Salão de um hotel. Pequenas mesas com toalhas e talheres à direita e à esquerda; no centro uma mesa redonda preparada para quatro pessoas. É cerca de meia-noite.


CENA I

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PINHEIRO, HELENA E JOSÉ.

(José acaba de preparar a mesa, quando ouve-se parar um carro. Vai à janela do fundo. Entram Helena e Pinheiro.)

HELENA (a Pinheiro.) – Ainda não chegaram.

PINHEIRO – Não há tempo. José, prevenirás o Ribeiro, logo que ele chegue, de que estamos aqui.

JOSÉ – Sim, senhor.

HELENA (a José.) – O champagne já está gelado?

JOSÉ – Já deve estar. (A Pinheiro) Que outros vinhos há de querer, Sr. pinheiro?

PINHEIRO – Os melhores.

HELENA – Eu cá não bebo senão champagne.

PINHEIRO – Por espírito de imitação. Ouviu dizer que era o vinho predileto das grandes lorettes de Paris.

HELENA (com desdém.) – Não gosto de franceses.

PINHEIRO (sorrindo.) – Pois eu gosto bem das francesas.

HELENA – Faz bem! Nós é que temos a culpa! Se fôssemos como algumas que a ninguém tem amor!...

PINHEIRO – Qual! Santo de casa não faz milagres.

JOSÉ (a Pinheiro.) – Já viu uma dançarina que chegou pelo paquete?

PINHEIRO – A que está no hotel da Europa?

JOSÉ – Não; está aqui, no número 8.

HELENA – Alguém lhe pediu notícias dela?

JOSÉ (rindo.) – O Sr. Pinheiro gosta de andar ao fato dessas cousas.

(Continua a arrumar as mesas e sai. Pinheiro vai à janela e volta.)


CENA II

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PINHEIRO E HELENA.

HELENA – Como esteve maçante o teatro hoje!

PINHEIRO (sentando-se.) – Como sempre.

HELENA – Não sei que graça acham esses sujeitinhos na Stoltz! Não tem nada de bonita!

PINHEIRO – É prima-dona!

HELENA – Sabes quem deitou muito o óculo para mim? O Araújo.

PINHEIRO (rindo.) – Ah! Estará apaixonado por ti?

HELENA – E porque não! Outros melhores que ele tem se apaixonado!

PINHEIRO – Isso é verdade!

HELENA – Ah! já confessa!... Mas dizem que o Araújo agora está bem?

PINHEIRO – É guarda-livros de urna casa inglesa.

HELENA – Foi feliz; eu conheci o caixeiro de armarinho. (Pequena pausa.)

PINHEIRO – Escuta, Helena; tenho uma cousa a dizer-te.

HELENA – O quê?... Temos arrufos?...

PINHEIRO – Estou apaixonado pela Carolina.

HELENA (com enfado.) – Já me disseste.

PINHEIRO – Julgaste que era uma brincadeira! Mas é muito sério. Estou disposto a fazer tudo para conseguir que ela me ame!

HELENA – Por isso é que já não fazes caso de mim?

PINHEIRO – Ao contrário: é de ti que eu espero tudo.

HELENA – De mim?

PINHEIRO – Não me recusarás isto!

HELENA – Ah! Julgas que a minha paciência chega a este ponto?

PINHEIRO – Foste tu que protegeste o Ribeiro.

HELENA – Sim; mas o Ribeiro não era meu amante, como o Sr.!

PINHEIRO – Ora, deixa-te disso! Queres fazer de ciumenta! Que lembrança!...

HELENA – Não julgue os outros por si.

PINHEIRO – Olha! A Carolina gosta de mim e...

HELENA – E mais cedo ou mais tarde devo ceder-lhe o meu lugar?

PINHEIRO – Desde que nada perdes...

HELENA – É o que te parece.

PINHEIRO – Eu continuarei a ser o mesmo para ti.

HELENA – Cuidas que não tenho coração?

PINHEIRO – Se eu não soubesse como tu és boa e condescendente, não te pedia este favor.

HELENA – Está feito! Tu sempre me havias de deixar!... Antes assim!

PINHEIRO – Obrigado, Helena.

HELENA – Que queres que eu faça?

