Sala com uma janela à direita, que deita para o mar; duas portas no fundo que dão ingresso para a alcova de Firmino, à esquerda, e para sua biblioteca, à direita. No meio da sala uma grande banca com lampião de globo, muitos livros, brochuras, mapas, papéis espalhados, instrumentos de física, tudo formando uma pitoresca desordem. É noite.
Cena I
editarFIRMINO, abrindo a janela
[FIRMINO] – Que formoso luar! Como é límpida a atmosfera dos trópicos! Como brilha o Cruzeiro do Sul entre essas miríadas de sóis que iluminam o trono do Senhor, e como tudo na terra se prepara para embalsamar o coração no mais suave perfume! Tudo dorme e se refocila para a continuação da obra que hoje findou. A ampulheta diária renovará as mesmas cenas no dia de manhã; o círculo de luz que começa na aurora e acaba com as trevas se fechará sem lançar um raio no futuro, nesse futuro imenso, aonde dorme o gigante do Equador, e em cujo trono virá um dia assentar-se a nobre civilização, escoltada do seu séquito sublime, e avultar no mundo quanto o Amazonas avulta sobre todos os rios da Terra. Ó minha pátria, minha querida pátria! Um sagrado delírio nos faz estremecer todas as fibras e eleva o meu pensamento à morada dos sonhos elísios; uma doce prelibação fruo na taça das delícias quando te contemplo! A árvore da vida, que em ti se agiganta com triplicada beleza, com força desusada, ainda cresce para muitos como a túbera nas entranhas da terra, em trevas profundas. Não, apesar de tudo a humanidade há de marchar, mesmo em despeito do fatal exemplo da prosperidade do vício, da elevação da mediocridade e do triunfo da impunidade. (Senta-se à mesa) A palavra neste século deve substituir a espada; o prelo, o campo de batalha e as idéias, o indivíduo. Avante, que a conquista é bela e o futuro, imenso. Mais bela seria, mais rápida, mais sublime, se o capricho não substituísse a razão, e... Sensualismo, sensualismo puro! Orgia de sibaritas, que semeiam flores no túmulo da pátria, que em pleno dia caminham às apalpadelas, que na hora em que o chão fumega com o ardor do sol olham para o céu e não encontram o rei dos astros, porque para os seus sentidos o mundo é uma habitação de trevas, onde só brilha o moribundo farol do interesse particular. Ó mocidade, mocidade, fênix das nações, esperança de... (Ouve tocar dentro uma campainha) O que será? Creio que Angélica precisa de alguma coisa, Desgraçada menina! Que paixão oculta lhe fermenta no peito! A flama que a nutre é a mesma que a devora; eu não ouso perguntar-lho, e nem suspeito por quem ao certo. Que coração tão nobre, que alma tão grande, que imaginação tão sublime!... Talvez que algum desses monstros filhos da beleza física, algum extravagante encoberto, desses profanadores, dissipadores, que têm por ofício o ócio e por glória o escândalo... Talvez que algum desses saltimbancos seja a causa do seu definhamento. Sensível, apreensiva, daquela casta de gênios os mais felizes e os mais infelizes, vai sofrendo em silêncio suas mágoas enquanto os outros irmãos rolam nas futilidades. Vamos a trabalhar, vamos mostrar, sem os atavios da eloqüência mas com a razão e com os exemplos, os males incalculáveis da impunidade e das calúnias da imprensa. (Principia a escrever; ouve passos na biblioteca) Quem está aí? Minha tia já veio do baile, ou chegam agora?
ANGÉLICA (Dentro) – Sou eu, meu primo, que procuro um livro. Não dá licença?
FIRMINO – Coitadinha! (Para Angélica) Que livro quer, que eu lho vou dar? (Levanta-se e vai à porta) Prima Angélica, não faça imprudências; ler a esta hora?!
ANGÉLICA (Dentro) – Não se incomode, já o achei; aqui está.
Cena II
editarANGÉLICA e FIRMINO
ANGÉLICA – O meu favorito, Werther, que sublime obra!
FIRMINO – Werther! Werther sublime para vós?! Como é possível casar a fantasia de uma virgem com a de um insensato, que progressivamente se vai amortalhando em vida com o negro fel que lhe insufla o gênio do mal, para destruir uma existência que só pertence a Deus? Que idéias são essas, minha prima? A rosa não parece mais bela e mais odorosa quando vegeta num vaso de alabastro do que na sepultura de um finado?
ANGÉLICA – Eu não simpatizo com Werther, mas sim com o seu imortal autor. Decerto que a alma de Goethe se achava contristada no apogeu da dor quando debuxou este lúgubre painel (Mostrando o livro). A rosa que vegeta entre ciprestes, que se emaranha por entre túmulos, acaso perde o seu aroma e a sua beleza? Porventura achais uma profanação do sublime o perfume que derrama a flor sobre a campa da inocência? Não será esse perfume uma espécie de substituição às penas da vida mundana, um hino da poesia da natureza, um retrato daquela alma que vagou entre nós e que desperta uma saudade, um suspiro no semblante melancólico e contemplativo de outra vítima, que desperta mesmo um sorriso, que salpica em suas faces esse toque sublime do pincel da natureza, quando retrata os extremos? Primo, bem vos conheço; acaso não tenho lido as vossas produções e seguido vossa alma nos vôos ardentes do entusiasmo, acompanhado no mundo e nos céus a abalada do vosso gênio?
