Capitulo IV
OS ESPIÕES DA EMILIA
ENTRE os animais da floresta que iam fazer a guerra ao sitio de dona Benta havia traídores. Eram os espiões da Emilia. A terrivel bonequinha fizera amizade com um casal de besouros casacudos, muito santarrões, que viviam fingindo estar a dormir mas que não perdiam nada do que se passava na floresta. Durante a reunião dos animais tambem eles estiveram presentes, vendo e ouvindo tudo lá do seu cantinho. Em seguida foram dar parte do acontecido á boneca.
— Eles vão atacar a casa e comer toda a gente do sitio, disse o besouro com voz cautelosa.
— Eles quem? indagou Emilia.
— As onças, as iráras e os cachorros do mato.
— Elas, então, disse Emilia, que se implicava muito com a regra de gramatica que manda pôr o pronome no masculino quando ha diversos sujeitos de sexos diferentes. Elas vão atacar o sitio, não é? Pois que venham. Serão muito bem recebidas. Tenho lá um espeto danado para espetar onça, irára, jaguatirica e cachorro.
Mas os besouros contaram minuciosamente tudo quanto tinham ouvido na assembléa da capivara boneca viu que o caso não era de brincadeiras. Resolveu lá consigo ir incontinenti avisar Pedrinho; mas para não dar a perceber os seus receios fez-se de valentona.
— Veremos, disse ela aos besouros admirados daquele sangue frio. Veremos! Nós matamos ha pouco uma onça pintada, a maior que existia por aqui, e faremos a mesma coisa até para leões e hipopotamos, se aparecerem. A bicharia ha de convencer-se de que conosco ninguem brinca. Atacar o sitio! Desaforados... E para quando é o tal ataque?
— O dia ainda não está marcado. A jaguatirica anda a correr a mata para reunir todos os atacantes.
— Muito bem, concluiu Emilia sem pestanejar. Continue espionando e avisando-me de tudo quanto souber. Vou contar tudo a Pedrinho. Até logo!
Emilia voltou para casa na carreira e já de longe foi gritando por Pedrinho. Encontrou-o na varanda, a fazer uma arapuca de talos de folhas de embauva para apanhar rolinhas.
— Largue disso, gritou Emilia ao subir a escada. Temos novidade para breve. O sitio vái ser assaltado pelas onças, cachorros do mato e iráras.
O menino olhou para ela com os olhos arregalados.
— Que bobagem está você dizendo, Emilia? Assaltado, por que? Como?
A boneca desfiou toda a conversa tida com os besouros e concluiu assim:
— Temos guerra, é isso. Matamos a onça e agora a onçada toda quer retribuir a gentileza.
Pedrinho refletiu por alguns instantes. Depois recomendou:
— Não diga nada a vóvó, nem a tia Nastacia, pois são capazes de morrer de medo. Vou estudar o caso e organizar a defesa. Vá depressa ver Narizinho e o visconde. Diga-lhes que me esperem no pomar, debaixo da jaboticabeira grande. Aqui na varanda não poderemos tratar disso. Vovó descobriria tudo.
Minutos depois realizava-se debaixo da jaboticabeira grande uma segunda assembléa, menos numerosa que a dos bichos. Compareceram todos, inclusive o marquês de Rabicó. Pedrinho pediu á boneca que repetisse a sua conversa com os besouros espiões. Emilia repetiu, terminando assim:
— E’ guerra e das boas. Não vái escapar ninguem — nem tia Nastacia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goélas para devorar todos os bipedes do sitio, exceto os de pena.
O marquês de Rabicó sorriu. Se as onças iam devorar todos os bipedes, ele, na sua nobre qualidade de quadrupede, estaria fóra da matança. Que felicidade ser quadrupede! pensou lá consigo.
Pedrinho começou a estudar a defesa.
— Sabem do que mais? disse ele. Vou abrir uma linha de trincheiras em redor da casa.