PINHEIRO – Eu te digo. Dei esta ceia ao Ribeiro unicamente para ver se consigo falar a Carolina.

HELENA – Ah! nunca lhe falaste?

PINHEIRO – Nunca; o Ribeiro não a deixa!

HELENA – É verdade; há dous anos que a tirou de casa e ainda gosta dela como no primeiro dia.

PINHEIRO – Posso contar contigo?

HELENA – Já te prometi. Mas, vês esta pulseira? Foi o presente que me fez o Ribeiro. É de brilhantes!...

PINHEIRO – Eu te darei um adereço completo.

HELENA – Não paga o sacrifício, que eu te faço!... Esses homens pensam!... Se eles dizem que a gente é de mármore!

PINHEIRO – Falas hoje mesmo com ela a meu respeito?

HELENA – Falo... Falo!

PINHEIRO – Vê se consegues que deixe o Ribeiro.

HELENA – Fica descansado. Eu sei o que hei de fazer! Agora vai contar isto aos teus amigos para que eles zombem de mim.

PINHEIRO – Não sejas injusta!

CENA III

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OS MESMOS, JOSÉ, RIBEIRO E CAROLINA.

JOSÉ – Aí está o Sr. Ribeiro com uma senhora. Posso servir?

PINHEIRO – Podes.

HELENA – Ainda não. Espere um momento.

PINHEIRO – Para quê?

HELENA – Já te esqueceste?... Deve ser antes.

PINHEIRO – Ah! Sim!

RIBEIRO – Chegaram muito cedo.

HELENA – Saímos antes de acabar o espetáculo.

RIBEIRO – Não reparei. (A Pinheiro.) Quanto mais depressa cearmos, melhor.

PINHEIRO – A Favorita fez-te fome?

RIBEIRO – Alguma; mas além disso preciso recolher-me cedo.

CAROLINA – Pois eu previno-te que enquanto houver uma luz sobre a mesa e uma gota de vinho nos copos, não saio daqui. Tenho tantas vezes sonhado uma noite como esta, tenho esperado tanto por estas horas de prazer, que pretendo gozá-las até o último momento. Quero ver se a realidade corresponde à imaginação.

RIBEIRO – Está bem, Carolina; podes ficar o tempo que quiseres. Não te zangues por isso.

CAROLINA – Oh! Não me zango! Já estou habituada à vida triste a que me condenaste. Mas hoje...

HELENA – Então não vives satisfeita?

CAROLINA – Não vivo, não, Helena; sabes que me prometeram uma existência brilhante, e me fizeram entrever a felicidade que eu sonhava no meio do luxo, das festas, da riqueza! A ilusão se desvaneceu bem depressa.

RIBEIRO – Tu me ofendes com isto, Carolina.

CAROLINA – Cuidas que foi para me esconder dentro de uma casa, para olhar de longe o mundo sem poder gozá-lo, que eu abandonei meus pais? Que sou eu hoje?... Não tenho nem as minhas esperanças de moça, que já murcharam, nem a liberdade que eu sonhei.

RIBEIRO – Mas, Carolina, tu bem sabes que se eu te guardo para mim somente, se tenho ciúme do mundo, é porque te amo; sou avaro, confesso; sou avaro de um tesouro.

CAROLINA – Não entendo esses amores ocultos, que tem vergonha de se mostrarem; isto é bom para os velhos e os hipócritas. Amar é gozar da existência, a dois, é partilhar seus prazeres, sua felicidade. Que prazeres temos nós que vivemos aborrecidos um do outro? Que felicidade sentimos para darmo-nos mutuamente?

RIBEIRO – Estás hoje de mau humor.

CAROLINA – Ao contrário, estou contente! A vista destas luzes, destas flores, desta mesa, destes preparativos de ceia, me alegrou! É assim que eu compreendo o amor e a vida. Na companhia de alguns amigos, vendo o vinho espumar nos copos e sentindo o sangue ferver nas veias. Os olhares queimam como fogo; os seios palpitam, a alma bebe o prazer por todos os poros: pelos olhos, pelos sorrisos, nos perfumes, e nas palavras que se trocam!

HELENA – Bravo! Como estás romântica!

