Em casa de Carolina. Sala rica e elegante.
CENA I
editarCAROLINA, HELENA, MENESES E ARAÚJO.
(Tomam sorvetes.)
MENESES (dando uma nota.) – Helena, manda pagar estes sorvetes e charutos.
CAROLINA – Diga alguma cousa, Sr. Araújo.
ARAÚJO – Prefiro ouvir.
CAROLINA – Como está seu amigo?
ARAÚJO – Bom, obrigado.
CAROLINA – Por que ele não veio?
ARAÚJO – Deve saber a razão.
CAROLINA – Ele foge de mim; não é verdade?
ARAÚJO – Creio que foi a senhora que fugiu dele. (Entra Helena.)
MENESES – Que é feito do Pinheiro?
CAROLINA – Não sei.
HELENA – Anda por aí. Depois que deitou fora a fortuna do pai vive tão murcho!
MENESES – Está pobre!
HELENA – Não tem vintém. (Vai à janela.)
CAROLINA – Era um esperdiçado!
ARAÚJO – Ninguém pode melhor dizê-lo do que a senhora.
CAROLINA – Explique-se.
ARAÚJO – Este luxo explicará melhor. Quem lho deu?
CAROLINA (subindo.) – Não me recordo.
HELENA (na janela à Carolina.) – Não passeias hoje? A tarde está tão linda!
CAROLINA – Talvez.
ARAÚJO – Vou-me embora.
MENESES – Tão depressa?... Para isso não valia a pena incomodar-nos.
ARAÚJO – É verdade! Mas convidei-te para esta visita só por um motivo.
MENESES – Qual?
ARAÚJO – Luís pediume que soubesse notícias dela. Vim buscá-las eu mesmo, para dá-las exatas.
MENESES – Pois então demora-te; talvez ainda tenhas que ver.
HELENA – Olha! Lá vai aquela sujeita!
CAROLINA (sentando-se.) – Quem?
HELENA – A mulher do Fernando, a quem pregaste aquela peça!
CAROLINA – Lembro-me.
HELENA – Que bem feita cousa!
MENESES – O quê?
HELENA – É uma história muito engraçada. O senhor não sabe?
MENESES – Não. Conta, Carolina.
CAROLINA – Não estou para isso. Se queres contar tu, Helena.
ARAÚJO – É o melhor.
HELENA – Ouça. No último dia de grande gala que houve...
ARAÚJO – O dia 7 de setembro.
HELENA – Isso mesmo. O Fernando por pedido da mulher, veio à cidade de propósito para comprar um bilhete de camarote do teatro lírico. Os cambistas lhe fizeram dar cem mil-réis por um da Segunda ordem... Número?...
CAROLINA – Não me lembro.
HELENA – Como já era tarde, jantou na cidade e escreveu à mulher dizendo que se aprontasse porque tinham o camarote. Na ida passou por aqui e entrou. Começamos a conversar, falou-se de teatro; Carolina estava morrendo por ir... Enfim para encurtar razões, deu-lhe o bilhete.
ARAÚJO – Que tratante!
HELENA – Ao contrário um homem delicado!... Mas o melhor é que saindo daqui, e não sabendo que desculpa havia de dar à mulher, não foi à casa, nem lembrou-se da carta que tinha escrito. Ora, a sujeita vendo que ele não ia, meteu-se no carro e largou-se para o teatro.
ARAÚJO – Adivinho pouco mais ou menos o resto.
HELENA – Não adivinha, não! Quando o bilheteiro ia abrindo a porta, chegou Carolina que ia comigo, e disse: — Este camarote é meu. — A mulher do Fernando respondeu: — Não é possível; meu marido o comprou hoje para mim. — O que havia ela de replicar? — Foi seu marido mesmo quem mo deu; aqui está o bilhete que por sinal custou-lhe cem mil-réis.
ARAÚJO – Ela disse isto?...
HELENA – Palavra de honra.
ARAÚJO – E que fez a mulher?
HELENA – Que havia de fazer? Retirou-se corrida.