— Inutil, isso, Pedrinho, objetou a menina. As onças são umas danadas para saltar. Pulam qualquer trincheira.
Pedrinho achou razoavel a observação e refletiu um pouco mais. Depois disse:
— Nesse caso, poderemos rodear a fazenda duma cerca de paus a pique, bem pontudos. Construir uma estacada, como as usavam os indios.
— Impossivel, objetou outra vez Narizinho. Para fazer semelhante estacada teriamos de contratar varios homens para cortar os paus e finca-los — e vóvó desconfiaria e viria a saber de tudo. Com estacada não vái. Temos de descobrir outro caminho.
E voltando-se para o visconde; que ainda não pronunciara uma só palavra:
— Qual a sua opinião, visconde?
Como tivesse corpo de sabugo, o visconde jamais mostrou o menor medo de onça, ou de qualquer outro animal carnivoro. Medo só tinha de vaca, bezerro, cavalo e outros animais comedores de milho. Assim foi que disse:
— Ataque de onça! Ora, ora... Que valem onças? Se fosse um ataque de vacas, sim, compreendo que estivessemos assustados. Mas de onças...
— E você, Rabicó, que acha? perguntaram ao marquês.
O marquês nunca achava coisa nenhuma. Sua preocupação unica era descobrir coisas de comer. Quando lhe pediam opinião sobre aboboras, xuxús, cascas de banana ou mandioca, sim, ele as dava otimas. Mas sobre onças...
— Eu acho que... que... que... e engasgou.
— Quequerequeque... Para achar isso não valia a pena ter aberto a boca, disse Pedrinho. Temos que achar qualquer coisa. Temos que resolver. O caso é dos mais sérios. Nossas vidas correm perigo, bem como as vidas de vóvó e tia Nastacia. Vamos! Venham idéas. Deem tratos á bola e resolvam...
— Tenho uma idéa excelente! gritou Narizinho, batendo palmas.
— Qual é? exclamaram todos, ansiosos, voltando-se para ela.
— E’ deixarmos isto para amanhã. As grandes coisas devem ser bem pensadas e não pódem ser decididas assim do pé para a mão. A guerra não é para já, pois que a jaguatirica ainda anda a avisar as companheiras. Até que fale com todas e organizem o plano de ataque, se passarão alguns dias. Para agora temos uma coisa excelente a fazer. Uma surpresa...
Disse e ergueu-se, correndo para a margem do ribeirão onde na vespera tia Nastacia havia escondido qualquer coisa. Todos a seguiram, curiosos.
— Que é, que é, Narizinho? Que surpresa é essa?
Em vez de responder, a menina espalhou um montinho de folhas sêcas que havia junto ás pedras do rio e revelou aos olhos do bando um lindo cacho de brejaúvas.
— Viva! Viva! gritou Pedrinho, que se pelava por brejaúvas. Como arranjou isso, Narizinho?
— Foi o Antonio Carapina que nos mandou de presente hontem á noite. Tia Nastacia recebeu o cacho e veiu esconde-lo aqui para que não acontecesse como da outra vez, que sujamos de casca a varanda e a calçada.
— E por que não me disse nada?
— Para fazer uma surpresa. Não acha que foi melhor assim?
— Sentaram-se todos em redor do cacho de brejaúvas e começaram a partir os côcos sobre uma grande lage que havia ali.
— Otimas! exclamou o menino comendo com gula a deliciosa polpa branca e macia daqueles côcos no ponto. O Antonio Carapina tem as melhores idéas do mundo. Próve, Emilia, este pedacinho...
Minutos depois estava o chão coberto de cascas, entre as quais o focinho de Rabicó passeava, lambiscando o que podia. Enquanto isso, as onças lá na mata marcavam o ataque ao sitio para o dia seguinte. Felizmente os dois besouros encapotados estiveram presentes á reunião e tudo ouviam dum galhinho seco.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.