CAROLINA – Oh! Tu não fazes ideia! Meu espírito tem revoado tantas vezes em torno dessa esperança, que vendo-a prestes a realizar-se, quase enlouqueço. Outrora dei por ela a minha inocência; hoje daria a minha vida inteira! (Senta-se. Ribeiro e Pinheiro conversam à parte.)

HELENA (chegando-se a ela, baixo.) – Pois olha! Tens o que desejas bem perto de ti.

CAROLINA – Não te entendo.

HELENA – Deixa-te ficar e verás.

CAROLINA – Mas escuta!

HELENA – Depois; não percas tempo.

CAROLINA (suspirando.) – Já perdi dois anos!

RIBEIRO (chegando-se.) – Foste injusta comigo, Carolina. Não acreditas que eu te amo, ou já não me amas talvez! Confessa!

CAROLINA (com indiferença.) – Não sei.

RIBEIRO – Dize francamente.

CAROLINA – Como está quente a noite! Abre aquela janela.

(Ribeiro vai abrir a janela do fundo; Helena, que falava baixo a Pinheiro, dirige-se a ele, e ambos conversam recostados à grade e voltados para a rua.)


CENA IV

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CAROLINA E PINHEIRO.

PINHEIRO – Eu lhe agradeço, Carolina.

CAROLINA (admirada.) – O quê, Sr. Pinheiro?

PINHEIRO – A satisfação que me causaram suas palavras. Não pensava, dando esta ceia, que ia realizar um desejo seu.

CAROLINA (sorrindo.) – Ah! é verdade! Mas sou eu então que lhe devo agradecer.

PINHEIRO – Faça antes outra cousa.

CAROLINA – O quê?

PINHEIRO – Faça que o acaso se torne uma realidade; que esta noite de esperança se transforme em anos de felicidade! Aceite o meu amor!

CAROLINA (rindo.) – Para fazer o que dele?

PINHEIRO (idem.) – O que quiser: contanto que me ame um pouco. Sim?

CAROLINA – Não.

PINHEIRO – Por quê?

CAROLINA – Amor por amor já tenho um; e este ao menos é o primeiro.

PINHEIRO – O meu será o segundo e eu procurarei torná-lo tão belo, tão ardente, que não tenha inveja do primeiro.

CAROLINA – Já me iludiram uma vez essas promessas quando eu ainda via o mundo com os olhos de menina, hoje não creio mais nelas.

PINHEIRO – Não tem razão.

CAROLINA – Oh! se tenho! O senhor diz agora que me ama por mim, para fazer-me feliz, para satisfazer os meus desejos, os meus caprichos, as minhas fantasias. Se eu acreditasse nessas belas palavras, sabe o que aconteceria?

PINHEIRO – Me daria a ventura!

CAROLINA – Sim, mas ficaria o que sou. No momento em que lhe pertencesse, tornar-me-ia um traste, um objeto de luxo; em vez de viver para mim, seria eu que viveria para obedecer às suas vontades. Não no dia em que a escrava deixar o seu primeiro senhor, será para reaver a liberdade perdida.

PINHEIRO – Não é livre então? Não pode amar aquele que preferir?

CAROLINA – Para uma mulher ser livre é necessário que ela despreze bastante a sociedade para não se importar com as suas leis; ou que a sociedade a despreze tanto que não faça caso de suas ações. Eu não posso ainda repelir essa sociedade em cujo seio vive minha família; há alguns corações que sofreriam com a vergonha da minha existência e com a triste celebridade do meu nome. É preciso sofrer até o dia em que me sinta com bastante coragem para quebrar esses últimos laços que me prendem. Nesse dia se houver um homem que me ame e me ofereça a sua vida, eu a aceitarei; porém como senhora.

PINHEIRO – E por que este dia não será hoje? Diga uma palavra! uma só...

CAROLINA – Hoje?... (Sorrindo.) Não!... Talvez amanhã.

PINHEIRO – Promete?...

CAROLINA – Não prometo nada. Vamos cear. (Erguendo-se.) Anda Helena! Ribeiro!... Deixem-se de conversar agora.

PINHEIRO – José, serve-nos.

(Meneses entra pela esquerda e senta-se do mesmo lado a uma das mesas.)


CENA V

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OS MESMOS, RIBEIRO, HELENA E MENESES.

RIBEIRO – É mais de meia-noite.

