavalo. Tremia o tempo todo por causa do medo e da raiva. Pedi novamente permissão para partir, e caminhei devagar em direção a minha canoa, mas eles me seguraram, querendo saber, “de que país eu era? De onde viera?” além de muitas outras perguntas. Disse a eles “que eu havia nascido na Inglaterra, de onde saíra a cinco anos atrás, e que o país deles e o nosso estavam em paz. Esperava então que não me tratassem como inimigo, uma vez que eu não representava para eles nenhum perigo, mas era um pobre Yahoo procurando algum lugar afastado para passar o resto de minha vida infeliz.”
Quando eles começaram a falar, eu achei que nunca tinha ouvido ou visto nada mais incomum, pois me pareceu tão assustador como se um cachorro ou uma vaca estivessem falando na Inglaterra, ou um Yahoo no país dos HOUYHNHNMS. Por sua vez, os honestos portugueses estavam espantados com as minhas roupas estranhas, e o modo esquisito de expressar as minhas palavras, que, no entanto, foram bem compreendidas por eles. Eles falavam comigo com grande bondade, e disseram, “que eles tinham certeza que o capitão me levaria sem qualquer ônus para Lisboa, de onde eu poderia retornar para o meu país, e que dois dos marinheiros voltariam para o navio, informariam o capitão o que eles tinham visto, e receberiam suas ordens, enquanto isso, eles teriam de ser durões comigo, exceto se eu firmasse o meu juramento solene de não fugir.”
Achei melhor concordar com a proposta deles. Eles estavam muito curiosos para conhecerem a minha história, não lhes dei muita satisfação, e todos eles imaginaram que meus infortúnios haviam mexido com a minha cabeça. Em duas horas, o barco que estava carregado com vasilhas de água retornou com ordens do capitão para me levarem a bordo. Caí de joelhos para preservar a minha liberdade, mas tudo foi em vão, porque os homens, tendo me amarrado com cordas, içaram-me até o barco, de onde eu fui levado para o navio, e daí para a cabine do capitão.
O nome dele era Pedro de Mendez, era uma pessoa muito cortês e generosa. Ele me pediu para que falasse um pouco de mim, e quis saber se eu desejava comer ou beber alguma coisa, disse, “que eu seria tratado como ele mesmo;” e se dirigiu a mim com tanta cortesia, que me surpreendeu receber tantas amabilidades por parte de um Yahoo. Todavia, permaneci silencioso e taciturno, estava a ponto de perder os sentidos por causa do cheiro dele e de seus homens. Por fim, quis comer algo da minha própria canoa, mas o capitão mandou que me servissem uma galinha, e um pouco de vinho de boa qualidade, e depois mandou que me preparassem uma cama numa cabine bastante limpa. Não tirei minhas roupas, mas me deitei sobre as roupas de cama, e meia hora haviam se passado, quando pensei que a tripulação estivesse jantando, e chegando na lateral do navio, estava decido a pular no mar, para salvar a minha vida, nadando, ao invés de permanecer entre Yahoos. Mas um dos marinheiros me impediu, e tendo informado ao capitão, me colocaram em correntes na minha cabine.
Depois do jantar, Dom Pedro veio até a minha cabine, e queria saber o motivo para um empreitada tão arriscada, e me assegurou, “que o seu único propósito era prestar-me todo serviço que fosse possível,” e falava isso de uma maneira que me comoveu, e finalmente concordei em tratá-lo como um animal que tinha um certo teor de inteligência. Fiz-lhe um pequeno resumo sobre a minha viagem, sobre a conspiração em meu desfavor levantada pelos meus próprios homens, do país onde me deixaram na praia, e dos cinco anos que permaneci naquele lugar.
Tudo isso porém, ele considerou como se tivesse sido um sonho ou uma visão, o que me deixou bastante ofendido, pois eu tinha esquecido totalmente a arte de mentir, tão comum aos Yahoos, e em todos os países onde eles governavam, e, consequentemente, decorre que desconfiavam da verdade dos outros de sua própria espécie. Perguntei-lhe, “se era costume em seu país dizer coisas que não fossem verdades?” E assegurei-lhe, “que eu tinha quase esquecido o que significava falsidade, e se eu tivesse vivido mil anos na terra dos HOUYHNHNMS, eu jamais teria ouvido uma mentira do criado mais insignificante deles, e que eu também era indiferente se eles acreditavam ou não em mim, mas, todavia, como retribuição pelos seus favores, eu teria toda tolerância com os desvios de sua conduta, a ponto de responder a todas as objeções que ele fizesse questão de criar, e então ele facilmente descobriria a verdade.”