MENESES – Retirou-se, sim; e sem dizer uma palavra; porque uma senhora não dá à amante de seu marido nem mesmo a honra de indignar-se contra ela. Quanto ao homem que praticou esse ato infame, perdeu para sempre a estima de sua esposa e a dos homens de bem. Queira Deus que ele não veja um dia os seus cabelos brancos manchados por esse mesmo vício que alimentou.
CAROLINA – Está o Meneses como quer; deram-lhe tema para fazer discursos.
ARAÚJO – Mas diga-me uma cousa. A senhora pensa que a sociedade pode tolerar por muito tempo uma mulher que não respeita cousa alguma?
CAROLINA (rindo.) – Aí vem o outro com a sociedade!
HELENA – É bem lembrada!
ARAÚJO – Olhem que não estou disposto a rir-me.
MENESES – Ri; é o melhor; não tomes isto ao sério.
CAROLINA – Como quiserem; para mim é indiferente! Essa sociedade de que o senhor me fala, eu a desprezo.
ARAÚJO – Porque a repele!
CAROLINA – Porque vale menos do que aquelas que ela repele do seu seio. Nós ao menos não trazemos uma máscara; se amamos um homem, lhe pertencemos; se não amamos ninguém, e corremos atrás do prazer, não temos vergonha de o confessar. Entretanto, as que se dizem honestas cobrem com o nome de seu marido, e com o respeito do mundo os escândalos da sua vida. Muitas casam por dinheiro com o homem a quem não amam; e dão sua mão a um, tendo dado a outro a sua alma! E é isto o que chamam virtude?... É essa sociedade que se julga com direito de desprezar aquelas que não iludem a ninguém, e não fingem sentimentos hipócritas?...
ARAÚJO – Tem o mérito da impudência.
CAROLINA – Temos o mérito da franqueza. Que importa que esses senhores que passam por sisudos e graves nos condenem e nos chamem perdidas?... O que são eles?... Uns profanam a sua inteligência, vendem o seu pensamento, e fazem um mercado mais vil e mais infame do que o nosso, porque não têm, nem o amor, nem a necessidade por desculpa; porque calculam friamente. Outros são nossos cúmplices, e vão com os lábios ainda úmidos dos nossos beijos manchar a fronte casta de sua filha, e as carícias de sua esposa. Oh! Não falemos em sociedade, nem em virtude!... Todos valemos o mesmo! Todos somos feitos de lama, e amassados com o mesmo sangue e as mesmas lágrimas!...
MENESES – Não te iludas, Carolina! Esse turbilhão que se agita nas grandes cidades; que enche o baile, o teatro, os espetáculos; que só trata do seu prazer, ou do seu interesse; não é a sociedade. É o povo, é a praça pública. A verdadeira sociedade, da qual devemos aspirar à estima, é a união das famílias honestas. Aí respeita-se a virtude e não se profana o sentimento; aí não se conhecem outros títulos que não sejam a amizade e a simpatia. Corteja-se na rua um indivíduo de honra duvidosa; tolera-se numa sala; mas fecha-se-lhe o interior da casa. Quanto a esses homens que vendem sua inteligência, é uma triste verdade; mas Deus assim o quis; porque se o pensamento não se dobrasse às fraquezas humanas, o talento seria soberano, a inteligência governaria o mundo; e o homem não existiria...
CAROLINA – Quanta palavra inútil!...
MENESES – Não são para ti, bem sei; mas saem-me sem querer, e felizmente aqui está um amigo que me escuta com prazer.
ARAÚJO – Realmente precisava ouvir-te para não duvidar de mim, e de todos esses objetos que estou habituado a respeitar.
HELENA – Falemos de cousas mais alegres.
MENESES – Não lhe agrada a conversa neste tom?
(Batem palmas.)
HELENA – Não entendo disto; é bom para Carolina que vive a ler.
MENESES – Ah! Lê romances naturalmente?
CAROLINA – Que lhe importa!
CENA II
editarOS MESMOS E PINHEIRO.
HELENA (na porta.) – Não lhe pode falar! Não teime!
CAROLINA – Quem é?
HELENA – O Pinheiro.
CAROLINA – Que vem ele fazer cá? Dize-lhe que não estou em casa.
