Capitulo VIII
OS NEGOCIOS DA EMILIA
DESDE essa aventura ficou Pedrinho com mania de caçadas — mas de caçadas de féras africanas. Queria leões, tigres, rinocerontes, elefantes, pantéras, e queixava-se a dona Benta (como se a boa senhora tivesse culpa) da pobreza da America a respeito de féras. Chegou a sugerir-lhe que vendesse o sitio para adquirir outro bem no coração do Uganda, que é a região da Africa mais rica em leões.
— Aqui nem dá gosto morar, vóvó, dizia ele torcendo o nariz. Fóra o jaguar, que outra féra possuimos? Só paca e veado e anta — uns pobres herbivoros que têm medo de gente. Eu queria mas era enfrentar peito a peito um rinoceronte!...
Dona Benta arrepiava-se com aquilo. Lera muita coisa sobre as grandes féras africanas e sabia que nenhuma existe mais traiçoeira e feroz do que o rinoceronte, com aquele seu terrivel chifre unico no meio da testa. A pobre senhora esfriava da cabeça aos pés só ao lembrar-se do horror que seria uma chifrada de tal chifre.
— Veja, Nastacia, para que deu Pedrinho agora! dizia ela. Quer caçar rinocerontes... Não sei por quem puxou essa terrivel inclinação.
Tia Nastacia benzia-se. Ignorava o que fosse um rinoceronte, não o tinha visto nem no cinema, nem em desenho, mas a simples palavra a assustava. “Rinoceronte, crédo!”
— E o peior, continuou dona Benta, é que quando estas crianças encasquetam fazer uma coisa, fazem mesmo. Eles viram e mexem e acabam caçando algum rinoceronte. Você vái ver.
E assim aconteceu. Parece fabula, parece mentira do barão de Münchhausen, e no entanto é verdade pura: os netos de dona Benta caçaram um rinoceronte de verdade!...
— Como?
— Esperem lá.
Algum tempo depois do assalto das onças chegou ao Rio de Janeiro um grande circo de cavalinhos que era uma verdadeira arca de Noé. Trazia enorme bicharada — seis leões, tres girafas, quatro tigres, zebras, hienas, fócas, pantéras, cangurús, giboias e um formidavel rinoceronte. Quando Pedrinho leu nos jornais a noticia do grande acontecimento, ficou assanhadissimo. Quís ir ao Rio ver as féras, chegando até a escrever a dona Tonica, sua mãe, pedindo licença e meios. Antes, porém, de receber qualquer resposta, um fato sensacional se deu no Rio: o rinoceronte arrebentou as grades da jaula, certa noite de temporal e fugiu. Fugiu para as matas da Tijuca, tomando depois rumo desconhecido.
Esse fato causou o maior reboliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversarios.
“Um rinoceronte interna-se nas matas brasileiras”, era um titulo de artigo que se lia em letras graúdas em todos os jornais. Durante um mês ninguem cuidou de mais nada. Grande numero de bombeiros e soldados da policia foram mobilizados. Os melhores detectives do Rio aplicavam toda a sua esperteza em formular planos para a captura do misterioso animal. As forças, que na Baía andavam caçando o Lampeão, deixaram em paz esse bandido para tambem se dedicarem á caça do monstro. Dizem até que o proprio Lampeão e seus companheiros pararam de assaltar as cidades para se entregarem ao novo esporte — caça de rinocerontes.
Onde estaria ele? Nas florestas do Amazonas? Nas matas virgens do Espirito Santo? Ninguem o sabia. Telegramas chegavam de toda a parte, sugerindo pistas. Um de Manáos dizia: “Numa floresta, a dez leguas desta cidade, foi visto, dentro dum cerrado de taquarussús, o vulto negro dum monstro que parece ser o tal rinoceronte. Pedimos providencias”.
Cinco detectives e numerosos bombeiros foram mandados para aquele ponto, de avião, para investigar. Descobriram tratar-se duma vaca preta que ficara enredada na moita de taquarussús...
Outro telegrama no mesmo sentido veiu da cidade de Cachoeiro, no Espirito Santo. “Nas matas vizinhas ouvem-se urros que não são de onça, nem de nenhum animal conhecido por aqui. Pedimos energicas providencias”.
