Sala em casa de Helena.
CENA I
editarLUÍS, ARAÚJO E MENESES.
MENESES – Podemos entrar. Nada de cerimônias.
ARAÚJO – Talvez sejamos importunos.
MENESES – Não tenhas receio. Sente-se, Sr. Viana.
ARAÚJO – E o tal Vieirinha?
MENESES – Que tem? (Na porta) Helena!
HELENA (dentro.) – Já vou, Sr. Meneses.
MENESES – Está no toilette naturalmente. Esperemos um instante.
ARAÚJO – Não cuidei que se tratasse com tanto luxo! É uma bela casa.
MENESES – Como muitas famílias não a tem; mas assim deve ser quando os maridos roubam à suas mulheres, e os pais a seus filhos para alimentarem essas parasitas da sociedade.
LUÍS – Diz bem: a culpa não é delas.
MENESES – Mas, Araújo, sinceramente te confesso que ainda não compreendi o teu empenho!
ARAÚJO – Empenho de quê?
MENESES – De conhecer a Helena. Achas bonita?
ARAÚJO – Bonita!... Uma mulher que tem os dentes e os cabelos na rua do Ouvidor!
MENESES – Entretanto entraste hoje de madrugada, quero dizer, às dez horas por minha casa; interrompeste o meu sono do domingo, o único tranquilo que tem um jornalista; me fizeste sair sem almoço; pagaste um carro; e tudo isto para que te viesse apresentar a essa velha sem dentes e sem cabelos!
ARAÚJO – Isto se explica por um capricho. Sou um tanto original nas minhas paixões.
MENESES – Então estás apaixonado pela Helena.
ARAÚJO – Infelizmente.
LUÍS – Por que não confessas a verdadeira causa? O Sr. Meneses é teu amigo, e embora só há pouco tempo tivesse o prazer de conhecê-lo, confio bastante no seu caráter para falar-lhe com franqueza.
ARAÚJO – É o melhor; assim me poupas o descrédito de inventar uma paixão bem extravagante.
MENESES – Qual é então a verdadeira causa desta apresentação?
LUÍS – Eu lhe digo. Trata-se de salvar uma moça por quem muito me interesso; quero falar-lhe ainda uma vez, tentar os últimos esforços; mas na sua casa é impossível; o Ribeiro guarda-a com um cuidado e uma vigilância excessiva.
MENESES – É a Carolina?
LUÍS – Ela mesma. Lembra-se daquela cena que presenciamos no hotel há cerca de um mês?
MENESES – Lembro-me perfeitamente; e parece-me, pelo que vi, que os seus esforços serão inúteis.
ARAÚJO – É também a minha opinião. Tenho-lhe dito muitas vezes que a honra de um homem é uma cousa muito preciosa para estar sujeita ao capricho de qualquer mulher, só porque o acaso a fez sua parente.
LUÍS – Não é por mim, Araújo, é por ela, que procuro salvá-la. Reconheço que é bem difícil; mas resta-me ainda uma esperança: talvez a mãe obtenha pelo amor, aquilo que nem a voz da razão, nem o grito do dever puderam conseguir.
MENESES – Pensa bem, Sr. Viana.
LUÍS – Para isso porém é preciso encontrá-la só um instante; soube que costuma vir à casa desta mulher que a perdeu e de quem é amiga. Araújo disse-me que o senhor a conhecia; e fomos imediatamente procurá-lo. Eis o verdadeiro motivo do incômodo que lhe demos; o Sr. Meneses é homem para o compreender e apreciar.
MENESES – Não se enganou, Sr. Viana; farei o que me for possível.
LUÍS – Muito obrigado.
MENESES – Não tem de quê; é um dever de todo o homem honesto proteger e defender a virtude que vacila e vai sucumbir, ou mesmo ajudá-la a reabilitar-se. Mas devo corresponder à sua franqueza com igual franqueza. Creio que o senhor, e tu mesmo, Araújo, não conhecem bem o terreno em que pisam atualmente?
LUÍS – Não decerto.
ARAÚJO – Quanto a mim estou em país estrangeiro.
