Reboa pela mata o canto dos Tupinambás.

Está o sol a pino; porém na floresta reina pálido crepúsculo.

Um jovem cavalheiro e seu pajem infante avançam silenciosos através da folhagem densa; parecem buscar alguma coisa, pois examinam com atenção extrema, ora os troncos das árvores, ora o capim lustroso que recama o chão. Afinal o mancebo solta uma viva exclamação que indica ter achado o objeto de suas laboriosas pesquisas:

— Ei-lo, Gil!...

— Onde, Sr. Estácio?

— Aqui, não vês?... Coberto todo de limo e cipós.

— É verdade! Quem o descobrira!...

— Já decorreram mais de vinte anos dês que meu pai aqui esteve, e depois disso quantos acontecimentos passaram, quantos vivos se finaram! O tronco ao menos, embora decepado, aí está como ele o deixou!...

A árvore era um grosso jacarandá; o tronco fora cerrado na altura de doze pés; a meio dele, na face voltada para o oriente, descobriu Estácio encravada profundamente no córtex a letra R, desenhada com linhas de pregos. Depois de um instante dado à emoção de rever um objeto que ainda guardava o traço das mãos paternais, o mancebo abateu a golpes de machado o velho tronco.

Quinze dias eram já passados depois que deixara Estácio a Bahia; o filho viera rastreando o caminho que fizera vinte e três anos antes o pai, e destruindo sua obra para que outros não lograssem o fruto de seu trabalho. Chegando perto do lugar onde conforme o roteiro devia estar aposto um marco, ele acampava sua gente, e afastava-se só com Gil. Tratava de descobrir o padrão que Robério deixara, ora nas árvores seculares, ora enterrado em alguma pedra ou botija; destruía os vestígios e removia o marco para bem longe. Assim vinha a pouco e pouco substituindo ao antigo um novo roteiro só dele sabido, e conforme o conselho de Vaz Caminha, escrito em caracteres indecifráveis.

Tomava Estácio suas notas, enquanto Gil tratava de destruir pelo fogo as raízes da árvore, quando lhes chegou aos ouvidos o canto dos Tupinambás. Seu primeiro movimento foi de prudência; mas sucedeu logo um sentimento de admiração, repassado de doçura; entre o alarido selvagem que estrugia nos ares, se elevava serena e plácida, como a garça remonta ao céu através da borrasca, uma voz sonora que entoava as antífonas do salmo cristão:


Benedicam Dominum in omne tempore; semper laus ejus in ore meo.
In Domino laudatur anima mea!...


Esse cântico sagrado, ali no seio do deserto, tinha o quer que fosse de celeste e augusto.

Estácio fez um gesto ao menino e meteu-se pela ramagem na direção das vozes. Em pouco chegaram perto de uma campina verde, que a floresta cingia, como um regaço. Aí tinha acampado uma tribo selvagem; viam-se já erguidos a circular estacadas e os esteios das cabanas; as mulheres ligavam as palmas que deviam cobri-las, ou preparavam mantimentos.

No centro estava atado a um poste, nu, com os pés e as mãos jungidas, o apóstolo cristão que entoava o hino sagrado. Em torno dele esvoaçava um enxame de abelhas bravas, que ferroavam-lhe o corpo seco e mirrado, aos berros das crianças ferozes. Os guerreiros selvagens desfilavam ao som cadente da música ruidosa, por diante dele, vociferando insultos e ameaças.

O mancebo reconheceu imediatamente, no venerável apóstolo do deserto, seu antigo mestre do Colégio da Bahia, o Padre Inácio do Louriçal. O santo homem, votado ao martírio, conservava a mesma placidez e mansa humildade, que ornavam seu modesto semblante, oficiando no altar, ou lendo nas aulas. A alma posta em Deus, que ele via no arroubo de sua fé, não se apercebia do que passava na terra, nem sentia as torturas que o pungiam; seu espírito abreviara as tribulações da vida, e já despregava-se de uma carne seca e definhada para voar ao seio do Criador.

Estácio sem refletir na temeridade do arrojo, impelido por uma força invencível, saiu da floresta e avançou intrépido.