ARAÚJO – Bate-lhe na cara com essa mesma porta, que ele fechava outrora com a sua chave de ouro.
MENESES (a Araújo.) – Não te disse que ainda tinhas que ver?
PINHERO (à Helena.) – Deixa-me! Hei de falar à Carolina. (Entra.)
HELENA – Onde viu o senhor entrar assim na casa dos outros?
PINHEIRO – São maus hábitos que ficam a quem já foi dono. Meus senhores!...
MENESES – Sr. Pinheiro! (Estendendo-lhe a mão.)
PINHEIRO (recusando, confuso.) – Tem passado... bem...
MENESES – Pode apertá-la; nunca a estendi aos favores do homem rico; ofereço-a ao homem pobre que sabe suportar dignamente a sua desgraça.
PINHEIRO (apertando a mão.) – Se todos tivessem esta linguagem...
ARAÚJO – Ela não teria merecimento, Sr. Pinheiro.
PINHEIRO – Os senhores permitem que eu diga algumas palavras em particular à Carolina?
MENESES – Sem dúvida! Esperaremos naquela saleta. Anda, Helena; vem divertir-nos contando os teus arrufos com o Vieirinha.
HELENA (à Carolina.) – Não sofras maçada.
CAROLINA – Deixa.
(Saem os três, que durante a cena seguinte são vistos a conversar na saleta do fundo.)
CENA III
editarPINHEIRO E CAROLINA.
PINHEIRO – Vejo que a minha presença lhe aborrece, Carolina. Só um motivo forte me obrigaria a importuná-la.
CAROLINA – Previno-lhe que vou sair; portanto não se demore.
PINHEIRO – Houve tempo em que nesta mesma casa, neste mesmo lugar, a mesma voz se queixava quando eu não podia me demorar.
CAROLINA – Deixemos o passado em paz.
PINHEIRO – Não se recorda?
CAROLINA – As mulheres só começam a recordar-se depois dos quarenta anos; antes gozam.
PINHEIRO – Pois bem! Que se esqueça o amor, compreendo; mas há certas cousas que lembram sempre.
CAROLINA – Não sei quais sejam.
PINHEIRO – Os benefícios.
CAROLINA – Deixam de ser, quando se lançam em rosto.
PINHEIRO – Não foi essa minha intenção, Carolina; desculpe. O meu espírito se azeda com estas reminiscências. Antes que a ofenda de novo vou dizer o que lhe quero pedir.
CAROLINA – Ah! Vem pedir?
PINHEIRO – Admira-se!
CAROLINA – Como nunca pedi, estranho sempre que me pedem.
PINHEIRO – Talvez algum dia seja obrigada...
CAROLINA – Deixamos o passado para tratar do futuro? Pois olhe se um pertence às mulheres velhas, o outro é o consolo das pobres meninas de dezoito anos, que vivem a sonhar.
PINHEIRO – Deste modo não me deixa dizer...
CAROLINA – Quem lhe impede?
PINHEIRO – Suas palavras de sarcasmo.
CAROLINA – Estou hoje contrariada.
PINHEIRO – Por que motivo?
CAROLINA – Não sei.
PINHEIRO – É a minha presença?
CAROLINA (cantarolando.) – Buena sera, mio Signor...
PINHEIRO – Tem razão; estou lhe roubando o seu tempo; outrora podia comprá-lo; hoje estou pobre; gastei toda a minha fortuna. Não me queixo, nem a acuso. Sofreria resignado essa perda se ela fosse apenas uma perda de dinheiro, e se não acarretasse a desgraça de outra pessoa.
CAROLINA – Que tenho eu com isto?
PINHEIRO – Deixe-me acabar. Vou confessar-lhe uma vergonha minha; mas é preciso; seja este o primeiro castigo. Escuso lembrar-lhe, Carolina, que ou por amor ou vaidade, procurei sempre adivinhar, para satisfazê-los, os seus menores desejos.
CAROLINA – Loucura! Não há nada que encha esse vácuo imenso que se chama o coração de uma mulher.