FIRMINO – Se me conheceis, basta. Mas só vos direi uma coisa: as aparências não são sempre realidades. O mundo interno do coração é mui diverso daquele em que vivemos.
ANGÉLICA – É isso mesmo que eu vos queria dizer. O vosso frio envoltório é denunciado por essas páginas vulcânicas com que cada dia mimoseias a pátria com o pseudônimo de Brasílio Elísio.
FIRMINO – Minha prima, como soubestes esse segredo, que só eu e meu livreiro sabemos, e mais meu tio?...
ANGÉLICA – E eu, que o adivinhei, e arranquei-o de meu pai.
FIRMINO – Mas sabeis que ele importa uma vitória ou uma desgraça?!
ANGÉLICA – Apesar de mulher, tenho um túmulo para guardar o que devo. Ai... ando tão fraca (Senta-se perto da janela, olhando para o mar), a vida me parece um fardo pesado. Como o reflexo da lua pinta sobre as ondas de um combate de serpentes de fogo, e como o mar se estende tão suave que parece um chamalote de azul e prata! Como as montanhas de Niterói se ocultam no mistério da noite! Esta hora, primo, é esposa da meditação. Vossa imaginação deve inflamar-se à vista da sublimidade desta baía, vós que vistes toda a Europa, que sois poeta, que sois filósofo...
FIRMINO – Médico, médico nesta terra; um mau médico, se quiserdes.
ANGÉLICA – Cirurgião, cirurgião, para mim: médico... duvido.
FIRMINO – E por quê? Pois ainda há pouco me dizíeis...
ANGÉLICA – Que tínheis talento, imaginação, entusiasmo, amor da pátria... Mas a medicina tem alguma coisa de mais sublime ainda, alguma coisa de divino, e que está muito acima do estudo das escolas. A medicina deve ter sempre duas boticas, uma em casa do farmacêutico e outra na alma do médico. Os médicos gostam muito da primeira, e eu acho que a segunda pode operar curas muito mais milagrosas.
FIRMINO – Tendes muita razão, mas, para obtê-la, não bastam as cãs e o estudo dos livros. É necessário uma longa prática, ou ter nascido para decifrar esses mistérios que encobrem a palidez do rosto e a magreza das formas. As mágoas são um verdadeiro proteu do nosso físico. Efeitos materiais, causas misteriosas, véu de dissimulação, aparências ocultando realidades, eis o mundo... Mas nesta regra geral há honrosas exceções. Ainda se encontra a verdade.
ANGÉLICA – E infeliz da humanidade, se assim não fosse. Há outra casta de médicos ainda, que curam radicalmente muitos males: eles aplicam à alma um bálsamo consolador e a guiam para essa senda divina que não acaba neste mundo. Quando a vida se converte em trevas, e erra a esperança no centro de uma caverna escura; quando os passos da insensibilidade e a celeuma da indiferença fazem o círculo da existência, a religião é o único remédio, e a morte, a verdadeira felicidade. Homens de espírito conheço eu de perto, com brilhantes ademãs, mas com uma imaginação que lhes destrói a estrada do coração.
FIRMINO – Engano! A razão... (Sorrindo-se com ironia) Entendo perfeitamente. Ora bem. Se eu pedir-vos que depositeis em vossos lábios esse coração atormentado por um suplício oculto; se o vosso médico, porque o sou, vos rogar que com toda a singeleza...
ANGÉLICA – Uma estrela nebulosa cintila em minha alma, e seus pálidos raios perdem-se na escuridão do futuro... Ah! que se um astro benéfico me derramasse aqui outra torrente de luz, quanto seria eu feliz!
FIRMINO – Angélica, desconfiais do vosso médico e dais armas, ao mesmo tempo, para combater vitoriosamente todos os vossos ditames. Seja como for, desprezai o médico e substituí-o pelo parente ou pelo amigo.
ANGÉLICA – Sois meu amigo? (Levanta-se precipitadamente) Dizei-me outra vez essa palavra, que encerra uma idéia tão sublime quanto rara.
FIRMINO – Por que duvidais?! Quando à aliança do sangue vem a do coração unir-se com as suas homenagens sagradas, a amizade toma esse caráter augusto que beatifica a existência. (Olha para ela fixamente) Angélica, de duas coisas uma: ou vossa imaginação é o algoz de vossa vida, ou um grande combate se trava em vossa alma. Tendes um amor secreto que vos atormenta, ou uma dessas ilusões romanescas que esvoaçam na mente de algumas donzelas e se emaranham em outras ilusões... Vós amais.