HELENA – Um dia não são dias, Sr. Ribeiro; amanhã dorme-se até às duas horas da tarde.

CAROLINA – Justamente as horas que eu passo mais aborrecida.

(Ribeiro vai cumprimentar Meneses.)

HELENA (baixo à Carolina.) – Tu me pareces outra. Achaste o que procuravas?

CAROLINA (sorrindo.) – Ainda não.

HELENA – És difícil de contentar.

PINHEIRO – Adeus, Meneses; queres cear conosco?

MENESES – Muito obrigado.

PINHEIRO – Não faças cerimônia.

MENESES – Tu é que estás usando de etiquetas. Onde viste convidar um quinto parceiro para jogar uma partida de voltarete?

RIBEIRO – Ah! É por isso que não aceitas?

MENESES – Decerto! Nesta espécie de ceias, a regra é nem menos de dois, nem mais de quatro; um quinto transtorna a conta, a menos que não seja um zero. Ora eu não gosto de ser nem importuno, nem... Vieirinha!...

PINHEIRO (rindo.) – Deixa-te disso; vem cear.

MENESES – É escusado insistires.

RIBEIRO – Pois não sabes o que perdes.

MENESES – Não; mas sei quanto ganho.

(Pinheiro dirige-se à mesa; é o tempo que Luís e Araújo entram pela esquerda, e vão à mesa da direita fronteira a Meneses.)


CENA VI

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OS MESMOS, LUÍS, ARAÚJO E JOSÉ.

PINHEIRO – Podemos ir nos sentando.

ARAÚJO (entrando, a Luís.) – Tu não és capaz de adivinhar quem eu vi esta noite no teatro.

LUÍS – Alguma tua apaixonada.

ARAÚJO – Não tenho... Uma pessoa que te fez bastante mal...

LUÍS – Quem?

ARAÚJO – Lembras-te daquela mulher, que mandava fazer costuras... (Vendo Carolina aperta o braço de Luís) Oh!

LUÍS (voltando-se.) – Ela!...

ARAÚJO – Não vai fazer alguma estralada. Finge que não a vês; é o melhor. (Senta-se.)

LUÍS – Adeus! Não posso ficar aqui.

ARAÚJO – Deixa-te disso, Luís. Nada de fraquezas!

LUÍS – Mas a sua presença é uma tortura.

ARAÚJO – Come alguma cousa: é o melhor calmante para as dores morais. Tenho estudado a fundo a fisiologia das paixões e estou convencido que o coração está no estômago, quando não está na algibeira. (Levanta-se para ir a um aparador cheio de comidas.)

MENESES – Araújo!

ARAÚJO – Oh! Não te tinha visto.

MENESES – Estiveste no teatro?

ARAÚJO – Estive?

MENESES – Que tal correu a Favorita?

ARAÚJO – Bem; por que não foste?

MENESES – Tinha uma partida a que não podia faltar.

PINHEIRO (na mesa.) – Anda mais depressa, José!

JOSÉ (entrando com um prato.) – Pronto! Uma mayonnaise soberba!

HELENA – De quê?

JOSÉ – De salmão.

(Durante este último diálogo, Carolina tira as luvas e o bornou e vai deitar no sofá à direita; Luís ergue-se. O trecho seguinte da cena é dito à meia voz.)

CAROLINA – Luís!

LUÍS – Silêncio!

CAROLINA (suplicante.) – Não me quer falar? meu primo?

LUÍS – Com que direito os lábios vendidos profanam o nome do homem honesto que deve a posição que tem ao seu trabalho? Com que direito a moça perdida quer lançar a sua vergonha sobre aqueles que ela abandonou?

CAROLINA – Não me despreze, Luís!

LUÍS – Não a conheço.

CAROLINA – Tem razão! Esqueci-me que estou só neste mundo; que não me resta mais nem pai, nem mãe, nem parentes, nem família. O senhor, veio lembrar-me! Obrigada.

LUÍS – Minha prima!

CAROLINA (com desdém.) – Sua prima morreu! (Volta-lhe as costas.)

HELENA (da mesa.) – Vem, Carolina!

RIBEIRO (chegando-se.) – Quem é este moço com quem conversavas?

CAROLINA – Não sei.

