Majestoso assoma o astro rei.

O deserto enche-se de luz e vida.

Desdobram-se a perder de vista as vastas planícies que formam o dorso da gigantesca serrania, e a cobrem, como pelos de hirsuta fera, as densas e sombrias florestas virgens.

O velho pajé lá está acocorado na crista do rochedo. A seus pés corre aos saltos o caudaloso rio, que de repente tolhido no arrojo por uma mole de granito, empina e boleia-se como um indômito corcel, precipitado do alcantil, montanha abaixo.

Imóvel e estreitamente ligado ao negro rochedo como uma continuação dele, o selvagem ancião parece algum ídolo americano, que o rude labor dos aborígines houvesse lavrado no píncaro da rocha, deixando-o assente em seu pedestal nativo. As longas e alvas cãs espargem-se pelas espáduas, como os frocos de espuma que desfiam na lomba do penedo.

Do rosto seu, lhe ficou a fronte nua e proeminente, onde os raios do sol nascente batem de chapa; o resto das feições somem as rugas profundas que os anos cavaram naquela tez negra e requeimada.

Não é mais fisionomia humana; as revoluções da vida a desfiguraram inteiramente, como os cataclismos transformam o risonho vale em um brejo cheio de tremedais e corcovas. As fosforescências, que à noite luzem dessas profundas charnecas, são os fulgores dos olhos fugidos pelas órbitas.

Esses olhos, tão fortes ainda, que se afrontam com os esplendores do sol, o velho pajé ora os põe no chão, onde a terra forma como um álveo abandonado pelo rio, ora os estende pelo horizonte além, como se devassassem a incomensurável distância.

Que viam eles nesses pontos extremos?

Ali naquela areia, que outrora umedeciam as águas do caudaloso rio, cintilam frouxamente aos raios do sol nascente miríadas de pequenas pedras brancas da feição de pingos de cristal. Deus semeara o diamante em abundância aí, bem longe da ambição humana, que mais tarde devia ir arrancá-lo de seu leito ignorado. O velho, que nesse momento as contempla desdenhosamente de cima do rochedo, sabe acaso que tem a seus pés riquezas maiores que nunca possuíram reis da terra?

Longe, no horizonte sem limites, não há mais que o espaço infinito; mas os olhos do pajé veem um vulto de mancebo armado que avança pelo sertão em busca da serrania; o caminho é árduo, o passo tardio. A alma do velho anseia para atrair mais rápido o esperado guerreiro; porque sente que a vida se escoa lentamente do corpo decrépito.

Quem sabe se o pajé não viu nascer o seu último sol?

Eis o que os olhos do velho contemplavam, ali no sopé do rochedo, e além, nos confins do horizonte. Mas a misteriosa ligação entre os tesouros e o desconhecido guerreiro, só a poderá saber quem penetrar em sua alma.

A história é verdadeira, porém estranha.

Havia mais de meio século.

Abaré, o grande pajé dos Tupis, vendo seu povo expulso das formosas ribeiras de Paraguaçu e Maragogipe pelo feroz emboaba, suas tribos dispersas e foragidas, seus filhos cativos do estrangeiro, cobriu-se de luto. Mas Tupã lhe falara à noite, na hora dos sonhos, e ele fora de taba em taba, rugindo o maracá por todo o vale ou montanha, onde ressoava a doce língua da valente raça.

— Guerreiro de Tupã, dizia ele; não vistes as águas do grande rio em sua nascença? São pequenas correntes, que uma sede de tapir estanca; um formigueiro basta para lhes fazer voltar o rosto. Mas quando se reúnem, nada resiste à torrente impetuosa que vai escalando os rochedos, e traspassa o seio do mar como a seta vossa traspassa o peito do guerreiro inimigo. Eis o que Tupã mandou que vos dissesse!

— Pajé, ensina o sentido das palavras de Tupã! exclamavam os guerreiros.

— Uni-vos como as águas do grande rio, e então precipitai-vos sobre as tabas dos brancos, porque sereis invencíveis como a torrente veloz!