O capitão, que era um homem sábio, depois de muitos esforços para me pegar em algum devaneio de algumas partes da minha história, por fim, começou a ter um conceito melhor da minha veracidade. Mas ele acrescentou, que “uma vez que eu havia jurado respeito total à verdade, eu deveria dar a ele a minha palavra e honra em lhe fazer companhia durante a viagem, sem nada tentar contra minha própria vida, ou eu continuaria como prisioneiro até que chegássemos a Lisboa.” Concordei com a promessa que ele pediu, mas ao mesmo tempo protestei, “que preferia sofrer as maiores privações, a ter de viver novamente entre os Yahoos.”
A nossa viagem seguiu sem qualquer acidente digno de menção. Em gratidão ao capitão, eu algumas vezes me sentava com ele, atendendo a sua sugestão, e me esforçava para ocultar a minha antipatia pela espécie humana, embora ela viesse à tona frequentemente, quando ele fingia não perceber. Mas a maior parte do dia eu passava confinado em minha cabine, para não ter de ver ninguém da tripulação. O capitão muitas vezes insistia para que eu tirasse aquelas roupas selvagens, e se ofereceu para me emprestar as melhores roupas que ele tinha. Mas isso não foi fácil de me permitir que aceitasse, pois me incomodava ter de me cobrir com qualquer coisa que tivesse sido usada nas costas de um Yahoo. Eu queria somente que ele me emprestasse duas camisas limpas, as quais, como tinham sido lavadas desde que ele as usou, acreditei que elas não me causariam tanto nojo. E estas eu trocava a cada dois dias, e eu mesmo as lavava.
Chegamos a Lisboa em 5 de Novembro de 1715. Ao desembarcar, o capitão me obrigou a me cobrir com uma capa sua, para evitar que a ralé criasse tumulto em minha volta. Fui levado para sua própria casa, e a meu pedido ele me instalou no aposento mais alto e no fundo da sua casa. Implorei a ele “que ocultasse de todas as pessoas o que eu havia lhe falado sobre os HOUYHNHNMS, porque o menor boato que houvesse daquela história atrairia não apenas inúmeras pessoas para me ver, mas provavelmente me poria em risco de ser preso, ou queimado pela Inquisição.” O capitão me convenceu a aceitar algumas roupas novas feitas recentemente, mas eu não permiti que o alfaiate me tomasse as medidas, todavia, como Dom Pedro, era quase do meu tamanho, elas serviram em mim perfeitamente. Ele me providenciou outros artigos de necessidade, todos novos, os quais deixei tomando ar durante vinte e quatro horas antes de usá-los.
O capitão não tinha esposa, nem mais que três criados, e nenhum deles tinha permissão para servir a mesa, e toda sua conduta em relação a mim era tão amável, além de uma compreensão humana muito boa, que eu realmente comecei a tolerar a sua companhia. Ele me conquistou tanto, que eu me atrevi a olhar pela janela dos fundos. Aos poucos, fui levado para um outro quarto, de onde eu dava uma espiada na rua, mas com medo afastava a minha cabeça. Em questão de uma semana, ele conseguiu me levar até a porta. Achei que o meu pavor estava diminuindo gradualmente, mas o meu ódio e o meu desdém pareciam aumentar. Finalmente, criei coragem o bastante para caminhar até a rua em sua companhia, mas mantinha bem fechado o meu nariz com folhas de arruda, ou algumas vezes com tabaco.
Em dez dias, Dom Pedro, a quem eu havia feito alguns relatos de meus assuntos domésticos, me mostrou, como questão de honra e de consciência, “que eu deveria retornar para o meu país natal, e viver em casa com minha esposa e meus filhos.” Ele me disse, “que havia um navio inglês no porto pronto para partir, e que ele me providenciaria tudo o que fosse necessário.” Seria tedioso repetir os seus argumentos, e minhas contradições. Ele disse, “que era também impossível encontrar uma ilha tão deserta como aquela que eu desejava viver, mas eu poderia mandar em minha própria casa, e passar o tempo da maneira mais reclusa que desejasse.”