ANGÉLICA (Perturbada um tanto) – Algum saltimbanco da moda, algum espartilhado... não é assim, meu primo e senhor doutor?
FIRMINO – Longe a dissimulação feminina. Muito tenho visto e muito observado. Teoria e experiência tenho do mundo, e a minha penetração leu agora em vossos olhos, em vossas palavras, o interior do coração.
ANGÉLICA – Se a vossa ciência é tão sublime, escusado é interrogar-me.
FIRMINO – A fisionomia representa a alma, como a sombra de um corpo ao clarão do archote, mas não distingue as cores e as particularidades do objeto que se pinta na parede.
ANGÉLICA – Resquício que não recebe o clarão da verdade, centelha da vaidade humana. A sombra não é o objeto: nas formas e no colorido está a alma da pintura.
FIRMINO – Mas a sombra acompanha todos os movimentos do corpo, assim como a fisionomia os da alma. Basta de imagens. Dizei-me francamente: por que vos desagrada o futuro? Não é ele fluente e risonho para os sonhos de vossas esperanças?
ANGÉLICA – Não.
FIRMINO – Não! E por quê?...
ANGÉLICA – Chegou minha mãe... Vou recebê-la.
FIRMINO – Acabai, senhora.
ANGÉLICA – É cedo; mais tarde o sabereis, sem ser de mim.
FIRMINO – Quem prolonga a esperança, nela morre. (Senta-se à banca e Angélica retira-se. Prepara-se para escrever) Eu hei de descobrir este segredo, é do meu dever. (Ouve vozeria e o rodar de uma berlinda) Aí chegou minha tia, e para cá se dirigem.
Cena III
editarFIRMINO, DONA CLARA, CÂNDIDA e GUSTAVO
DONA CLARA – Como vimos luz no seu quarto, para cá nos dirigimos. Então, doutor, ainda se estuda a estas horas?
FIRMINO – A noite está belíssima, e vosmecês vieram muito cedo. Então, Candinha, belas modas, bons refrescos, boa música, boa companhia... e muito cansaço, naturalmente.
CÂNDIDA – Estou que não posso. Sete valsas e dez contradanças! A última e o galope geral mataram-me. O doutor Leiria valsa divinamente; foi meu par efetivo, e hoje ninguém nos levou a palma.
GUSTAVO – E eu então que figura fiz no baile? Porventura aonde estou eu alguém põe pé adiante? Fora, senhora pachola.
DONA CLARA – Cala-te, Gustavo, já começas.
GUSTAVO – Eu estou calado desde que entrei, mas não posso aturar gabolices, nem ouvir a senhora pacholar, tendo dançado com me um gafanhoto engravatado.
DONA CLARA – Cala-te, já te disse. Cândida, é preciso moderar isso, porque nesta terra basta um moço dançar três vezes com uma menina para já se improvisar um romance, ou casamento. E se acaso for uma noite tomar chá em casa dos pais... os mosquitos se transformam em elefantes, e surgem cenas aí mui desagradáveis. As meninas de hoje, quando vão aos bailes, não fazem reflexões. Estas danças de agora são terríveis. No meu tempo havia o minuete da corte, o afandangado, a gavota, mas hoje...
FIRMINO – Debaixo da zona tórrida valsa-se como lá na Alemanha ou na Rússia, e finalmente veio a galopada, que mais parece uma bacanal do que um deleite para o corpo.
CÂNDIDA – A dona Leonor diz que dá um ano de vida por uma noite de baile. É uma senhora de muito vivo espírito.
GUSTAVO – Apoiadíssimo.
DONA CLARA – Essa é como boneca de cabeleireiro, que se enfeita numa hora para andar à roda o resto do dia.
FIRMINO – Bravíssimo, minha tia. É das tais que têm a cabeça de pião e trazem corrupio no juízo.
GUSTAVO – Não apoiado, retire a expressão.
CÂNDIDA – Ande lá, senhor doutor, que vosmecê também é tão bom como os outros: à vista, muitas amabilidades, e na ausência, sátiras a centos. (Senta-se)
DONA CLARA – Firmino não é como Jerônimo e os outros.
CÂNDIDA – Aquele monstro, que durante a cantoria de d. Ana levou a coçar as orelhas e a dizer, em voz inteligível, "maçada, maçada" e logo que ela saiu do piano, foi ao seu encontro ao meio da sala, batendo palmas e rendendo-lhe mil finezas.
DONA CLARA – Sirva-te isso de lição, porque estes bonecos da moda calçam todos pela mesma forma.
GUSTAVO – Não há homem mais desgraçado no universo do que eu.
DONA CLARA – Não eras tu desgraçado há pouco.
GUSTAVO – Se soubesse o que se fazia no outro mundo, matava-me agora mesmo. Agora é que eu dou todo o peso àquelas terríveis palavras...
FIRMINO – Pelo que vejo, o motivo é gravíssimo.