Avistando-o de repente, os selvagens o contemplaram um instante surpresos da aparição; mas logo um rugido imenso manifestou o prazer feroz dos canibais. O mártir, sentindo o furor do gentio desviar-se dele, abaixou dos olhos à terra, e conheceu a causa do acidente. Sua venerável fisionomia contraiu-se com expressão de angústia; porque nessa alma insensível à própria dor, as cordas da caridade tinham uma sensibilidade extrema. Também ele reconhecera seu antigo discípulo, e lamentando a sua desgraça, exclamara:

— Piedade, Senhor, para ele que entra agora na vida! Multiplicai-me embora ao infinito as dores da agonia, mas à conta delas salvai-o.

Não é coisa para admirar o que então sucedia ao Padre Inácio. Atado a um poste e destinado ao suplício por aquela mesma horda de bárbaros que dias antes ele conduzia após si do deserto onde a fora encontrar e governava com um gesto apenas! Que brusca e violenta transição! Mais que natural e conforme com a índole do povo selvagem, sempre dominado por paixões súbitas, sem o corretivo da lei ou da razão culta!

O canto evangélico do sacerdote cristão impressionara profundamente os Tupinambás, apaixonados como todos os selvagens americanos pela música. A voz suave que lhes entrava no coração devia governar-lhes a vontade; o cristianismo falando-lhes pela linguagem harmoniosa, reprimiu os excessos da embriaguez e da sensualidade. Mas afinal os vícios de que já estava a sua natureza eivada, um instante reprimidos, tomaram o de cima. O maioral da tribo, contrariado em seu apetite libidinoso pelas admoestações do sacerdote, o acusou da morte do velho pajé; a acusação repercutiu em toda a tribo; as paixões más rebentaram de novo e com fúria maior pelo longo repouso em que estiveram.

O sacerdote percebeu o que passava, e continuou a orar a Deus. Os selvagens o ataram ao poste; para não ouvirem a harmonia melancólica do treno mavioso, se aturdiam levantando medonho alarido. Ao mesmo tempo viravam cuias sobre cuias de cauim e outras bebidas fermentadas, de que tinham sido parcos a conselho do padre; e o insultavam jogando-lhe às faces a borra que ficava no fundo do vaso.

Conforme o seu rito era a vítima destinada ao bródio da vingança; mas como o corpo do velho sacerdote era magro, e a carne dura e coriácea, por lembrança de uma velha, perita nessa cerimônia, tinham resolvido matar o Padre Inácio com mordeduras de uma abelha venenosa, a arapuá. A violenta inflamação tornaria tenra a carne rija e áspera da vítima. Partira pois o bando de colomis com uma grande cabaça, incumbido de trazê-la cheia do virulento inseto.

Estácio, à mercê da surpresa dos selvagens, achegara-se em um salto do poste, cortara os laços que atavam o sacerdote, e lançando sobre ele o manto, voltou-se para fazer frente aos guerreiros tupinambás que sobre ele se arrojavam em fúria.

— Filho, que imprudência é a vossa?... Eles vos trucidarão!...

— Buscai salvar-vos, padre meu. Minha gente está daqui próxima; ganhai a floresta e caminhai sempre contra o sol.

— Se a Deus aprouver conservar para maiores trabalhos o seu humilde servo, aqui mesmo lhe virá a ajuda, sem que haja mister fugir dele que está em toda parte; senão, seja feita a sua vontade.

Tomando de novo a frente ao sacerdote, Estácio batia-se já como um tigre contra os selvagens, mas era impossível resistir por muito tempo à torrente de inimigos que, um instante recalcada pela ponta de sua valente espada, borbotava afinal sobre ele, ameaçando submergi-lo. Duas vezes já a morte roçara por sua cabeça: da primeira o salvara o Padre Inácio abraçando-se com um guerreiro que brandia o tacape pronto a espedaçar-lhe o crânio; da outra Gil. O menino, invadido pelo terror diante do terrível espetáculo que se desenhava a seus olhos, ficara estático no lugar onde o mancebo o deixara; mas vendo a alguns passos dele um índio que envergava o arco para ferir no coração a seu querido cavalheiro, tirou do amor coragem e correndo sus ao selvagem, cravou-lhe o punhal na ilharga. As mulheres o cercaram e fizeram sua presa.

Estácio considerava-se perdido; a onda de inimigos enovelou-se sobre ele.

Ressoa nesse momento pela mata o canto da saracura; um troço de homens rebenta da floresta e cai em cheio sobre os selvagens, como um bando de abutres sobre a carniça. Estácio, atordoado com o ímpeto dos inimigos, ficou mudo de espanto vendo a seu lado o curto mas destemido Antão Gonçalo que brandia uma catana maior que ele.

