Personagens: DOUTOR PEREIRA e CARLOTA

DR. PEREIRA — Sentemo-nos.

CARLOTA — Trata-se...

DR. PEREIRA — Do meu divórcio.

CARLOTA — Um divórcio!!

DR. PEREIRA — Em duas palavras, resumo-lhe a situação! Sou médico da ponta dos pés até a raiz dos cabelos: minha mulher é médica da raiz dos cabelos até a ponta dos pés. Viver, para mim, é clinicar, clinicar, para ela, é viver. Não podemos clinicar juntos, o que quer dizer que juntos não podemos viver. Diga-me agora o que a sua ciência do Direito pensa a respeito.

CARLOTA — Difficelem rem postulasti. O nosso Direito, eivado de arcaísmos, não cogitou propriamente da hipótese.

DR. PEREIRA — Se não cogitou, estamos aqui a perder tempo.

CARLOTA — Perdão; eu disse não cogitou propriamente; mas a toda a lei se interpreta...

DR. PEREIRA — Se torce, é o que quer dizer.

CARLOTA — Scire leges non est verba carum tenere sed vim ac potestatem. Para prosseguir na concatenação lógica das linhas de clinicar, originavam-se rixas ou doestos domésticos?

DR. PEREIRA — Constantes. E é por causa deles...

CARLOTA — Bem. Nestas rixas trocaram-se talvez verbos in­candescentes que escoriavam pelo menos a epiderme do amor próprio de cada um.

DR. PEREIRA — O amor próprio e os interesses.

CARLOTA — O legislador assinalou apenas duas causas para o divórcio: adultério e sevícias. Há ainda uma causa que os canonistas chamam impedimentos derimentes, mas... está fora da questão.

DR. PEREIRA — Não posso alegar a primeira.

CARLOTA — Mas havemos de ganhar a demanda pela segunda. Pela segunda, sim, porque constituindo injúrias esses verbos incandescentes das rixas, o que são essas injúrias senão verdadeiras seví­cias morais?... O seu caso é o que os canonistas cognominam no idioma vernáculo — incompatibilidade de caracteres.

DR. PEREIRA — Aconselha-me então...

CARLOTA — Que proponha a ação. E havemos de ganhá-la.

DR. PEREIRA — Bem. (Levanta-se.)

CARLOTA — Que sucesso piramidal! Vai ver como vou aureolar de glória o meu nome. Hei de mostrar a esses miseráveis apedeutas o que há debaixo desta arcada craniana. (Bate na testa.)

DR. PEREIRA — Decidido porém o divórcio, ficarei numa posição anômala.

CARLOTA — Anômala?

DR. PEREIRA — Quero dizer que não serei nem solteiro, nem casado, nem viúvo!

CARLOTA — Pode casar perfeitamente.

DR. PEREIRA — E a indissolubilidade do contrato?

CARLOTA (Com indiferença.) — Desaparecerá... com uma simples mudança de religião.

DR. PEREIRA — Ah! (Fica pensativo.)

CARLOTA — E uma vez desembaraçado, o meu amigo escolherá para esposa não outra médica; mas sim uma engenheira... uma advogada... (Luísa tem um ímpeto de indignação, quer entrar em cena mas, arrepende-se, e esconde-se de novo.)

DR. PEREIRA — Então, Doutora, posso dar uma lição em minha mulher?

CARLOTA — Pode.

DR. PEREIRA — A que horas está amanhã no seu escritório?

CARLOTA — Amanhã é... Logo escrever-lhe-ei mandando dizer-lhe qual o dia e a hora em que deve procurar-me. (Apertando-lhe a mão.) Adeus! (Pereira aperta-lhe a mão e ela sai.)