GUSTAVO (Chorando) – O mais grave que há no universo inteiro. (Atira com o chapéu de pasta no chão) Assim pudesse eu vingar-me.
DONA CLARA – Claro está que o não ganhaste com o teu suor.
GUSTAVO – Minha mãe, vosmecê não sabe os motivos secretos que tenho para conspirar-me contra o universo inteiro, e até contra mim mesmo. Mas eu já jurei, e quando juro... antes quebrar que torcer, como diz o primo.
DONA CLARA – Mas o ano passado juraste de estudar, e nada de novo, segundo penso.
GUSTAVO – Isto agora é matéria séria, coisa muito grave, não são bagatelas de livros. Veja, meu primo, se eu tenho razão do conspirar-me contra o universo e contra mim mesmo. Estava assim, (Figura a sua posição em uma contradança francesa) não sei se me entende, com o meu par à direita... Vem cá, Candinha, para eu melhor figurar a posição. Vem cá, não me desesperes.
CÂNDIDA – Pois o primo não sabe o que é uma contradança?
GUSTAVO – Este é dos que foram à Europa e veio pior do que foi. Não sei o que lá foi fazer. Nem já dança o ril, anda à jarreta como um ginja.
DONA CLARA – Logo que um moço sério se afasta aí do biquinho virado, da correntinha ou outra qualquer coisinha, já é uma jarreta e entra na classe dos inválidos.
GUSTAVO – Os moços que se casam com os livros dão baixa no livro mestre do bom-tom. Ficam estúpidos e ignorantes das delícias da bela sociedade. Se o primo soubesse o que era uma contradança, mandava toda esta tarecada de livros e instrumentos para a casa do belchior e não perdia um só baile.
FIRMINO – Tendes toda a razão. A folhinha das bagatelas não me serve de calendário. Já dancei em outros tempos, e ainda dançarei quando houver falta de gente, porém hoje subiu-me o talento das pernas para a cabeça, e cuido em vez de saltinhar.
DONA CLARA – Firmino, não te ocupes com esse tolo, que não sabe o que diz. Ora, teu tio está tardando. Quando vamos em duas seges é sempre isto, e fica-me com a chave de cima.
FIRMINO – Enquanto ele não vem, ouçamos meu primo.
GUSTAVO – Muito bem. Vem cá, Candinha.
CÂNDIDA – Deixa-me, que estou morta com um calo.
GUSTAVO – Sapatos pequenos não fazem o pé pequeno. Se fosse o... o... saltava como um tico-tico.
DONA CLARA – Já começas com os teus despropósitos?
GUSTAVO – Pois sem ele, eu já lhes mostro. Afastem-se. (Põe-se em atitude de dança) En avant seul, grita o mestre-sala. O Belmiro rompe o passo, (Canta) “volta à esquerda, volta à direita... um, dois, três...” assim com um encadeamento de tercinas batidas; “balancê – volta; aos seus lugares”. Eu, que queria metê-lo no chinelo, principio o meu solo por um encadeamento de quartas batidas para todos os lados, e eis que, pirueteando para com graça dar a mão ao meu par, cai-me o sapato e rebentam-se os suspensórios. Ah, todo o fogo do inferno subiu-me à cabeça; moças, cadeiras, vasos, sofás, tudo se transformou em vagalumes... tremeram-me tanto as pernas que de repente fiquei petrificado, fiquei imóvel, imóvel... como... imóvel como um macaco pintado. (Gargalhada geral) Não se riam da minha dor, nem me desesperem.
DONA CLARA – A comparação que procuraste é que faz rir.
GUSTAVO – Pois então não falemos mais nela. Primo, a coragem é das almas nobres! Continuo a dançar, sem o sapato, bem entendido, pois que o galope geral o enviou para o palácio de algum rato. Felizmente a meia era nova, não tinha dias-santos, e na confusão geral safei-me, apesar de estar “enganjado” com D. Zoé do Beco dos Aflitos, e...
DONA CLARA – Mas eu te vi até nos virmos embora! E como estás tu calçado?
GUSTAVO – Esta minha cachola, esta minha cabeça é um tesouro que não troco por nada deste mundo. Não há dia em que eu não fique admirado, embasbacado das lembranças que eu mesmo tenho!... Idéia de mestre: chego à porta, grito pela sege, grito segunda vez, grito terceira, nem pajem nem boleeiro... Desesperado, tiro a meia de seda, corro à porta de um sapateiro, de dois, e ninguém me quer vender um sapato, pagando eu o valor do par todo; respondem-me que não vendiam um sapato.
FIRMINO – E por que não lhe comprava o par, se lhes dava por um o preço de dois?
GUSTAVO – Porque não queria perder o que estava no pé. (Risadas) Mas achei um homem de bem. Entro-lhe na tenda, explico-lhe naquela hora a minha desventura, e quando procuro a meia na algibeira... achei-me mamado! (Risadas) Não se riam de um caso tão sério... Compro-lhe as meias da mulher, e para isso empenhei o meu botão de brilhantes.