— Era mais que tempo, comandante; senão metiam a pique a capitânia!... Diabo! Dez contra oitenta flamengos, vá!... Mas um e meio contra cem, não é do ajuste!...

E o Gonçalo tanto falava, como talhava, porque os selvagens, mais enfurecidos com o novo ataque, se tinham arremessado contra ele e sua gente, a qual não passava de uns vinte combatentes. Mas a senha da banda, o grito da saracura, soltado por ele, tinha ecoado longe.

Pouco tardou que João Fogaça com o resto da companhia não aparecesse na beirada da mata.

Perfilando a descomunal estatura, para ver melhor o que sucedia, o capitão de mato soltou o seu habitual e pachorrento:

— Oh! oh!...

Os Tupinambás voltaram-se ao ouvir a exclamação, e reconheceram a figura gigantesca do terrível bandeirista cuja fama enchia os sertões:

— Morubixaba! murmuraram com respeito.

Imediatamente abaixaram as armas e retraíram sobre si, prontos sempre à defesa, mas desistindo do ataque.

João Fogaça passou tranquilamente em face deles; apertou a mão a Estácio e beijou-a ao Rev. Padre Inácio. Instruído do que acontecera, o capitão de mato deu logo suas providências para o curativo do pobre sacerdote, cujo corpo apresentava já com a inflamação um aspecto disforme; as fricções de fumo e aguardente aliviaram o enfermo que afinal consentiu repousar algumas horas, depois de obtida a promessa formal de perdão para os selvagens.

João Fogaça prometeu que não se derramaria sangue, nem infligiria castigo corporal; mas usando de um direito que ele se outorgara de sua própria autoridade sobre todas as tribos selvagens, o direito de feudo, escolheu dentre os guerreiros tupinambás dez dos mais robustos e bem parecidos para incorporá-los como recrutas à sua companhia. Feita a escolha foram os novos saracuras entregues ao Antão para educá-los, e aos três sentidos para estudá-los. No dia seguinte podia qualquer deles escapar-se que os três índios lhes iriam no encalço.

Como se achava ali tão a ponto capitão de mato?

Saindo bruscamente da casa de Cristóvão duas semanas antes, João Fogaça interrogou os índios e confirmou sua primeira suspeita. Imediatamente se pusera na pista do Padre Molina que supunha achar-se ainda em sua cela.

No dia seguinte por volta da noite os seus três sentidos, que ele deixara nas vizinhanças do Colégio, vieram adverti-lo da partida do jesuíta. Segundo as explorações dos selvagens o homem negro devia ter embarcado na tercena dos Padres. A galeota, que o conduzira, acabava de chegar sem ele. Fácil foi a João Fogaça empalmar um dos escravos remeiros que se deixara ficar na praia; e dele arrancou à força a notícia do lugar onde ficara o jesuíta.

O capitão de mato mandou a Antão Gonçalo que estivesse pronto com a gente a partir naquela madrugada para Maragogipe; e de seu lado aproveitou a hora que lhe sobrava para arranjar de uma feita o malfadado embeleco que o trazia bambo, tanto havia. Seguiu ele rua abaixo com jeitos de quem procurava alguma coisa; e de feito assim era. João Fogaça buscava uma batina, traje tão fácil de encontrar naquele tempo, como há anos uma casaca e hoje um rodaque.

A poucos passos achou-se o forasteiro com uma rapada, mas sisuda batina, que lhe caiu no goto; pelo que foi logo sem mais partes travando da espádua que a envergava:

— Vamos, reverendo, depressa que o caso é apertado.

Ou fosse o padre de fácil acomodar, ou cuidasse que se tratava de alguma confissão, o caso é que lá foi seguindo as guinadas do capitão de mato; e ao cabo de uns minutos chegou esbaforido à casa da Mariquinhas dos Cachos.

— É ali que mora ela! disse João Fogaça parando em frente.

— Então está a decidir? perguntou o sacerdote. Levai-me junto dela, irmão. Não quereis vir?

— Largai-me, reverendo. Não é caso de confissão, nem de moléstia, mas doutra coisa.

— De que então? perguntou o padre desconfiado.

O capitão de mato arfou como uma montanha que vai desabar.

