Aguardando ainda, contrafeito, a próxima partida para o sertão, percorro — desconhecido e só — como um grego antigo nas ruas de Bizâncio as velhas ruas desta grande capital, num indagar persistente acerca de suas belas tradições e observando a sua feição interessante de cidade velha chegando, intacta quase, do passado a estes dias agitados.
E lamento que o objetivo capital e exclusivo desta viagem me impeça estudá-la melhor e transmitir as impressões recebidas.
Porque é realmente inevitável esta intercurrência de sensações extranhas e diversas, invadindo de modo irresistível o assunto e programa preestabelecidos.
Numa hora assaltam-me, às vezes, as mais desencontradas impressões.
Visitando, há pouco, o mosteiro de S. Bento, por exemplo, onde se acumulam agora os feridos que chegam, depois de atravessar por entre extensos renques de leitos contristadores, desci ao pavimento inferior.
Atravessei as naves extensas, cautelosamente, a passos calculados, olhos fixos no chão, procurando não pisar as lagens tumulares sobre as quais indiferentes pisam todos os devotos e onde se lêem, ainda, semi-apagadas pelo atrito persistente das botas, nomes entre os mais velhos da nossa história. — E despeando-me de todo do objetivo que me levara até ali — acurvado sobre as lousas que aparecem como palimpsestos de mármore mal descobertos memorando remotissimos dias, permaneci largo tempo, absorto.
Que transição enorme em cinco minutos apenas, nesse passar insensível e rápido, ao descer uma escada, de um presente agitado e ruidoso à penumbra silenciosa do passado indefinido...
Felizmente, proseguindo atingi insensivelmente a ampla portada e ao transpo-la, volvi, de chofre, ao presente.
Assomava, subindo em marcha forçada extensa ladeira e atingindo a praça de Castro Alves, numa irradiação de baionetas cintilantes, o 4º batalhão de infantaria. Vem de longe, do sul — é o ultimo que aguardamos.
Completam-se com ele vinte e cinco batalhões de linha, aos quais se adicionam os corpos policiais daqui, de S.Paulo, do Pará, do Amazonas e contingentes de artilharia e cavalaria.
Calculo com aproximação razoável em dez mil homens no minimo, a tropa que irá combater a rebeldia no sertão.
E diante dessa multidão armada, assombra-me mais do que os perigos naturais da guerra, a soma incalculável de esforços para alimentá-la através de regiões quase impraticáveis pelos, desnivelamentos bruscos das estradas que se aprumam nas serras e se estreitam em desfiladeiros extensos.
Um cálculo rapido mostra-nos que aquele minotauro de dez mil gargantas passará mal, jejuando quase, com cento e cinquenta sacas de farinha e duas toneladas de carne, por dia!
E isto excluindo gêneros alimenticios elementares que constituem um luxo ante as condições estritas da guerra.
Este fato exprime uma das condições mais sérias a difíceis da campanha: é o combate tenaz, inglório e assustador a um inimigo que morre e revive todos os dias, envolvendo nos mesmos transes amigos e adversários — a fome.
As condições naturais do terreno, dificultando um transporte rapido, criando toda a sorte de tropeços já determinaram mesmo, como é sabido, o aparecimento daquela no nosso exército. Já se passaram dias cruéis num desordenado apelar para todos os recursos que pode fornecer a região — vivendo as forças à mercê do acaso, de raizes de imbú, ou talos túmidos de seiva de mandacarús, ou caçando os bodes ariscos das chapadas, em monterias ousadas nas catingas.
Ora essa situação lamentável está apenas atenuada hoje e cada comboio que chega ilude-a somente por um dia.
Imagine-se agora a série de dificuldades que sobrevirão com maior acúmulo de homens.
Além de demoradas as marchas, a falta de cargueiros torna diminutíssimas as munições transportadas. Porque, devemos dizê-lo francamente, o que há além de Monte Santo e mesmo além de Queimadas, é o deserto na significação rigorosa do termo — árido, aspérrimo, despovoado.
As populações circumvizinhas dispersas, perderam-se longe, ocultando-se nas matas, povoando os mais afastados arraiais, abandonando casas e haveres, espavoridas ante o espantalho aterrador da guerra. E têm razão.
Impressiona vivamente a narrativa de viagem dos que tem vindo, livres no entanto das primitivas emboscadas, atravessando as estradas que irradiam de Monte Santo. Desdobram-se pelo sertão absolutamente vasias e monótonas.
Apenas num e noutro ponto como variante sinistra: por um requinte de perversidade satânica os jagunços dispuzeram em série nas duas bordas do caminho as ossadas dos mortos de anteriores expedições.
Dolmans, bonés, galões, talins, calças vermelhas rutilantes, amplos capotes, camisas em pedaços, selins e mantas, pendurados nos galhos das árvores, oscillam lugubremente sobre a cabeça do viajante que passa, aterrado, atravessando entre duas fileiras de caveiras adrede dispostas, infileiradas aos lados.
É um quadro pavoroso capaz de perturbar a alma mais robusta.
O malogrado coronel Tamarindo — um velho soldado jovial como havia poucos — foi reconhecido pela farda nesse cenário fantástico; sem cabeça, espetado num galho seco de angico e tendo sobre os ombros descarnados, pendido como num cabide, descendo-lhe pelo esqueleto abaixo, o dolman.
Toda a primeria coluna passou, assombrada, diante do espectro formidável do velho comandante.
Todas estas causas justificam o pânico indiscritível que lavra atualmente no sertão e o refluir desordenado de populações inteiras para os mais remotos pontos.
O exército agita-se agora num deserto de trinta léguas de raio e, é absolutamente necessário que a ação desta expedição — que será a última — seja rapida e fulminante a despeito de todos os sacrificios que se tornem necessários.
Creio que partimos afinal por estes dias. Ajuizarei então, in sitio, acerca do que até agora tenho sabido através de narrativas que nem sempre se ajustam nas mesmas conclusões.
E que aquela natureza selvagem, mas interessante, aquele recanto bárbaro da nossa terra, sob a atração persistente de seu aspecto ainda desconhecido, torne ligeiras e rápidas estas horas de saudade que não posso definir.