Assim caminhou Abaré de povo em povo, concitando a grande raça à guerra sagrada; mas suas palavras caíram no chão, como a semente na terra sáfara, e não deram fruto; apenas uma flor fanada, que logo mirrou.

As tribos continuaram a viver dispersas pelo sertão, e a formidável nação tupinambá, a que pertencia o pajé, emigrou através das florestas para o imenso vale do Amazonas, berço de sua raça. Abaré a acompanhou até aos píncaros da cordilheira que cingia a terra de seus pais; ali parou.

Viu seu povo descer as vertentes orientais da serrania; mas do lado oposto se dilatavam os campos de sua infância, as florestas a cuja sombra descansavam as cinzas dos seus maiores, a pátria do velho, ao qual já não restam flores para semear em terra estranha. Sentiu que seus pés tinham raízes profundas naquele chão, e que seu corpo dormiria melhor à vista daqueles horizontes venerados.

Deixou pois que o último dos Tupinambás desaparecesse longe entre as árvores; e quando já não se ouvia o canto das mulheres cadenciado com o passo dos guerreiros, ergueu-se ele em busca de um abrigo para a noite. Beirando o rio chegou a uma profunda garganta da montanha, onde o chão fugia de repente, deixando apenas para conter as águas em seu leito uma estreita muralha de rocha.

Os olhos de Abaré, como os do animal noturno, deleitavam-se com o aspecto desse abismo cheio de sombra e silêncio. Ele desceu pelas escarpas do rochedo até onde abria-se uma fenda coberta de limo e parasitas. O burburinho surdo, que exalava dali, como de um caramujo, fazia supor a entrada elíptica de alguma gruta profunda. O velho pajé penetrou sem hesitar.

Depois de estreita e sinuosa galeria, abria-se de repente aos olhos deslumbrados uma magnificência da natureza. O aspecto era de uma esplêndida cidade subterrânea, toda vazada em prata. Templos soberbos, palácios suntuosos, torres elegantes, ali se sucediam uns aos outros. Quanto tem de mais sublime e gracioso a arquitetura gótica, oriental ou grega, as ogivas rendadas, os arabescos delicados, as colunas elegantes, fora ali excedido pela mão da natureza. O divino artista criara todas essas maravilhas com a simples gota d’água que transudava dentre o interstício do rochedo.

O rio passava por cima da imensa gruta. As filtrações de suas águas tinham produzido aquelas formosas estalactites, de tão bizarros desenhos. O rumor da torrente ressoava harmoniosamente pelas vastas abóbadas. Entre as fendas do rochedo via-se a límpida veia, e através coava a luz que cintilava aljofrando as brilhantes cristalizações.

Vampiros e animais carniceiros povoavam o domínio subterrâneo. O velho pajé assentou entre eles sua jazida; talvez careceu de recorrer alguma noite à força do braço possante para firmar o seu direito de ocupante; mas afinal conquistou a paz. Seus vizinhos aprenderam a respeitá-lo, e alguns pagavam o tributo à suserania do homem, que muitas vezes nutriu-se da caça que eles preavam.

Abaré era venerado de todas as nações de sua raça.

Quando alguma tribo, que a perseguição dos colonizadores embrenhava pelos sertões, afagava projetos de vingança e liberdade, antes de levar as armas aos povoados portugueses, não deixava de subir à montanha para consultar o grande pajé de seus ritos e saber dele se a sorte da guerra lhe seria propícia.

O velho do cimo de seu rochedo ab-rupto os avistava ao longe; e sua alma confrangia-se em uma dor grande. Quando chegavam, descia até a borda do rio; ali enchia a mão da areia alva e fina, que orlava a margem vestida de relvas. E falava aos guerreiros de sua raça com uma voz surda e triste:

— Estão aqui nesta mão mais grãos de areia do que nações restam da grande raça dos Tupis; e o hálito de Abaré os faz voar a todos uns após outros.