MENESES – Pois é preciso estudar o movimento e a órbita desses astros errantes para acompanhá-los na sua rotação. Aqui não se conhece nem um desses objetos como a honra, o amor, a justiça, a religião, que fazem tanto barulho lá fora. Neste mundo à parte só há um poder, uma lei, um sentimento, uma religião; é o dinheiro. Tudo se compra e tudo se vende; tudo tem um preço.
LUÍS – Que miséria, meu Deus!
MENESES – Quem vê de longe este mundo não compreende o que se passa nele, e não sabe até onde chega a degeneração da raça humana. O oriente desses astros opacos é o luxo; e o ocaso é a miséria. Começam vendendo a virtude; vendem depois a sua beleza, a sua mocidade, a sua alma; quando o vício lhes traz a velhice prematura, não tendo já que vender, vendem o mesmo vício e fazem-se instrumentos de corrupção. Quantas não acabam vendendo suas filhas para se alimentarem na desgraça!
ARAÚJO – Tu exageras!... Ninguém se avilta a esse ponto.
MENESES – Não exagero, não. Muitas são boas e capazes de um sacrifício; tem coração. Mas de que lhes serve esse traste no mundo em que vivem!
ARAÚJO – Para amar o homem a quem devem tudo.
MENESES – Ele seria o primeiro a escarnecer dela!
CENA II
editarOS MESMOS, VIEIRINHA E HELENA.
VIEIRINHA (cantarolando.) – Je suis le sire de Framboisy. (Cumprimenta.) Meus senhores!... Não se incomodem; estejam a gosto.
MENESES – Adeus. Como vais?
VIEIRINHA – Bem, obrigado.
MENESES – Que se faz de bom?
VIEIRINHA – Nada; enche-se o tempo.
HELENA – Bons-dias, Sr. Meneses.
MENESES – Enfim apareceu!
HELENA – Desculpe; se me tivesse prevenido da sua visita... Mas chega de repente e no momento em que estava me penteando.
MENESES – Tem razão!... Aqui lhe trouxe o Sr. Viana e o Sr. Araújo que muito desejam conhecê-la. São meus amigos: isto diz tudo.
HELENA – A minha casa está às suas ordens. Estimo muito...
MENESES – Se não me engano, o Sr. Viana deseja conversar com a senhora; portanto não o faça esperar.
HELENA – Fazer esperar é o nosso direito, Sr. Meneses.
MENESES – Quando se trata de amor; mas não quando se trata de um negócio.
HELENA – Ah! É um negócio.
LUÍS – Sim, senhora.
HELENA – Pois quando quiser...
VIEIRINHA (à Helena.) – Já almoçaste, Helena?
HELENA – Há pouco; mas o almoço ainda está na mesa.
VIEIRINHA – Com licença, meus senhores. (Luís e Helena conversam no sofá; Meneses e Araújo recostados à janela.)
CENA III
editarMENESES, ARAÚJO, LUÍS E HELENA.
ARAÚJO – Não me dirás que figura faz este Vieirinha no meio de tudo isto?
MENESES – A figura de um desses saguis com que as moças se divertem. Neste mundo de mulheres, Araújo, existem duas espécies de homens, que eu classifico como os animais de penas. Uns são esses moços ricos e esses velhos viciosos que se arruínam e estragam a sua fortuna para merecerem as graças destas deusas pagãs; esses se depenam. Os outros são os que vivem das migalhas desse luxo, que comem e vestem à custa daquela prodigalidade; esses se empenam.
ARAÚJO – O Vieirinha pertence a esta última classe.
MENESES – É o tipo mais perfeito. Em todas estas casas encontra-se uma variedade do gênero Vieirinha.
ARAÚJO – Mas por que razão suportam elas esse animal? Será por amor?...
MENESES – Às vezes é; outras é simples orgulho e vaidade. Esta gente que profana tudo, que faz de tudo, dos sentimentos os mais puros, uma mercadoria; depois de tanto vender, quer também ter o gosto de comprar. Umas compram logo um marido; outras contentam-se em comprar um amante. É mais cômodo; deixa-se quando aborrece.