Concordei finalmente, achando que não conseguiria fazer nada melhor. Deixei Lisboa no dia 24 de Novembro, num navio mercante inglês, mas jamais fiquei sabendo quem era o comandante. Dom Pedro me acompanhou até o navio, e me emprestou vinte libras. Se despediu de mim com muita cortesia, e me abraçou ao partir, o que suportei tão bem quanto pude. Durante esta última viagem, não tive contacto com o comandante ou qualquer de seus homens, mas, fingindo estar doente, fiquei fechado em minha cabine. No dia 5 de dezembro de 1715, lançamos âncora em Downs, por volta das nove da manhã, e as três da tarde cheguei em segurança em minha casa em Rotherhith.
A minha esposa e a minha família me receberam com grande surpresa e alegria, porque eles acreditavam que eu certamente estivesse morto, mas eu devo confessar com franqueza que ao vê-los fiquei cheio de ódio, desgosto, e desprezo, e mais ainda, quando pensava nos vínculos estreitos que me ligavam a eles. Pois, desde o meu exílio infeliz do país dos HOUYHNHNMS, eu havia decidido que toleraria a visão dos Yahoos, e as conversas com Pedro de Mendez; todavia, a minha memória e a minha imaginação estariam para sempre repletas com as virtudes e ideias daqueles gloriosos HOUYHNHNMS. E quando eu comecei a considerar que, ao me deitar com uma da espécie dos Yahoos eu me tornaria pai de outros, fui tomado pela mais profunda vergonha, confusão e horror.
Assim que entrei em casa, a minha esposa me pegou nos braços, e me beijou, e não estando habituado ao toque desse odioso animal durante tantos anos, caí desfalecido por quase uma hora. Ao fazer este relato, cinco anos já são passados desde a última vez que retornei à Inglaterra. Durante o primeiro ano, eu não conseguia tolerar a minha esposa ou os meus filhos na minha presença, o próprio cheiro deles era insuportável, muito menos podia eu permitir que eles comessem na mesma sala.
Até este momento não ousam sequer tocar o meu pão, ou beber na mesma xícara, nem era eu capaz de permitir que alguém me levasse pelas mãos. O primeiro dinheiro que dispus foi para comprar dois cavalos jovens, os quais eu mantenho num bom estábulo, e depois deles, o cocheiro era o meu favorito, pois eu sentia que o meu espírito rejuvenescia com o cheiro que vinha do estábulo. Meus cavalos me compreendem razoavelmente bem; eu converso com eles pelo menos quatro horas todos os dias. Eles não conhecem freio nem sela, vivem com grande simpatia comigo e amizade um pelo outro.
[A veracidade do autor. O seu objetivo ao publicar esta obra. Sua censura aos viajantes que se desviam da verdade. O autor, ao escrever, se exime de qualquer resultado sinistro. Resposta a uma objeção. O método de se criar colônias. Louvor ao seu país natal. Justificação pelo direito à coroa daqueles países descritos pelo autor. A dificuldade de conquistá-los. O autor se despede do leitor pela última vez, expõe seu modo de viver para o futuro, oferece bons conselhos e tira suas conclusões.]
De modo que, gentil leitor, dei-te a conhecer a fiel história das minhas viagens durante dezesseis anos e mais de sete meses: onde não me preocupei tanto com os efeitos decorativos mais do que com a verdade. Eu poderia, talvez, assim como outros, ter enchido os olhos do leitor com histórias incríveis e improváveis, mas eu preferi relatar claramente todos os fatos, da maneira e com o estilo mais simples possível, porque o meu objetivo principal era informar, e não divertir o leitor.
É fácil para nós que viajamos para países distantes, e que raramente são visitados por ingleses ou por europeus de outros países, criar descrições de animais maravilhosos tanto do mar como da terra. De modo que os principais objetivos de um viajante deveria ser se tornar mais sábio e melhor, e melhorar seus próprios pontos de vista com os exemplos maus e também com os bons do que relatam eles a respeito dos lugares exóticos que visitaram.