— De matrimônio, padre! Ide, procurai pela Mariquinhas, viúva do Zé Tendeiro; em vos ela aparecendo, dizei-lhe: — “Mulher, venho para vos casar com o João Fogaça que ali está no canto esperando”. Se ela quiser, chamar-me-eis; senão dai-me aviso de longe que me suma por este mato afora. Ide que vos darei pelo casamento ouro e não prata.

Uma hora depois, a Mariquinhas dos Cachos era esposa do seu amado João. Mas não obstante pela madrugada partia este para o sertão em seguimento do Padre Molina. Quinze dias já tinha de jornada, quando felizmente para Estácio e o Padre Inácio, surgiu tão a propósito.

Mal se desvencilharam dos Tupinambás, o capitão de mato chamou Estácio à puridade:

— Não há tempo a perder; em marcha, senão é difícil alcançá-lo.

— Quem?

— O jesuíta. Quem mais?

— Se o deixei a meio dia de viagem!... respondeu Estácio sorrindo.

— Ontem; mas hoje já vos ele ganhou a dianteira e vai a bate-bate. O espertalhão do frade está bem montado e traz comitiva de cavalos.

— Então a caminho.

Nesse instante o Padre Inácio aproximou-se dos dois.

— Padre meu! disse João Fogaça. Mal sabeis que sois a causa inocente de estar eu agora por este sertão bem arrenegado de minha vida!...

— Dizei-o como, filho!

— Não o direi, não, para vos não afligir o coração. Mas eis um caso em que se vê como Deus escreve direito por linhas tortas.

— Sábios são sempre os desígnios da Providência! murmurou Estácio.

— Amém, filho!

— Se não vos tivesse eu encontrado uma vez nestes sertões com uma criancinha nos braços, acalentando-a com um carinho de mãe, não me teriam feito irmão ou não sei o que da Companhia, e não me houveram obrigado em respeito à vossa virtude a prestar meus serviços para uma ação má!

O sacerdote pôs os olhos no céu.

— Mas também, se isso não fora, o cavalheiro que primeiro vos defendeu e eu que cheguei a tempo de ajudá-lo, não estaríamos aqui a ponto de salvar-vos. E eis o caso! Pior que fosse me daria por bem pago com o resultado; não vos parece, Sr. Estácio?

— Sem dúvida!

— Perdoai, filho, a este pobre pecador o mal de que foi causa involuntária!

— Bom! Águas passadas!

Voltando-se para o lado, gritou:

— Olá, Antão, ordenai já uma rede às costas dos recrutas para conduzir o padre-mestre! E a caminho sem detença!...

— Não pode ser como dizeis, filhos! Agora mesmo vinha eu deitar-vos a minha bênção por despedida.

— Onde contais ir então?

— Onde Deus me envia! Vou com o meu povo!

— Para que vos ele pague o amor com ingratidão igual? exclamou Estácio.

— Esta é a minha missão, Estácio, enquanto não chegar a minha hora. Até lá Deus virá em meu auxílio, como hoje, como tantas outras vezes. Aqui serviu-se ele dos vossos braços valentes, meus filhos; lá da voz débil de seu servo; amanhã ninguém sabe de quê. Tudo serve aos poderosos desígnios da Providência.

O apóstolo abençoou os dois amigos, e partiu-se com a tribo para o deserto de onde não devia tornar.

Estácio e João Fogaça prosseguiram a sua jornada depois da breve alta. Caminharam sem cessar o resto do dia e parte da noite; começava o quarto da modorra, quando lhes surgiram por diante na sombra três vultos. O capitão reconheceu imediatamente os seus sentidos. Os índios tinham os braços direitos estendidos, apontando na direção de uma pequena colina coberta de mato.

— Estamos com ele! disse o forasteiro ao alferes.

Estácio desde a separação do Padre Inácio, que ficara pensativo; aquela nobre abnegação e sublime caridade deviam de impressionar uma alma feita como a sua para os grandes e generosos impulsos. Ele envergonhou-se de seu valor e intrepidez comparando-os àquele sereno heroísmo do mártir, que sem outro estímulo mais que a fé robusta, se afrontava com o suplício horrível e bárbaro, e buscava a morte obscura e ignorada com o mesmo entusiasmo do soldado que marcha à conquista da glória no campo da batalha.

Estava ainda sob a influência destas reflexões quando lhe falou o capitão de mato; sua resposta ressentiu-se da preocupação:

— Qual é agora vosso intento, capitão?

— A pergunta não parece de quem é, cavalheiro! Pois não sabeis o que viemos fazer aqui, vós, por quem só viemos?