O avião dos detectives voou para lá. Era um papagaio que fugira dum jardim zoologico, onde aprendera a imitar o urro de todos os animais.
Onde estava o rinoceronte? eis a pergunta que de manhã á noite se repetia pelo país inteiro. Onde poderia ter-se escondido a tremebunda féra?
Ninguem possuia elementos para responder. Ninguem sabia. Ninguem, ninguem, exceto... Emilia!
Parecerá um absurdo isto. Parecerá invenção de gente sem serviço e, no entanto, é a verdade pura. Só a pequenina boneca do sitio de dona Benta sabia realmente onde estava escondida a féra!...
O caso foi assim. Logo que naquela noite de temporal o rinoceronte escapou da jaula e internou-se nas matas da Tijuca, deu de andar sem rumo, e foi varando, sempre para deante, num tróte respeitavel, até que pela madrugada rompeu na mata virgem do sitio de dona Benta. Gostou do lugar e resolveu ficar por ali, pastando a viçosa folhagem das arvores que encontrou.
A presença do rinoceronte causou grande reboliço entre os habitantes daquela mata. A capivara, que vive tanto em terra como em agua, atirou-se ao rio e não teve mais coragem de saír. As onças fugiram. Os macacos empoleiraram-se na mais alta de todas as arvores. Nenhum animal podia compreender um bicho tão estranho e monstruoso. Observando aquilo, os besouros da Emilia resolveram dar-lhe parte do sucedido. Foram procura-la.
— Apareceu lá na mata um bicho que não se parece com bicho nenhum nosso conhecido, informaram eles gemeamente.
— Grande? perguntou a boneca.
— Terá o tamanho duma casa de caipira.
Emilia calculou logo que fosse algum boi tresmalhado, mas pela descrição que os besouros fizeram viu logo que não podia ser boi. De repente teve uma idéa.
— Escutem, disse ela. O tal monstro é preto?
— Sim.
— Tem couro enrugado?
— Enrugadissimo.
— Um chifre só no meio da testa?
— Isso mesmo. Um chifre pontudissimo.
— Come gente?
— Não. Só come folhas de arvore.
Emilia pôs-se a refletir, com a mãozinha no queixo. Ou era unicornio, animal fabuloso que não existe, pensou ela, ou era rinoceronte — e como Emilia andava cheia de rinocerontes na cabeça de tanto ouvir Pedrinho ler as noticias do que fugira do circo, imediatamente percebeu que se tratava do mesmo.
— E’ ele! exclamou em voz alta. Que sorte tem Pedrinho! Quís um rinoceronte e um rinoceronte apareceu!...
— Ele quem? indagaram os besouros com as testinhas franzidas.
— ELE! repetiu a boneca fazendo uma tal cara de pavor que os besouros puseram-se a tremer. ELE é ELE, sabem?
Emilia teve preguiça de ensinar áqueles burrinhos o que era um rinoceronte. E assim, para mais ainda os assustar, fez outra cara horrendissima e repetiu em tom cavernoso:
— ELE!...
Os dois besouros desmaiaram.
Emilia deixou-os lá e voltou para casa sem pressa nenhuma, pensando. Ciganinha como era, costumava tirar partido de tudo. Por isso estava-se tornando a boneca mais rica do mundo. O acaso a fizera descobrir um rinoceronte. Pois bem: Emilia iria vender esse rinoceronte a Pedrinho...
Quando entrou na varanda já trazia o seu plano formado.
— Pedrinho, disse ela, tenho um bom negocio a propor.
O menino estava espichado na cadeira preguiçosa lendo os ultimos jornais recebidos. Sem tirar os olhos da noticia que lia, respondeu:
— Já vem ela com os tais negocios! Negocios de boneca — bobagens...
— Trata-se dum negocio muito sério, Pedrinho. Quando você souber o que é, vái arregalar um olho deste tamanho!
— Pois então desembuche logo e não amole, disse ele sem tirar os olhos do jornal. Estou lendo uma noticia muito interessante sobre o rinoceronte fugido.
Emilia fingiu - se interessada.