ARAÚJO – É o que a Helena fez com o Vieirinha?
MENESES – Justamente.
ARAÚJO – E sai-lhe caro esse capricho?
MENESES – Sem dúvida; mas o dinheiro como vem, assim vai. Depois ela dá por bem empregado qualquer sacrifício. Não quer parecer velha.
ARAÚJO – Mas quando ceamos juntos, aquela noite ao sair do teatro, me pareceu que o Pinheiro...
MENESES – Deixou-a; está apaixonado pela Carolina; e a Helena, segundo me disseram, o protege.
ARAÚJO – Ah! De amante passou a confidente?
MENESES – É verdade. (Acende um charuto com fósforos que encontra no aparador.) Tu ficas?
ARAÚJO – Espero por Luís.
MENESES – Então adeus.
ARAÚJO – Por que não te demoras? Sairemos juntos.
MENESES – Não posso; tenho que fazer. Vou almoçar e depois escrever um artigo. Até à noite.
ARAÚJO – Aonde?
MENESES – No Teatro Lírico. Não vais?
ARAÚJO – É natural.
MENESES – Sr. Viana! Helena...
LUÍS (depois de dar furtivamente algumas notas à Helena.) – Já vai? Nós o acompanhamos.
MENESES – Depressa terminou a sua conversa!
LUÍS – É verdade; a senhora foi tão amável...
HELENA – Era uma cousa tão simples!
MENESES – Fico bastante satisfeito; é sinal de que a minha apresentação valeu um pouco.
HELENA – O senhor sabe que ela vale sempre muito. (Vai subindo com Meneses.)
ARAÚJO (a Luís.) – Conseguiste?
LUÍS – Consegui tudo. O Meneses tem razão: o dinheiro venceu todas as dificuldades. Ao meio-dia Carolina está aqui.
ARAÚJO – Ao meio-dia?... São mais de onze...
LUÍS – Toma o carro. Ela está doente, mas com a esperança de ver sua filha...
ARAÚJO – E tu onde me esperas?
LUÍS – Eu, vou dar uma volta, e dentro de meia hora estarei aqui.
ARAÚJO – Até já. (Saindo.) Meneses! (À Helena.) Viva!
LUÍS – Vamos Sr. Meneses.
HELENA – Então às 11 1/2!...
LUÍS – Aqui estarei.
CENA IV
editarHELENA E VIEIRINHA.
VIEIRINHA – Almocei bem! O Meneses já foi?
HELENA – Saiu agora mesmo.
VIEIRINHA – E os outros?
HELENA – Também.
VIEIRINHA – Que fazes tu hoje?
HELENA – Nada.
VIEIRINHA – Então não precisas de mim?
HELENA – Que pergunta!
VIEIRINHA – Dá-me um charuto.
HELENA – Não tenho.
VIEIRINHA – Estás hoje muito aborrecida.
HELENA – E tu muito maçante.
VIEIRINHA – Não duvido; passei mal a noite. (Estende-se no sofá.) Se quiseres conversar acorda-me.
HELENA – Não se deite, não senhor.
VIEIRINHA – Por quê?
HELENA – Não são horas de dormir.
VIEIRINHA – Ora, quando se tem sono...
HELENA – Espero Carolina. Preciso estar só!
VIEIRINHA – Ah! Isto é outro caso. Queres dizer que me ponha ao fresco.
HELENA – Pouco mais ou menos.
VIEIRINHA – Está feito! Vou trocar as pernas por aí.
HELENA – Não voltas?
VIEIRINHA – É boa! Deitas-me pela porta fora e achas que devo voltar?
HELENA – Estás zangado?... Deixa-te disso! Volta às quatro horas.
VIEIRINHA – Para fazer o quê?
HELENA – Iremos jantar ao Hotel de Botafogo.
VIEIRINHA – É muito longe.
HELENA – Não faltes.
VIEIRINHA – Se puder.
HELENA – Conto contigo.
VIEIRINHA – Vai só.
HELENA – Não tem graça!