PINHEIRO – É exato, toda a minha fortuna se sumiu no abismo; restavam-me apenas cinco contos de réis, que não me pertenciam. Eram um legado que meu pai deixara como dote a uma menina órfã, sua afilhada. Esse dinheiro devia ser sagrado para mim por muitos motivos; devia respeitar nele a última vontade de meu pai, e a propriedade alheia; entretanto foi com ele que comprei aquela pulseira que lhe dei no último dia em que estive nesta casa.
CAROLINA – Ah! Aquela pedra só custou cinco contos?
PINHEIRO – Custou um roubo! A órfã me pede o seu dote para casar-se; e eu não o tenho para restituir-lhe.
CAROLINA – Então é impossível; não pense mais nisso.
PINHEIRO – Não é impossível se quiser, Carolina; faça um sacrifício, empreste-me essa joia, e juro-lhe que com o meu trabalho lhe pagarei o valor dela!...
CAROLINA (rindo.) – Ah! Ah! Ah!... É interessante!... Sr. Meneses! Helena! Sr. Araújo!... Ouçam esta! É original.
CENA IV
editarOS MESMOS, MENESES, ARAÚJO E HELENA.
HELENA – O que é?
MENESES – Alguma outra anedota?
CAROLINA – Uma lembrança muito engraçada.
ARAÚJO – Faço ideia!
CAROLINA – O senhor entendeu que devo agora fazer-me mascate de joias.
MENESES – Não é má profissão.
CAROLINA – Adivinhem o que ele veio propor-me!
HELENA – Por que não explicas logo?
CAROLINA – Querem saber?
PINHEIRO – Eu poupo-lhe o trabalho; não tenho vergonha de confessar. É um homem, meus senhores, que tendo consumido com uma mulher a sua fortuna perdeu a razão ao ponto de comprar-lhe o último presente com um depósito sagrado que lhe foi confiado. Ameaçado do opróbrio de uma acusação judicial, esse homem veio pedir àquela a quem tinha sacrificado tudo, que o salvasse, emprestando-lhe essa joia, cujo valor ele jurava restituir-lhe com o seu trabalho. A resposta que teve foi a gargalhada que ouviram.
CAROLINA – Não tinha outra.
MENESES – Certamente.
ARAÚJO – Como, Meneses!
CAROLINA – Vê!
PINHEIRO – O senhor aprova?
MENESES – Não, senhor.
ARAÚJO – Mas então?...
MENESES – Desgraçados dos homens de bem, Araújo, se o mundo não fosse assim; se o vício não tivesse em si esse princípio de destruição que é o seu próprio corretivo. Estimo o Sr. Pinheiro desde que soube a maneira digna com que aceitou o seu infortúnio; mas esse infortúnio proveio de sua paixão louca por Carolina; ele não podia, não devia achar nela um sentimento de gratidão. É preciso que o despreze para o punir; é preciso que lhe negue para uma boa ação o dinheiro com que ele acabou de perdê-la. A avareza (designa Carolina) corrige a prodigalidade. (designa Pinheiro.)
CAROLINA – Avareza! Não admito!
ARAÚJO – E que nome tem isto?
CAROLINA – Chame-lhe ingratidão, chame-lhe o que quiser; mas avareza, não! Faço tanto caso do dinheiro, como da moral que trazem certos sujeitos na algibeira, e da qual só usam quando lhes convém, como de um charuto, de um lenço, ou de uma caixa de rapé. E a prova é que essa joia, dá-la-ia de esmola a qualquer miserável, se não estivesse convencida que ele amanhã nem me tiraria o chapéu!
ARAÚJO – Ou soltaria uma gargalhada quando passasse...
CAROLINA – Disso não teria receio, porque antes de pedir morreria de fome!
PINHEIRO – Quando eu passo à noite pela travessa de São Francisco de Paula, ouço vozes humildes que suplicam, e que já falaram mais alto do que a sua, Carolina.
CAROLINA – Que tem isto? Se algum dia ouvir a minha não a escute, como eu hoje não quero escutar a sua.
PINHEIRO – Nem todos possuem o seu coração.
CAROLINA – Isso é verdade!