Soprando na mão esparzia a areia nos ares; feito o que, apanhava outro punhado, mas da que estava embebida da água do rio, e amassando-a apresentava uma bola:

— A mesma areia assim unida, qual guerreiro forte é capaz de movê-la com seu hálito?

Então cravando o olhar feroz no povo admirado exclamava:

— Ide, filhos degenerados. Tupã vos abandona. Sereis dispersos, como a areia seca do rio, pelo sopro do trovão inimigo!

Lançada essa imprecação, o velho pajé sumia-se nas entranhas da terra, e penetrava em seu antro.

A tribo afastava-se triste e remordida por aquela ameaça; após ela vinha outra, e outras; mas a união da grande raça era impossível, para que ela sofresse a pena de culpa originária, segundo rezavam as antigas tradições.

Correram as luas.

Um dia viu Abaré aproximar-se do rochedo um guerreiro, coberto com as vestes e as armas da raça, a que votava ódio entranhado; sua alma sedenta expandiu-se, porque a dor, que nela vivia, ia ser aplacada com sangue inimigo. Correu-lhe pelos beiços um sorriso que afiou os colmilhos rangendo-os. Seus olhos cravaram sobre o estrangeiro o olhar magnético da cascavel.

O guerreiro branco encaminhava-se para o velho pajé, calmo e decidido, apesar das ameaças que ele via se condensarem sobre aquela fronte escalvada. Tinha a coragem do forte, e a audácia do ambicioso; a sede de riquezas que nesse tempo arrancava tantos aos seus lares para expô-los aos mil perigos do deserto, também o trazia a ele por esses sertões.

Enchia então o mundo a notícia das inesgotáveis minas do Potosi; e a imaginação humana, que jamais se deixa vencer da realidade, esparzira imediatamente sobre toda esta região americana, situada entre o Amazonas e o Paraná, serras de ouro e prata, cidades de esmeralda e pórfido, sítios encantados.

Aquele guerreiro era um valente roteador dos sertões; o gentio o chamava Moribeca — o caçador de gente. Embalado por tais contos de fadas e guiado por informações do gentio, o guerreiro se partira do seio da família, na esperança de descobrir outras minas de prata mais abundantes que as do Peru; e ao depois de cerca de um ano de longas excursões pelas cabeceiras do Rio de São Francisco chegara afinal à Serra do Sincorá.

Quando ele achou-se em face do velho pajé, todas as nuvens condensadas na fronte deste se desfizeram como as brumas da manhã aos raios do sol. Abaré vira sobre as faces brancas do guerreiro a cor de sua raça e nos olhos a centelha do sol americano.

— Foste tu gerado do sangue ou da carne de Tupi?

— Minha mãe era filha de Paraguaçu!

— Tu és de minha carne, e filho do meu flanco. Abaré e Paraguaçu saíram do mesmo ventre!

— Quantas luas contas? exclamou admirado o aventureiro.

— Tantas quantas eram precisas para ser pai do pai de teus pais!

O guerreiro interrogou o velho pajé sobre os tesouros que buscava; mas este apesar de sua boa vontade de ser útil ao neto de sua irmã, não deu notícia alguma importante. Nisto observou o aventureiro umas pedras miúdas e mui alvas, que o selvagem tinha engastadas nas faces; e chegando perto começou de examiná-las com olhos ávidos:

— Que pedras são essas que Abaré tem cravadas no rosto?

— São as lágrimas de Araci; brilham como ele, e não há força que as possa quebrar, porque toda a força vem do sol.

— Dá-me uma que a veja de mais perto!

Depois de a examinar:

— Pajé, onde achastes estas pedras? Há grande cópia delas?

— Por que perguntas isto?...

— Porque estas pedras são mais preciosas do que o ouro e a prata de que te falei há pouco.

— Para que servem entre os brancos estas coisas, que vens de tão longe e correndo tantos perigos à busca delas?

— Quem as tem em grande quantidade na taba dos brancos é o primeiro e o mais poderoso.

— Primeiro que o pajé, e mais poderoso que o chefe dos guerreiros?

— Sim; porque o pajé e o guerreiro o servirão.