VIEIRINHA – Pois eu não posso ir.
HELENA – Por que razão?
VIEIRINHA – Porque...
HELENA – Estás inventando a mentira?
VIEIRINHA – Tenho acanhamento em confessar-te.
HELENA – Começas tarde com os teus acanhamentos!
VIEIRINHA (rindo.) – Deveras!... Pois não vou ao Hotel de Botafogo porque não quero encontrar-me com certo sujeito.
HELENA – Ou sujeita?...
VIEIRINHA – Já estás com ciúmes! É um rapaz que me ganhou outro dia cinquenta mil-réis ao ecàrté, e a quem ainda não paguei.
HELENA – Não será o primeiro.
VIEIRINHA – Nem o último. Mas esse tem uma irmã feia e rica, que pode ser um excelente casamento. Se não lhe pago fico desacreditado na família.
HELENA – Bem feito! Só assim deixarás o maldito vício do jogo.
VIEIRINHA – Ah! Deu-te para aí! Queres pregar-me um sermão? Basta os que ouço do velho! (Vai sair.)
HELENA – Então, até quatro horas?
VIEIRINHA – Não, decididamente não vou; já te disse o motivo.
HELENA – Olha! Se tu me prometesses...
VIEIRINHA – O quê?
HELENA – Não jogar mais.
VIEIRINHA – Que farias?
HELENA – Faria um sacrifício...
VIEIRINHA – Sacrifício... (Faz o gesto vulgar com que se exprime dinheiro.)
HELENA – Sim!
VIEIRINHA – Prometo o que tu quiseres! Juro!
HELENA (dando-lhe uma nota.) – Pois toma; vai pagar a tua dívida e volta.
VIEIRINHA (abraçando-a.) – Está dito!... Tu és uma flor, Helena.
HELENA – Sim! Nem a tempo os teus cumprimentos; nem fazes caso de mim.
VIEIRINHA – Não digas isto. Os únicos momentos de felicidade que eu tenho, são os que passo junto de ti. Até à tarde!
(Na saída encontra-se com Carolina.)
CENA V
editarHELENA E CAROLINA.
CAROLINA – Cheguei muito cedo!
HELENA – Não faz mal.
CAROLINA – Sentia uma impaciência!... Apenas o Ribeiro saiu, meti-me num carro... Antes que me arrependesse!
HELENA – Assim estás resolvida?
CAROLINA – Inteiramente.
HELENA – Já duas vezes disseste o mesmo, e quando chegou o momento...
CAROLINA – Hesitei antes de dar este passo; não sei que pressentimento me apertava o coração, e me dizia que eu procedia mal. Foi o primeiro homem a quem amei neste mundo; é o pai de minha filhinha. Parecia-me que devia acompanhá-lo sempre!
HELENA – Se ele não te abandonasse mais dia, menos dia.
CAROLINA – Não há de ter este trabalho; hoje resolvi-me; esta existência pesa-me. A que horas vem o Pinheiro?
HELENA – Não pode tardar.
CAROLINA – É muito longe daqui a Laranjeiras?
HELENA – Não; é um instante! Em cinco minutos podes lá estar.
CAROLINA – Já viste a casa?
HELENA – Ainda ontem. Está arranjada com um luxo!... O Pinheiro vai te tratar como uma princesa.
CAROLINA – Contanto que me deixe livre.
HELENA – Ele te adora; há de fazer todas as tuas vontades. Queres ver que lindo presente te mandou?
CAROLINA – Por ti?
HELENA – Sim; está aqui. (Tira do bolso caixas de joias.)
CAROLINA – Um colar... pulseiras e broche!
HELENA – Não é de muito gosto?
CAROLINA – São brilhantes?...
HELENA – Verdadeiros... Mas, Carolina, tenho uma notícia a dar-te.
CAROLINA – Que notícia?
HELENA – Teu primo deseja ver-te.
CAROLINA – Luís!... Esteve aqui?... Que me quer ele? Ainda não está satisfeito com me ter mostrado tanto desprezo?
HELENA – Que te importa?
CAROLINA – Sempre que o vejo fico triste. Sofro por muitos dias.