— Sei o fim, nem era crível que o ignorasse, mas não sei os meios.

— Os meios!... Os meios são todos os que aparecerem. Dizei-me cá, se alguma vez em criança caístes n'água bastante funda para afogar-vos... Quando vos vistes nessa dobadoura, estivestes pensando no meio de safar-vos dela? Qual! Fostes mexendo com pés e mãos, agarrando-vos no mais perto que achastes para ganhar a terra. Pois assim estamos nós! A terra está acolá...

— Quereis escutar-me um instante, Sr. João Fogaça?

— Não é coisa que se possa adiar para ao depois?

— Não; urge!

— Então falai!

— Bem deveis de compreender quanto me é precioso o papel que me roubaram, e quanto necessária a sua restituição. Mas se para o conseguir é preciso derramar sangue de inocentes, eu renuncio à empresa!

— Estou-vos desconhecendo, Senhor Estácio!... Não me pareceis o mesmo homem dos flamengos!

— Lá era outra coisa, eu servia à pátria; aqui sirvo o meu interesse. De sobra, talvez não tivesse o espírito tocado como hoje de certas ideias.

— Pois então sinto dizer-vos que nada obtereis. O frade maldito não havia de empregar as traças de que se serviu, e acompanhar-se de duzentos Aimorés bem armados, para vir ao sertão entregar-vos de mão beijada o que tanto lhe custou a pilhar.

— Nem contei eu com isso! Julgais que nada se possa fazer por surpresa e estratégia?

— Muito se pode, mas tudo não! Lembrai-vos que são selvagens também: os meus saracuras lhes são superiores, é certo! Por exemplo, daqui já os vimos, e eles ainda nem nos perceberam; porém se dermos mais vinte passos, seremos logo pressentidos.

— Neste caso o que melhor me parece é o seguinte. Assegurai-me doze horas de avanço sobre essa gente; é quanto me basta. Tenho um meio de inutilizar o papel na mão do frade.

O forasteiro riu-se abanando a cabeça.

— Sabeis qual seja?

— Cuidais então que vos sigo debalde há mais de oitenta léguas?... Guardai lá vosso segredo; nem eu procuro descobri-lo; mas aquilo que está escrito no chão, isso por certo que hei de soletrar!

— Que soletrastes vós até agora?

— Desde as terras que foram de vosso pai, onde tinha engenho, vindes destruindo marcos que outrora por aqui deixou ele passando; cuidastes que assim o frade perderia o rumo; mas tanto não perdeu, que aí está conosco!

— Seguiu o meu rasto!... Terei cuidado em apagá-lo melhor daqui em diante!

— E depois desta madrugada que vos ele deixou na retaguarda?...

— Serviu-lhe então o roteiro.

— Tudo pode ser! Creio antes que ele tem outro guia qualquer; mas enfim, com isso não me embaraço; é negócio vosso, deslindai-o como melhor vos parecer. O que me toca a mim é o papel, que o frade há de esburnir vivo ou morto! Fiz protesto disso, e não volto atrás!... Portanto, Sr. Estácio, resolvei.

— Já resolvi; parto nesta hora para ganhar-lhe a dianteira!

— Boa viagem então! Podeis contar com vinte e quatro horas de avanço, se não forem mais.

Estácio deu ordens à sua gente e despediu-se de João Fogaça.

A esta hora estava o Padre Molina recostado na rede, armada nos ramos do arvoredo. A alguma distância ardia o fogo que lançava fugaces clarões sobre o vulto negro do frade estendido horizontalmente como o alto relevo de uma campa. Em volta do espaço iluminado, dormiam sobre outras redes e couros os fâmulos da comitiva. Este centro do acampamento era guardado por uma primeira linha circular de Aimorés, à qual outras se iam sucedendo até uma distância de cinquenta braças.

O Padre Molina cogitava, e o objeto de suas cogitações era o mesmo que desde dois anos ocupava quase exclusivamente aquela grande inteligência; era o segredo das minas de prata, esse pedestal que ele pretendia assentar à sua glória, e sobre o qual baseava a esperança ao generalato da Ordem, e talvez mais tarde ao pontificado.

Senhor do roteiro, que já uma vez lhe escapara das mãos, o Padre Molina, mal o recebera dos índios, encerrou-se com ele na sala do cartório e de lá não saiu enquanto não teve de cor as vinte páginas de que se compunha o manuscrito. Depois, receando que lhe pudesse falhar a memória, não obstante a plena confiança que tinha nela, transportou em cifra para o seu canhenho o conteúdo do folheto.