Abaré derrubou a cabeça ao peito e caiu em profunda meditação. O aventureiro lhe falava, instando pela resposta, mas ele permaneceu inabalável e mudo como o rochedo. Afinal despertou:

— Então se tivesses disto mais que nenhum outro, serias poderoso dentre os teus irmãos brancos?

— Viria a ser decerto!

— Pois eu vou dar-te esse poder, se tu prometes fazer o que Tupã ordena.

— Dize, Abaré! replicou o aventureiro ansioso.

— Tu empregarás toda a força que eu te der em vingar a raça de teus pais! Promete que hás de fazê-lo!

O aventureiro hesitou; apesar da ambição que lhe intumescia os seios d'alma, e da nenhuma autoridade do selvagem sobre a fé de um homem civilizado, ele julgou menos nobre obter o benefício por um embuste. Mas acudiu-lhe ao espírito uma ideia. Civilizar a raça de sua mãe, restituir-lhe a proeminência que lhe competia como senhora daquela terra, não era vingá-la contra a sua opressora; vingá-la pela religião e pela inteligência?

— Prometo-te, que o poder que me deres, empregarei em vingar a raça de minha mãe contra a raça que a oprime e cativa.

— Vem, filho.

Abaré conduziu o neto de Paraguaçu à gruta. O efeito desse espetáculo deslumbrante sobre o aventureiro foi mágico; ficou por muito tempo sem palavra nem reflexão, paralisado pela poderosa impressão. O sonho brilhante das minas de prata, que por tanto tempo sorria à sua ardente imaginação, ali estava realizado com um esplendor fantástico.

Tal era a ideia que se apoderara do espírito do aventureiro, e o absorveu por muito tempo. A ilusão, para quem não fosse sabido em mineralogia, era infalível; realmente aquelas bizarras cristalizações, à cega luz que esclarecia as profundas crastas, tinham o brilho embaciado da prata sem polimento.

O velho pajé mostrou-lhe através das fendas do rochedo a veia límpida do rio.

— É daí que as pedras caem de tempo em tempo; mas Araci as semeou no fundo do rio tantas quantas são as flores do murici.

O aventureiro suspirou.

— O rio é bem profundo!

— Tupã o arrancará do seu caminho!

— Dá-me as pedras que tens, pajé, para que eu volte ao lado de minha esposa e de meu filho, de quem ando ausente há onze luas. Depois virei a ti, melhor preparado, para tirarmos o rio de seu caminho.

O pajé deu ao guerreiro seu maracá.

— O maracá do pajé está cheio das lágrimas de Araci, leva-o contigo, e parte. Abaré fica te esperando.

O aventureiro despediu-se do velho e saiu da gruta; por onde passava com sua faca de mato acutilava profundamente o tronco das árvores, mas de modo que o prolongamento do entalhe acompanhasse a direção da sua marcha. Depois de algumas horas de caminho encontrou a bandeira arranchada à sombra das aroeiras, onde pela manhã a deixara, para explorar os arredores; já seus homens estavam inquietos pela demora, mas sem prejuízo do apetite com que devoravam uma grande peça de caça preparada de moquém.

O chefe fez honra à ceia; e dormiu abraçado com o maracá, sonhando palácios encantados e tesouros fabulosos. Ao raiar da alvorada levantaram o rancho, e partiram em direitura à cidade do Salvador. Deixou-se porém ficar atrás o neto de Paraguaçu acompanhado de um índio manso, e plantou ali uma cruz mui alta, no cimo da qual via-se entalhada a letra M.

Durante a jornada, Moribeca afastava-se de espaço a espaço, para deixar ou no tronco das árvores, ou na aposição de grandes pedras, um marco da sua rota, que indicava do melhor modo em grosseiro mapa. Era este um pedaço de pano embebido na goma da icica, sobre o qual traçava com tinta de urucu a direção da cordilheira e dos rios principais em relação à Bahia.