HELENA – Foi a princípio.
CAROLINA – Ainda hoje não posso esquecer as palavras que ele me disse à dous anos. E são tão amargas as suas palavras!
HELENA – Entretanto ele te ama.
CAROLINA – A mim?... Tu pensas...
HELENA – Não nos disse outro dia no Hotel?
CAROLINA – Disse que amava outra Carolina, que não sou hoje.
HELENA – Cuidas que por uma mulher preferir outro homem, aquele que ela desprezou deixa de amá-la? Como te enganas!
CAROLINA – Então acreditas?...
HELENA – Agora mesmo ele aqui esteve; e me falou de ti com um modo...
CAROLINA – Que te disse?
HELENA – Confessou que estava arrependido do que fez; que deseja ver-te para mostrar que sempre te estimou e ainda te estima.
CAROLINA – Não é possível, Helena. Se Luís me estimasse não me falava com tanto desprezo!
HELENA – Ora Carolina, se tu amasses um homem que se casasse com outra mulher, o que farias?
CAROLINA – Tens razão. (Fica pensativa.)
HELENA – Espera.
(Vai à porta do fundo e conversa com Luís, que aparece um momento.
CAROLINA – Mas ele disse-te que me queria ver?... Voltará?
HELENA – Creio que sim!
CAROLINA – Meu Deus!
HELENA – Que mal faz que tu lhe fales? Se ele te ofender entra para dentro; se quiser amar-te faz o que entenderes; mas não esqueças o Pinheiro.
CAROLINA – Sei o que devo fazer.
HELENA – Se precisares de mim, chama-me.
CAROLINA – Me deixas só?
HELENA – Ao contrário, vê quem está aí.
CENA VI
editarLUÍS E CAROLINA.
CAROLINA – Luís!
LUÍS – Não me recusou falar, Carolina. Eu lhe agradeço.
CARORINA – Por que recusaria?
LUÍS – Depois do que se tem passado, não era natural que desejasse fugir à presença de um importuno?
CAROLINA – Qual de nós, a primeira vez que nos encontramos depois de uma longa ausência, repeliu o outro?
LUÍS – A repreensão é justa, eu a mereço. Mas não creia que venho ainda lembrar-lhe um passado que todos devemos esquecer, e acusá-la de uma falta de que outros talvez sejam mais culpados. Venho falar-lhe como um irmão; quer-me ouvir?
CAROLINA – Fale; não tenha receio.
LUÍS – Todos nós, Carolina, homens ou mulheres, velhos ou moços, todos, sem exceção, temos faltas em nossa vida; todos estamos sujeitos a cometer um erro e a praticar uma ação má. Uns porém cegam-se ao ponto de não verem o caminho que seguem; outros arrependem-se a tempo. Para estes o mal não é senão um exemplo e uma lição; ensina a apreciar a virtude que se desprezou em um momento de desvario. Estes merecem, não só o perdão, porém muitas vezes a admiração que excita a sua coragem.
CAROLINA – Não, Luís; há faltas que a sociedade não perdoa, e que o mundo não esquece nunca. A minha é uma destas.
LUÍS – Está enganada, Carolina. Se uma moça, que levada pelo seu primeiro amor, ignorando o mal, esqueceu um instante os seus deveres, volta arrependida à casa paterna; se encontra no coração de sua mãe, na amizade de seu pai, nas afeições dos seus, a mesma ternura; se ela continua a sua existência doce e tranquila no seio da família; por que a sociedade não lhe perdoará, quando Deus lhe perdoa, dando-lhe a felicidade?
CAROLINA – Nunca ela poderá ser feliz! A sua vida será uma triste expiação.
LUÍS – Ao contrário, será uma regeneração. Em vez dessa paixão criminosa que a roubou a seus pais, ela pode achar no seio da sua família o amor calmo que purifique o passado e lhe faça esquecer a sua falta.
CAROLINA – É verdade então, Luís?... Helena não me enganou!
LUÍS – O quê?... Não sei!...
CAROLINA – Ainda me ama?
LUÍS – Eu?...