RIBEIRO – Não o conheces?

CAROLINA – Nunca o vi.

RIBEIRO – Mas falavas com ele!

CAROLINA – Pedia-me notícias de uma amiga minha que já é morta.

RIBEIRO – Não estejas com estas ideias tristes. Anda; estão nós esperando.

ARAÚJO – José, traz-nos alguma cousa. (Volta ao lugar.)

JOSÉ – O que há de ser?

ARAÚJO – O que vier mais depressa.

MENESES – E a mim, quanto tempo queres fazer esperar?

JOSÉ – O que deseja, Sr. Meneses?

MENESES – Desejo o que tu não tens; dize-me antes o que há.

JOSÉ – Quer uma costeleta de carneiro?

MENESES – Vá feito.

ARAÚJO (a Luís.) – Sabes do que me estou lembrando? Daquelas noites em que ceávamos juntos na Águia de Prata há dois anos, quando tu me falavas do teu amor. Naquele tempo não tínhamos dinheiro, nem frequentávamos os hotéis. Eras compositor e eu caixeiro de armarinho na rua do Hospício.

LUÍS – E hoje somos mais felizes? Adquirimos uma posição bonita, que muitos invejam, mas perdemos tantas esperanças que naquele tempo nos sorriam!

ARAÚJO – Já vais cair no sentimentalismo. A esta hora é perigoso.

LUÍS (rindo com esforço.) – Dizes bem! Há certas ocasiões em que é preciso rir para não chorar. (A José que serve Meneses.) Uma garrafa de cerveja.

JOSÉ – Preta ou branca?

ARAÚJO – Amarela!

(Entra Vieirinha.)


CENA VII

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OS MESMOS E VIEIRINHA.

VIEIRINHA – Oh! Só o Meneses não estaria por aqui!

MENESES – Sigo o teu exemplo.

VIEIRINHA – Não quiseste ir hoje ao Lírico?

MENESES – Tive que fazer.

VIEIRINHA – Pois esteve bom; havia muita moça bonita. A Elisa lá estava.

MENESES – Então já se sabe... Tiveste serviço?

VIEIRINHA (sorrindo.) – Não lhe dei corda; ocupei-me com outra pessoa... Mas esta tu não conheces.

MENESES – É nova?

VIEIRINHA – Negócio de quinze dias; porém já está adiantado.

MENESES – Ainda não te escreveu?

VIEIRINHA (alisando o bigode.) – És curioso!

PINHEIRO – Vieirinha! (Araújo escolhe um jornal no aparador.)

VIEIRINHA – Adeus, Pinheiro!... Mas como está isto florido!

PINHEIRO – Vem cear conosco.

VIEIRINHA – Aceito. Como estás, Ribeiro?

RIBEIRO – À tua saúde!

PINHEIRO – E dos teus novos amores.

VIEIRINHA – Quais?

MENESES – São tantos, que não se lembra!

ARAÚJO (passando, a Meneses, em meia voz.) – Quem é este conquistador?

MENESES – Nunca o viste?

ARAÚJO (chegando-se a Meneses.) – Não.

MENESES – Admira! É um desses sujeitos que vivem na firme convicção de que todas as mulheres o adoram; isto o consola do pouco caso que dele fazem os homens.

ARAÚJO – Então é um fátuo?

MENESES – Pois não! É um homem feliz; vai a um teatro e a um baile; acha bonita uma mulher, solteira, viúva, ou casada; persuade-se que ela o ama; e no dia seguinte com a maior boa fé revela esse segredo a alguns amigos bastante discretos para só contarem aos seus conhecidos.

ARAÚJO – E é nisso que se ocupam?

MENESES – Achas que é pouco!

VIEIRINHA – Uma saúde! Mas há de ser de virar.

HELENA – A quem?

VIEIRINHA – À mulher que compreende o amor.

CAROLINA – Pois eu bebo à mulher que compreende o prazer.

PINHEIRO – Bravo! Muito bem!

HELENA – Não bebe, Sr. Ribeiro?

RIBEIRO – Eu bebo à primeira saúde.

HELENA – E eu à segunda.

VIEIRINHA – E eu a ambas.

PINHEIRO – José, pede permissão a estes senhores para oferecer-lhes um copo de champagne. Espero que me façam o obséquio de acompanhar a nossa saúde. Vamos, Meneses!