— Sim? fez ela. Que diz a noticia?
— Diz que tudo isto, toda esta historia de rinoceronte fugido não passa duma formidavel pêta. Não existe rinoceronte nenhum. O diretor do circo inventou a historia apenas para reclame.
— Que pena! exclamou a boneca fingindo tom compungido. Seria tão bonito se fosse verdade...
— Eu logo vi que era pêta, disse Pedrinho querendo bancar o esperto. Percebi desde o começo que se tratava duma formidavel pêta. Rinoceronte no Brasil! Impossivel. Esses animais não suportam o nosso clima.
Emilia sorriu de tal geito que o menino desconfiou.
— De que está rindo assim, boba?
— Da sua esperteza, Pedrinho. Bem diz tia Nastacia que você é um alho...
— Muito obrigado pelo elogio, mas, alho ou cebola, deixe-me em paz. Olhe, Emilia, vá ver se eu estou no pomar, ouviu?
— Então não quer fazer o negocio que venho propor.
Pedrinho queria e não queria. Por fim a curiosidade o venceu.
— Que negocio é? Vamos, diga logo.
Emilia preparou-se para apresentar o negocio. Antes, porém, fez um rodeio.
— Escute cá, Pedrinho. Quanto acha você que vale um rinoceronte no Brasil? Responda!
O menino tonteou com o disparate. Não podia haver pergunta mais absurda e boba do que aquela. Ficou danado.
— Foi para isso que me veiu interromper a leitura do jornal? Ora vá lamber sabão, ouviu?
Novo sorriso finorio da boneca, que disse:
— Paz, paz, não se queime. Responda á minha pergunta. Dê um preço qualquer.
— Não amole, Emilia! Se insiste, jogo você pela janela.
A boneca viu que o meio de conseguir que Pedrinho respondesse era mete-lo em brios.
— Não sabe, disse ela. E’ natural. Um menino que jamais saíu do Brasil, que não esteve nem no Rio de Janeiro, é natural que não saiba o preço dum rinoceronte. Está desculpado...
— Bobagem! exclamou Pedrinho, queimado. Então é preciso ter saído do Brasil, ter viajado o mundo, para saber uma coisa tão atôa como essa? Basta um pouco de raciocinio.
— Pois raciocine e responda á minha pergunta.
Pedrinho pensou um bocado e disse:
— Vale contos de réis. O valor das coisas está em relação com a raridade delas, diz vóvó. Numa terra onde haja centenas de rinocerontes, um deles vale... vale quanto? Vale o mesmo que um boi ou uma vaca. Mas em terra onde não ha nenhum, vale o que fôr pedido pelo seu dono. Eu, por exemplo, se fosse rico, era capaz de dar até trinta contos por um rinoceronte.
— Bom. Se fosse rico dava trinta contos. E quanto dá, sendo pobre? Tinha coragem de dar por um deles o carrinho de cabrito?
Esse carrinho de cabrito constituia o orgulho do menino. Fôra presente do Manoel Carapina, um carpinteiro que passara ali dois meses reformando os assoalhos da casa. Pedrinho dava mais valor ao carrinho do que a todos os cóches dourados de todos os reis da terra — pela simples razão de que o carrinho lhe pertencia e os cóches pertenciam aos reis. Mas um rinoceronte era um rinoceronte, de modo que a resposta do menino foi o que podia ser.
— Um rinoceronte vale todos os carrinhos de cabrito do mundo inteiro, disse ele.
— Pois eu tenho um rinoceronte para vender e se você quiser troca-lo pelo carrinho, o negocio está feito.
Era tão absurdo aquilo que o menino danou, certo de que a boneca estava a mangar com ele.
— Basta! gritou. Se continúa a me amolar com essa historia, vou lá no seu cantinho e quebro todos os seus brinquedos. Disse, e absorveu-se de novo na leitura dos jornais.
Emilia não contara com aquela saída. Percebeu que nem Pedrinho, nem ninguem no mundo jamais acreditaria que ela realmente tivesse um rinoceronte para negociar — e desse modo estava arriscada a perder um grande negocio, talvez o melhor negocio da sua vida...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.