CAROLINA – Não era de si que me falava?
LUÍS – Não, Carolina; falava do Ribeiro.
CAROLINA – Ah! Era dele!...
LUÍS – É o único que tem direito de amá-la!
CAROLINA – Pois eu não o amo.
LUÍS – Não creio.
CAROLINA – Juro-lhe.
LUÍS – É impossível.
CAROLINA – Amanhã não duvidará.
LUÍS – Amanhã?... Que vai fazer?
CAROLINA – Há de saber.
LUÍS – Carolina, eu lhe peço, não dê semelhante passo; ele é ainda mais grave do que o primeiro. Compreendo que uma menina inexperiente, sacrifique-se à afeição de um homem; mas nada justifica a mulher que renega aquele a quem deu a sua vida.
CAROLINA – Então não posso deixá-lo!
LUÍS – Não! Uma mulher deve sempre conservar a virgindade do coração, e guardar pura a sua primeira afeição. Respeita-se o consórcio moral de duas criaturas que se unem apesar do mundo e dos prejuízos que as separam; respeita-se a virtude ainda quando ela não reveste as fórmulas de convenção. Mas despreza-se a mulher que aceita qualquer amor que lhe oferecem.
CAROLINA – E quem lhe diz que amarei à outro?
LUÍS – O primeiro amor é às vezes o último; o segundo nunca o será.
CAROLINA – Podia ser, Luís, se o não desprezassem.
LUÍS – Não compreendo.
CAROLINA – Também eu não compreendo este sentimento; mas o coração é assim feito; deseja o que não pode obter, o que muitas vezes desdenhou quando lho ofereciam. Admiro-me do que se passa em mim, e não sei explicá-lo. Parece-me às vezes que ainda haveria um meio de ligar o fio de minha vida às recordações dos meus dezoito anos, e continuar no futuro a existência tranquila de outrora. Mas esse meio... é uma loucura.
LUÍS – Diga, Carolina! Eu farei tudo...
CAROLINA – Tudo!...
LUÍS – Duvida?
CAROLINA – Ame-me então!
LUÍS – Escarnece de mim!
CAROLINA – Luís!
LUÍS – Creia-me, Carolina. Se eu estivesse convencido da realidade desse amor, ainda assim, sacrificaria a minha à sua felicidade.
CAROLINA – Está bem! Não falemos mais nisso! Foi um gracejo; não faça caso... Adeus!
LUÍS – Já me despede.
CAROLINA – Pode ficar se quiser.
(Carolina chega-se ao espelho, e enxuga furtivamente uma lágrima. Deita as joias que Helena lhe dera.)
LUÍS (vendo no relógio.) – Meio-dia.
CAROLINA – Cuidei que fosse mais tarde!... Bonitas pedras! Não são?... Foi um presente!...
LUÍS – Ah! foi um presente?
CAROLINA – Não é de bom gosto?
LUÍS – Muito lindo!
CAROLINA – Quanto valerá?
LUÍS – Nada para mim; para outros talvez seja o preço de uma infâmia.
CAROLINA – Faltava o insulto!...
CENA VII
editarOS MESMOS E HELENA.
HELENA – Sabes quem está aí?
CAROLINA – Não.
HELENA – O Ribeiro.
CAROLINA – Ah!
HELENA – Que virá fazer?
CAROLINA – Não sei. Naturalmente recebeu a minha carta mais cedo do que devia.
HELENA – Tu lhe escreveste?... Para quê?
LUÍS (à Carolina.) – Seu amante!
CAROLINA – Eu o espero.
CENA VIII
editarOS MESMOS E RIBEIRO.
RIBEIRO (à Carolina.) – Esta carta?
CAROLINA – É minha.
RIBEIRO – Que quer dizer isto?
CAROLINA – Não leu?... Preveni-o da minha resolução.
RIBEIRO – Não acredito!... Tu não podes deixa-me!
CAROLINA – Não posso!... Por quê?
RIBEIRO – Tu és minha, Carolina! Tu me pertences!