Chegado enfim à cidade, foi seu primeiro cuidado procurar o velho judeu Samuel, que apesar de usurário, lhe comprou as pedras do maracá por boa soma; eram todas diamantes de boa água e de vários quilates. O segredo foi prometido e guardado, pois estava no interesse de ambos; a um importava não despertar a menor suspeita sobre a descoberta; ao outro não assoalhar os seus teres, nem comprometer as futuras avenças.

O preço dos diamantes recebeu-o Moribeca em rica baixela de prata, e custosas alfaias de que adornou sua capela, construída em terras do engenho, para as bandas da Jacobina.

Depois de algum tempo passado no seio de sua família a consolar a longa ausência, dispôs-se a partir de novo para o Sincorá, mas desta vez munido dos instrumentos precisos e acompanhado de gente bastante para fazer uma vasta exploração, e tornar carregado de tanta riqueza, que fartasse a maior ambição.

No meio dos preparativos dessa jornada, a morte o surpreendeu. Quando viu próximo seu fim, chamou à beira do leito o filho, já homem feito, e por muito tempo lhe falou à puridade; transmitia-lhe as notícias precisas para que Robério descobrisse a rota anteriormente por ele marcada sobre o terreno e indicada na planta. Estas explicações prolongavam-se por demais e o enfermo se enfraquecia; não obstante falou ele ao filho da gruta do pajé, onde havia de encontrar tesouros fabulosos por ele descobertos.

Enquanto falava, via o enfermo despenharem-se aos seus olhos cascatas de diamantes, que irradiavam chispas e centelhas de todas as cores do prisma; em torno dele rutilava um céu recamado daquelas estrelas, que o pajé na sua linguagem poética chamava as lágrimas do sol; a cada instante relanceava em sua imaginação um esplendor semelhante à viva fosforescência dos mares tropicais. Entretanto uma só vez o nome dessa maravilha da natureza, que só nasce e só perece pela combustão, não veio aos seus lábios.

O assunto o enchia demais e subjugava seu espírito, já perturbado pelas vascas da morte.

Também seu filho não se lembrou de inquirir a natureza dos fabulosos tesouros que seu pai lhe anunciava.

A profusão de prata, que depois da entrada no sertão, havia em todo o serviço não só de casa e capela como de jaezes e armaduras, não escapara a Robério, que suspeitava seu pai de haver trazido de suas explorações boa cópia desse metal. Ouvindo-lhe pois na hora extrema as maravilhas da descoberta, acreditou desde a primeira palavra, que eram as minas de prata o famoso tesouro.

Precipitou Robério a partida para o Sincorá receando que o tempo apagasse alguns dos vestígios deixados pelo pai; muniu-se de instrumentos precisos para aventar os rumos e quase escoteiro fez-se na volta do sertão.

Entretanto esperava Abaré pela volta do guerreiro.

Desde o dia primeiro e último em que o vira, revolvia o pajé em sua mente feroz ideias de sangue e vingança. Aquelas pedras alvas e límpidas lhe pareciam agora gotas de um veneno mais violento que o uirari; cada uma delas levaria a morte ao seio de um inimigo de sua raça.

Remontando o curso do rio, chegou ele a uma paragem, onde a onda, espraiando-se em formosa bacia, escoava por angustiada garganta fendida na rocha viva. Sobranceiro levantava-se o penedo ab-rupto, ponta de um serrote pedregoso, que estendia-se como um espinhaço da cordilheira. Galgou o velho os alcantis e longamente quedou-se a olhar o penedo e o rio; depois sopesando nos ombros formidáveis uma enorme lasca de rocha, arrojou-a no estreito canal; a pedra sumiu-se na profundeza das águas, e o rio majestoso continuou sua marcha rápida para o oceano, como o brioso corcel que a mão do menino fustigou brincando.

Mas Abaré voltou no outro sol, e no outro, em todos que seguiram. As grandes massas graníticas semeadas na lomba do penhasco foram a uma e uma precipitadas das alturas do alcantil nas profundezas do abismo. O rio, que em princípio zombava delas, já erriçava o dorso e rugia de cólera.