DONA CLARA – Doido! E tu conheces esse homem?
GUSTAVO – Homem que trabalha àquelas horas é homem de bem. Volto ao baile, e dona Zoé diz-me mui secamente: “Um cavalheiro que abandona a sua dama, e a priva de dançar, não é homem de bom-tom.” (Gargalhadas) Não se riam da minha dor. O meu plano está feito: hei de amarrar doravante os sapatos com fio sutilíssimo de seda e pôr suspensórios elásticos, para me não expor a outro escândalo, antes que vá para a Europa gozar das delícias lá de Paris.
DONA CLARA – Para a Europa! Como? Quando? E que vais fazer?!
GUSTAVO – O que vou fazer?! Ser diplomata.
DONA CLARA – Pois que estudos tens tu para isso?
GUSTAVO – Tenho tudo o que é preciso: um bom empenho, sei dançar, trajo à moda e arranho o meu francês.
FIRMINO – Ótimo predicamento para o começo, mas falta-lhe o principal.
GUSTAVO – O mais eu aprenderei com a prática e com o tempo.
FIRMINO – São dois grandes mestres, é verdade, mas um bom diplomata de ar profético e olhar misterioso tem muito que estudar.
DONA CLARA – E quem é teu padrinho?
GUSTAVO – O deputado Gregório, que inda ontem me disse que não dava o seu voto no orçamento dos estrangeiros se eu não fosse despachado agora para Paris. A única condição que ele me impõe é que eu não falhe um só paquete de lhe mandar os figurinos das últimas modas.
DONA CLARA – Mas esse bonequinho de modas nunca fala!... Não te fies em cupidos velhos, porque Gregório é...
FIRMINO – É um Cícero num parlamento de mudos. Excelente, excelente: dá o seu voto, não fala, não rouba tempo, deixa trabalhar e evita dizer asneiras em público.
GUSTAVO – Fala-se agora de reformas, de mudanças, e como tenho o meu padrinho, vou batizar-me.
FIRMINO – Na pia do tesouro nacional, e abrir assentamento na folha dos ordenados.
GUSTAVO – Ailurui! Se eu soubesse bem francês, ia de secretário, ou talvez subisse mais um furo. Quando o empenho é bom, tudo são asas...
DONA CLARA – Estes rapazes de hoje, mal sabem ler, já se cuidam aptos para todos os altos empregos. Logo que um ministro severo os manda bugiar, ei-los engrossando as fileiras dos agitadores...
FIRMINO – Ou vão escrever folhas incendiárias. Substituem o raciocínio pela declamação, os argumentos por libelos e erguem o pelourinho da infâmia, aonde o sacrário das famílias é despedaçado e a honra do cidadão espicaçada a golpes de calúnia; e no publicar de suas orgias zombam de tudo... Mas o nosso Gustavo está livre disso, porque ele aborrece escrever.
GUSTAVO – Para dizer nuas e cruas, não é preciso ir a Coimbra.
DONA CLARA – Valha-me Deus com teu tio. Ficou amarrado em alguma premissa de voltarete, e nos faz esperar aqui. Ainda é bom o termos tido esta comédia.
GUSTAVO – Ah, se me pilho com uma fardinha bordada, e se danço uma contradança em Paris... posso morrer, porque vou direitinho para o céu. O meio de me conservar por lá é que é um pouco difícil, segundo ouço dizer; mas enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
FIRMINO – Não há nada mais fácil do que isso. Com uma pequena esperteza por lá se fica muitos anos, e até se adquire nome de literato. Pode-se chegar à fama de uma notabilidade e, no meio de tudo, de todos os prazeres, até enriquecer.
GUSTAVO – Que está dizendo, meu primo!
DONA CLARA – Ora, desejava ver isso em pratos limpos. E teu tio ainda não chega.
FIRMINO – Pois eu a satisfaço em duas palavras. Grudado o homem a um dos alcatruzes da nora parlamentar, fazendo parte da cauda elástica e vacilante dos candidatos perpétuos dos seis escabelos, constituído um realejo de amizades, uma máquina de entusiasmo, um mourão do andaime, uma trolha para todos os emboços, um verdadeiro sino pronto a repicar e dobrar a todas as vitórias e revezes, o caminho da prosperidade aplana-se, é a vida um jardim de flores. Quantos cepos de carniceiro, à força de serem lavados em águas turvas, de mau pau que eram, se transformaram em ouro puríssimo, que é o do quilate milionário!
DONA CLARA – Para um simples adido não precisa de uma cartilha tão longa.
FIRMINO – É verdade que abrangi as alturas da questão, mas foi porque tenho sempre em vista que o romano que toma prima tonsura está na estrada da púrpura, e pode intentar um santo assalto à majestade da tiara.
GUSTAVO – Para minha mãe tudo são dúvidas. Gosto desta gente que vê tudo em ponto pequeno. Eu cá não tenho medo de nada. Acabe, acabe meu primo, com esse seu belo discurso, e reduza-me tudo isso a cobres miúdos. Diga-me como pode esta pessoinha (Apontando para si) chegar a ser rico, e passar por um literato de muita ronha. Gosto desta palavra, “ronha”: é sonora, brilhante e respeitável... Vamos, simplifique-nos tudo isso.