Nessa mesma tarde partiu para Maragogipe. Em caminho sabe-se como encontrou Estácio; e o mais que então aconteceu. Apenas reuniu-se ao Padre Rodrigues, o visitador o despediu fazendo-o voltar à cidade. No seguinte dia fez-se na volta do sertão.

Logo no terceiro dia de viagem conheceu o Padre Molina que Estácio lhe tomara a dianteira e inutilizara os marcos ali postos por seu pai Robério Dias. O jesuíta fora prevenido; a mesma ideia lhe acudira, pensando com razão que Estácio não tivera tanto tempo o roteiro em seu poder sem o copiar ou pelo menos reter de memória.

Se não fosse o importante subsídio ministrado pela obra do Rev. Manuel Soares, o Padre Molina se achara bem embaraçado. Guiado pela declaração, que sabemos, conseguiu ele não perder a direção do roteiro; mas urgia deixar atrás o mancebo, e seguir avante sem que ele o pressentisse. Na véspera conseguira o visitador o seu intento, marchando dia e noite sem descanso; se não fosse João Fogaça, estava ganha a partida.

Agora acampado ali naquele outeiro, ele esperava para prosseguir que sua gente tomasse algumas horas de repouso necessário depois da batida em que viera. Sabia que Estácio lhe vinha sobre os passos, e só com esforço grande conseguiria escapar à atividade imensa e pronta resolução do corajoso mancebo.

Ouvindo rumor das folhas, ergueu o visitador os olhos e discriminou entre os troncos das árvores um vulto humano que avançava cautelosamente.

— Que há?

O vulto fez gesto de silêncio. Era um Aimoré que foi ajoelhar junto à rede e falou ao ouvido do visitador:

— Os Tupinambás!...

— Aonde?

— Pela frente!

— Vêm contra nós?

— Pergunta ao prisioneiro.

Três outros Aimorés saíam do mato pelo mesmo caminho que o primeiro, trazendo um selvagem amarrado como um porco que se leva ao talho. Descerrados os queixos da corda, quanto bastassem para falar, mas não para gritar, eles acocoraram o prisioneiro diante do jesuíta.

— Tu és Tupinambá?

— Sim!

— Onde estão teus irmãos?

— Tão longe daqui como a perdiz voaria duas vezes!

— Quantos são eles?

— Meus pés e minhas mãos, e os teus e os destes maus homens não chegam à metade da conta deles.

— Que vieste tu fazer aqui?

— Pensei que eram meus irmãos que tinham acendido o fogo da hospitalidade!...

Do resto do interrogatório concluiu o Padre Molina que tinha pela frente uma poderosa tribo de Tupinambás, a qual, se os pressentisse, podia atacá-los de emboscada e fazer grande mal; resolveu pois, apesar da pressa em que ia, esperar ali tranquilo que os selvagens se afastassem. Talvez que estes não os pressentissem; e no caso contrário estaria em excelente posição de defesa. O que o afligia era a ideia de perder o terreno ganho sobre Estácio; mas bem podia ser isso a desgraça do mancebo, que atacado pelos selvagens, pereceria vítima deles.

O visitador deu pois suas ordens para que fizessem boa guarda e evitassem o menor rumor para não atrair a atenção dos selvagens. O resto da noite e o dia seguinte passou em contínuo sobressalto. Alguns Aimorés foram mandados como exploradores, mas nada puderam descobrir, porque voltavam com receio de serem surpreendidos pelo inimigo que andava à caça.

Finalmente escureceu, e João Fogaça, que se tinha servido do ardil dos Tupinambás para segurar a Estácio as vinte e quatro horas prometidas, sacudiu o corpo entorpecido pelo longo repouso, e chamou o Antão a quem deu suas ordens.

Pouco depois a companhia do capitão de mato, dividida em dois pelotões, caía sobre o campo dos Aimorés que estavam preparados para recebê-los. O combate foi renhido; o Padre Molina com a palavra e o exemplo animava sua gente; contudo em face da intrepidez e disciplina com que avançavam os saracuras, os Aimorés começaram de recuar, mas com ordem e calma. Graças a essa retirada, o visitador pôde montar a cavalo com a sua comitiva e escapar à rédea solta.