Quando Robério chegou ao alto da serra, no lugar que seu pai assinalara com uma cruz, o pajé repousava da tarefa do dia. Caíra a tarde; a lua nascendo iluminava de lívidos toques aquela sinistra figura pendida à borda do abismo; Abaré olhava o rio medindo o que lhe faltava para concluir o árduo labor; e de vez em quando brandia o grande maracá, escutando com prazer o rumor que dentro faziam as alvas pedras, cobiçadas pelos brancos.

— Se meu filho vier antes que Tupã tenha arrancado o rio de seu caminho, achará bastantes pedras colhidas por Abaré!

A essa mesma hora do crepúsculo, guiado pelos sinais, aproximou-se Robério do rio e penetrou na gruta; os raios da lua, coando pelas fendas do rochedo, iluminavam o maravilhoso espetáculo. Foi presa da mesma ilusão que o pai; desdobravase ante seus olhos uma cidade mourisca vazada em fina prata resplandente. Estava paralisado pela violenta comoção, quando ouviu sobre a cabeça o murmúrio das vozes de seus companheiros; estremecendo à ideia que eles pudessem acertar com a entrada da gruta, e devassarem o imenso tesouro que seus olhos devoravam, arrancou-se a esse êxtase da riqueza, e correu ao encontro dos aventureiros para afastá-los quanto antes do lugar, e fazê-los voltar à Bahia.

Certo agora da descoberta do pai, ia preparar-se para a exploração das minas. Tinha escrito a rota de sua jornada até o lugar da cruz. Daí à entrada da gruta estava ainda por escrever, mas a impressão, que nele produziu o deslumbrante painel, acendeu por tal forma a cobiça da riqueza e com ela o ciúme e o terror de perdê-la, que engendrou modos de acautelar o seu precioso segredo contra um acidente possível, o da perda do manuscrito.

Entrando à noite fechada na gruta, percebeu o pajé que ali tinha penetrado alguém; seu olhar felino sondou as trevas debalde; no dia seguinte conheceu pelas pegadas impressas o pé de um guerreiro branco. Cuidando que fosse seu filho, esperou-o três dias imóvel na crista do rochedo, de onde primeiro o vira; no quarto, como não chegasse, desvaneceu-se a esperança e voltou ao trabalho.

Muitas luas decorreram, sem que nenhum filho da raça branca perturbasse a solidão do pajé. O velho selvagem começava a temer que o guerreiro da sua carne não dormisse já o último sono no seio da terra; mas o ardor da vingança não arrefecia nele, antes acendia-se com a idade; a sua fé era robusta e valente.

Um dia viu avançar através da floresta um guerreiro branco, já idoso, que se encaminhou direito a ele.

— Pajé, conduz-me à tua gruta.

— É o filho de Abaré quem te mandou ao pajé?

— Sim; ele manda-me a ti buscar as riquezas que lhe prometeste!

— Tupã ainda não mudou o rio do seu caminho, mas Abaré guardou para seu filho mais pedras que ele tem de cabelos na cabeça.

O pajé conduziu à gruta o guerreiro branco, e mostrou-lhe um grande vaso de barro cheio de diamantes brutos:

— Toma quantos quiseres!...

O desconhecido ficou lívido; súbito tremor percorreu-lhe o corpo.

— Por que tremes?

— Por quê?... Se meus companheiros vissem o que tenho diante dos olhos, nos matariam a ti e a mim, e derramariam até a última gota de sangue para disputar este tesouro.

O pajé vergou a cabeça e afundou-se na meditação.

O aventureiro vencendo a comoção que dele se apoderara, avançou a mão para o vaso; ao límpido tinir da pedraria agitada, sentiu uma descarga elétrica pela rede nervosa do seu organismo. Então apoderou-se dele um frenesi, quase um delírio; precipitou sobre o vaso, mergulhou os braços até os cotovelos; fez se despenharem do alto jorros de diamantes: embriagou-se enfim dessa vista deslumbrante.

— E derramariam até a última gota de seu sangue!... murmurou a voz cava do velho pajé.