FIRMINO – Quem sabe se isto cansa a minha tia?
DONA CLARA – Pelo contrário, é uma fortuna. Teu tio nos prendeu aqui e tem consigo as chaves dos nossos quartos. Continua, que nos dás prazer.
FIRMINO – Um meio simples e que quase sempre é coroado pela vitória nos países novos como este nosso, é escrever de lá a todas as influências, quer conhecidas quer desconhecidas. Cartas com um ar inspiratório, e nelas uns ressaibos de altas relações; um trecho, traduzido dos jornais, sobre a política do dia, e uma espécie de denúncia de idéias latentes da futura marcha dos negócios, segundo a interpretação dos mesmos jornais, mas dando tudo como coisa ouvida nas salas do parlamento.
DONA CLARA – Isso está muito escuro para Gustavo.
GUSTAVO – Está claro como a luz do dia; continue.
FIRMINO – Duas regrinhas acompanhadas de um folheto político, científico ou literário, dizendo que leu aquela obra e que não dá o seu parecer por submetê-la ao sagaz critério de Sua Excelência, cujos talentos, já conhecidos na Europa, lhe auguram um reto juízo. A outros mandam-se-lhes belas edições destes livros modernos que os pintores e gravadores escrevem e que são ilustrados por penas espirituosas, e recheados de arabescos e vinhetas, com soberba encadernação, com o que muito se decide do mérito da obra; e se lhes endereçam, rogando-lhes que aceitem semelhante lembrança como amadores das belas-artes e das letras. Sempre Excelência, e sempre com épico respeito; e quando se dirija a pessoa influente e sem instrução, deve vir a carta com letra pintada, em papel velino de primeira sorte, e abarrotada de palavras campanudas. Um bom calígrafo vence às vezes mais que um pensador. Nunca se devem desprezar, e deixar de empregar dez ou vinte vezes, os termos de protocolos, gabinetes, conferências, planos secretos de tais cortes, com o nome estrangeiro do palácio real; falar em santa aliança, propagandas, missões secretas, credenciais, notas reversivas, recredenciais, muito do Oriente, seitas, partidos, facções, asseclas do despotismo, sombra da inquisição, clubes, verdades do século, locomoções, reações de idealistas e muita economia política, que é a ciência da moda.
DONA CLARA – Isso é uma trovoada para Gustavo.
GUSTAVO – É um céu sereno; quero aprender tudo de cor.
FIRMINO – Ainda há mais um furo secreto, que é a compra de algum manuscrito, e dá-lo como seu. Bacon, que era mestre em letras e tretas, aconselha o plágio como caminho curto para o céu da glória contemporânea e, por conseqüência, breve para o inferno da posteridade.
GUSTAVO – Que me importa bem o que acontecerá depois da minha morte? Tenha eu prazer, role em belas carruagens. Cara de defunto não tem nojo de escarros.
DONA CLARA – Ótimo pensar! E ele não é só. De que te serve toda esta turbulência, este desejo, se tu nunca poderás arranjar essa patacoada com a habilidade de um nobre charlatão?
FIRMINO – Nem tudo o que luz é ouro. Em tempos nublados, os areais confundem-se ao longe com as campinas.
GUSTAVO – Bravíssimo, meu primo; escreva-me tudo isso num papel, para eu estudar na viagem. Em paga, vou cabalar para o senhor.
FIRMINO – Muito obrigado. A minha carreira está feita; tenho nobres ambições, é verdade, mas para ser útil à minha pátria não preciso das cabalas.
GUSTAVO – Olhe que, com os meus, somos capazes de passar três mil listas em uma noite. Não brinque com o segredinho.
FIRMINO – Não quero louros por semelhantes assaltos. Adoro o sol, nasci com natureza de pássaro. Os canais subterrâneos são contrários à minha natureza.
GUSTAVO – Pois a vosmecê nunca há de ser nada.
DONA CLARA – Pois tu também te envolves nestas coisas?
FIRMINO – Estes seguram na rede e sujam-se; os outros recolhem o peixe e engordam. A pérola nunca orna o colo do mergulhador, nem o diamante o dedo do mineiro. Meu primo, veja se em prêmio de seus serviços obtém um lugarzinho de adido, e, se algum dia for alguma coisa mais, trate de arranjar-se. Maré perdida, viagem atrasada.
GUSTAVO – Amanhã há de me dar uma nota dos livros onde se aprende tudo isso, e, se os têm aqui, emprestemos já.
FIRMINO – O livro de observação anda com o homem. É um patuá que engrossa com o tempo e que se compra muito caro.
GUSTAVO – Não entendo bem.
DONA CLARA – Estuda, estuda, é o que diz teu primo.