MENESES – Qual é a saúde?

CAROLINA – À mulher que ama o prazer.

MENESES – Vá lá!

PINHEIRO – Os senhores não bebem?

ARAÚJO – Eu agradeço.

PINHEIRO – E o Sr. Viana?

LUÍS – Eu proponho outra saúde: “Ao prazer e àqueles que para gozá-lo sacrificam tudo!”

PINHEIRO – É a melhor!

LUÍS – E a mais verdadeira. Se os senhores me permitem, eu lhes contarei uma pequena história que os há de divertir.

VIEIRINHA – Com muito gosto.

MENESES – Venha a história.

LUÍS – O senhor pode aproveitá-la para um dos seus folhetins quando lhe falte matéria.

MENESES – Fica ao meu cuidado.

VIEIRINHA – Mas não a apliques a ti conforme o teu costume.

MENESES – Se for uma história de amor, está visto que hás de ser tu o meu herói.

LUÍS – É uma história de amor. Passou-se à dois anos.

PINHEIRO – Aqui na Corte?

LUÍS – Na Cidade Nova. Vivia então no seio de sua família uma moça pobre, mas honrada. Tinha dezoito anos; era linda... (a Ribeiro) como... como essa senhora que está a seu lado, Sr. Ribeiro.

RIBEIRO – Em que rua morava?

LUÍS – Não me lembro. Seu pai e sua mãe a adoravam; tinha um primo, pobre artista, que a amava loucamente.

CAROLINA – A amava?...

LUÍS – Sim, senhora. Era ela quem lhe dava a ambição; era esse amor que o animava no seu trabalho, e que o fazia adquirir uma instrução que depois o elevou muito acima do seu humilde nascimento. Mas sua prima o desprezou, para amar um moço rico e elegante.

ARAÚJO (baixo.) – Vás trair-te.

LUÍS – Não importa. (idem.)

PINHEIRO – Continue, Sr. Viana.

HELENA – Eu acho melhor que se faça uma saúde cantada.

VIEIRINHA – Com hipes e hurras.

CAROLINA – Por quê?... A história do senhor é tão bonita.

VIEIRINHA – Lá isso, não se pode negar! É um perfeito romance.

LUÍS – Uma noite, no momento em que esse moço entrava, sua prima seduzida por seu amante, ia deixar a casa de seus pais.

MENESES – Oh! Temos um lance dramático.

LUÍS – Não, senhor; passou-se tudo muito simplesmente. Ele disse algumas palavras severas à sua prima; esta desprezou suas palavras como tinha desprezado o seu amor, e... partiu.

VIEIRINHA – Como! O sujeito deixou-a partir?

LUÍS – É verdade.

CAROLINA (com ironia.) – E a amava!

MENESES – Era um homem prudente.

LUÍS – Era um homem que compreendia o prazer.

PINHEIRO – Não entendo.

LUÍS – Ele amava essa moça, mas não era amado; nunca obteria dela o menor favor e respeitava-a muito para pedi-lo. Lembrou-se que deixando-a fugir, chegaria o dia em que com algumas notas do banco compraria a afeição que não pôde alcançar em troca da sua vida.

ARAÚJO – Como podes mentir assim!

RIBEIRO – Não bebas tanto champagne, Carolina. Faz-te mal!

LUÍS – Esse homem compreendia o mundo, não é verdade?

VIEIRINHA – Era um grande político.

MENESES – Da tua escola.

LUÍS – Desde então ele tratou de ganhar dinheiro; precisava, não só para satisfazer o seu capricho, como para aliviar a miséria da família daquela moça, que com a sua loucura tinha lançado sua mãe em uma cama, e arrastado seu pai ao vício da embriaguez.

CAROLINA – Ah!...

RIBEIRO – Que tens?

CAROLINA – Uma dor que costumo sofrer! Dá-me vinho.

LUÍS – É justamente o que esse pai fazia. Sentia a dor da perda de sua filha e queria afogá-la com o vinho.

VIEIRINHA – Mau! A história começa a enternecer-me!

MENESES – É bem interessante!

CAROLINA – Mas falta-lhe o fim.

MENESES – Ah! tem um fim.