CAROLINA – Engana-se; o que lhe pertence ficou em sua casa; deixando-o, deixei tudo que me havia dado.
RIBEIRO – Que me importa isso? É a ti que eu não quero, e não devo perder!
CAROLINA – Sei que incomoda a falta de um objeto com o qual estamos habituados! Mas paciência... Nem sempre a moça tímida havia de sujeitar-se ao jugo que lhe impuseram.
RIBEIRO – É a segunda vez que me fazes esta exprobação. Não me compreendes! Se eu não te amasse, teria realizado os teus sonhos; gozaria um momento contigo dessa vida louca e extravagante que te fascina, e depois te abandonaria ao acaso. Mas Deus puniu-me com a minha própria falta; quis seduzir-te e amei-te. Não sabes o que tenho sofrido... em que luta vivo com minha família!
CAROLINA – Neste ponto me parece que se algum de nós deve ao outro, não é decerto aquela que sacrificou a sua existência. Mas não cuide que me queixo; aceito o meu destino! Fui eu que assim o quis...
RIBEIRO – Tu me lembras que tenho uma dívida de honra a pagar-te.
CAROLINA – Obrigada! Basta-me a liberdade e o sossego!
RIBEIRO – Então decididamente me deixas?
CAROLINA – Já o deixei; já não estou em sua casa. A minha é nas Laranjeiras.
RIBEIRO – A dele, queres dizer? A do Pinheiro!
CAROLINA – É o mesmo!
LUÍS – E era esta mulher que há pouco falava de amor!
CAROLINA – Não era esta, não senhor; era a outra a quem insultaram. (Vai sair.)
RIBEIRO – Uma palavra, Carolina!...
CAROLINA – Que quer ainda, senhor?
RIBEIRO – Eu te seduzi, fiz-te desgraçada, não é verdade?... Pois bem! Arrosto a oposição de minha família! Arrosto tudo! Quero reparar a minha falta! És a mãe de minha filha: sê minha mulher!
CAROLINA – Tua mulher!
RIBEIRO – Sim, Carolina! É um sacrifício que te devo.
CAROLINA – Não lho pedi!
RIBEIRO – Mas sou eu que te suplico!
LUÍS – É a honra, é a virtude, é a felicidade que ele lhe restitui!
(Aparece Pinheiro.)
CENA IX
editarOS MESMOS E PINHEIRO.
CAROLINA – Não! É tarde!...
LUÍS – Carolina!...
CAROLINA – Já que o amor não é possível para mim, prefiro a liberdade!... Quero ver à meus pés um por um todos esses homens orgulhosos que tanto blasonam de probos e honestos!... Aí curvando a fronte ao vício, o marido trairá sua esposa, o filho abandonará sua família, o pai esquecerá os seus deveres para mendigar um sorriso. Porque no fim de contas, virtude, honra, glória, tudo se abate com um olhar, e roja diante de um vestido. (A Pinheiro.) Meu carro?...
PINHEIRO – Está na porta.
HELENA – Vem ver como é rico!
RIBEIRO – Lembra-te ao menos de tua filha!...
CAROLINA – Deixo-a a seu pai como um remorso vivo!
LUÍS – Reflita, Carolina; aceite a reparação que o senhor lhe oferece; faça de um homem arrependido, de uma moça desgraçada e de uma menina órfã, uma família; dê a felicidade a seu marido, e um nome à sua filha!
CAROLINA – E quem me dará a mim o que eu perco?
LUÍS – A sua consciência.
CAROLINA – Não a conheço! Adeus! (Vai sair.)
RIBEIRO – Não! Tu não sairás com este homem!
CAROLINA – Quem impedirá?
RIBEIRO – Eu!
HELENA – Sr. Ribeiro, seja prudente!
PINHEIRO – É o que me faltava ver! Que o senhor queira levar o ridículo a este ponto! Tem algum direito sobre ela?
RIBEIRO – Tenho o direito de vingar-me de um amigo desleal que me traiu!
PINHEIRO (com escárnio.) – Eu traí; e o senhor?... Roubou! Roubou a filha a seus pais!
LUÍS (à Carolina.) – Veja os homens a quem ama!