GUSTAVO – Nunca vi anunciar nos jornais obras sobre a ronha, se não tinha-as lido dia e noite. Ronha... oh! Se me chamassem ronha, que prazer! Ronha... que felicidade!
FIRMINO – Também serve, e serve de muito. Casada com a ambição, ensina a pedir uma demissão a tempo, com estrondo ou sem ele; ensina a quebrar para grudar com visgo mais forte; a encolher-se para dar o bote. Mas, para alcançá-la no último grau é necessário, além das disposições naturais, viver com a ampulheta do egoísmo na mão e saber enfiar-se por todos os orifícios da fieira de satanás.
GUSTAVO – Essa sua teoria está muito misteriosa.
DONA CLARA – Graças a Deus que chegou teu tio.
Cena IV
editarANTÔNIO, FIRMINO, GUSTAVO, DONA CLARA, CÂNDIDA e ANGÉLICA
GUSTAVO – Boas-noites, meus senhores e senhoras, até amanhã.
ANTÔNIO – Aonde vais com tanta fúria?
GUSTAVO – Vou pensar, vou estudar; tenho muito que pensar agora. (Vai-se)
ANTÔNIO – Chegaria alguma nova moda?... Ainda por aqui?
DONA CLARA – Estava à sua espera para me dar a chave. Angélica, por que não vais dormir, minha filha? Tu não és obrigada a esperar por teu pai.
ANGÉLICA – Estou muito melhor, estou quase boa.
ANTÔNIO – Doutor, é vossa obra esta cura maravilhosa. Depois que temos seguido as vossas observações, ela vai muito bem. (Para Angélica) Então, segundo o teu prognóstico, terás de ir cedo a alguma função ver as tuas amigas.
CÂNDIDA – Todas elas me perguntaram hoje pela saúde de Angélica.
ANGÉLICA – Agradeço. Se esses bailes estrondosos se acabassem, não me deixavam saudades!... Irei por acompanhar meus pais.
ANTÔNIO – Eu também, se os freqüento, é para evitar a boca do mundo, porque não faltarão epítetos para lhe coroarem a maledicência. Se escapo do partido dissipador, caio no partido sovina: ambos eles murmuram com igual razão... Mas, como as letras pagam-se à risca, os navios são velozes, a carga vendida e a prosperidade me acompanha, tudo vai bem.
FIRMINO – E este vosso século, que não indaga meios e só saúda a prosperidade...
ANTÔNIO – Já que a noite está perdida, tenho que vos dizer duas palavras, meu sobrinho. Senhora, aqui está a sua chave.
Todos – Boas-noites.
Cena V
editarANTÔNIO e FIRMINO
ANTÔNIO – Sentai-vos, quero ser lacônico. Sabeis que Angélica está contratada com o meu guarda-livros Arnaud. Consinto nesta aliança, porque este rapaz é um estrangeiro sem pai e quase sem pátria. Sabeis a sua história.
FIRMINO – Sim senhor.
ANTÔNIO – Sabeis que tenho outra filha e que desejo empregá-la o mais cedo possível. Ela já me tem sido solicitada muitas vezes, mas os pretendentes não me agradam. Desejo aumentar a minha família, mas não quero genros às minhas sopas. Firmino, sois um rapaz completo; amo-vos como meu filho e queria trocar o nome de sobrinho por este que me é mais caro, completando destarte um laço que será o mais grato para o resto da minha vida. Desejo que entreis na grande família para preencher a mais sublime missão do homem: o ser pai e cidadão honesto.
FIRMINO – Meu caro tio, os vossos desejos são ordens sagradas para mim, porque, depois de Deus, eu não conheço outro ente acima de vós. Mas se a vossa bondade, depois de tanta grandeza e de tanta generosidade, me permitisse uma pequena reflexão...
ANTÔNIO – O amor que vos consagro não permite que eu vos violente na mais pequena coisa. Se outra simpatia, se algum empenho antigo vos força a recusar a minha oferta, aceito a vossa escusa com o mesmo amor e com a mesma sinceridade de todo o passado.
FIRMINO – Nem uma nem outra coisa, senhor. O meu coração, até hoje, não tem tido outra paixão senão a do estudo. Os delírios da meditação, os encantos da natureza e a minha gratidão para convosco são as harmonias de minha alma. Mas há um contrato sagrado assinado por uma mão oculta, entre mim e a pátria, que me obriga a declarar-vos, por ora, uma repugnância total ao estado de casado. A parcela de liberdade sacrificada perante o altar no momento do consórcio é tão grande que ela me impediria a execução de um dever de cidadão, a missão de um filósofo e o complemento de um sonho de glória.
ANTÔNIO – Respeito todos os vossos desejos cada vez mais, porém todos os vossos votos serão realizados de uma maneira mais suave logo que na vossa vida não apareça a necessidade do pão. Os sonhos de um literato, quando são entrecortados pelas precisões...
FIRMINO – E vós, senhor, não me destes uma profissão tão nobre?