RIBEIRO – Carolina!

CAROLINA – Essa moça... Os senhores desejam talvez conhecê-la?

VIEIRINHA – Decerto.

CAROLINA – Sou eu!

PINHEIRO – A senhora!

LUÍS (a Araújo.) – Está perdida!

CAROLINA – Sou eu; e espero que chegue o dia em que possa pagar o sacrifício desse amor tão generoso, que desprezei.

PINHEIRO – Mas seu primo?...

CAROLINA – Já o não é.

MENESES – Como se chama?

CAROLINA – Não sei.

ARAÚJO – José, dá-me a conta!

MENESES – Espera, vamos juntos.

ARAÚJO – Ainda te demoras!

MENESES – Não.

CENA VIII

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OS MESMOS, JOSÉ E ANTÔNIO.

JOSÉ (na porta.) – Ponha-se na rua! Não achou outro lugar para cozinhar a bebedeira?

ANTÔNIO (da parte de fora.) – Quero beber... Vinho... compro com o meu dinheiro. Eh! lê! Meia garrafa, senhor moço!...

JOSÉ (empurrando-o.) – Vá-se embora, já lhe disse.

MENESES – Que barulho é este, José?

JOSÉ – É um bêbado! Achou a porta aberta, entrou, e agora quer por força que lhe venda meia garrafa de vinho.

ARAÚJO – Pois mata-lhe a sede.

JOSÉ – Se ele já está caindo.

ANTÔNIO (cantando.)

Mandei fazer um balaio
Da casquinha dum camarão!...

JOSÉ (empurrando-o.) – Nada! Ponha-se no andar da rua.

CAROLINA – Deixe-o entrar; talvez nos divirta um pouco. Estou triste!

JOSÉ – Mas é capaz de quebrar-me a louça.

PINHEIRO – Que tem isso? Eu pago o que ele quebrar.

CAROLINA – É uma fineza que lhe devo.

RIBEIRO – Mas que não é necessária; tu podes satisfazer os teus caprichos sem recorrer a ninguém.

ANTÔNIO – Oh! temos bródio por cá também? Viva a alegria! Toca a música! Ta-rá, lá-lá, ta-ri, to-ri. (Dança.)

MENESES – O homem é diletante como o Vieirinha. (Risos.)

VIEIRINHA – E engraçado como um artigo teu.

ANTÔNIO – Estão se rindo?... Cuidam que estou meio lá, meio cá?

MENESES – Não; faz tanto barulho que vê-se logo que está todo cá.

ANTÔNIO (rindo.) – Pois olhe: apenas bebi seis garrafas.

VIEIRINHA – Não é muito!

ANTÔNIO – Não é, não. Mas faltavam os cobres, senão... Oh! Tanto hei de beber que por fim hei de achar.

MENESES – Achar o quê?

ANTÔNIO – Não sabe? Upa!... Pois não sabe?... Eu não bebo porque goste do vinho... Já me enjoa.

MENESES – Por que bebe então?

ANTÔNIO – Porque procurôôô... êh! lô!... Procuro no fundo da garrafa, uma cousa que os velhos chamavam virtude, e que não se acha mais neste mundo.

PINHEIRO – Eis um Diógenes!...

HELENA (a Antônio.) – Como te chamas?

ANTÔNIO – Que te importa o meu nome?... Não tenho dinheiro!

ARAÚJO (a Luís, baixo.) – Luís! Luís! Olha!

LUÍS – O quê?

ARAÚJO – Este homem.

LUÍS – Antônio!...

ARAÚJO – Cala-te!

(Carolina começa a reconhecer Antônio.)

MENESES – Mas então ainda não achou o que procurava?

ANTÔNIO – Hein?...

MENESES – A virtude...

ANTÔNIO – Não existe. No fundo da garrafa só acho o sono. Mas é bom o sono. A gente não se lembra...

VIEIRINHA – Das maroteiras que fez.

ANTÔNIO – A gente vive noutro mundo que não é ruim como este! Oh! é bom o vinho!

VIEIRINHA – Pois tome lá este copo de champagne.

ANTÔNIO – Venha! (Provando.) Puah!... Não presta! É doce como as falas de certa gente; embrulha-me o estômago! Antes a aguardente que queima!