Esse eco de seus primeiros terrores evocou o aventureiro de sua ebriedade. Ergueu-se estremecendo; com rápido movimento encheu de pedras preciosas seu chumbeiro, e arrancou-se à fascinação que o subjugava. Correu à entrada da gruta, e fugiu com as últimas réstias de luz da tarde que se morria. Ao volver uma última vez o rosto para o vaso cheio de diamantes, vira ele um lampejo fulvo, que desferiam as profundas pupilas do velho pajé, e brilhava mais que os fogos da pedraria.

Vendo fugir assim o guerreiro branco, como o espírito da vingança terrível de Tupã, Abaré sorria com delícias de tigre saciado.

E o aventureiro fugia sempre; aquelas riquezas fabulosas lhe incutiam mesmo de longe misterioso horror; a só lembrança delas gelava o sangue em suas veias.

Infeliz velho!... Não era ambicioso, não. Vivera a melhor parte de sua vida pobre, honrado e feliz; nunca pelo seu espírito calmo perpassara um sonho de cobiça. Mas a desgraça roçara seu casalinho com a asa negra. Ramon Sales perdera a esposa; e ficou na terra viúvo e mutilado do coração, para assistir ao martírio da única filha, com que Deus abençoara sua união.

Foi então que se lembrou do poder do ouro; se o tivesse em quantidade, talvez pudesse comprar ao mundo para sua filha uma porção da felicidade que o mundo lhe negava por ser pobre. Esse pensamento o trouxe ao Brasil, e o embrenhou pelos sertões como tantos outros aventureiros à cata de riquezas. Deixando a filha na cidade do Salvador, unira-se a uma banda que haviam formado vários sócios, e com ela empreendera a entrada no sertão.

Tinha Ramon notícia das minas de prata descobertas por Moribeca; e encontrando por acaso em seu caminho um caboclo de nome Gonçalo Inhuma, que acompanhara Robério Dias em sua viagem, ouvira dele pouco mais ou menos o que declarara muito depois ao P. Manuel Soares e constava de sua memória. Guiado pelas indicações do selvagem chegara ao rochedo onde vira sentado o pajé; o qual o tomara por um enviado de Moribeca. De sua parte Ramon conjeturou que fosse o velho quem descobrisse a Robério as minas de prata, e aproveitando-se de sua ilusão, exigira as riquezas prometidas.

Ao romper d'alva tornou Abaré a seus trabalhos até o dia em que o rio, atalhado na sua carreira por uma muralha de granito, corcoveou espraiando-se pela encosta do rochedo. O primitivo leito do rio ficou a descoberto; o pajé viu com satisfação que a fina vasa era tapeçada de diamantes sem conta.

— Meu filho pode chegar.

Desde esse dia, sentado na crista do rochedo, esperava o guerreiro de sua carne, que lhe prometera voltar; mas cada sol que se deitava por detrás da serrania levava-lhe mais uma esperança, e mais um calor da vida, que abandonava o seu corpo decrépito. Às vezes quando o desânimo o entrava, ele revolvia as profundezas de sua alma, e de lá arrancava aquele eco lúgubre:

— E derramariam até a última gota de seu sangue!...

Sabe-se agora por que o velho pajé, acocorado na crista do rochedo, olhava o leito abandonado do rio e o horizonte ermo.

Nessa manhã sentiu que seu fim se aproximava; e ao sair da gruta carregou para o píncaro elevado o camuci que havia fabricado com suas próprias mãos, segundo os ritos de Tupã. Ali estava ao seu lado, esperando-o, a urna funerária que devia guardar seus ossos, e servir-lhe de leito derradeiro.

Entorpecido pelos vapores acres do tabaco, o pajé devaneava. Descobriu longe, longe, aquele vulto de guerreiro branco que avançava através do sertão. Não era o neto de Paraguaçu, mas procedera do sangue dele. O guerreiro esforça; o velho anseia; e nessa esperança tantas vezes renascida, quantas finada, vão-se os últimos e tênues espíritos da vida.