CAROLINA – Não amo a ninguém! Sou livre! (Caminhando para a porta vê Margarida que entra pelo braço de Araújo; recua com espanto.)
CENA X
editarOS MESMOS, MARGARIDA E ARAÚJO.
CAROLINA (escondendo o rosto.) – Ah! esqueci que ainda tinha mãe!
MARGARIDA (com voz desfalecida.) – Carolina!
LUÍS – Tardaste muito!
ARAÚJO – Apesar de toda a sua coragem, faltavam-lhe as forças! Que te disse ela?
LUÍS – Cala-te!
MARGARIDA – Carolina!... Não falas à tua mãe?... Não me queres conhecer?... Depois de tanto tempo!... (Pausa) Tens medo de mim?... Não penses que vim repreender-te... acusar-te! Já não tenho forças!... Vim pedir-te que me restituas a filha que perdi! Queria ver-te antes de morrer... Eu te perdoo tudo... Não tenho que perdoar... Mas fala-me... Olha-me ao menos!... (Carolina volta-se involuntariamente e confusa) Mais perto! Quase não te vejo!... As lágrimas cegam... e tenho chorado tanto!...
CAROLINA – Minha mãe!...
MARGARIDA – Ah!
CAROLINA – Oh! não!
MARGARIDA – Que tens?
CAROLINA – Tenho vergonha!
MARGARIDA – Abraça-me! Deus ouviu as minhas orações! Achei enfim minha filha... minha Carolina!
CAROLINA – Não está mais zangada comigo?
MARGARIDA – Nunca estive!... Tinha saudades!... Porém agora não nos separaremos mais nunca. Vem!...
CAROLINA – Para onde?
MARGARIDA – Para a nossa casa; hás de achá-la bem mudada. Mas tudo voltará ao que era. Estando tu lá, a alegria entrará de novo; seremos muito felizes, eu te prometo.
CAROLINA – Está tão fraca!
MARGARIDA – Contigo sinto-me forte! Já não estou doente: vê! (Dá um passo e vacila.)
CAROLINA – Nem pode andar!... Mas tenho aí o meu carro.
MARGARIDA – Teu carro!...
CAROLINA – Sim! Ainda não viu? É tão bonito!
MARGARIDA – Todas essas riquezas que compraste tão caro e que tantos sofrimentos custaram à tua mãe, já não te pertencem, Carolina. Atira para longe de ti estes brilhantes!... Não te assentam!
CAROLINA – Minhas joias!...
MARGARIDA – Oh! Não lamentes a sua perda! Beijos de mãe brilham mais em tuas faces do que esses diamantes! Tu eras mais bonita quando íamos à missa aos domingos!
CAROLINA – Pois sim! (Afasta-se.)
LUÍS (à Margarida.) – Era a minha última esperança!
MARGARIDA – Não falhou; o coração me dizia...
CAROLINA (no espelho.) – Não! Não tenho coragem!
MARGARIDA – Que dizes?...
CAROLINA – Perdão! minha mãe! É impossível!
MARGARIDA – Lembra-te, minha filha, que é a tua desonra que tu mostras a todos!
CAROLINA – Que importa?... Minhas joias!... Tão lindas!... Sem elas o que serei eu?... Uma pobre moça que excitará um sorriso de piedade!... Não! Nasci com este destino! É escusado...
LUÍS (à Margarida.) – Foi irritá-la!
MARGARIDA (à Carolina.) – Escuta! Não exijo nada! Não quero saber de cousa alguma! Faze o que quiseres; mas deixa-me acompanhar-te; deixa-me viver contigo; eu partilharei até mesmo a tua vergonha.
CAROLINA – Nunca! minha mãe! Seria profanar o único objeto que eu ainda respeito neste mundo. Adeus...
MARGARIDA – Carolina!
CAROLINA – Adeus... e para sempre!
MARGARIDA – Ah! (Desmaia.)
LUÍS – Assim, depois de ter desconhecido o pai, e abandonado a filha, repele a mãe!
CAROLINA – Como à pouco me repeliram.