ARAÚJO – E o seu amor.
CENA V
editarCAROLINA, MENESES, HELENA E ARAÚJO.
CAROLINA – Amor?...
ARAÚJO – Amor ao dinheiro.
CAROLINA – Mas seriamente, os senhores não me compreendem. Não sabem que para uma mulher não há ouro que valha o prazer de humilhar um homem.
MENESES – Tanto ódio nos tens?
CAROLINA – Muito!...
ARAÚJO – Contudo não posso crer que aquelas que durante toda a sua existência correm atrás do dinheiro, façam dele tão pouco caso!
CAROLINA – Pois creia: todas essas minhas joias, todo esse luxo e riqueza, que me fascinaram, e que hoje possuo, não os estimo senão por uma razão.
ARAÚJO – Qual?
CAROLINA – Talvez possam realizar um sonho da minha vida.
ARAÚJO – E que sonho é esse?
CAROLINA – Não digo.
ARAÚJO – Por quê?
CAROLINA – Vai zombar de mim.
ARAÚJO – Não tenha receio.
MENESES – Para zombar começaríamos tarde!
CAROLINA – E que zombem, não faz mal. Toda a criatura boa tem o seu fraco; assim toda a mulher conserva sempre um cantinho puro onde se esconde a sua alma.
MENESES – Estás bem certa que tens uma alma, Carolina?
CAROLINA – Talvez me engane; é possível. Mas eu guardo-a com tanto cuidado!
ARAÚJO – Aonde, nalguma caixinha?
CAROLINA – Justamente! Numa caixinha de charão... Vai ver, Helena; está no meu guarda-vestidos. (Dá-lhe as chaves.) No meio de todas as minhas extravagâncias, de todos os meus prazeres, eu sentia uma pequena parte de mim mesma, que nunca ficava satisfeita; chamei a isto minha alma, tive pena dela, fechei-a dentro dessa caixa, e disse-lhe que esperasse até um dia em que seria feliz.
(Helena volta com a caixa.)
ARAÚJO – Ah! É esta?
MENESES – E de que maneira pretendes dar-lhe a felicidade?
CAROLINA – Não sei; mas como o dinheiro é tudo, fiz uma cousa: dividi o que eu tinha e o que viesse a ter com a minha alma. Voltava de uma ceia onde me tinha divertido muito; metia dentro desta caixa todo o dinheiro que possuía, para que um dia o espírito tivesse um igual divertimento. As minhas joias depois de usadas uma vez, se escondiam aqui dentro; enfim a cada prazer que eu gozava, correspondia uma esperança que guardava.
MENESES (apontando para a caixa.) – E quanto valerá hoje a tua alma?
CAROLINA – Não sei; o que entra aqui dentro é sagrado, não lhe toco, nem lhe olho; tenho medo da tentação. Só abro esta caixa à noite, quando me deito.
MENESES – Pois deixa dar-te um conselho: põe a tua alma a juro na — Caixa Econômica, — e esquece-te dela. Há de servir-te na velhice. Ou então diverte-te!...
CAROLINA – Não; vou dá-la.
ARAÚJO – A quem!
CAROLINA – A um homem que não me ama; e por causa do qual jurei que havia de ver todos os homens à meus pés, para vingar-me neles do desprezo de um. E sabem se cumpri o meu juramento!...
MENESES – É talvez isto, Carolina, que faz de tua vida um fenômeno, que eu estudo com toda a curiosidade. Tu és um desses flagelos, não faças caso da palavra; um desses flagelos que a Providência às vezes lança sobre a humanidade para puni-la dos seus erros. Começaste punindo teus pais que te instruíram, e te prendaram, mas não se lembraram da tua educação moral; leste muito romance, e nunca leste o teu coração. Puniste depois o Ribeiro que te seduziu, e o Pinheiro que te acabou de perder; ao primeiro que te roubou à tua família deixaste uma filha sem mãe; ao segundo que te enriqueceu empobreceste. Só me resta ver como te castigarás a ti mesma; se não me engano tu acabas de revelar-me. Espero pelo tempo. Vamos Araújo.