ANTÔNIO – Sim... Enfim, pela parte da discussão serei sempre vencido, porque tendes talentos brilhantes, mas este meu negocio é de coração, e o coração somente me pede que vos rogue para que sejais meu filho. Seria pior que a morte o ver-vos ausente de minha casa. Não descerei contente à sepultura se a vossa mão não me fechar as pálpebras. Quero conservar comigo o retrato de meu caro irmão física e moralmente, daquele irmão cujos talentos e virtudes fazem o meu orgulho, e que tu... (Soluça)
FIRMINO – Por piedade, senhor... por piedade, consolai-vos, (Levanta-se) enxugai esse pranto. Eu dou por uma lágrima vossa tudo o que tenho de mais caro, porque tudo vos devo. A minha vida, a minha liberdade, estão sujeitas à vossa vontade. Pronunciai, senhor, pronunciai o meu destino, que a tudo me submeto.
ANTÔNIO – Inda não é isso que eu desejo. Já triunfei do teu coração, mas quero de tua boca uma palavra que derrame o bálsamo sagrado e que cicatrize a chaga do meu coração.
FIRMINO – E que mais quereis, meu tio?
ANTÔNIO – Oh! não me chames assim...
FIRMINO – Meu pai... (Antônio o abraça e chora)
ANTÔNIO – Chama-me pai, chama-me pai sempre, que não há nada mais sonoro aos meus ouvidos, que não há nada mais grato ao meu coração. Sim, eu sou teu pai...
FIRMINO – Meu caro pai... (Ouve-se um grande ruído dentro e uma voz que imita tambores e trombetas)
ADOLFO (Dentro) – Levantem-se, mandriões, que ainda é cedo para se deitarem. Mandem-me fazer café, que venho cansado; quero água, quero uma cama e, depois, arranjem-se como quiserem.
ANTÔNIO – Esta voz é a do mano Adolfo... (Limpa as lágrimas)
FIRMINO – É ele que chegou da fazenda...
ANTÔNIO – Mano Adolfo, venha para cá e deixe sua mana dormir. Venha para cá...
ADOLFO (Dentro) – Espere lá, que já acordei tudo, e tudo lá vai comigo.
FIRMINO – Sempre jovial, sempre contente.
ANTÔNIO – É o temperamento mais feliz que se pode desejar.
Cena VI
editarANTÔNIO, FIRMINO, ADOLFO, DONA CLARA e ANGÉLICA
ADOLFO – Ora vivam, meus senhores. O que é isto? Vais ou vens de algum baile, porque te vejo em trajes de requife...
ANTÔNIO – Vim, e estava conversando com o nosso Firmino.
ADOLFO – Com o doutor Firmino, meu irmão. Ora toque, senhor doutor. (Firmino beija-lhe a mão) Então, como lhe vai de saúde e de interesses?
FIRMINO – De ambas as coisas, otimamente.
DONA CLARA – Seu mano, em pegando do gamão ou de uma conversinha, fica eternamente amarrado...
ANTÔNIO – Todos lá por casa estão [bem] de saúde?
ADOLFO – Todos, exceto eu, que estou moído como tinta de pintor. O macho ganhou novas manhas, e não volto mais nele.
ANTÔNIO – Então, o que vos trouxe à corte? Inda que mal pergunto.
ADOLFO – Venho fugindo das eleições. Se não tomo este expediente, fico mal com Deus e tenho o diabo por inimigo. São tantos os pretendentes, que era necessário uma câmara do tamanho do Campo de Santana para acomodar tanta gente. Todos alegam mil razões de arromba, planos capazes de confundir um Montesquieu. Fora as que deixei na fazenda, já recebi estas no caminho. (Mostra um maço de cartas em cada mão)
ANTÔNIO – Apre lá! A atividade é grande desta feita.
ADOLFO – Não se fala em outra coisa! E andam os homens tão desconfiados uns com os outros que já desapareceu aquela antiga urbanidade, aquela expansão franca do outro tempo. Tem-me dado na mania fingir-me maluco, para escapar desta praga interminável de chapas e cabalas.
FIRMINO – O futuro de nossa pátria depende de uma boa lei de eleições e mais nada. Destruída a estrada que dá ingresso à mediocridade, no panteão augusto só penetrarão os homens de probidade, de saber e, sobretudo, independentes.
ANTÔNIO – Mano Adolfo, eu quero que antes de dormir sejas sabedor da nova mais grata que pode haver para o meu coração: Firmino casa com a minha Cândida.
TODOS (Exceto Angélica) – Isso era de esperar...
DONA CLARA – Um abraço, meu filho... (Abraçam-se)
ADOLFO – Venha também, que muito estimo...
ANTÔNIO – Angélica, abraça teu novo irmão...
(Angélica chega-se a ele e quer abraçá-lo, mas desmaia)
DONA CLARA – O que é isto?
ANTÔNIO – Alegria... Os extremos tocam-se.
ADOLFO – Viva Santo Antônio! (Atira com as cartas e chapas pelo ar e pelo tablado fora) Fim do primeiro ato