MENESES – Chegue aqui; diga-me o que você procura esquecer. Sofreu alguma desgraça?

VIEIRINHA – Queres outra história!

ANTÔNIO – Qual história! Não sofri nada! Diverti os outros.

MENESES – Mas conte isso mesmo.

ANTÔNIO – Não tem que contar... O trabalhador não deve criar sua filha para os moços da moda?

MENESES – Então sua filha...

ANTÔNIO – Roubaram e nem ao menos me deram o que ela valia! Velhacos... Os sujeitinhos hoje estão espertos!

MENESES – Pobre homem!

ANTÔNIO – Pobre, não! (Bate no bolso.) Veja como tine! (Rindo.) A mulher está doente, não trabalha; eu durmo todo o dia, não vou mais à loja; porém Margarida tinha uma cruz de ouro com que rezava. Fui eu, e furtei agora de noite a cruz, como o outro furtou minha filha, e passei-a nos cobres. Cá está o dinheiro; chega para beber dois dias. Estou rico! Viva a alegria! Olá! senhor moço! Ande com isso!... Meia garrafa!...

HELENA (à Carolina.) – Vamos para outra sala; não podes ficar aqui.

RIBEIRO (a José.) – Faz já sair este bêbado!

ARAÚJO (a Luís.) – Tenho medo do que vai se passar.

ANTÔNIO (para Carolina.) – Olé! Que peixão! Da cá este abraço... menina!

CAROLINA – Meu pai!... (Esconde o rosto.)

ANTÔNIO – Pai!... Há muito tempo que não ouço esta palavra. Mas quem és tu? Deixa-me ver teu rosto. Tu pareces bonita. Serás como Carolina? (Descobre-lhe o rosto, olha-a fixamente e começa a reconhecê-la.) Mas... não me engano... Sim... Sim... Tu és!...

CAROLINA – Não!

ANTÔNIO – Tu és minha filha!

CAROLINA – É falso!

ANTÔNIO – Não foste tu que me falaste há pouco?... aqui... Não me chamaste teu pai?... Carolina!

CAROLINA – Deixe-me!

ANTÔNIO – Vem! Tua mãe me pediu que te levasse!

CAROLINA – Minha mãe!...

ANTÔNIO – Sim, tua mãe... Margarida. Se soubesses... como ela tem chorado... Minha pobre Margarida!

CAROLINA – Não sei quem é.

ANTÔNIO – Não sabes?

CAROLINA – Não!

ANTÔNIO – Tu não sabes?

CAROLINA – Meu Deus!

ANTÔNIO – Esqueceste até o nome de tua mãe?

CAROLINA – Esqueci tudo.

ANTÔNIO – Oh! tens razão! Tu não és minha filha! Nunca foste...

(Precipita-se sobre ela e a obriga a ajoelhar-se. Ribeiro e Pinheiro protegem Carolina, enquanto Luís segura Antônio pelo braço.)

LUÍS – Antônio!

ANTÔNIO – Solta-me, Luís.

MENESES – Não a ofenda! É sua filha!

ANTÔNIO – Não; já não é!

MENESES – Mas é ainda uma mulher... Deseja puni-la? Respeite essa vida que a levará de lição em lição até o último e terrível desengano. É preciso que um dia a sua própria consciência a acuse perante Deus, sem que possa achar defesa, nem mesmo na cólera severa, mas justa de um pai.

(Carolina está sentada à mesa com a cabeça reclinada.)

ARAÚJO – Vamos; vamos; Luís.

ANTÔNIO – E ela... fica.

ARAÚJO – Nem lhe responde!

ANTÔNIO – Pois sim, fica; se algum dia me encontrares no teu caminho, se o teu carro atirar-me lama à cara, se os teus cavalos me pisarem, não me olhes, não me reconheças. Vê o que tu és, que um miserável bêbado, que anda caindo pelas ruas, tem vergonha de passar por teu pai!

LUÍS – Espera, Antônio! Talvez ainda não esteja tudo perdido! Um último esforço! Abre os braços à tua filha!... Olha! Olha! Não vês que ela chora?

CAROLINA – Foram as últimas lágrimas... já secaram!... Se tivessem caído neste copo, eu beberia com elas à memória do meu passado!