CAROLINA – O senhor veio fazer-me ficar triste.
ARAÚJO – Virá depois de nós quem a alegre.
CAROLINA – Escute!... Não!
ARAÚJO – Arrependeu-se?
CAROLINA (à meia voz.) – Como está Luís?
ARAÚJO – Não sei.
CAROLINA – Não o tem visto!
ARAÚJO – Ainda ontem.
CAROLINA – Ele lhe fala às vezes em mim?
ARAÚJO – Nunca.
CENA VI
editarCAROLINA E HELENA.
CAROLINA – Nunca!...
HELENA – Estás falando só?
CAROLINA – Estava me lembrando de uma cousa... Ele não virá, Helena!
HELENA – Por que razão?
CAROLINA – Ainda perguntas?
HELENA – Não creias. Estou quase apostando que não tarda aí.
CAROLINA – Tu não conheces Luís!
HELENA – Ora é boa! Conheço os homens, Carolina; para eles uma mulher, é sempre uma mulher, sobretudo quando é bonita.
CAROLINA – Terá recebido a carta?
HELENA – O Vieirinha entregou-a, em mão própria.
CAROLINA – O Vieirinha?... Não tinhas outra pessoa por quem mandar?...
HELENA – Que tem que fosse ele?
CAROLINA – Nada; é que me aborrece esse homem. Desejo nem vê-lo!...
HELENA – Tu bem sabes...
CAROLINA – Sei, mas não estou para suportá-lo. Entra na minha casa como se fosse dono dela; ontem fui achá-lo naquela sala a remexer na minha cômoda.
HELENA – E falou-te alguma cousa?
CAROLINA – Não; mas para que isso não torne a acontecer, previno-te que se queres continuar a morar comigo deves descartar-te dele.
HELENA – Não me animo a dizer-lhe...
CAROLINA – É um homem sem caráter!
HELENA – Gosto dele, Carolina!
CAROLINA – Tens um gosto bem extravagante!
HELENA – Confesso! Se tu soubesses o que tenho sofrido!...
CAROLINA – Porque queres.
HELENA – É verdade; mas não sei que poder tem sobre mim, que não posso resistir-lhe! Conheço que é um homem capaz de tudo; e entretanto, Carolina, se ele vier pedir-me, como já tem feito muitas vezes, que venda um traste meu para desempenhar o seu relógio... Tu vás te rir?... Pois eu não lhe negarei!
CAROLINA – Não me rio, não, Helena; ao contrário, tive uma ideia bem triste.
HELENA – Que ideia?
CAROLINA – Será esse o fim da nossa vida? A mulher que perverte seu coração estará condenada a amar um dia algum homem ainda mais baixo do que ela?
HELENA – E quem nos pode amar senão esses, Carolina?
CAROLINA – Mas isso não é amor!
(Luís aparece na porta do fundo.)
CENA VII
editarAS MESMAS E LUÍS.
HELENA – Sr. Viana!...
CAROLINA – Ah!...
LUÍS – Não bati palmas, porque julgo que entra-se aqui como no teatro. (Tira uma nota de cinquenta mil-réis.) Quem recebe o bilhete?... Ninguém!... Fica sobre esta mesa.
CAROLINA (baixo à Helena.) – Antes não viesse.
HELENA (idem.) – É rompante.
LUÍS – Recebi uma carta de uma pessoa chamada Carolina, que mora nesta casa e que diz querer falar-me. Qual é das duas?
CAROLINA – Luís!...
LUÍS – Por este nome só me tratam os meus amigos e as pessoas que eu estimo.
CAROLINA – Não é preciso recorrer a estes meios para mostrar-me o seu desprezo; eu o sinto mesmo de longe, e agora vejo-o mais no seu olhar do que nas suas palavras.
LUÍS – Que quer de mim?
CAROLINA – Queria fazer-lhe um pedido; mas já não tenho coragem.
LUÍS – Então é inútil a minha presença aqui.
CAROLINA – Não! Espere! Farei um esforço; porém prometa-me ao menos uma cousa.
LUÍS – Não é preciso.