Desejaria de coração que uma lei fosse prescrita, para que todo viajante, antes que lhe fosse permitido publicar suas viagens, se visse obrigado a prestar juramento diante do Senhor e Grande Chanceler, de que tudo que ele teve o propósito de registrar seja corroborado pela mais pura verdade de tudo o que ele aprendeu, pois, assim, o mundo não poderia se decepcionar, como normalmente acontece, pois, alguns escritores, para que suas obras tenham total aprovação do público, impõe ao incauto leitor as fantasias mais absurdas.
Na minha juventude, compulsei diversos livros de viagens com grande satisfação, porém, tendo percorrido, desde então, as mais diversas partes do globo, e tendo podido contradizer muitos relatos fabulosos por observação própria, acabei adquirindo um profundo desgosto por este tipo de leitura, e um pouco de indignação ao ver a credulidade humana ser abusada com tanto descaramento. Assim, dado que o meu círculo de amizades tivesse orgulho em pensar que os meus minguados esforços tivessem boa aceitação por parte do meu país, impus a mim mesmo, o firme propósito de jamais me desviar, e de me submeter rigorosamente à verdade, nem, de fato, poderia eu sentir o menor impulso de oscilar em torno desse objetivo, enquanto fosse possível reter em mente os diálogos e o exemplo do meu nobre amo e de outros ilustres HOUYHNHNMS de quem, durante longo tempo, tive a honra de ser um ouvinte humilde.
Nec el miserum Fortuna Sinonem Finxit;vanum etiam; inendacemque improba finget.
Sei muito bem, que pouca notoriedade pode ser adquirida com escritos que não exigem criatividade nem qualquer estudo, nem na verdade, qualquer outro talento, exceto uma boa memória, ou um registro preciso. Sei também, que escritores de viagens, assim como os dicionaristas, estão mergulhados no esquecimento sob o peso e impacto daqueles que vieram depois, e que portanto, estão mais em evidência. E é altamente provável que estes viajantes, que a partir de agora visitem os países descritos nesta obra, possam, — ao detectar os meus erros (caso haja algum) — adicionar muitas outras descobertas que eles mesmos fizerem, e me relegarem a segundo plano, para ocuparem o meu lugar, fazendo com que o mundo esqueça que fui eu o autor.
Esta, sem dúvida, me seria uma cruel mortificação, se eu escrevesse por causa da fama: porém, como o meu único objetivo é o bem geral, não ficarei nem um pouquinho desapontado. Pois, quem é capaz de ler sobre as virtudes que eu mencionei dos gloriosos HOUYHNHNMS, sem se envergonhar de seus próprios vícios, ao se considerar a si próprio um animal racional como governante de seu próprio país? Nada direi sobre aquelas nações remotas onde governam os Yahoos, dentre os quais os menos corruptos são os habitantes de BROBDINGNAG, cujos expoentes máximos de moralidade e administração seria para nós uma felicidade observar. Porém, deixo de me estender sobre este assunto, e prefiro deixar ao judicioso leitor que faça suas próprias análises e uso de tudo o que relatei.
Eu não ficaria satisfeito se este meu trabalho não fosse encontrar possíveis censuradores: pois quais objeções se poderiam fazer contra um escritor, que relata apenas fatos conhecidos, ocorridos em países tão distantes, onde não temos o menor interesse, nem com relação ao comércio nem com qualquer outro tipo de negociação? Tive o cuidado de evitar qualquer falha de que mais habitualmente são inculpados os escritores de viagens. Além disso, não me intrometo em qualquer partido, mas, escrevo sem paixão, preconceito, ou má-vontade contra qualquer pessoa, ou grupo de pessoas, seja lá quem forem.
Escrevo com o objetivo mais nobre de informar e instruir as pessoas, por meio das quais eu posso, sem qualquer rasgo de vaidade, presumir alguma superioridade, de quem recebi grandes vantagens conversando durante muito tempo com os HOUYHNHNMS mais eminentes. Escrevo sem qualquer perspectiva de lucro ou de auto promoção. Jamais permiti que uma só palavra fosse enunciada sem antes refletir muito, ou possivelmente cometer a menor ofensa, mesmo para aqueles que estejam dispostos a aceitá-la. De modo que eu espero poder com justiça me declarar autor perfeitamente impecável, contra quem os grupos de replicadores, examinadores, observadores, pensadores, detectores, e fiscalizadores jamais conseguirão motivo para exercitarem os seus talentos.