Mas eis que um som grato ao coração de Abaré o revoca à existência.

Ressoa perto a inúbia dos Tupinambás; a alma do velho pajé se dilata no prazer de abraçar com o extremo olhar a multidão de seus filhos. Volve o rosto para a floresta de onde rompe a tribo guerreira, de terrível aspecto.

Oh! dor! seus filhos, os valentes, os fortes, a quem ele transmitia outrora as palavras de Tupã, renegaram das crenças de seus pais, e são agora conduzidos, como um bando de capivaras, pelo homem negro, abaruna, que serve ao Deus dos brancos! Só faltava essa amargura à vida já tão atribulada do velho pajé.

Os selvagens pararam a um aceno do sacerdote cristão, que se dirigiu só e com tardo e vacilante passo para o rochedo.

O P. Inácio do Louriçal, da Companhia de Jesus, voltava de sua digressão pelas cabeceiras do São Francisco de onde trouxera aquela tribo para aldeá-la nas proximidades da Bahia. Avistando o pajé, o apóstolo de Cristo cingiu os rins, caminhou avante, onde ele via uma luta a sustentar com o inimigo da religião, e uma alma a remir.

Abaré, sepultado em sua dor, viu-o que se aproximava; e quanto lhe restava de vida refluiu aos lábios em um assomo de cólera feroz:

— Venceste, abaruna! Tupã deixou que seus filhos degenerados se esquecessem dele e de seus pais para te seguirem como cativos. Mas o dia da vingança chegará!... Tupã já arrancou o rio do seu caminho!...

O velho debruçou-se sobre o alcantil, e com um gesto feroz apontou o álveo do rio:

— Vês?... A gente branca correrá para aqui em busca das pedras que tanto cobiça; com a fome delas os guerreiros se devorarão, como os abutres pela carniça. Minha raça será vingada e esta terra de meus pais beberá até a última gota do sangue inimigo!

O selvagem sorriu:

— E de dentro de seu camuci a alma de Abaré voará aos campos alegres para regozijar-se com Tupã!

Proferidas essas palavras, o velho arrastou-se até o grande vaso de barro vidrado, que encravara antes numa fenda do rochedo, e nele entrou, sentando-se como os ídolos dos pagodes índios; depois deixando cair a tampa, cujos bordos cobrira de uma resina fortíssima, selou pela eternidade seu último jazigo.

O sacerdote cristão estremecera diante de tão estranhas palavras. Desceu ao álveo do rio; e sentiu, calcando as riquezas imensas, arderem-lhe as plantas, como se caminhasse sobre brasas acesas. Sua alma angélica entristeceu pensando nas desgraças que estavam ali semeadas para a pobre humanidade; o lábio apostólico murmurava as palavras do Eclesiastes:

Ubi multoe sunt opes, multi et qui comedunt eas.

O P. Inácio tornou aos Tupinambás, que já tinham armado as redes à sombra de grandes jatobás:

— O Senhor do céu, filhos, ordenou às águas, como a todas as coisas, seu lugar na terra; se o homem põe obstáculo à sua vontade, o castigo descerá sobre ele. Este rio foi tirado de seu caminho, deve hoje mesmo a ele voltar.

Ao transmontar do sol a tribo dos Tupinambás, alinhada à margem, tinha os olhos fitos na garganta obstruída pelos esforços gigantescos de Abaré. Um grosso tronco seco fora pelos selvagens embutido com violência no lisim da rocha que servira como de pilastra à construção do pajé; embebendo a água, o madeiro excessivamente poroso inchava.

Afinal ouviu-se um ribombo medonho: as entranhas do rochedo se tinham dilacerado; aluído o esteio, desabou com estridor a muralha pelágica; e o rio, um instante surpreso, atirou-se no primitivo leito, e seguiu a marcha que a natureza lhe tinha marcado.

Sobre a penha culminante, onde pela manhã o selvagem profeta lançava sua imprecação de vingança, a noite achou o sacerdote cristão que elevava ao Senhor de misericórdia a prece da caridade!