CAROLINA – É muito; prometa-me que por mais estranho que lhe pareça o que vou dizer-lhe, deixe-me falar; depois acuse-me, escarneça de mim; é o seu direito; não me queixarei.
LUÍS – A recomendação é escusada; três vezes procurei com as minhas palavras reparar um erro; mas convenci-me que quando tine o ouro, não se ouve a voz da consciência. Pode falar.
CAROLINA – Sente-se. (À Helena.) Fecha aquela porta e deixa-nos.
CENA VIII
editarLUÍS E CAROLINA.
LUÍS – Espero!
CAROLINA – Consinta que ao menos agora que ninguém nos ouve eu o chame Luís, como antigamente.
LUÍS – Para quê?
CAROLINA – Este nome me lembra certa intimidade, e me faz esquecer o ano que se acaba de passar.
LUÍS – Por que esquecê-lo? É o mais feliz da sua vida!
CAROLINA – Podia ter sido se alguém me tivesse amado; mas ele não quis, ou não julgou que uma moça perdida valesse a pena de uma afeição.
LUÍS – E valia?...
CAROLINA – Talvez, Luís! Sem o despeito dessa repulsa talvez a filha não fosse surda ao grito de sua mãe e a mulher resistisse à fascinação que a atraía.
LUÍS – Ora!...
CAROLINA – Oh! Não me defendo! A culpa é minha; o mal estava aqui. (Leva a mão à fronte.) Tinha sede de prazer e precisava saciar-me; entretanto creio que também havia alguma cousa aqui, (leva a mão ao coração) porque depois das minhas loucuras sentia um remorso do que tinha feito; e me parecia que me afastava cada vez mais daquele de quem desejava aproximar-me. É cousa singular! Era justamente este remorso, que me irritava mais, que me lançava nalgum novo escândalo, e me fazia olhar com um soberano desprezo para essa sociedade que me repeliu, e para todas essas mulheres virtuosas que ele podia amar.
LUÍS – Foi então para dizer-me isto... que...
CAROLINA – Foi para dizer-lhe que esse amor louco me tem sempre acompanhado, que resistiu a tudo, e que hoje se ajoelha a seus pés!...
LUÍS – Carolina!...
CAROLINA – Luís, não te peço que me ames, não; sou indigna, eu o sei! Mas, eu te suplico, me deixa amar-te!
LUÍS – Cale-se!
CAROLINA – Que lhe custa isso? Um homem não se mancha com a afeição de uma mulher, por mais desprezível que ela seja; e é sempre doce sentir que se dá um pouco de felicidade a uma pobre criatura que o mundo condena.
LUÍS – Não sou rico!
CAROLINA – A mulher que ama não vende o seu coração: suplica que o aceitem!...
LUÍS – E o partilhem com os outros!...
CAROLINA – Não me compreende, Luís. Vê esta caixa? Aqui tenho as economias da minha dissipação; guardei-as para um dia poder gozar um momento dessa existência doce e tranquila, que eu não conheço. Não sei enquanto importam; mas devem chegar para viver um ou dous anos na Tijuca, ou em Petrópolis. Venha comigo! Consinta que o ame! Logo que o aborrecer deixe-me! Assim ao menos quando começar para mim o desengano, quando de meus anos gastos na perdição só restar a velhice prematura, eu terei as recordações desses poucos dias de felicidade para encher o vácuo do passado!
LUÍS – Adeus, Carolina.
CAROLINA – Não me recuse!...
LUÍS – Eu lhe perdoo, porque ignora que isto que me propõe é uma infâmia! Nunca amou, Carolina, senão compreenderia que ninguém se avilta a ponto de aceitar esses sobejos de amor, esses restos de um luxo pago por tantos outros. Seus primeiros amantes, a quem arruinou, diriam que eu vivia da sua miséria.
CAROLINA – Oh! não!...
LUÍS – É inútil!
CAROLINA – Pois bem!... Antes de partir... porque sei que é esta a última vez que nos vemos... Luís... (Apresenta-lhe a fronte timidamente.)
LUÍS – O quê?...
CAROLINA – A sua lembrança!...
LUÍS – Outros lábios a apagariam!