Me foi ensinado, devo confessar, “que eu estava comprometido com o dever, na qualidade de súdito da Inglaterra, de apresentar um livro de memórias a um secretário de estado assim que retornei pela primeira vez, porque, qualquer terra descoberta por um súdito pertence à coroa.” Mas eu duvido que as conquistas dos países aos quais me refiro fossem tão fáceis como as de Hernán Cortéz sobre os americanos nus. Os liliputianos, acho eu, que mal valem o custo de uma frota ou de um exército para serem aniquilados, e eu questiono, se seria prudente ou seguro atacar os habitantes de BROBDINGNAG, ou se um exército inglês ficaria muito tranquilo com a Ilha Voadora sobre suas cabeças.
Os HOUYHNHNMS de fato parecem não estar muito bem preparados para a guerra, uma ciência para a qual eles são totalmente estranhos, e principalmente contra armas poderosas. Todavia, supondo que eu fosse um ministro de estado, jamais poderia optar pela invasão desse países. A prudência, a unanimidade, a ausência de medo, e o amor que eles têm por seu país, compensariam de longe todos os seus defeitos com relação à arte militar.
Imaginem vinte mil deles avançando no meio de um exército europeu, desordenando as filas, derrubando os comboios, transformando em múmias as faces do guerreiros por meio de coices terríveis causados por suas patas traseiras; merecendo então o epíteto dado a Augusto, Recalcitrat undique tutus[3]. Porém, ao invés de planos para conquistar tão magnífica nação, eu preferiria que eles tivessem a capacidade ou disposição para enviarem um número suficiente de seus habitantes para a Europa civilizada, que nos ensinaria os primeiros princípios da honra, da justiça, da verdade, da moderação, do espírito público, da força, da castidade, da amizade, da benevolência, e da fidelidade. As denominações de todas essas virtudes estão ainda retidas entre nós, na maioria dos idiomas, e podem ser encontradas tanto nos autores modernos como nos antigos, e isso posso afirmar devido as minhas escassas leituras.
Mas eu tinha outro motivo, que me deixou menos propenso a ampliar os domínios de sua majestade com as minhas descobertas. Para dizer a verdade, eu havia criado alguns escrúpulos com relação à justiça distributiva dos príncipes nessas ocasiões. Por exemplo: uma tripulação de piratas é arrastada por uma tempestade para lugares desconhecidos, depois, um garoto descobre terras do mastaréu de um barco, eles vão para a praia para roubar e saquear, encontram um povo indefeso, são tratados com educação, dão ao país um novo nome, tomam formalmente a posse em nome do rei, fazem a demarcação por meio de uma tabuleta velha ou de uma pedra, como um memorial, matam duas ou três dúzias de nativos, aprisionam outros mais, a força, como amostra, voltam para casa, e são perdoados.
É assim que se inicia um novo domínio adquirido sob o título de direito divino. Navios são enviados na primeira oportunidade, os nativos são expulsos ou exterminados, seus príncipes são torturados até descobrirem o seu ouro, conseguem permissão total para todos os atos de desumanidade e de abuso, toda a terra é manchada com o sangue de seus habitantes e este execrável bando de carniceiros, utilizados em expedições tão piedosas, torna-se uma colônia moderna, e são enviados para converter e civilizar um povo idólatra e bárbaro!
Mas esta descrição, confesso, de modo algum afeta a nação britânica, que pode ser um exemplo para o mundo todo em termos de sabedoria, cuidado, e justiça no estabelecimento de colônias, pelo seu talento no avanço da religião e do conhecimento, pela escolha de pastores devotados e hábeis na propagação do Cristianismo, pela cautela no povoamento de suas províncias com pessoas de vida sóbria e de conversação moderada enviadas pela mãe pátria, seu zelo rigoroso na distribuição da justiça, no cumprimento da administração civil através de todas as suas colônias com oficiais da maior competência, e para o coroamento de todos, enviando os governadores mais vigilantes e mais virtuosos, que não tem outras aspirações além da felicidade do povo sobre o qual presidem, e para honra do rei, mestre da nação.