CAROLINA – Ah!...
CENA IX
editarCAROLINA E HELENA.
HELENA – Que foi?
CAROLINA – Nada!... Meneses tem razão!
HELENA – Em quê?...
CAROLINA – O melhor destino que eu posso dar à minha alma (aponta para a caixa) é gastá-la em uma ceia, e beber à nossa saúde.
HELENA – Que dizes?
CAROLINA – Quero divertir-me!
HELENA – Fazes bem!
CAROLINA – Acende velas.
(Vieirinha entra e descobre a nota que Luís deixara.)
CENA X
editarAS MESMAS E VIEIRINHA.
VIEIRINHA – Oh! Como anda o dinheiro por aqui! É teu, Helena?
CAROLINA – Não senhor, é meu. Faz favor.
VIEIRINHA – Empresta-me até amanhã.
CAROLINA – Nunca empresto, costumo dar.
VIEIRINHA – Então melhor...
CAROLINA – Mas este não posso. Dar-lhe-ei outro.
VIEIRINHA – Olhe lá!...
CAROLINA – Dou-lhe este mesmo! (Toma o bilhete, e acende com ele o charuto.)
HELENA – Que vais fazer?
VIEIRINHA – Não consinto!...
CAROLINA (atirando a cinza do bilhete a Vieirinha.) – Aí tem: e aprenda a fumar!
VIEIRINHA – Uma fumaça de cinquenta mil-réis.
CAROLINA – Tome; veja que gosto tem!
VIEIRINHA – Apanha, Helena!
HELENA – Estão batendo.
VIEIRINHA – Pode entrar.
CAROLINA – Vai ver quem é, Helena.
VIEIRINHA – Se procurarem por mim, dize que não estou em casa.
CAROLINA – Não podem procurar pelo senhor, que não mora aqui; e aproveito a ocasião para dizer-lhe que me faz um grande obséquio não aparecendo mais em minha casa.
VIEIRINHA – Por hoje fico ciente.
CAROLINA – Já disse o mesmo a Helena.
VIEIRINHA – Depois arranjaremos isto. Podes entrar, Ribeiro, senta-te.
CENA XI
editarOS MESMOS E RIBEIRO.
RIBEIRO – Adeus, Carolina, como está?
CAROLINA – Boa, obrigada. E... ela?
RIBEIRO – Sua filha... Está muito linda!... É em seu nome que venho...
CAROLINA – Fazer o quê?
RIBEIRO – Não se assuste; é uma cousa muito simples. Lembra-se, Carolina, que à um ano, depois que nos separamos, apesar de não querer conservar nada do que lhe tinha dado, aceitou como lembrança de sua filha uma cruzinha de pérolas...
CAROLINA – Lembro-me. Por quê?
RIREIRO – Ontem, por acaso vendo algumas joias reconheci entre elas essa cruz. Pensei que talvez alguma necessidade urgente a obrigasse a vendê-la; comprei-a, e de novo lhe peço que a guarde em lembrança de sua filha.
CAROLINA – Parece-se; mas não é a mesma...
(Sai Vieirinha.)
RIBEIRO – Veja na chapa o seu nome.
CAROLINA – É verdade!... (Assustada.) Mas como é possível!...
RIBEIRO – Nunca se desfez dela?
CAROLINA – Estava nesta caixa, com todas as minhas joias!... Para tirá-la... (Abre a caixa rapidamente; tira de dentro uma porção de caixinhas vazias.) Tudo! Tiraram-me tudo! Meu dinheiro!... Minhas joias!
HELENA – Foi ele! (Apontando para a porta.) Oh! tenho toda a certeza!
RIBEIRO – O Vieirinha?...
HELENA – Sim; já me fez o mesmo, e ontem Carolina achou-o remexendo...
CAROLINA – Esqueceu uma!... Leva a esse miserável, teu amante, para que aproveite os restos do seu crime!
RIBEIRO – Era tudo quanto possuía, Carolina?
CAROLINA – Tudo! E roubaram-me!...
RIBEIRO – Então está pobre?
CAROLINA – Pobre!... Oh!... Não! Sou moça!