Porém, com relação a aqueles países que foram descritos por mim, não parecem ter qualquer vontade de serem conquistados e escravizados, assassinados ou expulsos de suas colônias, nem tem ouro, prata, açúcar, ou tabaco em abundância, julguei humildemente, não terem sido eles de modo nenhum, objetos de nossos cuidados, valor, ou de nosso interesse. Todavia, se aqueles a quem mais importa ser possível uma opinião contrária, estou pronto a declarar, quando for legalmente convocado para isso, de que nenhum europeu jamais visitou esses países antes de mim. Quero dizer que os habitantes podem ser dignos de crédito, a menos que uma disputa possa acontecer entre dois Yahoos, tendo isso já ocorrido há muitos anos perto de uma montanha na terra dos HOUYHNHNMS.
Mas, com relação à formalidade da tomada de posse em nome do meu soberano, isso jamais ocorreu em meus pensamentos, e se nisso tivesse pensado, no patamar em que as coisas se encontravam, eu teria, talvez, aguardado uma oportunidade melhor, por uma questão de prudência ou de auto-preservação.
Tendo, pois, respondido à única objeção que pode ser levantada contra mim na condição de viajante, concluo, pedindo permissão ao meu gentil leitor, para retornar a desfrutar de minhas próprias meditações no meu jardim de Redriff, para aplicar as excelentes lições da virtude que eu aprendi entre os HOUYHNHNMS, para ensinar os Yahoos de minha família, até a ponto de considerá-los como animais dóceis, de modo a contemplar frequentemente a minha figura no espelho, e assim, se possível, habituar-me com o tempo a tolerar a visão de uma criatura humana, e lamentar a brutalidade dos HOUYHNHNMS de meu país, mas tratar sempre as pessoas com respeito, em nome do meu nobre amo, de sua família, e de seus amigos, e de toda a raça dos HOUYHNHNMS, com os quais alguns dos nossos tem a honra de se assemelhar em todos os seus aspectos, não obstante a degeneração de seus intelectos.
Comecei na semana passada a permitir que minha esposa se sentasse para jantar comigo, na ponta mais distante da longa mesa, e me respondesse (porém, com a maior brevidade possível) as poucas perguntas que eu fazia a ela. No entanto, o cheiro dos Yahoos continuava muito forte, e eu sempre mantinha o meu nariz tapado com folhas de arruda, lavanda ou de tabaco. E, embora fosse difícil para um homem avançado nos anos desfazer-se de velhos hábitos, não havia perdido totalmente as esperanças de algum dia, poder suportar a companhia de um Yahoo próximo, sem as preocupações que eu tinha ainda com seus dentes ou suas garras.
A minha reconciliação com a espécie dos Yahoos em geral não teria sido tão difícil, se eles estivessem satisfeitos somente com os vícios e as loucuras que a natureza os dotou. Não me sinto nem um pouco provocado com a vista de um advogado, de um batedor de carteiras, um coronel, um tolo, um senhor, um jogador, um político, um devasso, um médico, uma pessoa importante, um corrupto, um procurador, um traidor, ou outros do mesmo gênero, tudo isso, porém, dentro do curso natural dos acontecimentos: mas, quando contemplava uma protuberância causada por alguma deformidade ou doença, tanto física como mental, forjada pelo orgulho, isso imediatamente excedia todos os limites da minha paciência, e jamais compreenderei como animais e vícios dessa espécie conseguem existir em conjunto.
Os HOUYHNHNMS mais sábios e mais virtuosos, que são superiores em todas as qualidades que podem se atribuir a um ser racional, não possuem uma denominação para este vício no idioma deles, e não possuem termos para expressar qualquer sentimento mau, exceto aqueles por meio dos quais eles descrevem as detestáveis qualidades do seus Yahoos, dentre os quais não conseguem distinguir o vício do orgulho, por falta de completo entendimento da natureza humana, como se pode ver em outros países governados por esses animais. Mas eu, que tinha mais experiência, podia expressar claramente alguns rudimentos desse vício entre os selvagens Yahoos.
Mas os HOUYHNHNMS, que viviam sob o domínio da razão, não eram mais orgulhosos das boas qualidades de que eram dotados, do que seria eu por não possuir uma perna ou um braço, do qual nenhum homem em perfeito juízo teria motivo para se vangloriar, não obstante a condição miserável em que ele se encontraria caso não os tivesse. Alonguei-me por demais neste assunto devido ao desejo que tinha de tornar a companhia de um Yahoo inglês suportável de alguma maneira, e portanto, insisto agora para que aqueles que tiverem o menor vestígio deste vício absurdo, para que não se atrevam a aparecer diante de mim.